Texto sobre a violência - Portal de Periódicos Científicos da UTFPR

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v. 01, n. 02 : pp. 132-144, 2005
ISSN 1808-0448
D.O.I.: 10.3895/S1808-04482005000200011
Revista Gestão Industrial
VIOLÊNCIA E CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE NACIONAL BRASILEIRA
VIOLENCE AND CONSTRUCTION OF THE BRAZILIAN NATIONAL
SOCIETY
Igor Zanoni Constant Carneiro Leão
Professor adjunto do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná,
[email protected]
Recebido para publicação em: 21/11/2004
Aceito para publicação em: 13/06/2005
RESUMO
Este texto resgata visões clássicas da formação social e econômica brasileira desde a colônia até a
transição a uma sociedade nacional, indicando o lugar da violência como uma componente
articuladora da economia colonial, que a rigor termina em 1930. A partir daí, defende-se, a
violência passa a ser uma herança legada à superação pela luta política em torno da construção da
nação. A crise do Estado e da economia brasileira, entretanto, repõe a violência como uma herança
da não viabilização dessa construção e indica a dificuldade de trabalhar com ela num projeto
político alternativo ao liberalismo a que foi forçado o Estado brasileiro.
Palavras-chave: Violência, sociedade nacional brasileira, política
Uma pesquisa por poucos mas bons textos sobre a formação social e econômica do Brasil
revela o papel central da violência nessa formação no mínimo até 1930. Retomando, por exemplo,
Laura de Mello e Souza, como fio condutor, percebemos como a violência se insere num processo
já iniciado na Europa e em Portugal de pauperização e utilização dos pobres e desclassificados
como povoadores das colônias. Para além desse movimento geral é necessário procurar o que há de
específico e particular no nosso caso.
A colônia brasileira se constitui em peça de acumulação primitiva cujo objetivo principal era
dar lucros à metrópole através do exclusivo do comércio e do tráfico negreiro afim de nela
impulsionar a acumulação de capital no período mercantilista. O trabalho escravo é necessário não
só por sua intrínseca superexploração de trabalho compulsório, buscando coisificar o próprio
trabalhador nesse processo, e as grandes vantagens comerciais advindas do tráfico. Essa estrutura se
completa cm a grande propriedade agrícola de cunho comercial e no novo escravismo colonial.
Essa estrutura permite a formação de uma colônia de exploração produtora de gêneros
tropicais cuja comercialização favorecesse maximizar a acumulação de capital nos centros
europeus. Ora, essas bases precárias arrastavam um grande número de indivíduos dadas as
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flutuações e incertezas do mercado além de impedir o acesso à geração de dinheiro pelos
desprovidos de capital. Por sua vez, o escravismo bloqueava as possibilidades de utilização de
trabalho livre, gerava uma desqualificação do trabalho perante o homem livre e provocava no
escravo liberto um deslocamento nas suas bases sociais e existenciais.
A sociedade colonial está polarizada, portanto, por senhores e escravos, com uma camada
intermediária fluida e instável de trabalho esporádico incerto e aleatório ocupando as funções que o
escravo não podia ocupar porque implicaria desviar mão-de-obra da produção ou por colocar em
risco a condição servil, como as funções de supervisão, defesa e policiamento e funções
complementares à produção. Há toda uma população de aventureiros e desclassificados que de
Portugal vinham tentar o Brasil bem como uma camada de pessoas sem lugar na estrutura da
colônia vagando pelos arraiais esmolando morrendo de fome e doença, desclassificados social,
econômica e racialmente. A repressão à sua inutilidade vinha na forma do castigo do trabalho como
na constituição de corpos entrando pelo sertão; a guarda, defesa e manutenção dos presídios; o
trabalho nas obras públicas e na lavoura de subsistência; a formação de corpos de guarda e polícia
privada; a composição de corpos de milícia e de outros recrutados para fins diversos; a abertura e
povoamento de novas áreas.
A violência colonial, segundo ainda Laura de Mello e Souza, seguindo os passos de
Raymundo Faoro, tem um dos braços na utilização pelo Estado de indivíduos turbulentos e
facínoras bem como de desclassificados tornando difícil distinguir entre o potentado e o infrator. Há
uma convivência na mesma pessoa de aventureiros, assassinos e bandidos e homens bons. Nota-se
que nesse sentido urbanizar e normalizar a população e cobrar impostos tem a tarefa de reduzir os
moradores à obediência, ao sossego e à união sempre, contudo, no contexto do interesse de uma
camada restrita da população e do Estado absolutista. Nem eram outros os objetivos das ações
repressivas contra os quilombos, criminosos e infratores de modo geral, e a preocupação com o
concubinato por parte da Igreja.
Como se percebe, a justiça age na manutenção do sistema colonial utilizando fartamente a
violência, a coerção e a arbitrariedade. Os ministros possuíam bastante autonomia diante dos
governadores, nas localidades mais retiradas o capitão-mor eram uma autoridade plenária absoluta
altamente discricionária, e de maneira geral a violência da justiça se espelhava nas prisões, nos
castigos exemplares e na aplicação da pena de morte, afetando especialmente os pobres e os
desprovidos de propriedade. A justiça incidia sobretudo sobre os pobres, os mestiços, os negros,
dentre eles as negras quitandeiras acusadas de desordeiras, prostitutas, descaminhadoras de ouro e
coniventes de quilombolas, e os vadios a princípio pouco diferenciados dos assassinos e facinorosos
necessários à implantação da ordem colonial. Nesse sistema econômico injusto e nessa estrutura de
poder perversa proliferam vadios e desocupados, freqüentemente mandados para a prisão e o
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degredo obrigados a servir na cultura da terra, na mineração e nos ofícios mecânicos ou
simplesmente mandados para longe.
Note-se de passagem que a perseguição à vadiagem, quilombolas, facínoras e assim por
diante, todos unidos num processo próprio de classificação, desclassificação ou pura negação da
escravidão foi também freqüentemente singularmente violenta. Especialmente violenta é a
repressão por exemplo nas minas enquanto procurava normalizar as populações a ferro e fogo como
se percebe no Conde de Assumar e na sua luta contra negros sediciosos e potentados. Também
Cunha Menezes exemplifica o poder despótico da Coroa contra os interesses locais bem como aos
negros e mestiços.
Outra face do Estado igualmente violenta é o fiscalismo mercantilista. Os mineiros, por
exemplo, foram massacrados enquanto houve ouro sofrendo a injustiça de todas as formas adotadas
de arrecadação, especialmente a captação que incidia sobre a mão-de-obra e não sobre o produto. A
dificuldade em pagar o imposto, o empobrecimento por múltiplas extorsões reduzem os mineiros à
extrema pobreza, incitando o contrabando que, entretanto, teve na próprias penúria dos mineiros um
grande obstáculo. Essa situação será agravada no Distrito Diamantino.
Menos importante nas minas e mais forte em outros pontos da colônia, o papel
desempenhado pelos potentados e pelos oligarcas estende-se à polícia pessoal composta de
elementos socialmente desclassificados, ao exercício da justiça e da violência paralela ao governo.
Mesmo nas minas, todavia, eles compunham um grupo poderoso só discordando da estrutura de
poder como declínio da sua situação financeira e do próprio sistema colonial.
Com têm assinalado historiadores como Ronaldo Vainfas, a escravidão de negros e índios
não é a âncora para preconceitos raciais emergentes naquele tempo:
No entanto, a idéia de que o preconceito racial decorreu do escravismo é, no
fundo, uma simplificação errônea, pois supõe uma identificação quase absoluta
entre preconceito racial e preconceito de cor. Não resta dúvida de que ambos
andaram juntos e de que o escravismo ajudou a uni-los a ponto de quase confundilos na Colônia, mas eram, na verdade, preconceitos de natureza distinta, sendo
que os estigmas propriamente raciais provinham de Portugal, surgindo antes e
independentes do colonialismo escravocata. Percebemo-los, por exemplo, nos
estatutos de “limpeza do sangue” que inabilitavam para os cargos de honraria do
Estado os descendentes das chamadas “raças infectas” – os negros, mulatos e
índios, é verdade, mas também os mouros e sobretudo o s judeus.
Na verdade, preconceitos antigos próprios à idade média e ao declínio do império português
desde pelo menos finais do século XVI se atualizam na colônia brasileira, moldando a violência das
relações sexuais e étnicas. Ainda citando Ronaldo Vainfas:
Misoginia e racismo, eis o tempero das relações pluriétnicas da colonização
lusitana no Brasil, malgrado o empenho de Gilberto Freyre em adocicá-las. A tais
enlaces sexuais não faltaram ardor e mesmo afeto, os homens se lançando às
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índias que, por vezes, os recebiam com doçura; os brancos, às mulatas, de “mil
tentações”, que o diga Gregório de Matos; os senhores a cobiçar e galantear suas
escravas quando não os cativos, no caso dos apreciadores dos deleites nefandos.
Mas ao padrão pluriétnico da sexualidade colonial, fiel às hierarquias, não
faltaram também a humilhação das mulheres, os estigmas raciais de todo tipo, a
obsessão pela descendência sem nódoa no sangue, vulgarizada no dia-a-dia por
meio de palavrões. Não faltou, enfim, a violência física combinada à exploração
da miséria, traços essenciais do colonialismo escravocrata e das práticas de poder
no Antigo Regime.
É claro que o trabalho compulsório não pode se manter sem dificuldades. Há inúmeras
reações de escravos aos esforços de fazer com que a vontade dos senhores determinasse as suas
ações. Houve atitudes de revolta, desobediência às ordens, trabalho lento ou “preguiçoso” e trabalho
mal feito. Houve também fugas e quilombos, bem como assassinatos de senhores. Os escravos
procuraram criar também suas próprias famílias e forjar laços sociais com outros escravos como
com homens livres, ligando-se emocional e praticamente com antigos companheiros de escravidão
quando ele obtinha a liberdade e procuravam transmitir sua cultura na vida familiar cotidiana e na
prática de rituais tradicionais como o enorme patrimônio cultural religioso do Brasil atesta.
Entretanto, essas observações dão relevo adicional à própria violência constitutiva da relação
escravocrata na colônia e império. Mesmo no século XX, quando as altas taxas de juros, somadas
ao tempo necessário para recuperar o custo de criação dos filhos dos escravos até a idade de
trabalhar estimulavam alforrias individuais, estas foram em grande medida um instrumento
adicional para estimular bom comportamento de escravos pelo exemplo de servos extremamente
leais e obedientes. Sobre este ponto é interessante consultar Richard Graham.
A escravidão e as diversas formas de opressão que caracterizavam o estatuto colonial foram
seriamente contestadas nos movimentos que, com uma rica diversidade política e ideológica,
marcaram a transição até a independência da colônia portuguesa. A tributação opressiva e onerosa
foi, por exemplo, origem do movimento dos inconfidentes, o movimento mais sério contra Portugal
no século XVIII. Nesse aspecto, todavia, a conjuração da Bahia, 10 anos mais tarde, é
especialmente interessante. Movimento predominante urbano e extremamente radical, propunha
uma revolta armada de mulatos, negros libertos e escravos. Seus principais chefes eram artesãos e
soldados, os quais sob os ideais da Revolução Francesa propunham: independência política de
Portugal, democracia, um governo republicano e o livre comércio, e também liberdade, igualdade e
fraternidade, o fim da escravidão e da discriminação racial. Um movimento foi violentamente
esmagado diante de sua radicalidade e do espectro da revolta de São Domingos, mas teve a extrema
importância de colocar na colônia as idéias de liberalismo, igualitarismo e direitos do homem, bem
como da reserva pela população branca de uma contestação à metrópole.
O período que antecede mais imediatamente a independência não coloca em questão o
domínio de uma classe proprietária brasileira conservadora ou no máximo liberal-conservadora, que
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desejava manter as estruturas econômicas e sociais implícitas na grande propriedade, na escravidão
e na exportação de produtos agrícolas tropicais para o mercado europeu. Em cidades como Rio de
Janeiro e São Paulo, Salvador e Recife, muitos profissionais, artesãos, pequenos varejistas, soldados
e padres, a maior parte brancos, mas às vezes mulatos ou negros libertos, buscavam mudanças
profundas na política e sociedade como soberania popular, democracia, talvez uma república,
igualdade social e racial, às vezes reforma agrária e abolição da escravidão. Esse é o contexto social
em que se dá a independência, que em grande parte se instaurou de forma pacífica e rápida com um
grau elevado de continuidade política, econômica e social. Veja-se, por exemplo, o trabalho de
Leslie Bethell.
A consolidação, todavia, do império, que a rigor só se dá em meados do século, encontra
movimentos radicais que inscrevem no ideário de muitos brasileiros pontos liberais e democráticos,
mesmo na ausência de uma ideologia mais concreta e capaz de viabilidade política e material.
Como escreve Caio Prado Jr. em “Evolução política do Brasil”, o movimento praieiro como um
desses exemplos, apresenta como programa:
1º - voto livre e universal do povo brasileiro; 2° - plena liberdade de comunicar os
pensamentos pela imprensa; 3ª - trabalho como garantia de vida para o cidadão
brasileiro; 4º - comércio a retalho para os cidadãos brasileiros; 5º - inteira e
efetiva independência dos poderes constituídos; 6º - extinção do poder moderador
e do direito de agraciar; 7º - elemento federal na nova organização; 8º - completa
reforma do poder judicial em ordem a assegurar as garantias individuais do
cidadão; 9º - extinção do juro convencional; 10º - extinção do sistema de
recrutamento.
Todavia, o movimento da Praia é, para Caio Prado, o “estertor de agonia” do movimento
popular que acompanha a independência. Daí por diante até a república o panorama também é dado
por Caio Prado:
E assim entramos na segunda metade do século passado. As massa populares,
mantidas numa sujeição completa por leis e instituições opressivas, passam para
um segundo plano, substituindo pela passividade sua intensa vida política dos anos
anteriores. Pôde, assim, a grande burguesia indígena, entregar-se ao plácido
usufruto de toda a nação. Daí por diante as lutas são no seu seio. É dentro dela
que vamos encontrar os germes da discórdia, e será a luta destas tendências
opostas de grupos burgueses que constituirá a história política da segunda metade
do século passado.
O império é incapaz de mudança e atravessa um longo processo de progressiva
decomposição nos seus últimos tempos, até que a passeata militar do Mal. Deodoro põe fim à sua
estabilidade já comprometida sem que a maioria do povo compreendesse muito bem em que
consistia o movimento republicano.
Utilizando o belo e já antigo livro de Stanley J. e Barbara H. Stein, La herencia colonial de
América Latina, podemos com eles e conforme a tradição histórica periodizar a independência até o
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período após a independência como neo-colonial. Assim, as ex-colônias americanas ingressam na
vida independente sob a herança econômica e social de séculos de colonialismo, presas numa
brecha entre o atraso e a modernidade, entre tecnologia primitiva e avançada, entre níveis baixos e
altos de renda, poupança e inversão, entre alfabetismo e analfabetismo, entre obscurantismo e
ilustração, entre sociedades fechadas e abertas. Na verdade, apenas o início da industrialização e
mais especificamente quase um século depois da independência a América Latina começa a deixar
para trás sua herança colonial com uma economia mais autônoma e maior capacidade interna de
assegurar seu desenvolvimento. Digamos que no Brasil essa periodização coloque fim ao período
neo-colonial por volta de 1930.
No Brasil, em particular, a independência e o império se consolidam numa exportação de
produtos primários para sustentar os crescentes mercados de trabalho nos países industrializados,
sobretudo a Inglaterra, mantendo-se como um país “essencialmente agrícola”. Esse estado foi
conservado e ampliado pelas condições favoráveis à exportação de café, não apenas condições
naturais, essa possibilidade de manter como nação independente de trabalho escravo, bem como a
manutenção de uma política econômica favorável à elite de grandes plantadores brasileiros, apesar
da oposição inglesa.
O Brasil manteve este quadro graças a um forte executivo com faculdades políticas amplas
como a de declarar unilateralmente estado de sítio, nomear executivos provinciais, controlar
eleições locais graças a amplos poderes policiais e judiciais e estabelecimento de requisitos para
votar que condicionavam o voto a uma renda elevada e excluíam assalariados rurais e urbanos e até
a empregados do comércio. Na verdade, todos os cidadãos livres sem posses e pobres estavam
excluídos da participação política ao mesmo tempo em que eleições indiretas não davam acesso ao
voto popular de elementos que pudessem contar com esse voto. Os escravos não possuíam qualquer
representação parcial no parlamento e as taxas de alfabetização eram assustadoramente baixas
diante da ausência de escolas primárias.
No final do século XIX ficou claro para as elites regionais que o crescimento econômico
seria desigual, que apenas certos setores podiam se beneficiar da demanda externa e de fluxos de
capital e de tecnologia, bem como o fato de que para as elites de regiões atrasadas ou decadentes a
saída estava em se deslocar até o Rio de Janeiro ou poucas outras grandes capitais provinciais como
São Paulo em busca de oportunidade nos negócios ou na política. Este fenômeno é conhecido como
conciliação ou compromisso. Ele fez com que as elites que fizeram independência tivessem seus
descendentes ocupando postos chaves em todos os setores do governo e das forças armadas,
assegurando uma estabilidade às instituições básicas brasileiras apesar de uma estrutura da
sociedade baseada nas relações paternalistas entre proprietários e dependentes, a participação de
pequenos números de eleitores e regiões locais e a escravidão. Toda essa estrutura significa que o
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crescimento econômico sem grandes mudanças sócio-políticas no século XIX continuou articulado
no eixo da violência que é como uma trava mestra da sociedade colonial e de sua herdeira.
Até pelo menos a evolução de 30 pode-se dizer que a rigidez social e o exclusivismo da elite
que estabelece redes sociais patriarcais de riqueza, educação, poder e prestígio dominam o país
ainda que a modernidade já se faça sentir lentamente em movimentos sociais, artísticos e da
nascente classe operária. Há momentos, também, em que o liberalismo como com Rui Barbosa
acena com a possibilidade logo derrotada de não ser uma idéia fora de lugar na nossa formação. A
elite incorporava alguns jovens brancos capazes formados nas escolas nacionais de direito,
medicina ou engenharia e faziam carreira conscientes do seu lugar nessa ordem social restrita. A
aristocracia dos grandes proprietários monopolizava o poder executivo, legislativo e judicial do
governo e a alta burocracia. Os primórdios da indústria nacional no interior do complexo cafeeiro
trouxe à luz uma classe média urbana muitas vezes imigrante de comerciantes, médicos,
engenheiros e professores. Ao mesmo tempo, o problema do trabalho para essa indústria era
resolvido num complexo processo dominado pela imigração de trabalhadores sobrantes na Europa e
mais tarde no Japão, deixando de lado uma possível incorporação produtiva de ex-escravos.
Sem dúvida mestiços e mulatos puderam ser branqueados e alcançar espaço no caminho
estreito da mobilidade ascendente através de sua educação que estava longe de ser um direito
comum, constituindo-se antes em uma barreira à renda e à posição social. Funcionava no mesmo
sentido o gasto público, que reduzia ao mínimo o orçamento nesse setor, estreitando o espaço da
competição que a elite política, social e econômica mantinha. A questão da educação é vividamente
exposta neste trecho de Stanley J. e Barbara H. Stein:
O complexo sócio-psicológico das classes superiores colonial e neo-colonial
refletia a atitude dos senhores superiores brancos ou quase brancos para com a
população dependente, a qual a terminologia legal colonial havia chamado “gente
sem razão”, para os quais a lei natural prescrevia o status de inferiores. Os
dependentes não eram cidadãos de primeira classe de uma nação. Na América
Latina neo-colonial eram quase subordinados que requeriam direção, não
orientação. Além disso, os requerimentos tecnológicos das economias de
exportação não eram altos no século XIX; alfabetização não era um requisito
prévio para um homem com uma enxada.
Se em grande medida os índios foram literalmente eliminados ou se isolaram do mundo do
homem branco, a desvantagem social e econômica do negro era também espantosa, levando sempre
as marcas de sua história e o trauma da escravidão a gerações sucessivas de descendentes afrobrasileiros. O mestiço, embora aceito dentro de certas proporções num processo intencional de
branquificação e paralelismo cromático e social, como o denomina Caio Prado Jr., não deixou de
ser estigmatizado, embora mulatos e brancos pobres tenham podido se beneficiar em certa medida
das oportunidades de trabalho oferecidas pelos centros urbanos no centro-sul.
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O mais importante, entretanto, é que essa ascensão limitada de homens de cor não
ameaçava o controle da elite sobre a propriedade, a riqueza, a renda e a educação. Foram, assim,
tolerados, seja no interior da família, seja em empregos urbanos e industriais como pequenos
comerciantes ou pequenos funcionários públicos. Os empregos de status superior estavam vedados
a ele e as exceções como José do Patrocínio ou Machado de Assis mostraram a capacidade da elite
em cooptar ou tolerar talentos. O avanço econômico europeu e americano lançou mesmo sobre o
Brasil um pessimismo sobre a sua formação étnica num momento em que o próprio pensamento
europeu ganhava cores racistas em relação aos povos supostamente inferiores da periferia mundial.
Parecia que a superação do atraso frente à Europa era impossível dada a dotação de
recursos humanos marcada por uma suposta “apatia, indolência e imprevisão” das massas. Essas
idéias davam a validade científica aos conceitos arraigados de hierarquia social e de uma escala de
inferioridade social próprias do período colonial e persistindo muito depois da independência.
Pensar numa sociedade liberal universalista e aos moldes do liberalismo e do iluminismo era
impossível. Mas esses sentidos sociais de raça e classe foram duramente testados por um conjunto
de escritores excepcionais como Lima Barreto e invertidos radicalmente por movimentos
modernistas desde a década de 20, bem como por movimentos políticos de matiz operário e sindical
ou de classe média, inclusive neste último caso de militares jovens ligados ao tenentismo. Há um
ápice teórico na geração de 30 que inverte esses sentidos com Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de
Holanda e Gilberto Freyre, dando continuidade a uma antiga busca pela nação e pelo homem
brasileiros dentro da tradição iniciada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do
Amaral e outros que começam sua carreira na década anterior. Há também um ápice político que
pode ser representado pela Coluna Prestes.
Todas essas correntes ganham um novo sentido após terem ficado claros os limites de
reprodução do complexo cafeeiro, claros o bastante após a Grande Crise, e os limites do Estado
patrimonial e patriarcal brasileiro para a construção de alternativas sociais e econômicas que
passam a ser buscadas com esperanças, dilemas e inúmeras dificuldades a partir da Revolução de
Outubro. Pode-se dizer que a partir daí os caminhos da sociedade brasileira permitem o início da
superação do estatuto neo-colonial e a violência passa a um segundo plano como elemento de
organização estrutural pelo menos de um Brasil novo que está nascendo nos poros do velho Brasil.
Neste ponto do texto gostaria de recorrer à obra de Caio Prado Jr. e aos conceitos
fundamentais com os quais pensa o desenvolvimento brasileiro inserindo aí o problema da violência
no período colonial e neo-colonial.
Como se sabe, para esse autor a escravidão veio desacompanhada de qualquer elemento
construtivo a não ser no aspecto restrito da realização de um negócio, fazendo com que os povos
colonizadores pusessem de lado os princípios e normas essenciais em que se fundamentavam sua
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civilização e cultura, resultando em degradação e dissolução que repercute no próprio progresso e
na prosperidade material. A nação brasileira nasce a partir do critério da precariedade e
unilateralidade do negócio, o que explica a continuidade após a independência de uma economia em
que o negócio, isto é, o vínculo mercantil e a motivação do lucro, predominam sobre as
necessidades humanas transformadas em simples meio ou pretexto para aquele negócio.
Numa economia de caráter nacional, mesmo capitalista, o negócio e as necessidades
humanas às quais ele atende se articulam e se confundem dentro de um mesmo corpo social. Numa
sociedade formada, desde sua gênese, sob o signo do negócio e estruturado por ele isso não ocorre,
uma vez que a grande massa da população que a compõe vem a participar basicamente como
contribuinte para a realização do negócio pretendido.
A predominância do negócio como eixo da vida econômica permite distinguir entre
sociedades coloniais e nacionais, segundo se articulem ou não em seu interior as figuras do
trabalhador como produtor e como consumidor. A redução, na pessoa do escravo, do trabalhador à
simples expressão de força bruta, material sob o açoite do feitor, acrescido na mulher à passividade
na cópula sem outro elemento ou concurso moral, fazem com que a “animalidade” do homem, e não
a sua humanidade, seja ressaltada. Assim, colônia e nação são valores e categorias analíticas para
Caio Prado Jr., tendo na base a noção de negócio e as possibilidades que ele pode oferecer em cada
caso ao trabalhador referentes ao seu consumo e manifestação cultural, ou seja, à sua humanidade.
A economia nacional implica o atendimento aos interesses gerais e permanentes da grande
maioria da população, a superação da exclusão social e da miséria e, portanto, a igualdade social. É
esse atendimento que assegura uma larga base para o consumo e o torna um elemento
impulsionador primário e consistente do aumento da produção, assegurando ao país progresso autoestimulado, característico dos países avançados. A economia nacional supõe, portanto, a superação
dos baixíssimos padrões materiais de vida característicos do país e da grande massa da população
que o compõe na medida em que se mantêm características da economia nacional que fizeram do
país e de sua estrutura sócio-econômica, antes um produtor de mercadorias voltadas ao consumo
externo que um consumidor.
A economia nacional supõe mercado interno amplo, promoção da igualdade e
homogeneidade social e, a partir daí, superação da dependência, característica de um país forjado no
interior do antigo sistema colonial e no qual o processo de constituição da nação e da economia
nacional ainda não se completou, não se completando, portanto, neste país, a liberdade e autonomia
de sua população e a soberania nacional.
Entre a economia colonial e a economia nacional há um processo de transição ou de
desenvolvimento ainda inconcluso, examinado a partir da ótica de rupturas parciais com a ordem
antiga e das propostas para conclusão desse processo de transição. O autor periodiza esse processo
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tendo como marcos a independência, a abolição, a instauração da república burguesa e a crise de
1930. Para o que nos interessa aqui, vejamos esse último período. Este é um período de crise de um
sistema revelada quando a grande crise internacional desnuda as debilidades de uma economia com
dinamismo na lavoura exportadora de café. Nesse momento mostra-se clara a estreiteza da base
econômica da vida brasileira, premida entre o ritmo de existência e progresso material atingidos
pelo país, de um lado, e sua condição periférica e dependente de outro.
Há, pois, uma contradição entre essa base material e a estrutura econômica e social imposta
pelas novas condições do mundo de que o Brasil participava e que se espelha na dificuldade de
sustentar o ritmo de desenvolvimento. Coloca-se, então, a alternativa entre a decadência e o
desenvolvimento de novas formas econômicas que, embora ainda marginais ao sistema produtivo
fundamental do país, manterão sua vitalidade econômica e formarão os germes de uma genuína
economia nacional. Esse processo assiste ao que a Cepal iria denominar “industrialização por
substituição de importações”, completada a rigor na industrialização pesada sob o plano de metas,
mas de modo contraditório na medida em que o capital estrangeiro permanece um eixo reitor da
economia brasileira. A consecução da economia nacional ainda é, portanto, um projeto político.
A partir dessa leitura de Caio Prado Jr. talvez seja possível dizer que a transição para uma
economia nacional, especialmente desde os primórdios da industrialização brasileira, deslocam a
violência sistemática no sentido exposto neste texto como elemento estruturador da vida econômica
e social brasileira. Não se trata tão só do crescimento industrial, mas também da ampliação das
funções e do tamanho do aparelho do Estado, conformando um Estado que busca, intencionalmente,
o desenvolvimento e inclui um embrião de Estado previdenciário. O gasto e o financiamento
públicos são peças fundamentais nesta estrutura, dinamizando o tecido econômico e tornando-o
mais inclusivo, ao permitir o surgimento ou ampliação de classes sociais tanto na base industrial
como o de um amplo segmento de classes médias nascidas na modernização da economia e do
Estado e da sua expansão.
Isto não quer dizer que a violência esteja ausente da vida econômica e social. Ela
predomina, ainda, seja nas atividades tradicionais, mas está presente também na sua modernização
conservadora com a “industrialização do campo” a partir do final dos anos 60 e o conseqüente
êxodo rural. A má distribuição de renda e da propriedade do solo urbano e rural, a precária extensão
do sistema de seguridade social, a elevada informalidade do mercado de trabalho, bem como uma
legislação trabalhista muito distante da vigente nos países desenvolvidos, também são exemplos
dessa violência sistêmica numa sociedade de passado colonial. Está presente também na contenção
do movimento urbano com núcleo nos setores industriais modernos, bem como na violência política
que está presente todo o tempo na vida nacional e de forma programática no regime militar.
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Todavia, penso que essa violência faz parte dos limites aos quais se quer confinar a
transição para a economia nacional. Aparentemente para Caio Prado Jr. a consecução dessa
economia nacional era inexorável. Na prática, ela foi uma busca política, como aliás também para o
próprio Caio Prado Jr., permanentemente enredada nas vicissitudes da luta de classe no sentido mais
amplo. Ela é uma violência que representa o atraso, o passado, o viés colonial remanescente e que
ainda hoje, sob formas renovadas, marca a vida brasileira.
Na verdade, a construção de uma economia nacional parece ter se interrompido nas últimas
duas décadas do século XX, como já foi dito várias vezes, uma época de guerras globais, conflitos
ideológicos articulados com um Estado hegemônico que reinventa um liberalismo que parecia
esquecido desde o pós-guerra, ascensões e quedas repentinas com grandes impactos e desafios
ecológicos e políticos implicando toda a humanidade. Noutros termos, os homens passam a viver
sob uma totalidade que vem sendo discutida especialmente pelos teóricos do pós-modernismo e dos
seus críticos.
Esse contexto é o da crise da economia internacional cujos complexos contornos estão
ainda por ser completamente compreendidos. Uma das sua faces foi o colapso do crédito externo
para a periferia, provocando uma reversão do ciclo de industrialização começado na década de 30.
A idéia de autodeterminação da acumulação de capital na estrutura produtiva brasileira é checada e
tem início um processo que autores como Plínio de Arruda Sampaio Jr., inspirado em Caio Prado
Jr., denomina “processo de reversão neo-colonial”. Este é intensificado por uma política econômica
passiva diante dos credores internacionais e dos organismos que coordenam o financiamento e as
políticas conseqüentes para a periferia. Esse processo implicou na não superação do
estrangulamento cambial, perda de competitividade da economia brasileira e erosão fiscal e
financeira do Estado, crescentemente em desvantagem na luta pela preservação da moeda nacional e
do valor contábil das empresas privadas.
Mesmo assim, segmentos políticos liberais democráticos colocaram, durante os anos 80,
resistência a esse quadro, cujo auge é a constituição da Nova República e o Plano Cruzado. Nos
anos 90 essa resistência foi substituída por uma rápida liberalização comercial e financeira, que
permitiu uma dura renegociação da dívida externa e um novo ciclo de endividamento, implicando
em desestruturação do aparelho produtivo público e privado, desarticulação do mercado de trabalho,
aumento da segregação social e segmentação do espaço econômico nacional em regiões que
buscavam constituir-se em “ilhas de prosperidade” capazes de, sob o estímulo da guerra fiscal, fugir
aos impasses da problemática federação brasileira.
O governo federal tem mantido um exíguo espaço político pelo qual se vêm aproveitando
brechas do mercado internacional, especialmente graças a uma habilidosa política externa, soldando
um pacto com grandes países importadores de commodities, nas quais o Brasil reencontrou sua
Revista Gestão Industrial
Leão, I. Z. C. C.
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velha tradição exportadora e uma especialização regressiva do ponto de vista de um país que
buscava a maturidade industrial e tecnológica. Nesse sentido, a idéia modernista de nação enquanto
espaço efetivo de cidadania, liberdade e igualdade social perde fundamentos econômicos e é
incapaz de soldar uma sociedade tradicionalmente fragmentada e hoje sob o poder quase
incontrastável da mídia e dos grandes bancos.
O Brasil encaminha-se para um liberalismo forçado por essas condições adversas. O
Estado ganha uma espécie de apatia ética, que esconde a defesa de interesses muito fortes contra os
interesses do conjunto da sociedade, exceto os interesses financeiros. Como assinala Terry
Eagleton, esse liberalismo, como aliás todo liberalismo, censura qualquer manobra para controlar de
modo mais cooperativo a vida econômica. Não há possibilidade de discutir o que significa, para os
atores sociais, os passos necessários para eliminar suas carências e a determinação mais
disseminada de significados e valores dentro de uma cultura compartilhada ou construída de forma
mais homogênea. Com isso se apaga uma discussão essencial sobre a virtude e a sustentação das
instituições políticas que cooperem para o bem-estar no sentido pessoal e comum.
Embora se defenda, como no “liberalismo clássico”, o desenvolvimento individual, as
extremas diferenças existentes na sociedade brasileira exigem a presença do Estado para que os
indivíduos possam ter liberdade, proteção e os recursos de que precisam para se desenvolverem ao
seu próprio modo individual. A violência que perpassa a sociedade brasileira de modo difuso hoje
não articula uma sociedade colonial. É fruto, antes, de uma desarticulação em que se perderam
projetos políticos e pessoais.
ABSTRACT
This text rescues classical points of view regarding the Brazilian economic and social formation,
from colonial times until the transition into a national society, pointing out the role of violence as an
articulator of colonial economy, which in theory ends in 1930. From that point, it is claimed,
violence becomes an inheritance to be overcome through the political fight around the construction
of the nation. The State as well as the economic crisis in Brazil, however, put violence back as an
inheritance of the impossibility of this construction and indicate the difficulty of working with it in
a political project that is alternative to the liberalism the Brazilian state was forced into.
Key words: Violence, Brazilian national society, politics
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