000806401 - Repositório Institucional UNESP

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UNESP- Universidade Estadual Paulista-“Júlio de Mesquita Filho”
FAAC- Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Curso de Jornalismo
MEMORIAL DE PROJETO EXPERIMENTAL
(LIVRO-REPORTAGEM ‘DO OUTRO LADO DO ESPELHO’)
Bauru, 2014
Aline Ferreira Pádua
Lydia Rodrigues Souza
MEMORIAL DE PROJETO EXPERIMENTAL
(LIVRO-REPORTAGEM ‘DO OUTRO LADO DO ESPELHO’)
Memorial de Projeto Experimental apresentado
em cumprimento parcial às exigências do Curso de
Jornalismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação, do Departamento de Comunicação Social,
da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, para obtenção do título de Bacharel em
Comunicação Social - Jornalismo.
Orientador do Projeto Experimental:
Prof.Dr. Célio José Losnak
Bauru, 2014
SUMÁRIO
Capítulo I
Introdução........................................................................................05
1. A escolha do tema................................................................05
2. Tema e justificativa...............................................................05
Capítulo II
Produto Jornalístico........................................................................09
1. Público alvo...........................................................................09
2. Projeto Gráfico Editorial.......................................................09
3. Descrição do produto...........................................................09
4. Fontes e entrevistados.........................................................10
5. Equipamentos utilizados......................................................12
6. Atividades desenvolvidas.....................................................12
Capítulo III
1. Dificuldades encontradas....................................................14
2. Outras informações..............................................................14
3. Considerações Finais...........................................................16
Referências Bibliográficas..............................................................18
CAPÍTULO I
5
INTRODUÇÃO
1. A escolha do tema
A escolha do tema deste trabalho veio da influência do primeiro projeto de
extensão que participamos na faculdade, o Toque da Ciência. O projeto é um
portal de divulgação científica que trabalha com jornalismo literário na seção
Revista, linguagem radiofônica por meio dos podcasts e jornalismo diário na
seção Agência. O projeto possibilitou que lidássemos com temas científicos,
variados assuntos e fenômenos por meio do jornalismo. Também pudemos ter
contato com pesquisadores, professores e profissionais de diversas áreas do
conhecimento. Além das fontes oficiais, conhecemos pessoas que dividiam
suas histórias conosco nas reportagens, tendo um papel essencial em meio ao
contexto científico das matérias jornalísticas. Percebemos que era importante
pensar no leitor, escrever do melhor modo para seu entendimento e aproximar
seu cotidiano dos temas abordados. Permanecemos no projeto nos quatro
anos da nossa graduação. Se o projeto Toque da Ciência marcou nossa vida
acadêmica, morar em Bauru fez diferença em nossa vida pessoal. Mudar de
cidade trouxe novas experiências e desafios. O Hospital de Reabilitação de
Anomalias Craniofaciais atava essas pontas: ciência e Bauru.
O hospital consolida-se internacionalmente como centro de referência no
tratamento das fissuras labiopalatinas e também de síndromes relacionadas e
deficiência auditiva. Como hospital universitário, oferece cursos de pósgraduação e de extensão, especializações, mestrado e doutorado. O hospital é
conhecido como Centrinho e tem 46 anos de existência. O atendimento é
gratuito via Sistema Único de Saúde.
2. Tema e justificativa
O livro-reportagem “Do outro lado do espelho” - A história de vida de
pacientes do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da
Universidade de São Paulo (Centrinho) apresenta a trajetória de dez pacientes
com fissuras labiopalatinas, as fases do tratamento e a história do Centrinho
6
desde sua fundação, em 1967, até 2013. A proposta fundamenta-se em
entrevistas com pacientes ou ex-pacientes do Centrinho e com profissionais
das principais áreas relacionadas ao tratamento da malformação.
A fissura labiopalatina é uma malformação congênita que ocorre nos
primeiros meses de gestação durante a formação da face do bebê e consiste
em uma abertura no lábio ou céu da boca (palato), podendo ocorrer ao mesmo
tempo nas duas estruturas. As cirurgias e os procedimentos médicos devem se
iniciar quando o paciente ainda é bebê e o tratamento só é concluído, na
maioria dos casos, na fase adulta, pois muitas intervenções acompanham o
crescimento da face. Desse modo, a vida dos pacientes com fissura
labiopalatina atendidos pelo Centrinho se relaciona com as várias etapas
tratamento.
Os pacientes têm suas vidas modificadas ainda pelo fator espacial.
Muitos deles precisam se deslocar até a cidade de Bauru para receber o
tratamento. Nesse sentido, quebram-se rotinas e cria-se a necessidade de se
adequar a um novo ambiente. Em paralelo, observando as questões voltadas
às individualidades de cada paciente, abordamos a relação da pessoa com a
malformação levando-se em conta os fatores como a aceitação própria e o
convívio social. Também trabalhamos com a história da instituição, seu
crescimento, dificuldades e modificações físicas e administrativas.
Assim a trajetória de vida dos pacientes, as fases do tratamento e a
história da instituição foram os pilares da construção da narrativa. O tratamento
envolve uma análise dos métodos médicos e a evolução destes. A história da
instituição destaca o programa de tratamento de fissura labiopalatina do
hospital que é centro de referência no país e se desenvolve de acordo com a
trajetória de vida de pacientes de diferentes lugares, numa organização por
décadas.
Como justificativa para o trabalho, destacamos a função do jornalismo
como prestação de serviço ao público. Assim, por meio do trabalho objetivamos
contribuir para o esclarecimento do leitor em relação à malformação, às
técnicas e desenvolvimento científico do tratamento e retratar a trajetória da
pessoa com fissura labiopalatina, mostrando as influências da malformação na
7
identidade da pessoa, dilemas de sua inserção social e as alternativas que o
tratamento oferece para a formação do indivíduo como sua reabilitação física e
psicológica. O formato de livro-reportagem possibilitou uma contextualização
adequada ao tema com uma abordagem histórica, científica e social por meio
da linguagem do jornalismo literário.
8
CAPÍTULO II
9
PRODUTO JORNALÍSTICO
1. Público alvo
O livro-reportagem destina-se ao público leigo em geral. Para pessoas
que se interessem pela temática da malformação fissura labiopaltina, pela
história do hospital Centrinho e/ou pelos perfis de pacientes apresentados, seja
pela proximidade com o tema por serem pacientes ou pais de pacientes, seja
por busca de esclarecimento pelo assunto. Procuramos alcançar pessoas que
estejam tendo o primeiro contato com o tema, mas também público
especializado que busque uma visão contextualizada e humanizada da
temática científica retratada.
2. Projeto Gráfico-Editorial
O projeto gráfico do livro-reportagem foi desenvolvido por Emanuel
Antonio Guimarães Martins. Buscou-se uma diagramação clara e objetiva,
trabalhando com material textual e fotográfico. O livro se encaixa na editoria
“Ciência”, pois aborda a malformação e as fases de tratamento, sendo que
esse material se relaciona com as fontes entrevistadas para os perfis. Optou-se
por escrever os perfis com a linguagem do jornalismo literário que possibilita
aprofundamento, contextualização e maior liberdade de criação. Para a parte
científica e histórica foi usada a linguagem mais clara direta do jornalismo
diário, pelo tipo de informação obtida que requeria maior exatidão e
objetividade.
3. Descrição do produto
O livro possui 165 páginas com divisão em seis capítulos, além de
Agradecimentos, Epígrafe, Prefácio, Índice, Introdução e Posfácio. As fotos
são de autoria das alunas Lydia Rodrigues Souza e Aline Ferreira Pádua, e
também foram utilizadas imagens do arquivo do Hospital de Reabilitação de
Anomalias Craniofaciais- Centrinho (HRAC/USP) para a parte de história da
instituição. Para a abertura das décadas, entre 1960 e 2013, optamos pela
utilização de fotos, assim como nos perfis de pacientes e posfácio. Duas fotos
foram cedidas pelos próprios entrevistados como no caso do perfil de Miguel e
10
Cristiane Rino Valle e Diogo Garcia. Com as fotos buscou-se ilustrar a
cronologia do hospital e dar personalidade aos perfis, aproximando as histórias
do leitor. Como capa, escolhemos uma foto que ilustra a transformação física
de um paciente (João Antônio Corrêa de Souza), apresentando três momentos
temporais: o presente pela mão que segura a moldura fotográfica e dois
momentos do passado que mostram a evolução do tratamento por meio das
modificações faciais do paciente. A foto também traz uma referência ao
passado do Centrinho, já que o arquivo fotográfico é físico e não digital como
acontece atualmente e, por constar na moldura a denominação antiga do
hospital: “HPRLLP” - Hospital de Pesquisa de Reabilitação de Lesões LábioPalatais.
4. Fontes e Entrevistados
A produção do livro-reportagem “Do outro lado do espelho” teve início
em março de 2013 com a elaboração do pré-projeto e requisição da permissão
para o trabalho junto ao setor de comunicação do Hospital de Reabilitação de
Anomalias Craniofaciais (HRAC). Obtida a permissão para realização de visitas
ao hospital e entrevistas, deu-se início ao levantamento bibliográfico sobre o
tema a ser tratado, ou seja, fissuras labiopalatinas. Para isso foram utilizados
materiais institucionais concedidos pelos assessores de imprensa do hospital,
livros e artigos da biblioteca do HRAC, concedidos via empréstimo entre
bibliotecas. Ainda foram consultados sites e blogs, livros que abordam as
técnicas de entrevista e redação de livros reportagens, além de livrosreportagem de autores já consagrados do jornalismo.
Em abril de 2013, tendo realizado leituras e fichamentos sobre o tema
tratado no livro, iniciamos a seleção de fontes e entrevistas orais. Entre os dias
quatro e cinco de abril, aconteceu o XIII Encontro Nacional de Associações de
Pais e Pessoas com Fissura Labiopalatina e /ou Deficiência Auditiva e IX
Encontro da Rede Nacional de Associações de Pais e Pessoas com Fissura
Labiopalatina- Rede Profis onde pudemos conhecer membros de associações
em prol dos fissurados de todo o país. Nessa ocasião fomos apresentadas a
11
Jozue Meza Pereira e Henry Cavalcante Pereira. Jozue é fundador da
Alecranfra (Associação de Portadores de Lesões Labiopalatinas e Deficientes
Auditivos do Estado do Acre) e pai de Henry, paciente do hospital. A entrevista
aconteceu na pousada onde os dois estavam hospedados, nas proximidades
do Centrinho. Nos dias seguintes, em oito de abril, realizamos uma visita
guiada na Profis (Sociedade de Promoção Social do Fissurado Lábio Palatal),
em Bauru, onde conhecemos a história de Fredson Evanildo Martins Pereira,
um funcionário do local e paciente do Centrinho, e sua irmã, Aldria Marlen
Martins Pereira. A entrevista com os irmãos ocorreu em maio, no dia nove. Na
ocasião, fomos à casa de Aldria, no Jardim Camélias, onde pudemos conhecer
seu esposo e filhos.
No mês de abril, realizamos mais três entrevistas. No dia 23, com
Fernando Tamarozzi, paciente e ex-funcionário do HRAC que conhecemos nos
corredores do hospital. Entre os dias 28 e 29 com Rodrigo Inácio de Oliveira,
paciente da cidade de Franca, e João Antônio Côrrea de Souza, paciente e
funcionário do Centrinho. As entrevistas com Fernando e João Antônio
aconteceram nas dependências do HRAC, já a entrevista com Rodrigo foi
realizada em sua casa, em Franca. Já em maio, conhecemos outros dois
pacientes. Alysson Carvalho foi entrevistado no dia 20 na Praça das Cerejeiras
e Flávia Suano de Carvalho, no dia 25, na pousada de sua mãe, a “Pousada da
Wanda”. Em junho, foram entrevistadas duas mães de pacientes: Cristiane de
Azevedo Rino Valle, mãe de paciente Miguel Rino Valle, e Helenice Aparecida
Porto Gera, mãe de Ana Flora Porto Gera. Ambas as entrevistas foram
realizadas nas residências das fontes, uma em Bauru, outra em Franca.
Entre abril e junho realizamos ainda entrevistas com profissionais do
hospital: Cleide Carolina da Silva Bemoro Mondini, chefe técnica do serviço de
enfermagem; Cristina Guedes de Azevedo Gonçalves, fonoaudióloga; Eudes
Soares de Sá Nóbrega, cirurgião plástico; Maria Inês Gândara Graciano,
diretora do Serviço Social; Marlene Aparecida Menconi, psicóloga; Terumi
Okada Ozawa, cirurgiã dentista e chefe técnico do Serviço de Odontologia;
Viviane Gasparoto, técnica de apoio educativo. Foram entrevistados também
dois profissionais da Profis: Fernanda Fernandes Murakami, assistente social e
12
Marcos Vinício Faria, gerente geral. Outra pessoa que contribuiu para a
realização do projeto foi Tiago Rodella, assessor de imprensa do HRAC.
Por fim, no mês de outubro, no dia 20, foi entrevistada a mãe de
paciente Samara de Paula Lemes Apolinário, mãe de Ana Laura Lemes
Apolinário.
5. Equipamentos utilizados
Para a execução do Projeto Experimental foram utilizados 2 notebooks,
2 gravadores de áudio, uma câmera fotográfica e 3 pen-drives. Todos os
equipamentos utilizados são de propriedade das autoras deste relatório.
6. Atividades desenvolvidas
Durante a realização do Projeto Experimental foram desenvolvidas as
seguintes atividades: levantamento de dados bibliográficos com leitura e
fichamento de livros e materiais institucionais, além de consulta periódica a
sites e blogs ligados ao hospital; entrevistas com profissionais do hospital e
pacientes, sendo 22 no total; transcrição dos áudios e seleção do conteúdo
para o livro; redação do livro-reportagem; revisão do material.
O projeto gráfico, diagramação e capa do livro-reportagem foram
executados por Emanuel Antonio Guimarães Martins. A impressão foi realizada
na gráfica Rápida Avalon.
13
CAPÍTULO III
14
1. Dificuldades encontradas
A primeira dificuldade encontrada no processo de produção do livroreportagem “Do outro lado do espelho” diz respeito ao levantamento
bibliográfico sobre a fissura labiopalatina e a história do Hospital de
Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (Centrinho), já que muitos dos
materiais disponíveis eram folhetos institucionais com pouco aprofundamento
teórico ou não estava à disposição para consulta. Assim foi preciso pesquisar
possíveis títulos na biblioteca virtual da Universidade de São Paulo, instituição
a qual o hospital é ligado, e solicitar o empréstimo entre bibliotecas.
Outra dificuldade encontrada liga-se a necessidade de que o trabalho
jornalístico passasse pela liberação da assessoria do hospital, ou seja, as
entrevistas e as visitas dentro do hospital precisavam ser acompanhadas pelo
assessor, Tiago Rodella. Foi também por meio do setor de comunicação do
hospital que conhecemos as histórias de cinco dos dez pacientes entrevistados
para o trabalho. Notando a frequência com que as mesmas fontes eram
indicadas para outros trabalhos de diferentes mídias, optamos por encontrar
personagens para o livro por diferentes meios. Para isso, passamos a participar
de grupos de pais e pacientes do Centrinho na rede social Facebook e a pedir
indicação para pacientes já entrevistados ou seus familiares. Com isso,
conseguimos encontrar fontes sem a indicação do setor de comunicação.
Procuramos realizar as entrevistas em um ambiente mais confortável para as
fontes, fugindo do ambiente hospitalar. Realizamos entrevistas nas casas das
fontes, em locais públicos de Bauru e em pensões próximas ao hospital.
Tivemos também a preocupação de mantermos contato com os personagens
entrevistados durante o processo de produção, já que muitos passariam por
cirurgias meses após as entrevistas.
2. Outras informações relevantes
Cabe destacar que durante a produção do livro-reportagem nos
preocupamos em abordar a temática retratada de forma abrangente,
15
contextualizada e embasada. Para isso, utilizamos 30 obras e materiais
institucionais para aprofundamento da realidade e embasamento teórico,
realizamos visitas constantes ao hospital e entrevistamos 22 pessoas entre
pacientes, pais de pacientes e profissionais do hospital. Na seleção dos
pacientes personagens dos perfis procuramos escolher pessoas com idades e
histórias diferentes, respeitando a construção da narrativa em décadas, com a
finalidade de mostrar a heterogeneidade de pessoas atendidas pelo hospital.
Assim, para a década de 1960 escolhemos João Antônio Corrêa de Souza, um
dos primeiros pacientes do Centrinho, morador de Bauru e que iniciou seu
tratamento com quatro anos.
Na década de 1970 estão os irmãos Fredson e Aldria Marlen Martins.
Eles nasceram no estado do Pará e iniciaram o tratamento no Centrinho ainda
crianças graças à ajuda de um padre que levava fissurados de todo o país para
o hospital. Para a década de 1980 foram escolhidos três personagens.
Fernando Tamarozzi que nasceu em Goiânia (GO) e foi deixado pelos pais em
um orfanato, encontrou uma nova família em Bauru quando iniciou o
tratamento no Centrinho. Rodrigo Inácio de Oliveira que nasceu em Franca
(SP) e iniciou o tratamento em Ribeirão Preto onde fez somente as cirurgias
iniciais. Quando começou o tratamento no Centrinho ele passou por
dificuldades já que a época certa para as cirurgias havia passado. Ele desistiu
do tratamento e retomou em 2013. Também Flávia Suano compõe a década de
1980. Ela nasceu no estado do Rio de Janeiro, iniciou o tratamento aos dois
anos. Pouco depois foi deixada pelo pai aos cuidados de Wanda Suano, dona
de uma pousada nas proximidades do hospital, que a adotou anos depois.
Para a década de 1990, entrevistamos o acreano Henry Edson
Cavalcante Pereira que viaja 3.216km para receber o tratamento no Centrinho.
Henry é filho de Jozue Pereira, fundador de uma associação em prol dos
fissurados no estado do Acre. Também faz parte dessa década Alysson
Carvalho que nasceu na cidade de Cachoeira do Itapemirim (ES), viveu em
Três Corações (MG) na infância e agora mora com a família em Bauru. Na
década de 2000 trazemos outras duas histórias. A história de Ana Flora Porto
Gera, moradora de Franca, que participou do Projeto Flórida, é narrada por sua
16
mãe Helenice Gera. Quem narra a história de Ana Laura Apolinário também é
sua mãe, Samara Apolinário. Ana Laura tem oito anos e já passou por 12
cirurgias, o caso da menina é uma incógnita no hospital, pois não conseguem
comprovar as suspeitas de síndrome da paciente. Na década de 2010
trazemos o personagem Miguel Rino Valle, filho de Cristiane Rino Valle, mãe
bauruense que participou do Projeto Gestante. Por fim, o posfácio conta a
história do nascimento e do início do tratamento de Diogo Pádua Garcia,
sobrinho de uma das autoras que nasceu em outubro de 2013 com fissura
labial bilateral e fenda palatina. Vale apontar que todas as entrevistas foram
realizadas com adultos e, nos casos de personagens com menos de 18 anos,
foram entrevistados os pais ou responsáveis.
3. Considerações Finais
Finalizado o processo de produção do livro-reportagem “Do outro lado
do espelho” é importante destacar a importância deste trabalho para nossa
formação acadêmica. Na produção do livro-reportagem pudemos colocar em
prática a totalidade dos conhecimentos adquiridos dentro e fora da sala de aula
durante os quatro anos de graduação. À parte das técnicas jornalísticas
utilizadas, pudemos inserir no trabalho habilidades adquiridas em disciplinas
como, por exemplo, Realidade Socioeconômica Regional e Brasileira ao nos
depararmos com relatos de pacientes de diferentes níveis sociais e, ainda,
Antropologia e Psicologia, quando ouvimos relatos tomados por subjetividades
e sentimentos em relação à malformação. Ainda, escrever o livro-reportagem
foi para nós um desafio de utilizar o jornalismo como ferramenta de uma
narrativa contextualizada e aprofundada. Utilizar jornalismo literário e, ao
mesmo tempo, trabalhar com a linguagem científica, deu-nos a possibilidade de
criar e estabelecer bases na teoria. Por fim, este livro representa um trabalho
em que buscamos reunir as técnicas e teorias aprendidas no curso de
jornalismo aos nossos gostos e interesses pessoais, como a narrativa de perfis
e jornalismo científico. Há ainda a contribuição puramente humana. Durante os
meses de preparação do trabalho de conclusão de curso conhecemos uma
realidade tão distante da nossa e, também, pouco conhecida e tivemos que
17
saber respeitar os limites de cada um, inclusive de nós mesmas. Como
descreve o prefácio do livro, nós jogamos nosso espelho habitual no chão para
ver com mais clareza a realidade de vida de cada paciente e entender o
processo de reabilitação e, assim, transpor a superfície refletora e olhar do
outro lado do espelho.
18
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Blog do Centrinho: https://centrinhousp.wordpress.com
Jornal da USP: http://www.usp.br/jorusp/
Profis: www.profis.com.br
Do outro lado do
espelho
A história de vida de pacientes do Hospital de Reabilitação de Anomalias
Craniofaciais da Universidade de São Paulo (CENTRINHO).
Aline Ferreira Pádua
.
Lydia Rodrigues Souza
Fotografia
Aline Ferreira Pádua
Lydia Rodrigues Souza
Arquivo HRAC/USP
Capa, Projeto Gráfico e Diagramação
Emanuel Antonio Guimarães Martins
Orientação
Prof. Dr. Célio José Losnak
Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de
Comunicação Social – Jornalismo da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp.
Bauru - Fevereiro de 2014
3
“Só se vê bem com o coração, o essencial
é invisível aos olhos”.
Antoine de Saint-Exupéry
Agradecimentos
Agradeço ao meu pai, Marco Aurélio Pádua, que me ensinou
a amar as letras, os livros e a traçar a vida como se fossem estrofes de uma bela poesia. A minha mãe, Nilda Ferreira Pádua,
por me mostrar que posso ser forte e frágil ao mesmo tempo,
por me estender a mão em todos os momentos e por ser minha
melhor amiga. Aos meus padrinhos e tios, Pedro, Cleonice,
Nilza, Jussara e John, por apostar e confiar na pessoa que me
tornaria. Ao meu namorado, João Paulo Pavan, que além do
companheirismo, teve paciência, não só para suportar os dias
longe de casa, como também, e principalmente, por ouvir cada
detalhe deste projeto. A Lydia Rodrigues Souza, amiga e irmã de
coração, que esteve ao meu lado durante os anos de graduação,
por compartilhar comigo as alegrias e tristezas destes quatro
anos em Bauru e pela oportunidade de realizar este trabalho.
Aline Ferreira Pádua
Agradeço a minha mãe Marilda Helena Rodrigues que é
uma companheira na arte da escrita e na arte da vida, a meu
pai Jerônimo Francisco de Souza, amigo de ideias filosóficas que
sempre está pronto para apoiar meus passos e, a minha irmã Laís
Rodrigues Souza com quem divido toda minha alma e coração.
Também agradeço a minha melhor amiga Aline Ferreira Pádua
com quem compartilhei alegrias, tristezas e conquistas nesses
quatro anos do curso de jornalismo na Unesp, sendo nossa
última caminhada acadêmica este livro.
Lydia Rodrigues Souza
Agradecemos ao professor Célio José Losnak pela orientação e dedicação a este trabalho. Agradecemos também aos
pacientes e funcionários do Centrinho, pais e familiares de
pacientes, que abriram seus corações para dividir conosco
parte de suas histórias.
Aline Ferreira Pádua
.
Lydia Rodrigues Souza
9
Índice
Prefácio........................................................................................ 13
Introdução................................................................................... 17
Capítulo 1:................................................................................... 23
Centrinho na década de 1960.................................................... 25
Vida: Olhos de menino............................................................... 27
Ciência: Fissuras labiopalatinas................................................ 31
Capítulo 2:................................................................................... 35
Centrinho na década de 1970.................................................... 37
Vida: Filhos do recomeço........................................................... 39
Ciência: Cirurgias....................................................................... 45
Capítulo 3:................................................................................... 49
Centrinho na década de 1980.................................................... 51
Vida: Coração bauruense........................................................... 53
Ciência: Odontologia.................................................................. 60
Vida: O protagonista................................................................... 65
Ciência: Psicologia....................................................................... 73
Vida: A bailarina......................................................................... 75
Ciência: Fonoaudiologia...................................................... 80
11
Capítulo 4:................................................................................... 85
Centrinho na década de 1990.................................................... 87
Vida: Filho do Norte................................................................... 89
Ciência: Associações................................................................... 95
Vida: O sorridente..................................................................... 102
Ciência: Recreação.................................................................... 107
Capítulo 5:................................................................................. 109
Centrinho na década de 2000.................................................. 111
Vida: Uma pétala guardada no livro...................................... 114
Ciência: Projeto Flórida............................................................ 119
Vida: A saga de duas heroínas................................................. 121
Ciência: Assistência social....................................................... 129
Capítulo 6:.................................................................................
Centrinho na década de 2010..................................................
Vida: O mergulho.....................................................................
Ciência: Enfermagem...............................................................
133
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137
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Posfácio...................................................................................... 151
Bibliografia................................................................................ 159
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Prefácio
DIANTE DO ESPELHO
Lydia Rodrigues Souza
Se nos posicionarmos entre dois espelhos colocados em
paralelo, criamos imagens infinitas. Também somos um conjunto de diferentes imagens, mas elas não são iguais, não existe
simetria e perfeição como nos espelhos paralelos. Dentro de
nós, quantos existem? O que é só casca? O que é polpa e o que
é semente? Somos várias imagens fragmentadas e desconexas.
Desde que nasci busco mostrar o que tenho por dentro, aquilo
que está além da casca. Mas revelar o rosto num baile de máscara
é arriscado, chama a atenção e atrai olhares. Descobri que o espelho mais difícil de encarar é o olhar alheio. Na percepção das
outras pessoas encontramos um “eu” diferente daquele que está
em nosso espelho. Essa percepção nos ajuda a entender quem
somos, mas também cria imagens distorcidas pelo preconceito.
Durante o ano de 2013 pude conhecer pessoas que tinham
que lidar com um tipo de imagem que destoa da perfeição áurea
valorizada pela sociedade. Essas pessoas eram os pacientes do
Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, o Centrinho. Eles faziam tratamento
de fissura labiopalatina, uma abertura decorrente do não fechamento dos lábios e/ou céu da boca durante a gestação. Paciente é
aquele que recebe cuidados médicos ou quem revela paciência.
Essas pessoas reúnem essas duas definições, pois passam cerca
de 20 anos num processo de reabilitação. Realizam diversas
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cirurgias e procedimentos médicos para reabilitar aspectos
estéticos e também funcionais do nariz, boca e outras partes da
face, já que a fissura pode causar alterações na fala, audição e
dentição. Essas pessoas passam por uma metamorfose, mas elas
não ficam no casulo, protegidas dos espelhos alheios. O desafio
para esses pacientes é quebrar a película de ilusão da sociedade
narcísica e aprender a enxergar do outro lado do espelho. Ver
além da primeira reflexão. Com o tempo entendiam que a película refletora do mundo mostrava um ideal de beleza que era
um oásis. E muitos daqueles que caminhavam em direção à
miragem morriam de sede. Pois o verdadeiro belo era aquele que
lhes fazia sentir bem. Porém, nem sempre era fácil enxergar do
outro lado, em alguns momentos eles preferiam virar o espelho
e encarar o lado opaco da superfície.
O primeiro contato que tive com o Centrinho foi em 2011,
quando fiz uma reportagem sobre um programa de pré-iniciação
científica que envolvia alunos da escola pública. Um dos projetos de pesquisa chamava-se “a prótese odontológica e a prótese
extraoral na reabilitação das malformações craniofaciais”. Foi
nessa ocasião que entendi um pouco da missão do hospital pela
afirmação de uma das alunas do programa: “estamos ajudando
a pessoa voltar a ter o sorriso dela”.
Porém, apenas em 2013, por meio das entrevistas com pacientes, pude compreender o que havia do outro lado da fissura. No
início das conversas, eu também estava diante de um espelho.
Era confortável ouvir as histórias com base nos meus preceitos,
tomar como medida minha própria trajetória. Mas para se ver
além é preciso enfrentar a travessia. Eu precisava me colocar no
lugar deles para compreendê-los. Atirei meu espelho no chão.
Agora eu via meu reflexo, mas ele não imitava meus movimentos. Resolvi transpor a superfície refletora. Conheci histórias
de vida, com alegrias, problemas, superação, coisas de gente.
Vi um tratamento, um hospital, rostos que se transformavam
a cada cirurgia, viagens, escolhas, sonhos... Com o tempo de
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tratamento essas pessoas se livravam da marca da fissura, os
desvios e as cicatrizes se corrigiam. Durante nossos encontros
aconteceu um processo semelhante comigo, mas no sentido contrário: a cada conversa, a cada história eu ganhava uma marca.
Hoje diante do espelho tenho a certeza, não sou mais a mesma.
Sou mais livre e feliz.
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Introdução
CAMINHO ATÉ O CENTRINHO
Em março de 2010, em nosso primeiro ano de faculdade, entramos no projeto de extensão Toque da Ciência. Nos primeiros
dias de aula, integrantes do projeto explicaram o trabalho do
portal de divulgação científica em nossa sala de aula. Para nós,
lidar com temas científicos envolvia escrever sobre variados assuntos, saber o porquê dos fenômenos e explorar o desconhecido
por meio do jornalismo. Uma proposta que saciaria nossa vontade de experimentar o novo, conhecer pessoas e histórias. Desejos
que são ainda mais fortes nos iniciantes. Diante do cartaz que
anunciava o portal com a frase “gosta de ciência?”, não hesitamos e comparecemos a uma reunião para ingressar no projeto.
Aprendemos a transformar a exatidão dos dados científicos e os
difíceis termos específicos numa boa reportagem. Entrevistamos
pesquisadores de todo país, falamos de planetas, animais, doenças, descobertas, substâncias, números. Mas concluímos que o
mais importante eram as pessoas. Era preciso pensar no leitor,
escrever para que ele entendesse e aproximar seu cotidiano dos
temas abordados. Essa foi nossa missão por quatro anos, pois
permanecemos no projeto até o final de 2013. O nosso trabalho
de conclusão de curso não poderia ser um desvio dessa estrada
na qual estávamos caminhando. Se o projeto Toque da Ciência
marcou nossa vida acadêmica, morar em Bauru fez diferença em
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nossa vida pessoal. Mudar de cidade trouxe novas experiências e
desafios. O Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais
atava essas pontas: ciência e Bauru.
O hospital consolida-se internacionalmente como centro de
referência no tratamento das fissuras labiopalatinas e também
de síndromes relacionadas e deficiência auditiva. Na área da
saúde auditiva, destaca-se o implante coclear multicanal (“ouvido biônico”), uma prótese de alta tecnologia. Como hospital
universitário, oferece cursos de pós-graduação e de extensão,
especializações, mestrado e doutorado. Existem ainda cursos de
atualização, aprimoramento profissional, prática profissionalizante, residência médica em otorrinolaringologia e residência
multiprofissional em síndromes e anomalias craniofaciais. O
hospital é conhecido como Centrinho e tem 46 anos de existência. O atendimento é gratuito via Sistema Único de Saúde.
Para este trabalho, escolhemos a fissura, uma malformação
congênita que consiste em uma abertura no lábio ou céu da
boca, podendo ocorrer nas duas estruturas. Resolvemos escrever
perfis para conhecer quem são as pessoas por trás do hospital
e da malformação. O tratamento da fissura labiopalatina dura
em média 20 anos, pois envolve diversas cirurgias que acompanham o crescimento da face. Sendo parte da vida da pessoa
desde o nascimento, o tratamento da fissura caminha ao lado
da trajetória de vida desses pacientes. Existe também a história
do próprio hospital que foi fundado a partir de uma pesquisa,
contando com sete membros fundadores e hoje tem mais de 90
mil pacientes matriculados. Resolvemos então fazer um livro-reportagem seguindo essas três linhas: história, vida e ciência.
Na parte histórica destacaremos as mudanças estruturais do
hospital, a evolução nos tratamentos e os programas de apoio
aos pacientes. Intercalados a essa história apresentaremos dez
perfis de pacientes do hospital organizados por décadas. Junto
a isso, descrições dos principais procedimentos médicos e dos
setores de atendimento relacionados à fissura.
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Com viés do jornalismo literário, que trabalha com linguagem detalhada e contextualizada, o livro explora elementos
subjetivos dos pacientes. Este livro pretende contribuir para
o esclarecimento do leitor em relação à malformação e suas
influências na vida do paciente, ao tratamento realizado pelo
Centrinho, além de contribuir para o registro do trabalho e
história da instituição.
DO ANTIGO EGITO À BAURU
CONTEMPORÂNEA
A ocorrência das malformações craniofaciais é conhecida há
séculos pela humanidade. Registros históricos apontam que múmias egípcias datadas de 2.400 a 1.300 a.C. apresentavam fissuras
labiopalatinas. O Museu Britânico guarda uma destas múmias em
seu acervo. É do Egito que vem também a história do “Faraó Menino”, que tinha fenda palatina. Tutancaton, filho de Akhenaton,
se tornou faraó entre 1336 e 1333 a.C., quando mudou seu nome
para Tutancâmon, em homenagem ao deus Amon. Ele assumiu
o trono ainda na infância, aos dez anos de idade. Tutancâmon
governou por curto período, morrendo com apenas 19 anos. Ele
teria contraído malária e fraturado o fêmur, fatores que podem
ter debilitado sua saúde e o levado à morte. Ainda no Egito, foram
encontradas múmias que possuíam uma prótese rudimentar de
palato ligada aos maxilares por fios de ouro.
A civilização Inca também registrou a ocorrência de malformações faciais e durante séculos celebrou o nascimento de
crianças com fissura labiopalatina. A malformação era vista
como uma característica a ser venerada e aqueles que a possuíam
mostravam com orgulho seu lábio leporino, nome popular da
fissura labial. Miguel Orticochea, um cirurgião plástico venezuelano, relatou possuir em seu acervo particular uma estatueta
pré-colombiana datada de 2.000 a.C., encontrada nas terras do
19
Peru, que, possivelmente, retrata um chefe religioso ou político
Inca, portador de lábio leporino. No entanto, os Incas são exceção porque a maioria das civilizações durante a história tem
considerado as malformações como deformidades.
O primeiro relato do tratamento da fissura palatina, que
se tem conhecimento, foi realizado por um cirurgião chinês,
Ying-Chung-Kan, e registrado em um documento que conta a
história da China no período de 320 a 317 a.C. O documento
relata a história de Wei-Yang-Chi, portador de fissura labial, e
o tratamento de sua malformação, que consistiu em técnicas
de aviamento dos bordos da fissura com sutura na sequência,
deixando a operação em repouso por 100 dias, período no qual
o paciente era proibido de comer alimentos sólidos, rir e até
mesmo falar. O resultado deste procedimento deve ter sido
relativamente bom, pois Wei-Yang-Chi tornou-se governador
de seis províncias na China.
No Brasil, lendas populares que envolvem os mistérios da
concepção humana ainda exercem certo poder sobre as pessoas.
Uma delas tenta explicar a ocorrência de fissuras labiopalatinas.
Diz-se que quando uma mulher grávida traz chaves penduradas no corpo ou as guarda entre os seios durante a gestação,
seu filho nascerá com os lábios cortados, ou seja, com lábio
leporino. Em 1950, quando Walter Saito nasceu, na cidade de
Campos do Jordão (SP), a equipe médica avisou aos pais que o
garoto tinha fissura de lábio e palato. Ele também foi pioneiro
na história de tratamento da fissura, pois foi o paciente número
um do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, o
Centrinho. Walter morou em Bauru dos 10 aos 21 anos, cursou a
Faculdade de Engenharia da cidade, que hoje faz parte da Unesp
e, conheceu sua esposa Ione da Silva Cruz Saito. A história do
hospital se mescla com a de Walter. Ele foi operado pelo primeiro
cirurgião-plástico da instituição, Dr. Wadi Kassis. Quando ele
frequentava o Centrinho, o hospital se restringia a pequenas
20
salas dentro da Faculdade de Odontologia. Walter já recebeu
alta, mas em novembro de 2013 ele voltou ao Centrinho para
atendimentos na área de otorrinolaringologia e para trocar uma
prótese odontológica. A vida de Walter não é só uma página de
um antigo caderno de registro do hospital, mas uma importante
parte no livro de memórias do Centrinho.
21
Capítulo 1
Foto: arquivo HRAC/USP
Fachada do Centrinho quando funcionava dentro do prédio da Faculdade
de Odontologia
Centrinho na década de 1960
1967 e 1968 - A criação do Hospital de Reabilitação de
Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo foi
impulsionada por uma pesquisa sobre a incidência de fissuras
labiopalatinas na cidade de Bauru. A pesquisa intitulada “Contribuição para o estudo da prevalência das más formações congênitas lábio-palatais na população escolar de Bauru” foi realizada
durante os anos de 1966 e 1967 e, depois, publicada pela revista
da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São
Paulo (FOB-USP) em 1968. Os professores envolvidos nessa
25
Do outro lado do espelho
pesquisa foram Halim Nagem Filho, Ney Moraes e Ronaldo
Geraldo Flaquer da Rocha.
O estudo avaliou alunos de 31 grupos escolares, compreendendo um total de 13.249 crianças. Desse total, 20 possuíam
fissuras de lábio e/ou palato. Foi analisada uma série de fatores
como idade da mãe na época da gestação, tipo de fissura, cirurgias realizadas e antecedentes familiares. Entre os alunos três
não eram operados.
A pesquisa constatou um alto número de casos de fissuras
labiopalatinas na cidade e que os pacientes possuíam algum distúrbio decorrente da malformação. De acordo com a conclusão
do estudo “a prevalência encontrada nos escolares foi de 1: 650
crianças”. Assim uma estatística nova foi revelada pela pesquisa:
uma em cada 650 crianças nascidas apresentava malformação
labiopalatina. Esses resultados motivaram profissionais e pesquisadores a investir em um serviço de reabilitação de lesões
labiopalatinas.
O hospital contou inicialmente com sete membros efetivos
entre eles o ex-superintendente da instituição Dr. José Alberto
de Souza Freitas, conhecido como Tio Gastão. Assim, em 1967,
nascia o Centro de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais que funcionava dentro da própria FOB. A criação da
faculdade também se deu de modo gradativo. A FOB só começou a funcionar em 1962, mesmo sendo criada em 1948, devido
dificuldades financeiras e estruturais.
Desde o início dos atendimentos havia uma preocupação em
integrar pesquisa, assistência social e ensino para oferecer um
tratamento que abrangesse todos os estágios de recuperação,
acompanhando o desenvolvimento do paciente ao longo dos
anos. Em 1968, o Centrinho atingia um total de 100 atendimentos desde sua fundação.
26
João Antônio de Souza
VIDA: OLHOS DE MENINO
27
Do outro lado do espelho
Nos corredores, alunos, médicos e pacientes se confundem.
Aqueles com jalecos brancos e estes com vestes comuns. Uns
carregam livros e cadernos. Outros levam instrumentos e fichas
de papel. Outros ainda, sentados em cadeiras de espera, trazem
consigo uma malformação. As salas de aula da Faculdade de
Odontologia de Bauru (FOB) e os consultórios utilizados para
atender os pacientes com fissura labiopalatina se cruzam e se
misturam. Sentado em um destes corredores está um garoto
de apenas quatro anos. Cabelos escuros, bochechas rosadas e
grandes olhos verdes. No lábio, uma fenda. O olhar do menino
acompanha o movimento do local. Quarenta e seis anos mais
tarde, o olhar de João Antônio Corrêa de Souza mira agora sua
foto de infância. Os cabelos estão brancos e o lábio unido. Somente os olhos verdes continuam os mesmos. Ao seu redor, alas e
consultórios mais que duplicaram de tamanho e estão agora bem
longe das dependências da FOB. Ao fundo, um prédio de onze
andares está erguido e é lá que, futuramente, novos pacientes
irão aguardar seus atendimentos.
O menino de olhos claros foi um dos primeiros pacientes
atendido pelo Centro de Pesquisa e Reabilitação de Lesões
Lábio Palatais, fundado em 1967, hoje chamado de Hospital
de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, o Centrinho.
João Antônio fazia parte das estatísticas apontadas por um
estudo de professores da FOB que indicava que uma a cada
650 crianças bauruenses era acometida pela malformação.
Ele foi o 28º paciente a iniciar um longo tratamento que duraria até a maioridade. Sua história se funde a do hospital.
De paciente, ele passou a funcionário e hoje, como marceneiro,
utiliza suas mãos para criar, entre outras coisas, brinquedos que
alegram os pequenos durante os atendimentos.
Dos quatro filhos da família Souza, João Antônio foi o único a nascer com a fissura que atingia lábio, palato e nariz. A
chegada do menino foi um verdadeiro “bicho de sete cabeças”
para os pais que nunca tinham visto uma criança fissurada. A
mãe, por pura coincidência, trabalhava na lavanderia da FOB,
mas não tinha conhecimento sobre a malformação. A família
foi orientada pela equipe do Centrinho e o garoto iniciou os
28
Capítulo 1 - Vida: Olhos de menino
tratamentos. Sua cirurgia de lábio foi feita pelo cirurgião Wadi
Kassis, um dos primeiros do hospital.
Aos dez anos de idade, em 1973, João Antônio acompanhou
a mudança do Centrinho para outro prédio, separado da FOB,
mas ainda no terreno da faculdade. Ele recorda que, nessa época, havia uma piscina com animais para entreter as crianças.
“Saíamos da sala de atendimento e íamos para lá”. Seis anos
depois, quando fez uma cirurgia para a correção da maxila, a
ortognática, ele foi operado por um cirurgião norte-americano,
o Dr. Larry Wolford, que veio a Bauru para ensinar técnicas cirúrgicas para os médicos do hospital. Ele conta que a cirurgia era
complicada e o paciente ficava com a boca totalmente amarrada.
A operação ocorreu no mês de dezembro, época das festas de
final de ano, e João Antônio não podia comer como o restante
das pessoas. Ele tomava sopas e líquidos e estava sempre com
um canudinho ao lado. “Depois da cirurgia, eu sai do quarto e
fui até a sala de som que funcionava no segundo andar. Era dia
da festa de Natal e eu comecei a dançar. Os médicos apareceram
e eu levei uma baita bronca”, conta ele. Aos 22 anos, João Antônio desenvolveu problemas de audição. Hoje, ele usa aparelho
auditivo e é atendido no Centrinho pelo Cedalvi - Centro de
Atendimento aos Distúrbios da Audição, Linguagem e Visão.
Na época da escola, antes de realizar as cirurgias, ainda
garoto, João Antônio se sentia diferente e sentava separado dos
colegas. “Todos eram perfeitos e eu era todo aberto”, comenta.
O pequeno disfarçava, chegava como quem não queria nada
e começava a brincar, mas alguns grupos não o aceitavam.
Ele sofreu com os olhares e as chacotas das outras crianças, mas
criou uma forma de se defender. Durante anos, ele afirma não
ter se olhado no espelho. “Hoje em dia que eu comecei a me
olhar no espelho, antes eu pegava o pente e penteava sem olhar
mesmo”, afirma ele.
O ano de 1985 foi marcado pelo casamento com Elena e a
chegada do filho Weslei. A família tinha começado a se formar
tempos atrás quando João Antônio iniciou o namoro com a irmã
de um de seus amigos. O caminho até o altar foi longo já que
quando João conheceu Elena ela estava em outro relacionamen29
Do outro lado do espelho
to. Mas o bauruense não desistiu da paixão. Até a mãe da moça
duvidava de um final feliz. Ele ia todos os dias de bicicleta na
porta do colégio de Elena e via a garota ir embora acompanhada
de outro rapaz. Um dia, a sorte virou e João Antônio passou a
acompanhar Elena aonde ela ia. Com o tempo a família aumentou, o filho casou e presenteou os pais com duas netas de coração.
João Antônio é funcionário do Centrinho há 25 anos. Antes
disto, ele fez cursos de marcenaria e eletricidade e trabalhou em
outros locais. “O Centrinho, para mim, é uma família. Não tem
diferença entre os funcionários. Todos são iguais no tratamento”,
afirma. No hospital, ele trabalha como técnico de marcenaria
fazendo reparos, consertos e ainda criando. Ele serra, lixa, cola,
prega e dá vida a brinquedos que vão compor o setor de Recreação do hospital. Ele já montou jogos como “resta um” e “dama
gigante”. “Faço para contribuir com as meninas do setor. Eu
pesquiso na internet e monto”, conta ele.
Do bolso, João Antônio retira uma moldura fotográfica onde
estão lado a lado, duas fotos que mostram a evolução de seu
tratamento: uma traz um garoto ainda durante as primeiras
consultas, outra mostra um jovem reabilitado. Esta é uma das
fotos que guardou para recordar seu tratamento. Ele se observa
nos retratos e comenta sobre a grande diferença entre o menino
de 1967 e o homem de 2013. “No começo, a fissura me deixou
triste e me influenciou. Mas depois eu fui aprendendo a lidar.
Quando uma criança nasce, ela não sabe andar. Ela vai devagar
até que levanta e sai correndo. Assim fui eu”, afirma ele. Da sala
em que trabalha todos os dias, João Antônio viu o novo prédio
do hospital nascer. Ele acompanhou a demolição das casas
que havia no local e viu as primeiras estacas e tijolos serem
colocados. Da porta de sua sala que se abre para o prédio azul,
ele espera ver, em um futuro próximo, outros garotos serem
acolhidos. “Eu acho que daqui a uns dois anos o prédio novo
vai estar funcionando. É isso que quero ver”, diz ele.
30
CIÊNCIA: FISSURAS LABIOPALATINAS
As fissuras labiopalatinas estão entre as anomalias congênitas
mais comuns e são as mais frequentes das anomalias craniofaciais.
Estas se definem na presença de qualquer defeito ou lesão estrutural da anatomia da face ou crânio durante o período de gestação.
As fissuras de lábio e/ou palato ocorrem logo no início da
gravidez e se desenvolvem até a 12ª semana de gestação. A fissura
que atinge o lábio ou o lábio e a gengiva, conhecida popularmente como lábio leporino, se forma até a oitava semana, enquanto a
fissura de palato, chamada de goela de lobo, é formada até a 12ª
semana de gravidez. As fissuras labiopalatinas podem ocorrer
de forma isolada, virem associadas a outras malformações, ou
ainda, a diversas síndromes genéticas. O quadro clínico desta
anomalia varia desde uma forma simples, como um corte no
vermelhidão do lábio - região central do lábio superior – até
fendas complexas como as que atingem lábio e palato, levando ao
comprometimento da estética da face, dentição, audição e fala.
A incidência das fissuras labiopalatinas varia de um caso a
cada 700 ou mil nascidos brancos no mundo. Outros grupos
étnicos, como os negros apresentam menor incidência da fissura,
sendo de 0,3 casos a cada mil nascimentos. Já em grupos como
os dos indígenas, chineses e japoneses, a média de ocorrência
da malformação é maior sendo de 3,6 casos a cada mil nascidos em indígenas, de 2,1 casos a cada mil em japoneses e de
1,7 a cada mil nascimentos em chineses. No Brasil, pesquisas
realizadas pelo Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/USP) apontam a média de um bebê fissurado a
cada 650 nascidos. A fissura isolada de lábio é mais comum no
sexo masculino, enquanto a de palato isolado ocorre com mais
frequência em meninas.
O diagnóstico pode ser realizado durante a gestação, entre
o quarto e quinto mês, por meio do exame de ultrassonografia
31
Do outro lado do espelho
ou após o nascimento com exames clínicos do recém-nascido.
A indicação é que, logo após o diagnóstico, os familiares sejam
encaminhados a um centro especializado em anomalias craniofaciais para receber as primeiras orientações sobre os cuidados
com o bebê, como alimentação e higienização, conhecer as
etapas terapêuticas que envolvem o tratamento, realizar exames
para diagnóstico de possíveis síndromes associadas, ou ainda,
tirar dúvidas sobre as primeiras cirurgias, e a possibilidade de
comprometimento de fala, audição e dentição.
As causas de ocorrência das fissuras labiopalatinas ligam-se
tanto a fatores genéticos quanto aos fatores ambientais. Não é possível prever quando um bebê irá nascer com fissura, mas existem
fatores que podem potencializar a ocorrência desta malformação.
A combinação da hereditariedade familiar a fatores externos aos
quais a mãe é exposta durante a gestação podem resultar no nascimento de uma criança com fissura. Entre os fatores ambientais
estão, por exemplo, infecção congênita por doenças como rubéola,
toxoplasmose e HIV, consumo de tabaco, álcool ou drogas ilícitas,
deficiência nutricional da gestante, estresse, deficiência em ácido
fólico no organismo da mãe, diabetes gestacional, hipertiroidismo,
hipertensão e o uso de alguns medicamentos, como os anticonvulsivantes. Assim como em outras doenças de causa multifatorial,
os riscos de recorrência das fissuras são baseados em estimativas
empíricas, ou seja, pela observação direta da recorrência da anomalia em diversas famílias.
Os fatores genéticos relacionados à ocorrência das fissuras
labiopalatinas têm sido bastante estudados nos últimos anos.
Pesquisas recentes de larga escala genômica descreveram várias regiões cromossômicas e genes candidatos às causas dessa
malformação, mas os resultados são variáveis e dependentes,
entre alguns fatores, do grupo étnico avaliado. As pesquisas
indicam que um mesmo polimorfismo genético, ou seja, um
conjunto de formas genéticas pode conferir proteção ou risco
para o desenvolvimento das fissuras em populações de diferentes
32
32
Capítulo 1 - Ciência: Fissuras labiopalatinas
ancestralidades. Destaca-se que vários dos polimorfismos relacionados à pacientes com fissura em populações homogêneas
como as europeias, asiáticas e africanas, não se confirmaram na
população brasileira, em decorrência, provavelmente, da intensa
miscigenação de nossa população.
A prevenção das fissuras labiopalatinas é possível por meio
do planejamento familiar, em que o casal deverá passar por
exames médicos e estudos genéticos. Há também a indicação
para o uso do ácido fólico durante a gestação. Desde 2004, o
HRAC/USP, em parceria com a Universidade de Iowa (EUA)
e outros centros de pesquisa brasileiros, tem desenvolvido o
“Programa de Prevenção de Fissuras Orais” que visa analisar os
efeitos da ingestão de diferentes concentrações de ácido fólico
na pré-concepção e durante o primeiro trimestre da gravidez,
bem como a ocorrência de fissuras de lábio e palato em bebês
nascidos de mulheres em situação de risco. A seleção de voluntários se encerou em 2012 e agora é desenvolvido o estudo de
subfenótipos, ou seja, a atividade dos genes em conjunto com o
ambiente, e o estudo de recorrência da fissura.
FISSURAS LABIOPALATINAS SINDRÔMICAS
As fissuras labiopalatinas e fissuras palatinas sindrômicas
correspondem a cerca de 25% de todas as formas de fissuras.
São caracterizadas pela presença da fissura associada a outra
alteração no indivíduo. As fissuras sindrômicas são representadas por um grande número de síndromes que variam, principalmente, no tipo de anomalia associada à fissura. Dentre as
formas sindrômicas mais comuns estão a síndrome de Van der
Woude e a síndrome Velocardiofacial, ambas com padrão de
herança dominante.
33
Capítulo 2
Foto: arquivo HRAC/USP
Apresentação musical das crianças na Recreação
Centrinho na década de 1970
1973 - A unidade de tratamento já era conhecida como
Centrinho e passou por uma expansão no espaço físico, saindo
de dentro da Faculdade de Odontologia de Bauru. Antes da
inauguração dessa sede própria, várias cirurgias foram feitas
nas instalações do Hospital Beneficência Portuguesa, já que o
Centrinho não possuía um centro cirúrgico.
1973 - Nesse ano nasce o Serviço Social. No ano seguinte,
também foi criado um fundo de solidariedade que era mantido
a partir de doações e renda gerada por cursos.
37
Do outro lado do espelho
1975 - Criação da Sociedade de Promoção do Fissurado
Labio-Palatal (Profis), uma entidade filantrópica independente
que presta atendimento aos pacientes do Centrinho.
1976 - Centrinho se transforma num hospital universitário
subordinado à reitoria da Universidade de São Paulo.
1977 - Crise orçamentária da Universidade de São Paulo
atinge o Centrinho. Número de pacientes era superior aos leitos disponíveis. Obras de novas instalações para dar apoio aos
pacientes estavam paradas por falta de verba.
1978 - Centrinho realiza a primeira cirurgia ortognática
no Brasil. A cirurgia envolve o desenvolvimento ósseo e dental, trabalhando com a correção da face nas áreas da maxila e
mandíbula.
38
Fredson e Aldria Pereira
VIDA: FILHOS DO RECOMEÇO
39
Do outro lado do espelho
Os dois irmãos eram muito pequenos para entender o que
faziam embarcando naquele imenso veículo com asas na companhia da mãe. Fredson, com quatro anos de idade, caminhava
sozinho e arriscava as palavras. Aldria, ainda no colo da mãe,
carregava a inocência de um bebê de apenas dez meses. A pequena menina trazia nos lábios o maior sorriso de todos. Não
daqueles de plena felicidade, mas dos que são marcados por
uma fissura labiopalatina bilateral, que não deixa a feição entristecer. O irmão tinha o que a mãe chamava de boca de lobo.
Faltava-lhe o céu da boca, o palato. Os três saíram do interior
do Pará para percorrer 3.084 quilômetros em direção a Bauru,
no interior de São Paulo. Tão pequenos não poderiam imaginar
o que essa viagem tão longa em um avião da Força Aérea Brasileira significaria em suas vidas. Um padre, cujo nome e carisma
se confundem, o Alegria, foi quem os encontrou na cidade de
Monte Alegre, no Pará, e os encaminhou ao Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru. Quarenta anos
depois deste dia, os irmãos – Aldria Marlen Martins Pereira e
Fredson Evanildo Martins Pereira – cujos sorrisos se tornaram
bem diferentes, estão mais uma vez juntos. Desta vez, na sala
da casa de Aldria, no Jardim Camélias, em Bauru, e revivem,
ao narrar, cada lembrança de suas histórias.
A primeira visita ao hospital, conhecido como Centrinho,
durou um mês. Na época, os pequenos irmãos paraenses ficaram
internados para o diagnóstico, exames e cirurgia. Fredson fez
a primeira cirurgia no palato e Aldria nos lábios. Eles fariam
novas viagens nas quais foram as únicas companhias um do
outro. Aldria chegou a enfrentar toda a distância de sua cidade
ao hospital sozinha. Nessa viagem, aos dois anos de idade, a menina voltou ao Pará sem poder operar, pois contraíra malária. À
parte das consultas, exames e cirurgias, os dois recordam cenas
de um hospital pouco convencional, onde as crianças internadas podiam brincar com cães da raça Dálmata, se refrescar na
piscina ou compartilhar os muitos brinquedos ali existentes.
Fredson e Aldria ainda trazem na memória o dia em que, na
companhia de outras crianças e pacientes, visitaram um circo
instalado nas proximidades do hospital.
40
Capítulo 2 - Vida: Filhos do recomeço
Fredson não faria novas cirurgias até a maioridade. O menino
foi morar com um tio em Belém, capital do estado, aos sete anos e
não pôde voltar a Bauru. Ele diz não se recordar muito da família
por ter saído muito cedo de casa e confessa não gostar de lembrar
os motivos que o fizeram ir morar com os parentes. Com um jeito
tímido e reservado de quem não passou pela vida em brancas
nuvens, Fredson prefere lembrar-se de quando ajudava o tio na
oficina de ourives. Morando de favor, como ele conta, não conseguiu completar o ensino médio e não teve muitas oportunidades.
“Mas eu sempre acreditei que um dia as coisas iriam dar certo
para mim”, relembra. Aldria mudou-se para Belém na mesma
época em que o irmão. Ela foi morar na casa de uma amiga da
mãe, mas manteve contato com os pais, Francisco dos Santos
Pereira e Antônia Martins Maior, e com outros dois irmãos.
A menina, que logo começou a trabalhar, estudou apenas até a
quarta série do ensino fundamental. Seu objetivo era conseguir
o dinheiro das passagens para retomar o tratamento.
Os irmãos tiveram a chance de retornar ao Centrinho apenas
em 1988, quando uma mãe de paciente, cujo nome recordam ser
Kátia, conseguiu, por meio do programa Carona Amiga, quatro
passagens para Aldria e Fredson. Somente ela pôde embarcar.
Fredson não tinha dinheiro para cobrir os gastos com alimentação que teria longe de casa. Aos quinze anos, Aldria saia de
sua terra natal para não mais regressar. Ela havia decidido recomeçar em Bauru. Poucos meses após a partida da irmã, Fredson
conseguiu embarcar para a mesma viagem que Aldria fizera:
a de uma nova vida a quilômetros e quilômetros de distância.
Fredson recorda em detalhes sua chegada a Bauru. Ele conta
que não sabia sequer onde ficava o hospital e diz ter recebido a
ajuda de ‘um anjo em forma humana’, que além de lhe indicar
o caminho ao Centrinho, ofereceu-lhe um lanche. “Eu sempre
tive anjos em minha frente”, afirma Fredson. Os irmãos foram
acolhidos pelo serviço social do hospital e direcionados à Profis
– Sociedade de Promoção Social do Fissurado Labiopalatal. Lá,
por apresentarem carências econômicas, foram encaminhados
para pensões que ficam nas redondezas do hospital e que foram
pagas com o apoio da associação. Pouco depois, Aldria foi aco41
Do outro lado do espelho
lhida por uma das assistentes sociais do Centrinho, de nome Silvana, que lhe ofereceu casa e trabalho. Fredson também ofereceu
sua força de trabalho em troca de moradia. Ele permaneceu na
pensão da Terezinha – atualmente desativada – como hóspede
e funcionário. Pouco depois, Fredson deixaria a pensão para
trabalhar como acompanhante de uma senhora idosa, parente
de uma assistente social do Centrinho.
Fredson frequentou o Núcleo Integrado de Reabilitação e
Habilitação do HRAC, o NIRH, e lá participou do projeto de
plantação para hortas. Ele aprendeu outros ofícios, trabalhou
em diferentes empresas e retornou ao Centrinho como estagiário no almoxarifado. Há 16 anos Fredson trabalha na Profis,
tendo passado por diversas funções dentro da instituição. “Só
em Bauru conquistei minha independência”, afirma Fredson.
“Só pude viver de verdade quando consegui me manter e me
tornei livre”, diz. A irmã, Aldria, também participou do NIRH
em cursos profissionalizantes como os de babá e doméstica. Ela
ainda retornou à escola, mas não terminou os estudos.
Aldria construiu uma nova família em Bauru. Foi em terras
paulistas, no ano de 1998, que a paraense conheceu o marido.
Passaram-se 15 anos e a família aumentou. Da relação com José
Carlos da Costa nasceram Gabriel, de 14 anos, e Giovana, de 10
anos. O filho mais velho, assim como a mãe, nasceu com fissura
de lábio bilateral.
Quando ficou grávida pela primeira vez, Aldria temeu que
seu bebê nascesse com fissura. “No dia em que o Gabriel nasceu
as assistentes sociais não queriam que eu visse o meu bebê”,
conta Aldria. “Então eu disse a eles que já sabia que meu filho
tinha fissura”. A chegada do filho não trouxe inseguranças para
Aldria que estava certa sobre o tratamento que ele teria no Centrinho. Ela conta que, no hospital, recebeu todas as instruções
de alimentação e higiene com o bebê. “Com três meses o Gabriel
fez a primeira cirurgia”, relembra Aldria. “Ele já fez o lábio e o
palato e a próxima será o enxerto. Ele já entende, mas tem medo
das cirurgias”, conta a mãe.
Aldria abandonou o tratamento para cuidar do filho. O irmão, Fredson, terminou o processo de reabilitação e faz apenas
42
Capítulo 2 - Vida: Filhos do recomeço
acompanhamento odontológico. Ele reclama da voz que, para
ele, ao telefone soa em tom feminino, mas diz que seu tratamento
fonoaudiólogo evoluiu o máximo que podia devido à idade.
Já amadurecidos pelo tempo, pelas agruras e belezas da
vida, os irmãos recordam as marcas deixadas pelo preconceito
sofrido na infância. Fredson acredita que as chacotas que sofreu na escola, em Belém, o atrapalharam nesta época. “Eu me
retraía e ficava no canto”, diz Fredson. “O ruim era o deboche
das pessoas que fingiam não entender o que eu falava”, conta
ele. Já Aldria, não entendia o porquê somente ela e o irmão
tinham fissura na cidade em que nasceram. “Fui me aceitar
como sou somente aqui”, conta ela. Em Bauru, ela entendeu a
malformação que possuía e viu que mais pessoas eram iguais a
ela. Para Aldria, o filho vive em uma realidade diferente onde
o preconceito não é tão forte.
Aldria lembra com carinho da terra natal. Ela recorda com
emoção na voz e nos olhos a última vez que esteve por lá. Nessa
época, ela era ainda solteira e agora deseja regressar para levar os
filhos para a mãe conhecer. “Minha mãe só conhece meus filhos
por fotos na internet”, diz Aldria. Ela sente saudade da família
e da cidade que deixou para trás e, às vezes, tem até vontade de
voltar a viver por lá. Já Fredson nunca quis voltar.
Com um sorriso no rosto, o irmão diz que Bauru representa
o ar que respira. Aqui Fredson se sente em casa, acolhido. A
vida de antes, aquela que ele prefere não trazer à memória, foi
muito sofrida, por isso, ele repete feliz que sua vida começou
quando desembarcou de vez em terras bauruenses. “A fissura me
ajudou mais que atrapalhou. Outras coisas foram piores que a
fissura”, afirma Fredson. “Aqui tenho pessoas que me acolhem,
se interessam e preocupam comigo mesmo com a minha idade.
Aqui eu criei laços”, conta. A irmã diz apenas que a cidade e o
hospital são responsáveis por tudo o que construiu. “Se não fosse
por isso, eu não estaria aqui”, afirma.
Na sala da casa em que Aldria viveu durante os últimos quinze anos, as lembranças do passado dos dois irmãos fundem-se
com os sonhos para o futuro. O grupo se completa com a chegada de Giovana e Gabriel, que estavam na escola, e do marido
43
Do outro lado do espelho
de Aldria. As fotos na estante mostram cenas da família. Cenas
como a deste momento de recordações e projeções, de uma sala
repleta de sorrisos e de histórias vividas e a viver, eternizado em
uma nova foto para compor a estante da sala da casa de muro
branco no Jardim Camélias.
44
CIÊNCIA: CIRURGIAS
De etimologia latina a palavra ‘fissura’ significa fenda, abertura. No contexto patológico o termo genérico denota qualquer
abertura anatômica que diverge do normal. A fissura pode envolver qualquer região da face ou do crânio, mas é mais comum
no lábio e palato. Ela ocorre na ausência de fusão entre os processos faciais embrionários. Após o nascimento de um bebê com
fissura de lábio e/ou palato, o primeiro passo para a reabilitação
é a realização de procedimentos cirúrgicos para a reconstituição
labiopalatina.
A queloplastia e a palatoplastia representam as primeiras cirurgias plásticas reparadoras executadas durante o longo e complexo
tratamento de pacientes com fissuras. Essas cirurgias, chamadas
de primárias, são realizadas em tecido mole, na primeira infância,
com o objetivo de reconstruir o defeito morfológico de lábio e
palato, respectivamente. Em conjunto com as demais abordagens
terapêuticas, esses procedimentos contribuem decisivamente para
a reabilitação das fissuras labiopalatinas.
A cirurgia de reconstituição da fissura labial, queloplastia,
deve ser realizada a partir dos três meses de idade, se a criança
apresentar as condições mínimas de saúde exigidas para o procedimento, como peso ideal. A reconstrução de toda a estrutura
anatômica do lábio, como mucosa, músculo e tecido cutâneo, é
o ponto mais importante da queloplastia. Segundo Eudes Soares
de Sá Nóbrega, médico cirurgião do Hospital de Reabilitação de
Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, hoje, aos
três meses de vida do paciente, opera-se o lábio, a aba do nariz
e o palato anterior. Já a cirurgia para a reconstrução do palato,
palatoplastia, é feita até um ano de idade. Inicialmente, opera-se
o palato anterior, ou duro, e depois, o palato mole.
As técnicas e protocolos para o reparo das fissuras de lábio
e palato divergem consideravelmente entre cirurgiões e centros
45
Do outro lado do espelho
cirúrgicos. Essa falta de uniformidade foi comprovada em estudos
acadêmicos como os de Shar et al (2001). Esses autores constataram
a existência de 194 protocolos de atendimento diferentes em 201
centros cirúrgicos europeus. No Brasil, o protocolo padrão do Centrinho já foi modificado devido à influência de centros cirúrgicos
do exterior e pelo intercâmbio de experiência. Como aponta Eudes
Nóbrega, inicialmente, o hospital realizava a cirurgia do lábio aos
três meses, do palato duro com um ano de idade e do palato mole
com um ano e meio de idade. Posteriormente, pesquisadores da
Universidade da Flórida (EUA) demonstraram que os melhores
resultados de reabilitação eram alcançados em pacientes que operavam o palato completo durante o primeiro ano de vida. Em outro
estudo, pesquisadores da Suécia orientaram sobre as melhorias em
se operar o palato posterior, o mole, após a cirurgia do lábio. Estes e
outros estudos, realizados também em parceria com universidades e
centros de pesquisa, foram adotados pelo Centrinho e contribuíram
para a evolução do tratamento das fissuras labiopalatinas. Como
resultado da diminuição das idades cirúrgicas, por exemplo, obteve-se a diminuição dos problemas de fala em crianças decorrente do
chamado golpe de culote, que ocorre quando os processos de fala
se iniciam com o palato ainda aberto.
Outros procedimentos cirúrgicos realizados pelos cirurgiões
plásticos durante a reabilitação dos pacientes com fissura são relativos ao nariz. Entre eles, podemos citar a cirurgia para levantar
a columela, parte central do nariz, realizada ainda na infância.
Eudes Nóbrega aponta que existem certos limites para determinadas cirurgias reparadoras. “O tratamento tem que ser
contínuo e o ideal é que até os 18 anos a pessoa esteja tratada.
Infelizmente, devido a grande demanda e a pouca disponibilidade de cirurgiões dentista de ortognática, muitos pacientes
demoram a fazer a cirurgia e concluir o tratamento”, ressalta.
Segundo ele, alguns pacientes não ficam contentes com os resultados, mesmo tendo atingido o limite humano de reabilitação.
Para o cirurgião, o mais importante no processo de reabilitação
46
Capítulo 2 - Ciência: Cirurgias
do fissurado é a assiduidade do paciente durante o tratamento
e passar por todos os profissionais no período ideal, já que os
resultados podem variar quando as cirurgias são realizadas fora
do protocolo padrão de atendimento.
47
Capítulo 3
Foto: arquivo HRAC/USP
Pacientes aguardam atendimento no ambulatório
Centrinho na década de 1980
1980 - No início da década o Centrinho buscou convênios
a fim de melhorar e ampliar o atendimento. Foi então firmado
um convênio com o extinto Inamps- Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social.
1982- Prédio da Recreação é inaugurado. No início as atividades incluíam um parque infantil, quadra de esportes, piscinas
e animais.
1983 - Foi criada a Unidade de Ensino e Pesquisa – UEP que
auxiliou na divulgação do conhecimento técnico-científico.
51
Do outro lado do espelho
1985 - Início do convênio com a Funcraf – Fundação Para o
Estudo e Tratamento das Deformidades Crânio Faciais. A Funcraf é uma instituição que apoia a parte técnica, administrativa e
financeira do hospital, trabalha na captação de recursos e contratação de funcionários. Em 2013 foi decidido em um acordo entre
o Ministério do Trabalho e a Universidade de São Paulo que a
Funcraf não atuará mais na contratação de recursos humanos.
1985 - Elaboração do projeto arquitetônico do novo prédio
anexo ao Centrinho, o “Prédião”, com previsão de 11 andares.
1985 - Centrinho busca descentralizar atendimentos. É
aprovada a construção de um núcleo regional para tratamento
de fissuras labiopalatinas em Belém (PA) com o apoio da Finesp
(Financiadora de Estudos e Projetos).
1987- Atendimento a deficientes auditivos e visuais por
meio do Centro de Atendimento aos Distúrbios da Audição,
Linguagem e Visão – CEDALVI. O atendimento aos deficientes auditivos também é realizado no Centro Educacional do
Deficiente Auditivo - CEDAU, unidade que faz parte do hospital, na Divisão de Saúde Auditiva ou no Centro de Pesquisas
Audiológicas - CPA.
1988 - O hospital atendia em média 150 pacientes no ambulatório e 25 na internação.
1989 – Realização do primeiro implante ósseointegrado, prática cirúrgica referente ao tratamento odontológico que utiliza
estruturas de metal como raízes artificiais dos dentes.
1989 - É lançada a pedra fundamental do “Prédião”. A expectativa da obra era de 21 mil metros quadrados com a capacidade
para 200 leitos.
52
Fernando Tamarozzi
VIDA: CORAÇÃO BAURUENSE
53
Do outro lado do espelho
O mês de novembro se aproximava do fim. Enfeites e luzes
começavam aos poucos a tomar todos os cantos da cidade. O bom
velhinho se preparava para levar alegria às crianças. A estrela de
Belém já apontava ao longe para anunciar a aproximação do nascimento do Deus cristão. Era 22 de novembro de 1981. O pequeno
Fernando, aos dois anos, fazia sua primeira consulta no Hospital
de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais e estava prestes a receber um presente de Natal. Quando era ainda um bebê, o menino,
que nascera com fissura de lábio unilateral e transforame (palato
parcialmente aberto), foi abandonado pelos pais biológicos em
um orfanato de Goiânia, sua cidade natal. Seus pais não tinham
condições para criá-lo e o deixaram no abrigo. Lá, uma equipe
o encaminhou, quase dois anos depois, para participar de um
programa de reabilitação oferecido em Bauru, pelo Centrinho, a
pacientes de outras regiões do país. Nesta viagem, ele iniciaria o
longo caminho para o tratamento de sua malformação e teria uma
surpresa: Fernando ganharia um pai, uma mãe e um novo lar.
Pedro Tamarozzi e Clarisse Ceschini Tamarozzi se apaixonaram por Fernando assim que o viram pela primeira vez no
Centrinho. Pedro era funcionário do setor de manutenção do
hospital e levou o menino para passar o Natal em sua casa. Ele e a
esposa não tinham filhos e resolveram adotar o pequeno goiano
que passou a ser chamado de Fernando Ceschini Dias Tamarozzi. Àquela época, como conta Fernando, muitos funcionários
do hospital levavam pacientes para passar as festas de final de
ano em suas casas, já que em dezembro o Centrinho ficava em
recesso por algumas semanas e muitos pacientes que vinham
de longe ficavam meses em Bauru. Anos mais tarde, Fernando
ganharia um irmão. Ele comenta que, na adolescência, teve
curiosidade de conhecer suas origens e de entender o porquê de
os pais biológicos não o terem aceitado, mas com o tempo deixou
esta história para trás. “Falar que eu não tenho vontade de saber
é mentira, mas se eu quiser mesmo posso pegar o prontuário e
lá deve contar toda a minha história. Posso até ir conhecer, mas
minha vida é aqui”, comenta.
Por volta dos três anos de idade, já vivendo na casa dos pais
adotivos, Fernando passou pela primeira cirurgia de lábio. Ele
54
Capítulo 3 - Vida: Coração bauruense
se lembra de sua mãe contar que o mais difícil era a higienização
do local operado, mas afirma que nunca deu trabalho durante
o tratamento. “Tinha até uma tia da pediatria que me deixava
dormir quando eu chegava para o atendimento. Eu deitava em
uma cadeira e dormia. Ela fazia todos os procedimentos e eu
nem via”, recorda. Durante os atendimentos e cirurgias o pai
de Fernando sabia passo a passo do que acontecia através de
notícias trazidas pelos colegas de trabalho. “Os amigos do meu
pai passavam, me viam e contavam para ele: Olha, eu vi o Fer
lá, vi o Fer aqui”, conta. Foram também os colegas de trabalho
de Pedro que o avisaram de uma pequena travessura do filho
no hospital. Aos 13 anos, o garoto aguardava para fazer uma
de suas sessões semanais de fisioterapia quando decidiu tirar
um cochilo em um dos colchonetes da sala. Fernando conta
que passou a chave na porta e dormiu. “Eles batiam, batiam
e eu não acordava”, lembra. O dorminhoco só acordou uma
hora depois quando funcionários da manutenção abriram a
fechadura da porta. “Depois disso pararam de deixar as chaves
na porta”, conta ele.
Ao longo do tratamento, Fernando fez oito cirurgias, entre
elas, a ortognática e de nariz foram as que mais o marcaram.
Devido aos procedimentos da ortognática, que faz a correção
da mandíbula, Fernando ficou uma semana internado na UTI.
Ele, na época com 18 anos, teve complicações no pulmão e precisou usar sonda. “Nessa eu passei apertado. O pós-operatório
é muito ruim. Você fica todo inchado e é difícil para comer e
falar”, conta. Fernando ficou cinco meses sem poder se alimentar
com comida sólida. Entre novembro e março daqueles anos, era
só sopa e líquido. Tudo batido e coado. “Eu sempre fui muito
brincalhão e meus primos me zuavam que iam fazer um churrasco só para me cornetar”, comenta. A cirurgia do nariz não
teve contratempos, mas Fernando se recorda da dificuldade em
respirar devido ao tampão colocado nas narinas. Ele relata sua
conversa com o cirurgião no dia da operação: “Olha, eu quero
operar o nariz, mas só vou operar se no dia seguinte eu puder
comer comida normal”. Geralmente, neste procedimento, os
médicos indicam até dois dias a base de líquidos e sopa para
55
Do outro lado do espelho
cicatrizar melhor a cirurgia. Mas Fernando, já com 20 anos,
teve o consentimento do médico e foi liberado para comer. Ele
relembra: “eu operei de manhã e a noite me trouxeram um prato
de sopa. Eu já estava legal, tinha tomado caldo o dia inteiro. Eu
olhei para a enfermeira e falei: ‘Olha, eu não vou comer sopa’. E
ela: ‘Não, mas você tem que comer’. Eu disse: ‘Eu não vou comer
porque o cirurgião é meu amigo e falou que iria indicar para
mim que eu ia comer sólido’. Fiz o pessoal ligar para o cirurgião
para confirmar. Eles foram atrás e viram que estava indicado
que eu poderia fazer a dieta geral. Eles me trouxeram um arroz
com feijão, salsicha e purê de batata. Foi o melhor jantar que eu
já comi na minha vida”.
No bairro Independência, o goiano se tornou bauruense.
Ali, Fernando foi criado e por lá permaneceu até pouco tempo
depois do casamento com a esposa Michele. Ainda durante a
infância, estudou em colégios públicos e privados da cidade.
Ele conta que a molecada ‘pegava no pé’ e ‘tirava sarro’, mas diz
que nunca ligou e até acha normal essas brincadeiras quando
não prejudicam os colegas. “Uma única vez eu deitei na minha
cama e comecei a pensar por que eu tinha fissura, bronquite
e também tinha que usar um aparelho para endireitar as costas. Então, na verdade, eu tinha um monte de coisinhas que
meus amigos não tinham. E eu fiquei me questionando por
que meus amigos corriam, jogavam bola sem ter nada. Mas
isso foi uma única vez. Eu sempre levei numa boa”, lembra
Fernando. Quando as cirurgias ocorriam no período escolar,
ele afirma que sua mãe nunca o deixou perder aula e preparava
uma mochila com lanche líquido e sopa para o menino comer
na hora do intervalo.
Com um jeito brincalhão, o filho de Pedro e Clarisse conta
que sempre foi sapeca e diz que nunca teve problemas em falar sobre sua malformação. Ele garante que até hoje a família
brinca de falar em voz fanha. “Eu nunca fui criado na base
de dó. Eu lembro que meu primo Nélio, eu chamava de Negó,
porque eu tinha dificuldade de pronunciar. Mas aí, meus tios
e meus pais, tiravam sarro, mas era algo saudável”, diz. Fernando afirma que nunca foi inseguro. Sempre muito falastrão
56
Capítulo 3 - Vida: Coração bauruense
e travesso, ele nunca se sentiu menos ou mais que ninguém por
causa da fissura. “Às vezes, eu mesmo falo fanho para quebrar
o gelo com as pessoas. Eu falo assim para eles perceberem que
eu não me importo”, conta ele.
Com um tino aguçado para se relacionar com as pessoas,
escolher Relações Públicas como área de atuação foi uma decisão prazerosa para Fernando, que quando saiu do colegial, não
tinha ideia de que área deveria seguir. Ele se interessou pelo
curso quando soube que essa formação possibilitaria um maior
contato com as pessoas. Formado em 1998, pela Universidade
do Sagrado Coração, Fernando trabalhou até o final de 2013 no
setor de Comunicação do Centrinho. Lá ele atuou com eventos,
recebendo os visitantes, fazendo visitas guiadas onde contava a
história do hospital e organizando as festividades.
Antes de atuar como relações públicas, ele fez de tudo um
pouco dentro do hospital. Foi do almoxarifado, para o setor de
enfermagem e de lá ao faturamento, ainda cobria alguém quando
precisava. Ele começou a trabalhar no hospital entre os 12 e 13
anos, quando participou do Núcleo de Reabilitação e Habilitação
para o paciente. Nesse programa, os pacientes participavam de
alguma atividade dentro do Centrinho ou realizavam trabalhos
fora do hospital. Os adolescentes trabalhavam meio período por
dia e recebiam ajuda de custo. Depois de iniciar com os trabalhos
no setor de almoxarifado, Fernando prestou o concurso da Funcraf (Fundação para o Estudo e Tratamento das Deformidades
Crânio Faciais) e passou a atuar na pós-graduação com suporte
técnico. Em 2010 surgiu a oportunidade de migrar para a área
de eventos e ele não deixou passar. Trinta anos depois daquele
primeiro Natal que passou com seus pais adotivos, Fernando se
veste de papai Noel para presentear com sorrisos e carinhos as
crianças internadas no Centrinho durante o mês natalino. Para
ele, o diferencial do trabalho realizado pelo setor de eventos é
comemorar com os pacientes qualquer data diferente, desde o
Dia do Índio até o Dia das Crianças. O objetivo é fazer com que a
criança em atendimento, que perde as atividades comemorativas
da escola, se sinta mais a vontade e possa viver essas experiências. Fernando considera que ter sido paciente e trabalhado no
57
Do outro lado do espelho
hospital onde se reabilitou faz toda a diferença. “Eu vejo muitas
mães apreensivas e como já tenho experiência e me considero
totalmente recuperado, sempre que dá, paro e converso um
pouco, explico que o caminho é longo, mas que lá na frente vai
ter a recompensa”, conta ele.
Com problemas envolvendo a Funcraf, a Universidade de
São Paulo decidiu pelo desligamento de funcionários contratados pela fundação e tem aberto gradativamente concursos
para preencher estas vagas. Fernando foi um dos funcionários
afastados de seus cargos no final de 2013.
Dois mil e cinco foi o ano do casamento com a Michele. A
moça que conheceu em uma das noites que foi sozinho até o
‘Jack Pub’, uma das casas noturnas de shows de Bauru. Em um
dia daqueles em que a turma não decidia qual seria o passeio da
vez, Fernando resolveu ir sozinho até a casa noturna. O plano
era ouvir uma boa música e fazer novos amigos. Quando chegou
ao bar, ele avistou a moça com quem se casaria anos depois, se
aproximou e disse: “Oi, eu sou o Fernando” e a chamou para conversar. Disso surgiu o namoro, logo o casal comprou um apartamento e decidiu unir as escovas de dente. Os dois ainda não têm
filhos. Bateram na trave, mas a gravidez não saiu. Fernando diz
não ter receio de ter um filho com fissura ou síndrome e afirma
que só pensa em criá-lo bem. O casal conhece as recomendações
sobre o uso do ácido fólico, que pode evitar a malformação, mas
não se preocupa muito com isso. “Às vezes, você bola as coisas e
não sai do jeito que você quer. Se tiver fissura, legal. Se não tiver,
vai ser bom porque não vai passar pelo que eu passei”, comenta.
Quando solteiro, ele diz não ter sido namorador. Bem que quis
ter mais relacionamentos, mas nunca deu certo. Ou porque elas
não gostavam, ou porque ele não gostava. Ele não se preocupava
com a questão da fissura, não achava que isso iria atrapalhar.
Fernando garante que sua alto-estima nunca deixou a fissura
aparecer mais que seu jeito de ser.
Fernando cresceu junto com o hospital, viu e viveu suas
transformações, ora como paciente, ora como funcionário. Ele
estava por lá quando o hospital foi aos poucos dobrando suas
dimensões físicas e também quando o “Prédião” se erguia dos
58
Capítulo 3 - Vida: Coração bauruense
alicerces. O Fernando paciente se recorda do quiosque com
peixes e tartarugas que existia no hospital, na ala onde hoje se
encontra um gramado com dois quiosques onde os pacientes podem relaxar. Para ele, com o tempo não foi mais possível manter
essas estruturas dentro de um hospital devido às legislações, mas
lembra que era ótimo para as crianças entrarem em contato com
os animais. O Fernando funcionário não concorda com a disposição de alguns setores dento do hospital, acredita que muitos
profissionais ainda são pouco abertos às novidades e vê como
desafio a ser superado a união da experiência de alguns profissionais com a novidade trazida por outros. Enquanto paciente
e funcionário, ele aponta as evoluções técnicas dos tratamentos
que têm facilitado e diminuído o tempo de reabilitação dos
pacientes, mas também pontua que a humanização característica do Centrinho tem se tornado mais burocrática devido ao
crescimento do hospital. “O Centrinho para mim como paciente
representa tudo na minha saúde. Aqui eu fui bem cuidado, bem
tratado. Tive todo o apoio na área de odontologia, na cirurgia,
na área da psicologia, no social, em tudo. Para muitos pacientes
representa exatamente isso”, afirma Fernando. “É uma coisa
que eu acho que não verei em outro lugar, totalmente gratuito.
Aqui temos um tratamento muito além do que se espera de uma
instituição pública. Porque não trata somente a fissura. Nos trata
para a vida”, comenta. O goiano de alma bauruense ainda não
recebeu alta de todos os setores de atendimento do Centrinho,
mas se considera 99% recuperado.
59
CIÊNCIA: ODONTOLOGIA
A formação da face de um bebê se inicia na terceira semana
de gestação e prossegue até a 12ª semana. Durante esse período,
existe uma fenda no lábio e palato do feto e a fusão das partes
em formação ocorre, geralmente, até o final do terceiro mês de
gravidez. Em casos em que essa fusão não se concretiza, a fenda
continua aberta dando origem às fissuras labiopalatinas. Em bebês
com fissura, ainda durante o período intrauterino, as estruturas
do lábio e palato, que estão abertas, recebem pressão da musculatura e dos movimentos do feto ganhando maior amplitude. As
estruturas ósseas presentes na região da fissura acompanham
esses movimentos e sofrem alterações. A ruptura pode atingir
somente o lábio e palato ou também o arco da gengiva. Quando
a fissura atinge a gengiva pode causar, por exemplo, a ausência
de dentes e o aparecimento de dentes neonatais ou conóides, que
são dentes menores que o normal. Ainda, outras deformações
da face em pacientes com fissura, como a retração da maxila, se
originam dos próprios procedimentos cirúrgicos primários, como
do lábio e palato, que criam pressões contrárias ao crescimento
facial devido às cicatrizes cirúrgicas. Para corrigir estas e outras
falhas provocadas pela fissura labiopalatina, os profissionais de
odontologia atuam desde o diagnóstico do paciente até procedimentos cirúrgicos complexos como a ortognática.
No Centinho, como aponta Terumi Okada Ozawa, cirurgiã
dentista e chefe técnica do Serviço de Odontologia do hospital, os
profissionais de odontologia começam a atuar na reabilitação do
paciente, quando possível, mesmo antes do nascimento. Quando a mãe descobre que terá um filho com fissura labiopalatina,
por meio do ultrassom morfológico, e entra em contato com o
hospital, já passa a receber instruções da área odontológica sobre
as fases do tratamento do bebê. “Nós explicamos que a criança
pode se tornar um indivíduo apto a realizar qualquer atividade,
60
Capítulo 3 - Ciência: Odontologia
desde que faça todos os tratamentos na época e hora certa e com
profissionais adequados. O que não pode é fazer um tratamento
estanque, somente pela estética. Esses pacientes precisam ser
monitorados para que desenvolvam uma fala melhor, uma estética melhor, com os dentes bem encaixados para que possam se
alimentar bem”, afirma Terumi. Segundo ela, as odontopediatras
orientam a família sobre a importância da higienização da gengiva
e língua, já que a saúde da criança é fator decisivo para a realização
das cirurgias e bons resultados no pós-operatório. São também
as odontopediatras que monitoram o possível aparecimento de
dentes neonatais na região da fissura e fazem sua remoção, impedindo que eles sejam aspirados durante a sucção da mamadeira
ou chupeta, ou ainda, provoquem sangramentos.
Como aponta Terumi em casos de fissura de lábio e gengiva,
após o enxerto ósseo no local da falha do arco gengival e uso de
aparelho ortodôntico, o tratamento já pode ser finalizado com
sucesso. Por outro lado, quando a fissura abrange lábio, gengiva
e palato, o tratamento envolve estruturas morfológicas e funcionais ligadas à fala, alimentação, respiração e se torna mais longo
e complexo.
O setor de odontologia também acompanha a evolução dos
pacientes por meio de estudos e pesquisas. Antes das cirurgias
primárias e durante todo o tratamento são coletados moldes da
boca, fotografias e modelos panorâmicos para acompanhar o
desenvolvimento do caso, realizar análises e comparações.
ENXERTO ÓSSEO
Pacientes com fissura de lábio e palato apresentam falta de
osso na região da ruptura gengival. Como aponta Terumi Ozawa,
com a não união das estruturas durante a formação intrauterina,
o osso deixa de ser formado e não se desenvolve de forma natural
durante o crescimento da criança. Segundo ela, mesmo após o
fechamento do tecido gengival, a falha no osso continua e provoca
61
Do outro lado do espelho
uma modificação na arcada. Os dentes do paciente ficam tortos
ou se fixam ao redor da fissura e não podem ser movimentados
pela ausência de estrutura óssea. Ainda, sem essa estrutura, a aba
nasal fica para baixo devido à falta de sustentação. Assim, para
dar origem a uma ponte óssea no local da fissura é utilizado um
procedimento cirúrgico chamado enxerto ósseo. No HRAC/USP,
o enxerto é realizado a partir da segunda dentição do paciente,
ou seja, entre os oito e 13 anos de idade.
A cirurgiã dentista indica que há inúmeras formas de se
realizar este procedimento cirúrgico retirando fragmentos de
osso da região do molar ou da crista ilíaca e ainda com o uso de
materiais produzidos em laboratório que induzem o crescimento ósseo na região da fissura. No Centrinho, quando o enxerto
é realizado com a retirada de fragmentos de osso do próprio
paciente, a operação é feita por um cirurgião plástico e um cirurgião dentista em conjunto. O primeiro faz um corte na região da
crista ilíaca, próxima à bacia, realiza a raspagem e retira parte do
osso. O segundo insere o material coletado na região da fissura.
Entre 60 e 90 dias a área começa a ossificar. Nos casos em que
se utilizam as chamadas BMP, proteínas ósseas morfo genéticas,
produzidas em laboratório, apenas o cirurgião dentista participa
do procedimento. Ele insere o material imerso em uma esponja
na região da fissura e fecha o local. A ossificação ocorre dentro
do mesmo prazo.
Terumi explica que, atualmente, o hospital tem reduzido o
número de enxertos com retirada de fragmentos ósseos da crista
ilíaca, a fim de evitar que o paciente passe por uma cirurgia na
região da bacia e outra na boca simultaneamente, e assim, diminuir o tempo de recuperação. Ela afirma que os procedimentos
que utilizam material ósseo do próprio paciente têm custo reduzido quando comparado ao BMP, que é um produto importado
e originário de novas tecnologias.
62
Capítulo 3 - Ciência: Odontologia
ORTOGNÁTICA
Terumi Ozawa explica que os pacientes com fissura podem
apresentar um desenvolvimento normal do encaixe dos dentes
ou um quadro de deficiência do arco maxilar. Segundo ela, as
cirurgias de lábio e palato, tão importantes para restabelecer a
estética da criança e propiciar uma fala sem distorções, provoca
também uma cicatriz que, muitas vezes, exerce pressão e inibe
o crescimento da maxila superior. Assim, em relação à parte
inferior, a maxila superior fica retraída, provocando uma deformidade na face do paciente. “É comum encontrarmos pacientes
que tenham essa restrição no crescimento. A maxila vai ficando
cada vez mais cruzada, na frente ou atrás”, afirma ela. Nesses
casos, a partir dos sete anos de idade, os pacientes iniciam o uso
de um aparelho ortodôntico para a expansão do arco ou, ainda,
utilizam uma máscara para estimular o crescimento da maxila
e encaixá-la no lugar certo. No entanto, como explica Terumi,
nem sempre é possível corrigir a retração da maxila com o uso
do aparelho, surgindo a necessidade da cirurgia ortognática. “Os
pacientes que tem essa mordida cruzada têm também uma face
deficiente. Então, esteticamente, a maxila fica muito para trás. Sem
a cirurgia não conseguimos um encaixe bom para os dentes, nem
deixá-los com uma aparência facial normal”, afirma.
Em casos de grande discrepância na posição da maxila, o
tratamento se inicia com o uso de aparelho ortodôntico para reposicionamento dos dentes e, depois, é realizado o procedimento
cirúrgico. Terumi explica que durante a ortognática o cirurgião
dentista corta o osso da maxila e o posiciona corretamente,
movimentando-o para frente ou para trás, com o auxílio de placas
e parafusos cirúrgicos. Após a cirurgia, o paciente precisa usar
elásticos que prendem os dentes e, durante um mês, não pode
realizar muitos movimentos, podendo se alimentar apenas com
líquidos. Ainda, é preciso um período com o acompanhamento
de um fisioterapeuta.
63
Do outro lado do espelho
Nos casos em que o uso do aparelho consegue encaixar os
arcos maxilares, o tratamento odontológico se encerra aos 13 anos
de idade, já em casos de mordida cruzada o tratamento é de no
mínimo 20 anos. A ortognática é realizada quando o crescimento
da face já se encerrou, ou seja, após os 16 anos em meninas e 18
anos em meninos.
Segundo a cirurgiã-dentista, atualmente, os profissionais do
HRAC trabalham de forma a causar menores danos aos pacientes
durante o tratamento. Assim, é preciso que as cirurgias de lábio
e palato sejam realizadas de forma delicada a fim de não causar
cicatrizes. Ela afirma ainda que os centros de pesquisa sobre
fissuras labiopalatinas de todo o Brasil estão integrados na busca
de melhores formas de realizar as cirurgias e obter melhores
resultados estéticos e funcionais.
64
Rodrigo de Oliveira
VIDA: O PROTAGONISTA
65
Do outro lado do espelho
Antes de entrar no palco todo artista tem seu ritual. Uma
oração, uma técnica de concentração de Yoga, é quase hora de
entrar. Rodrigo Inácio de Oliveira sabe que uma hora o show tem
que acontecer, não há mais tempo para ensaios, é preciso dançar.
Em agosto de 2013, Rodrigo deu continuidade ao tratamento no
Centrinho que havia abandonado há cerca de 10 anos. O recomeço
da caminhada para a reabilitação tornou-se para ele a apresentação principal no espetáculo da vida.
Rodrigo instalou um aparelho no céu da boca e realizou uma
cirurgia de expansão maxilar. O aparelho tipo Haas e a operação
possibilitam a expansão da arcada dentária, criando os espaços
necessários entre os dentes. O aparelho foi elaborado pelo ortodontista americano Andrew Haas e consiste em uma estrutura
acrílica instalada no céu da boca. Um dos aspectos que mais
incomoda Rodrigo é a incorreção de seus dentes.
Essa nova etapa do tratamento envolve não só estética, mas
também coragem e superação do medo. Ele ficou em Bauru por
12 dias e teve retorno marcado para quatro meses depois. Rodrigo
passou mal no pós-cirúrgico, teve paralisia facial e sentiu muita
dor. Ele não conseguia dormir, os medicamentos contra a dor não
faziam efeito, tinha que chamar a enfermeira a todo momento.
Um mês depois da cirurgia, o problema de paralisia facial já estava sendo resolvido e o rosto desinchava. A reclamação passou
a ser a vontade de comer coisas simples como pão com café e não
poder, já que a dieta líquida é obrigatória durante um mês no
pós-cirúrgico, seguida de alimentação pastosa por quatro meses.
Na parede da sala de sua casa, há uma foto dele com sete anos.
Com o cabelo mais claro, Rodrigo-menino fazia pose segurando
um telefone. O nariz projetado para baixo e a cicatriz nos lábios
indicavam a fissura bilateral no lábio. Por trás dessa foto, uma
história de muitos encontros e desencontros.
Era o quinto parto na vida de Sebastiana Inácio de Jesus.
Com 45 anos, um filho temporão. Durante a gravidez ela passou
por uma suspeita de aborto, teve que ficar toda a gestação em
66
Capítulo 3 - Vida: O protagonista
repouso. Rodrigo nasceu de oito meses, o parto marcado para
janeiro aconteceria no dia 14 de dezembro, um presente de Natal
adiantado. Depois da gestação difícil, a mãe esperava para acolher
a criança que Deus lhe enviava. A criança nasceu, mas o médico
não mostrou o bebê, veio com as mãos vazias conversar com
Sebastiana. O menino havia nascido com uma fissura no lábio
e se ela não fosse aceitar a criança, encaminhariam direto para
adoção. Mas amor de mãe foi feito para abraçar todos os filhos
sem distinção. Decidiu, sem hesitar, que aceitaria Rodrigo com o
mesmo carinho que recebeu seus outros quatro filhos. O menino
foi então encaminhado para o hospital mais próximo onde faria
a cirurgia para fechar os lábios. Nascido no interior de São Paulo
na cidade de Franca, ele realizou sua primeira cirurgia aos três
meses na cidade de Ribeirão Preto, no Hospital Santa Lydia.
Rodrigo hoje tem 32 anos e é educador físico. Ele conta sobre
o inesperado encontro que resultou no início de seu tratamento
no Centrinho: “Eu fui descoberto na rua, por um olheiro! Eu
estava andando na rua com minha cunhada, quando a mãe de
um paciente me parou e me pegou pelo braço perguntando quem
era minha mãe. Então minha cunhada achou que eu tinha feito
alguma coisa errada e disse que ela era minha mãe”. A mulher
tinha um filho com fissura e queria convidá-los para uma reunião
da Associação Francana de Fissurados, a Afisfran. Ela questionou
se Rodrigo era atendido pelo Centrinho e a cunhada explicou que
ele não fazia tratamento, só havia feito a operação para fechar os
lábios quando bebê. Eles participaram da reunião e a Afisfran encaminhou a proposta de tratamento de Rodrigo para o Centrinho.
O hospital então enviou uma carta de Caso Novo e Rodrigo
viajou com a cunhada para Bauru: “aquilo para mim era tudo
novidade, eu não sabia o jeito que seria, mas havia o medo da
cirurgia em si. Pela avaliação, eles falaram que eu teria que
refazer a cirurgia que realizei em Ribeirão, então eu recomecei
um tratamento com 10 anos de idade”. Era a vida que convidava
Rodrigo para uma dança.
67
Do outro lado do espelho
A fissura não era tema das conversas em família na casa de Rodrigo. “Não conversávamos sobre isso, eles me tratavam normal,
mas não tinha esse tipo de diálogo. Tanto que só foi falado mais
sobre meu tratamento quando fui para Bauru”. Sobre casos de
fissura na família, ele conta que a tia, irmã de sua mãe, teve uma
fissura unilateral, a abertura era pequena. A fissura dela não foi
reparada, pois na época em que nasceu os esclarecimentos sobre o
assunto eram poucos, sua tia morava na zona rural o que também
dificultou o acesso ao tratamento. Na primeira cirurgia, Rodrigo
e sua cunhada foram de carro por conta própria, depois começaram a ir pelo programa Carona Amiga, contando assim com
a ajuda do município para viajar. Nesse programa, as prefeituras
das cidades cedem conduções para que o paciente se locomova
até o Centrinho e o hospital agenda e agrupa os atendimentos por
município. “Na verdade, minha mãe nunca me acompanhou de
modo efetivo nas cirurgias, se fosse por ela eu não faria mais, eu
fiz essa com três meses porque estava aberto, depois não procuraram melhorar. Hoje eu já assumi o tratamento, mas minha irmã
ainda me acompanha”, conta Rodrigo. A mãe dele já viajou três
vezes para Bauru para acompanhá-lo no tratamento, mas Rodrigo
preocupa-se muito com ela e prefere que ela fique em Franca já
que Sebastiana não se sentiu confortável no ambiente hospitalar.
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta”. Esse trecho do livro “O ateneu” de Raul
Pompéia traz o diálogo entre o personagem Sérgio e seu pai, na
porta do colégio. Essa passagem descreve um dos períodos difíceis
na vida de Rodrigo: a escola. “Eu tive um trauma na infância,
minha mãe me superprotegia por causa da fissura e por me achar
muito pequeno. Assim, não me colocaram na pré-escola. Então
eu tive essa dificuldade para me desvincular da minha mãe. Não
dei conta de frequentar a primeira série, eu tinha medo dela me
deixar na escola e não buscar mais”. Fazendo terapia, Rodrigo
descobriu que o medo que ele sentia de ser abandonado na escola
era o mesmo de quando estava em tratamento na infância. “Eu
68
Capítulo 3 - Vida: O protagonista
tinha medo do ato cirúrgico, mas o que eu temia mesmo era
minha cunhada me deixar lá e nunca mais me buscar. Eu tinha
que ficar o tempo todo grudado nela por causa desse receio de
ser abandonado”, recorda.
Na escola, o pátio era o ringue de luta e o adversário era o
preconceito. Olhares e dedos apontavam as diferenças no seu
rosto. Todo esse sofrimento se silenciava na escola, Rodrigo não
reclamava para a mãe com medo dela se sentir culpada. “No
recreio eu ficava na sala, não era de ficar brincando, correndo,
então não aproveitava aquela parte gostosa da escola, de interação. Eu tinha amizades, mas eram muito restritas, sempre fui
muito quieto, eu era muito medroso”, comenta. Apesar das dificuldades da vida escolar, Rodrigo gostava de estudar e quando
voltou para cursar a primeira série, já sabia ler e escrever, pois
tinha aprendido em casa com seus irmãos. Ele manteve essa
postura durante a faculdade, não perdia aula para ficar conversando ou ir a bares. Porém, a escola não lhe agrada até hoje:
“eu fiz licenciatura, mas nunca exerci porque eu percebo que o
ambiente escolar ainda me amedronta um pouco”.
Rodrigo é formado em Educação Física pela Universidade de
Franca. Fazer uma faculdade era um sonho distante, devido às
dificuldades financeiras. Na família de Rodrigo os irmãos trabalhavam, mas não haviam cursado uma universidade. “Na minha
infância eu fiz teatro, fiz coral, mas quando eu entrei na dança
eu descobri o corpo e fui ter contato com o meu próprio corpo
também. E conhecendo meu corpo, eu conheci a Educação Física.
Então eu me interessei e tive a certeza no meu coração: é educação
física que eu quero”, conta. Atualmente ele trabalha com ginástica
laboral e pilates, a dança é um hobby e uma grande paixão.
Com 15 anos, Rodrigo assumiu a responsabilidade de manter
financeiramente sua casa. Os irmãos dele já eram casados e cuidavam de suas próprias famílias, sua mãe não ganhava aposentadoria e seu pai havia falecido quando ele tinha 11 anos. “Para
fazer a faculdade eu tive que trabalhar, conseguia me bancar, mas
69
Do outro lado do espelho
era bem restrito, o dinheiro era para pagar a faculdade, não podia
comer um bombom. Mas para mim foi uma superação porque eu
consegui fazer a faculdade com o meu trabalho”. Rodrigo trabalhou numa farmácia e como estagiário na área de educação física.
Rodrigo interrompeu o tratamento durante 10 anos, mas decidiu continuar a reabilitação há cerca de um ano e meio, então
reativou o prontuário e passou por novas avaliações médicas.
“Quando eu estava com uns 15 anos, o médico disse que eu tinha
que fazer a expansão cirúrgica e depois a cirurgia ortognática.
Eu me assustei muito, falei que não iria fazer e decidi parar o
tratamento”, confessa Rodrigo. Em uma das avaliações com
o cirurgião plástico, foi verificado que a mordida de Rodrigo
estava com desvio. “O médico perguntou se eu estava usando
aparelho na boca e eu disse que não”. Rodrigo acredita que se
tivesse usado um aparelho expansatório na idade correta, não
teria que passar por cirurgias mais complexas. “Eu acho que
já era para terem colocado um aparelho expansatório, ainda
quando a arcada dentária estava mole para expandir e não foi
colocado. Pela idade eu já tinha passado da época de colocar
aparelho, teria então que fazer uma expansão cirúrgica. Eu fiquei
com raiva do hospital porque não era para eu fazer essa cirurgia
se eles tivessem me colocado o aparelho”, reclama.
Rodrigo conta que quando tinha uns 22 anos, a equipe médica
o informou que não adiantaria colocar aparelho porque os ossos
da região da boca já estavam calcificados pela idade, ele teria que
fazer a cirurgia de expansão, além de colocar o aparelho. “Decidi
colocar mesmo assim, por minha conta e risco, mas não tive sucesso. Todas as dores que eu não passei com a cirurgia, eu passei
com o aparelho. É um aparelho que você tem que ativar com uma
chavinha, vai abrindo a arcada. Foi aí que eu tirei o aparelho e não
quis mais fazer nenhuma cirurgia, fiquei revoltado”. Na cirurgia
de 2013, foi implantado o mesmo aparelho que ele havia colocado
quando fez a tentativa por conta própria no passado, mas desta vez
foi feito o procedimento cirúrgico após a colocação do aparelho.
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Capítulo 3 - Vida: O protagonista
Antes de interromper o tratamento no Centrinho, Rodrigo havia
feito cirurgias nos lábios e no nariz.
No fim, um recomeço. Um dos motivos que estimularam
Rodrigo a se dedicar à reabilitação novamente foi o término de
um relacionamento amoroso. “Quando você está num relacionamento é como se você tivesse colocado uma máscara, eu não
precisava de ninguém me querer mais, pois eu já tinha encontrado alguém. Minha amiga brinca dizendo assim: ‘eu tenho
certeza que ela te amou, porque a maior prova de amor que ela
pode ter te dado foi largar você. Porque agora que ela saiu da sua
vida você vai poder se reconhecer, a sua máscara caiu de novo,
as pessoas irão te notar’. Então eu quis fazer a cirurgia para eu
poder me sentir mais seguro”.
Não foi muito fácil para Rodrigo se envolver num relacionamento. Quando saía para se divertir, as pessoas ao redor pareciam
ter uma beleza que o espelho dele não refletia, pois muitas vezes
o que ele enxergava era só a fissura. As pessoas olhavam para
ele: seria uma paquera? Não, certamente reparavam sua boca ou
seu nariz diferente. Rodrigo tentava se lembrar dos seus valores,
sabia que também era uma pessoa interessante, mas recordar suas
qualidades na mente não convencia seu coração e todos os outros
continuavam melhores que ele. Mas de repente Rodrigo conheceu
alguém especial, ele queria fazer o que fosse possível para ver essa
pessoa feliz e o impossível também. A vida naquele momento era
uma balança para equilibrar: “se a pessoa me aceitava do jeito
que eu era, com a fissura, se ela me beijava, tinha contato físico,
relação sexual comigo, eu teria que fazer algo para compensar”,
pensava. Até com os amigos havia insegurança, ele tinha receio
de encostar a boca no rosto das pessoas ao cumprimentar, mas
um dia uma amiga o acordou do pesadelo: “eu não tenho nojo de
você, se quiser me dar um beijo no rosto você pode, não precisa
encostar só a face. Você definitivamente não se vê como a gente
te vê, eu quero muito que um dia você conheça esse Rodrigo que
a gente conhece, eu tenho certeza que você vai se apaixonar por
71
Do outro lado do espelho
ele”, afirmou. Apesar de ainda se sentir um pouco inseguro, hoje
ele já consegue perceber melhor esse “outro Rodrigo”.
No passado, uma mão sempre indicava o caminho que Rodrigo deveria seguir, desde a mulher na rua que lhe puxara pelo
braço para recomendar o Centrinho, até seus familiares, que o
acompanhavam para o tratamento. Hoje mesmo com a “mão de
Deus” guiando seu destino, Rodrigo é quem dita o ritmo na dança
da vida. “Eu tomei a minha vida com as minhas mãos, eu decido
se faço ou não. No começo, Bauru era uma lembrança pesada,
começar a ir sozinho foi um processo complicado, mas também
um aprendizado muito rico porque eu vi como eu cresci. A melhor
coisa é você poder decidir a sua vida”, afirma.
72
CIÊNCIA: PSICOLOGIA
O desafio do primeiro passo para um bebê ao aprender a andar, a socialização na escola, as inquietações da adolescência e a
longa estrada para o amadurecimento na vida adulta. Para quem
nasce com fissura labiopalatina, essas etapas se mesclam a uma
rotina de cirurgias e processos para reabilitação. Para auxiliar
o paciente nessa jornada, o serviço de psicologia do Hospital de
Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São
Paulo (Centrinho) orienta os pacientes no tratamento da fissura
labiopalatina e busca amenizar possíveis medos e ansiedades.
O serviço de psicologia do Centrinho trata os aspectos
psicológicos relacionados às malformações dentro da proposta
de interdisciplinaridade do hospital. Assim, além dos procedimentos médicos, todos os pacientes passam pelo setor antes das
cirurgias ou em momentos específicos.
Em relação à fissura labiopalatina, o atendimento pode começar antes da criança nascer. “Devido à melhora tecnológica do
exame de ultrassonografia tem se observado um número maior
de gestantes com bebês fissurados que são acompanhadas pelo
serviço de psicologia”, relata a psicóloga do Centrinho Marlene
Aparecida Menconi.
No início do tratamento, o atendimento se direciona mais
aos pais que estão passando por um processo de aceitação. “Nenhum pai espera um filho com problema, no início eles ainda
estão fragilizados, paralisados por essa situação da criança tão
pequenininha precisar de uma cirurgia”, explica Marlene. De
acordo com a psicóloga essa introdução precoce aos tratamentos
contribui para uma possível superproteção dos pais. “As mães
costumam proteger as crianças de doenças que podem atrapalhar na cirurgia como gripes e de quedas pela região da boca
estar fragilizada, então elas fazem uma superproteção inconscientemente”. Outro tipo de comportamento que pode ocorrer
73
Do outro lado do espelho
é a rejeição ou sentimento de culpa. “A aceitação é maior em
famílias de níveis socioeconômicos mais baixos e a dificuldade
de aceitação é mais problemática em classes altas, em que existe
um maior questionamento da situação”, expõe a psicóloga. Há
casos até de abandono por um dos cônjuges ou ambos.
A fase escolar pode ser considerada um estágio de questionamentos, ligados à curiosidade típica das crianças. Caso ocorra
algum tipo de discriminação em relação à fissura, o serviço de
psicologia do Centrinho esclarece professores e diretores da
unidade de ensino sobre a malformação. A criança pode passar por dificuldades de aceitação da própria aparência. Entre
quatro e cinco anos elas tendem a questionar sobre a fissura ao
se olharem no espelho, por exemplo. A psicóloga alerta para
comportamentos extremados: “Existem mães de bebês que nem
fizeram a primeira cirurgia e já estão preocupadas com o preconceito”. Não existem regras sobre como a criança irá lidar com
malformação, porém “a fissura em nenhum momento limita o
nível cognitivo”, ressalta Marlene.
A adolescência é outra fase em que o paciente com fissura
labiopalatina pode encontrar dificuldades que envolvem além do
relacionamento social, as relações afetivas. Segundo a psicóloga,
o jovem pode pensar que ninguém vai se interessar por ele por
causa da fissura, situação que vai se amenizando com o crescimento. “Nós buscamos sempre ser aceitos no grupo que estamos,
se não conseguimos, começamos a cobrar os outros ou a nós
mesmos”. Marlene comenta que algumas pessoas passam por
essa fase de um modo mais tranquilo, outras com uma postura
maior de cobrança ou imposição da própria opinião. Todo esse
processo de aceitação durante o crescimento e o modo como a
pessoa lida com a fissura labiopalatina varia entre os pacientes,
sendo importante então “observar as características individuais
de cada um”, afirma a psicóloga.
74
Flávia Suano
VIDA: A BAILARINA
75
Do outro lado do espelho
“Pousada da Wanda”, indica os dizeres da placa de ferro pendurada na faixada da casa de número 86 da rua Joaquim Fidélis.
Por trás da porta de entrada, uma sala de estar. Do lado esquerdo,
um sofá e uma estante. Ao fundo, sobre uma mesa branca, aparelho de telefone e alguns papéis. Pequenas dançarinas de gesso
se equilibram nas pontas dos pés sobre os móveis. Seus gestos
e passos congelados enfeitam o local. Nas paredes, envolta em
seu vestido lilás e branco, os retratos de uma bailarina real. Ela é
Flávia Suano de Carvalho. A jovem de 24 anos, que ensaiou seus
primeiros passos na cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro,
estrelou na arte e na vida, nos palcos do interior paulista. Aos dois
anos de idade, ela bailava em terras bauruenses e encantava os
olhares de Wanda Suano e César de Carvalho, seus pais adotivos.
Longe dos palcos da arte por onde dançou durante dez anos,
hoje Flávia trabalha no setor administrativo de uma empresa
em Bauru, cursa pós-graduação em finanças e, nas horas vagas,
faz companhia para a mãe na pousada da família, que hospeda
pacientes em tratamento no Centrinho. Ela conhece bem a rotina
dos clientes da mãe. Não apenas pela convivência com os inúmeros pais e pacientes que passaram pelo local nos últimos 22 anos,
mas por ela própria ser paciente do hospital. Flávia nasceu com
fissura unilateral completa. Sua malformação atingia o lábio e
todo o céu da boca.
O ano de 1991 marcaria a primeira cirurgia da pequena bailarina no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais.
Esse ano seria também de grandes mudanças na vida de Flávia.
Ela e o irmão, que nasceu com fissura bilateral, vieram do Rio
de Janeiro na companhia do pai biológico, Jorge, para procurar
tratamento em Bauru. A família passou por diversos locais até
se hospedar na pousada de Wanda. O pai decidiu ficar em terras
paulistas para trabalhar e, assim, facilitar o tratamento dos filhos.
Por não saber como cuidar da menina, o pai biológico de Flávia
decidiu deixá-la aos cuidados de outra família. Foi Wanda quem
se ofereceu para ficar com a menina enquanto Jorge ia resolvendo
a vida. Nos primeiros anos, ele visitava Flávia e cuidava do filho
mais velho. Com o tempo deixou de aparecer. O menino foi viver
em um abrigo, onde ficou até os 18 anos. “Não tenho noção de
76
Capítulo 3 - Vida: A bailarina
quem seja minha mãe biológica e não lembro mais como era meu
pai”, diz Flávia. “Não sabemos ao menos como ele vive hoje”,
afirma. Hoje o irmão de Flávia completa a família de Wanda e
César. Ele faz companhia para César enquanto Flávia fica com a
mãe na pensão. A jovem conta que seus pais adotivos chegaram
a procurar sua família biológica para saber se queriam conhecê-la, mas nunca obtiveram resposta. “Quando eu fiz 21 anos, fui
conhecer minha terra, no Rio de Janeiro. Fomos de férias e minha
mãe perguntou se eu não queria ir atrás da minha família. Mas
eu não quis mexer com isso, achei melhor deixar quieto”, afirma.
Ao longo do tratamento, Flávia fez cirurgia no lábio, palato
e nariz. Ainda durante a infância, ela realizou o enxerto ósseo
para fechar o espaço que a fissura deixara aberto em sua gengiva. “Foi com raspagem de osso mesmo. Agora eles têm uma
tecnologia bem avançada. Antes tinha que ter muitos cuidados
pós-cirúrgicos. Hoje o pessoal faz cirurgia e em poucos dias pode
ir embora”, conta. Ela recorda que, na ocasião, teve de ficar 45 dias
sem fazer atividade física ou esforço. Ou seja, nada de ir ao balé.
Na escola, ela não podia correr como os colegas e ficava sentada
para evitar uma possível rejeição do organismo. A menina não
tinha medo da sala branca e dos bisturis. “Eu sempre estava preparada para as cirurgias. Isso é o de menos para quem faz muitas
cirurgias como os fissurados. O que pega mesmo é a recuperação
porque tem que ter muito cuidado”, comenta. Flávia já recebeu
alta do setor cirúrgico e frequenta o Centrinho para o tratamento
odontológico e auditivo.
Quando menina, Flávia estudou em colégios públicos de
Bauru, sempre próximos à pousada da mãe. Ela se recorda da
curiosidade das crianças na escola e diz que tentava explicar. “Eu
falava com naturalidade sobre minha fissura porque eu já estava
acostumada com as pessoas que sempre vinham em casa. E eles
perguntavam: ‘Mas como é isso?’. Algumas pessoas não sabiam
como era. Hoje acho que entendem melhor. Mas há cinco ou dez
anos atrás as pessoas não sabiam o que era”, conta. Uma vez, também no colégio, ela escutou de alguém: “Ah, coitada da Flávia!”.
Ao que respondeu: “Coitada nada! Eu tenho uma vida normal”.
Flávia terminou a graduação em administração em 2011 e hoje
77
Do outro lado do espelho
estuda finanças. A profissão escolhida foi uma surpresa para todos
que pensavam que ela seguiria o balé como profissão. “Pratiquei
durante dez anos. Era um hobby mesmo. Depois eu parei por
causa da faculdade e do trabalho”, conta. Por causa do balé, Flávia
participou de apresentações de dança e teatro no Centrinho. Em
uma delas, apresentou danças da cultura do norte brasileiro a
profissionais dos Estados Unidos que visitavam o hospital.
Diferente da maioria dos adolescentes, aos 15 anos, Flávia se
sentia bem esteticamente e acreditava que não precisava de mais
cirurgias. “O dia em que o clínico falou que eu podia ou não fazer a cirurgia eu disse: chega! Era só o estético. Eu não acho que
tem necessidade de mexer mais”, diz. Para ela, demonstrar que
se sente segura indica aos outros que sua fissura não a diferencia.
Nas paqueras nunca sentiu um olhar diferente. “Senti que me
olhavam como uma pessoa normal e não como uma pessoa que
tinha fissura”, afirma ela.
Na pousada da mãe, Flávia esteve em contato com muitos
pacientes do Centrinho. Por lá, conheceu histórias de pessoas
vindas de todas as regiões do Brasil. Ela se recorda do caso de
um paciente chamado Diego, de Sergipe, que tem síndrome e
surdez e que passou por várias cirurgias complicadas. “Ele é um
caso de superação. Cursou direito e passou no exame da OAB”,
conta. Outra paciente chamada Ana, do Recife, também está
nas lembranças de Flávia. Ela conta que Ana além de ter fissura,
não tem parte dos dedos das mãos e dos pés, o que a faz se sentir
cansada ao caminhar. Mas afirma que, apesar de tudo, a moça
leva uma vida normal e é fonoaudióloga. Para Flávia, estar em
contato com essas pessoas a fez ver quão simples era seu caso. Ela
ainda comenta que a vivência nas pousadas auxilia muitos pais a
entenderem melhor a malformação dos filhos e a descobrirem o
caminho que deverão percorrer para a reabilitação.
A fissura mudou o rumo da vida de Flávia. Foi a necessidade
de tratamento que a fez encontrar uma nova família. Seus pais
percorreram um longo caminho até conhecerem a pequena em
Bauru. Wanda vivia em Manaus, no Amazonas, e por lá conheceu
César que viajava a trabalho. Os dois decidiram partir para o
sudeste do país, onde vivia a família de César, e em Bauru fun78
Capítulo 3 - Vida: A bailarina
daram a “Pousada da Wanda”. Na sala hoje repleta de pequenas
dançarinas de enfeite, o casal acolheu Flávia e a chamaram de
filha. Vinte e dois anos depois de sua chegada, sentada na mesma
sala da casa de número 86, ela agradece à família que a recebeu.
79
CIÊNCIA: FONOAUDIOLOGIA
Por comunicação, entende-se a troca de informações entre dois
indivíduos. Esta ação pressupõe a emissão de uma mensagem e
sua recepção. Um dos canais mais comuns para a efetivação do ato
comunicacional entre os humanos é aquele que se estabelece entre
a fala e a audição. Para que a fala seja concretizada, organização
e planejamento das estruturas anatômicas, como integridade
auditiva, neuromuscular e dos aparelhos de reprodução dos sons
são fundamentais. Da mesma forma, para que a recepção da fala
produzida seja eficaz é preciso que os mecanismos fisiológicos do
aparelho auditivo funcionem de forma organizada. Neste, como
em outros processos comunicativos, existem interferências e ruídos, na maioria dos casos, causados por modificações da fala e/ou
audição. Aqui, aparece a figura do profissional de fonoaudiologia
que atua na prevenção e reabilitação das disfunções comunicativas. O fonoaudiólogo trabalha em cinco vertentes: audiologia, voz,
linguagem, motricidade (ligada à alimentação) e saúde coletiva.
FALA
Os distúrbios da fala são interpretados, geralmente, de forma
negativa na sociedade e, no caso das fissuras labiopalatinas, a fala,
aliada à estética, é um dos aspectos mais estigmatizantes para o
paciente. Nesses casos, as alterações são variadas e vão desde a
distorção de um fonema até casos de hipernasalidade, voz fanha, e
mecanismos compensatórios que tornam a fala incompreensível.
O problema de disfunções na fala, como aponta Cristina Guedes
de Azevedo Gonçalves, fonoaudióloga do HRAC/USP, aparece
apenas em fissuras de palato, o céu da boca. Ela explica que
quando a malformação atinge apenas os lábios, a cirurgia corretiva, que é realizada aos três meses de vida do paciente, impede
80
Capítulo 3 - Ciência: fonoaudiologia
que, ao iniciar os processos relacionados à fala, a criança tenha
dificuldades ou reproduza sons disformes. Em casos de fenda palatina, ausência parcial ou total do palato, o ideal é que a cirurgia
de reconstrução seja realizada até os 12 meses de vida da criança
para impedir distúrbios provocados pela ausência desta estrutura.
O palato separa a cavidade bucal da cavidade nasal. Ele é
composto por uma parte óssea, que é dura, chamada de palato
anterior ou duro, por uma parte mole, que é muscular, o chamado
palato mole e, por estruturas de mucosa, como a úvula ou campainha. Quando há a falta de palato ocorre uma ligação entre as
cavidades, o que leva a comunicação de alimentos e líquidos na
região e provoca a produção de sons pelo nariz.
Cristina Guedes aponta que não se trata apenas de fechar a
região palatina em pacientes com fissura durante as cirurgias.
Ela explica que o cirurgião precisa reconstruir as estruturas de
forma a garantir sua funcionalidade, sobretudo no caso do palato
mole, que tem de funcionar como uma porta, abrindo e fechando.
“O palato mole fecha em determinadas atividades, como quando
engolimos e deglutimos alimentos, ou quando a gente assopra ou
faz sons orais. Se o médico reconstruiu, mas o palato não desempenha a função de fechar nessas atividades, começamos a notar
algumas alterações”, afirma. Em casos de pacientes que demoram
a realizar a cirurgia de palato ou em casos em que o palato não
funciona adequadamente as disfunções da fala são mais comuns.
Aqui, surgem as chamadas articulações compensatórias, caracterizadas pela produção de sons na garganta, próxima à laringe
ou cordas vocais, ou ainda, com a projeção da língua para trás, o
que gera uma fala distorcida e pouco compreensível.
De modo geral, pacientes com fissuras podem apresentar os
seguintes distúrbios da fala: distúrbios articulatórios do desenvolvimento, que correspondem a alterações comuns da fase de
aquisição dos fonemas; distúrbios articulatórios compensatórios,
que correspondem a distúrbios do aprendizado decorrentes das
alterações estruturais, provocadas pela própria fissura palatina
81
Do outro lado do espelho
ou pela presença de fístulas no palato; distúrbios obrigatórios,
que correspondem a alterações decorrentes exclusivamente da
disfunção velofaríngea, como a hipernasalidade e a emissão de
ar nasal; adaptações compensatórias, relacionadas a distorções
na produção articulatória frente a alterações estruturais, como
as deformidades dentofaciais. A fonoaudióloga explica que a disfunção velofaríngea abrange as estruturas do palato mole, úvula,
das paredes da faringe e do fundo da garganta e ocorre quando,
mesmo operadas não funcionam bem, ocasionando a voz fanha
e alteração dos sons.
O setor de fonoaudiologia do Centrinho surgiu na década de
1970, quando especialidades como a odontologia já estavam consolidadas. No hospital, como aponta Cristina Guedes, o primeiro
contato entre o fonoaudiólogo e o paciente ocorre durante a primeira visita, quando a família e a criança passam por avaliações da
equipe de diagnóstico. Essa equipe, que acolhe os chamados Casos
Novos, é composta por profissionais de três áreas: fonoaudiologia,
ortodontia e cirurgia. Nessa primeira consulta, em se tratando
de bebês que tenham fissura de lábio e palato, os pais já recebem
as orientações sobre o desenvolvimento da fala da criança. “As
crianças fissuradas têm toda capacidade para desenvolver fala.
O que pode acontecer é elas desenvolverem algumas alterações
de fala antes das primeiras cirurgias, então passamos algumas
orientações que evitem essas disfunções dos sons até que o palato
seja operado”, afirma a fonoaudióloga.
Realizada a cirurgia primária de palato, o paciente volta a ser
avaliado pelos profissionais da fonoaudiologia que irão fazer um
acompanhamento do desenvolvimento da fala da criança. A família é encaminhada para uma avaliação na cidade onde mora, em
até 30 dias depois do procedimento cirúrgico. Quando a criança
operada apresenta alguma alteração de fala é encaminhada ao
tratamento terapêutico de fonoaudiologia. As terapias são realizadas nos municípios de origem dos pacientes e o HRAC faz o
acompanhamento da evolução dos casos, entra em contato com
82
Capítulo 3 - Ciência: fonoaudiologia
os profissionais de cada localidade, quando necessário, e passa
informações e instruções para as terapias. O Centrinho também
oferece um programa de terapia fonoaudiológica intensiva, em
que o paciente permanece em Bauru durante um mês, com sessões diárias de tratamento para a fala. Este programa é oferecido
para casos específicos que não tenham recurso para o tratamento
fonoaudiológico na sua cidade de origem.
O acompanhamento fonoaudiólogo no Centrinho prossegue
até a adolescência, em média, o paciente recebe alta da especialidade com 12 anos de idade. Cristina Guedes afirma que mesmo
nos casos de pacientes que não apresentam disfunção da fala, esse
acompanhamento é realizado, já que na adolescência o tecido da
adenoide evolui e pode provocar alterações na voz. Ela explica
que quando a fissura é apenas nos lábios, o acompanhamento da
fonoaudióloga se encerra na primeira consulta, a não ser que a
criança apresente dificuldades auditivas.
A fonoaudióloga aponta que o foco atual do tratamento fonoaudiológico é a prevenção em relação às alterações de fala na
fissura. Ela indica duas formas de prevenir as disfunções de fala:
a primeira delas seria a realização da palatoplastia até o primeiro
ano de idade do paciente, a segunda é fazer a criança sentir pressão
na boca antes de operar o palato. “Orientamos os pais a pressionar
a narina do bebê, encostando de levinho, quando ele faz sons orais,
para ele perceber a diferença dessa pressão do ar na boca”, diz ela.
AUDIÇÃO
A associação entre perda auditiva e fissura labiopalatina tem
sido estudada desde o século XIX. Em 1898, Alt já observava
possíveis repercussões da fissura palatina na audição. A frequente
ocorrência de perda auditiva em pacientes com fissura labiopalatina foi relatada por Gutzmann e Gutzmann, em 1983, quando
observaram que 50% de seus pacientes com fissura de palato
apresentavam perda auditiva. Embora não exista unanimidade
83
Do outro lado do espelho
quanto à prevalência da perda da audição em pacientes com
fissura labiopalatina, há um consenso que essa perda ocorre com
maior prevalência nos indivíduos com fissuras do que naqueles
que não a apresentam.
Um estudo conduzido no HRAC analisou a ocorrência de
perda auditiva em pacientes com idade entre quatro e oito anos
de idade, com fissura de lábio e fissura de palato, por meio da
audiometria por via aérea. Os resultados apontaram que pacientes
com fissura palatina apresentam limiares aéreos diferentes dos
com fissura de lábio, sugerindo que a presença da fissura palatina
é um fator importante a ser considerado, já que a fissura de lábio
não interferiu na sensibilidade auditiva da população estudada.
A efusão da orelha média, que é causada pela presença de líquido no interior dessa estrutura, sem uma real infecção, tem sido
apontada como um fator desencadeante dessa perda auditiva em
indivíduos com fissura palatina, em virtude da malformação
anatômica e da deficiência funcional da musculatura da tuba
auditiva e do palato mole.
84
Capítulo 4
Foto: arquivo HRAC/USP
Ar livre e descontração mudam a rotina dos pacientes
Centrinho na década de 1990
1990 - Primeiro implante coclear multicananal no Brasil é
feito no Centrinho. Conhecido como ouvido biônico, a prótese
substitui a função da cóclea, estrutura do ouvido interno responsável por transformar os estímulos sonoros em sinais elétricos
que chegarão ao cérebro.
1991 - Criação do Núcleo Integrado de Reabilitação e Habilitação (Nirh)- programa de capacitação profissional para
pacientes, incluía o ensino de Libras para deficientes auditivos
e projetos educativos.
87
Do outro lado do espelho
1992 – Realização do primeiro enxerto ósseo em pacientes
com fenda labial no Brasil. A cirurgia envolve a reconstrução da
cavidade óssea da maxila e da mandíbula. A primeira paciente a
ser operada chamava-se Elis Ribeirete e tinha nove anos na época. O procedimento foi trazido por três médicos do Reino Unido
que auxiliaram na capacitação de profissionais do Centrinho.
1993 - Paralisação na construção do “Prédião”.
1996 - Início do Projeto Flórida em parceria com a Universidade da Flórida (EUA). O projeto envolve a comparação de técnicas cirúrgicas e a troca de conhecimento entre as instituições
por meio de projetos de pesquisa.
1996 - Criação de Programas de Pós Graduação, residência
médica, aprimoramento profissional e estágio.
1998 - O hospital recebeu nova e atual denominação: Hospital
de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de
São Paulo (HRAC/USP).
88
Henry Pereira
VIDA: FILHO DO NORTE
89
Do outro lado do espelho
À luz de lampião no seio da floresta amazônica, um choro de
criança cumprimenta o mundo. No berço verde, nasceu Henry
Edson Cavalcante Pereira. Há cerca de 70 Km do município de
Rio Branco (AC) o menino nascia pelas mãos do pai, Jozue Meza
Pereira. Com dificuldade de tirar o bebê da mãe, ele conta que
puxou Henry pela boca: “quando meti o dedo, parecia ter ido até
o cérebro dele, eu apavorei. Quando nasceu, eu botei ele em cima
da barriga da minha mulher e disse: “mamãe, o neném tem um
probleminha, ele nasceu fissurado, mas temos um lugar onde ele
fique bom. Eu já conhecia o Centrinho”, conta Jozue.
Hoje, com 22 anos, Henry descreve seu nascimento: “nasci
no meio do mato, nossa casa era de madeira, construída há dois
metros do chão. Ficava longe da cidade, para se chegar numa
rodovia sem asfalto com destino à cidade caminhava-se 20 km
a pé, numa estradinha estreita”. Henry nasceu no Projeto de
Assentamento Dirigido Humaitá. O local é um assentamento
do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)
e se localiza no município Porto Acre, região que consiste num
desdobramento de Rio Branco.
Na região que Henry nasceu ressoa o apito de uma locomotiva fantasma. Ele conta sobre a minissérie Mad Maria, gravada
pela emissora Globo em 2005, para descrever sobre sua terra. A
produção televisiva relatava a construção da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré que cortava a floresta amazônica, ligando
o município de Porto Velho a Guajará-Mirim, em Rondônia.
Uma história de coragem e persistência, marcada pela morte de
milhares de trabalhadores, vítimas de acidentes de trabalho e de
doenças como malária e febre amarela. Henry nasceu com uma
fenda unilateral no lábio e o palato aberto. Para construir seu caminho para a reabilitação, ele também trilhou caminhos difíceis.
Seu pai conhecia o Centrinho desde sua fundação. “Passei a
enviar pacientes para o hospital em 1989, quando fui morar na
Amazônia Ocidental, sou paramédico e membro voluntário da
defesa civil, sempre estive ligado a causas como do Hospital do
Câncer, hansenianos e do fogo selvagem do Mato Grosso (doença caracterizada pelo surgimento de bolhas e feridas na pele).
Eu comecei a andar por Bauru por volta de 1962, pegava o trem
90
Capítulo 4 - Vida: Filho do Norte
em Bauru e ia para Campo Grande. Eu mandei alguns pacientes
para o Centrinho, então um filho meu nasceu fissurado, aí eu
virei Centrinho até na cor!”, conta. Jozue usa aparelho auditivo e
também faz tratamento no Cedau (Centro Educacional do Deficiente Auditivo) que faz parte do Centrinho.
A primeira vez que Jozue havia encontrado uma criança com
fissura operada foi em um ônibus numa viagem do Rio de Janeiro
para Porto Alegre. “Eu vi uma menininha que tinha sido operada,
muito bem operada, muito bonita. Então perguntei para o pai dela
onde tinham feito a cirurgia. Aí ele me deu o envelope de agendamento do Centrinho com o nome e endereço do hospital”, explica.
Com cerca de um ano de idade Henry cruzou o Brasil, veio
do Acre para Bauru com seu pai para fazer sua primeira cirurgia no Centrinho. O tratamento trouxe um novo sorriso para
Henry e para sua família. A mãe que viu seu filho nascer com
o céu da boca e o lábio aberto, pôde envolvê-lo num abraço de
tranquilidade e esperança.
Para Henry, Bauru representava um novo mundo a se descobrir, ele era um menino ativo, conhecido por todo o pessoal do
Centrinho. “Anota aí: ele chegou aqui pequeno e nunca chorou
para tomar uma injeção, ele não tem medo”, ressalta o pai com
orgulho. Henry carrega essa coragem nas cirurgias até hoje, ele
prefere entender o que vai acontecer na cirurgia e não tem medo
dos procedimentos médicos. Porém uma cirurgia foi mais complicada para ele, o enxerto ósseo, realizada quando ele tinha entre
10 e 12 anos de idade. Do olho fechado pelo inchaço pós-cirúrgico
saíram lágrimas ao conversar com a mãe por telefone. “Como a
cirurgia é muito violenta, o rosto ficou muito inchado e roxo, então
quando a gente sai da cirurgia, não se reconhece”, explica Henry.
Ele fez seis cirurgias até hoje, a maioria plástica, para corrigir o
lábio. Ele considera como mais complexas, o enxerto e a cirurgia
ortognática que fez para ajustar a posição do maxilar. “Passei
por todas as áreas, falta a faringoplastia para ajeitar a voz porque
não tenho a campainha, também tenho que fazer a plástica no
nariz”. Em novembro de 2013 ele fez a cirurgia ortognática. No
dia nove ele postou fotos no site de relacionamentos Facebook,
com o rosto bem inchado após a cirurgia, mas acalmou os amigos
91
Do outro lado do espelho
com mensagens: “já, já vou ficar bom e estarei de volta”. Dia 15
de novembro o acreano já estava em casa.
Fazer viagens longas, vencendo as dificuldades financeiras,
não foi o único desafio na vida de Henry. Ele e os irmãos andavam dez quilômetros de bicicleta em estradas de terra de casa até
a escola, em Rio Branco. O lugar era precário, Jozue fazia parte
da administração e lutava para não deixar faltar merenda ou
material escolar. Entre a casa e os livros muitas subidas, descidas,
poeira e lama. Para chegar ao destino, iam de bicicleta, carro de
boi ou de zorra. Jozue explica a zorra: “são dois varões compridos de uns quatro metros, vai uma canga no pescoço do boi e
tábuas onde ele e a irmã sentavam. Isso não tem a possibilidade
de atolar em lugar nenhum, não tem roda, passa por dentro da
água, de pedra, de tudo”. Às quatro horas da madrugada Henry
e sua irmã, Monique Naiá, saiam de casa para cumprir a jornada
escolar. Tudo feito sem faltas nem atraso, mesmo no inverno
amazônico que são seis meses de chuva e lama.
A vida já havia lhes dado sabedoria para transpor os obstáculos
que surgem pelo caminho. Para quem já havia vivenciado tantas
adversidades, os contratempos em Bauru foram superados com
coragem. Dormir ao relento no parque Vitória Régia foi apenas
mais um desafio. Em 2005, Henry e seu pai estavam sem dinheiro
para ficar em pousadas e não havia vagas na PROFIS (associação que presta assistência social aos pacientes do Centrinho).
“Dormimos duas noites no Parque Vitoria Régia, sem nenhum
acanhamento ou temor, pois o atendimento do Centrinho compensava o sacrifício”, define Jozue. Henry diz que nunca teve que
interromper o tratamento, “sempre dávamos um jeitinho”. Pai e
filho guiados pela força de um espírito desbravador já reuniram
num grande abraço o norte e o sul do país. Aproveitando a ida
para Bauru já foram para o Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre.
Henry tem uma personalidade calma e forte, não se incomodava com as brincadeiras de colegas sobre sua fissura e não tem
dificuldade para fazer amizades. “Eu só ficava meio chateado
quando eu falava e a pessoa não me entendia, melhorei muito
minha voz, a fonoaudióloga disse que para evoluir tenho que
fazer a cirurgia da campainha. A gente se acha diferente e tem
92
Capítulo 4 - Vida: Filho do Norte
vergonha, mas bullying eu nunca sofri”. Henry considera que as
pessoas não o viam de modo diferente, apesar de muitos desconhecerem a fissura labiopalatina. O pai conclui: “Isso eu acho
que é efeito da própria personalidade que ele tem, as pessoas não
tem coragem de perguntar porque ele fala assim, não sabem que
ele foi fissurado.“Também por causa da minha personalidade, as
pessoas nem me perguntavam o que ele tinha”.
Henry é casado e se interessa pelas possíveis formas de prevenir
a malformação, pois tem consciência sobre a possibilidade de ter
um filho com fissura. Ele comenta da importância da ingestão
de ácido fólico durante a gravidez: “teve uma lei também para
aumentar o acido fólico em alguns alimentos como a farinha de
trigo e outros alimentos para evitar a fissura”. Em 2002, a Anvisa
(Agência Nacional de Vigilância Sanitária) determinou que as
farinhas de trigo e de milho fabricadas no Brasil ou importadas
deverão ser enriquecidas com ferro e ácido fólico.
Henry divide seu coração entre Acre e Bauru. “Lá eu moro
num sítio, não gostava muito, preferia a cidade, mas agora me
acostumei. Na minha casa mora meu pai, minha mãe, eu, minha
esposa, cachorro, gato, um cavalo e uma égua. Gosto muito de
animais”. Em Bauru, seus lugares preferidos são o Vitória Régia,
calçadão e shopping.
“Tem meu mundo em Rio Branco e meu mundo no Centrinho.
Bauru é minha segunda cidade, eu adoro esse lugar. No Centrinho
é como se estivesse livre, como se eu estivesse na minha casa, eu
em sinto bem e quando eu terminar meu tratamento vou ter que
vir no Centrinho, pegar uma moto e vir para Bauru”. Quando
Henry fala sobre viajar de moto do Acre para Bauru, não é um
exagero. Além de ser um apaixonado por Motocross, o espírito de
aventura parece ser hereditário: seu pai já viajou com uma moto
Biz os 3.216 km que separam as duas cidades, uma prova de que
as pessoas são movidas por sonhos.
“Se eu não fosse fissurado eu não seria a pessoa que eu sou
hoje, se eu também não tivesse o pai que eu tenho, eu não seria
a pessoa que eu sou hoje. Ele me ensinou muito, a maioria das
coisas que eu sei eu não aprendi na escola, mas sim com ele e
procuro ensinar as outras pessoas. Sem a fissura eu também não
93
Do outro lado do espelho
ia conhecer Bauru”, conclui o jovem do Acre. Henry fez da fissura
uma trilha para conhecer novos mundos, encontrando em cada
obstáculo uma oportunidade de superação.
94
CIÊNCIA: ASSOCIAÇÕES
ALECRANFA E A LUTA DE JOZUE
Jozue Meza Pereira ajudou seu filho Henry a vir ao mundo
e esteve ao lado dele nas 18 vezes em que ele veio para Bauru a
tratamento. O homem de bigode eriçado, óculos com lentes fotocromáticas e voz firme apresenta-se: “sou paramédico voluntário
há quase 50 anos e membro da Defesa Civil internacional desde
1957”. E enumera algumas de suas experiências: “sou gaúcho,
estudei no Chile, na Argentina, fiz faculdade de biologia, agronomia e hoje sou amazonólogo”. Jozue que já morou e visitou tantos
lugares, reside agora há 15 Km da capital Rio Branco no sítio Finca
Héstia. Sobre o nome do sítio, Finca significa “propriedade” em
espanhol e Héstia é uma deusa grega, protetora da moradia e da
família. O nome reflete o perfil multicultural de Jozue.
Ele é presidente da única associação de pessoas com fissuras
labiopalatinas do estado do Acre. Em 2001 ele fundou a ALECRANFA (Associação de Portadores de Lesões Lábio Palatais e
Deficientes Auditivos do Estado do Acre). Jozue criou a associação
com o objetivo de representar os pacientes e assegurar seus direitos.
Porém, ele já encaminhava pacientes para o Centrinho antes de
fundar a associação. “Houve a necessidade de formar a associação
para dar personalidade jurídica aos pacientes, para facilitar tanto
a aquisição de passagens como a ajuda de custo para os pacientes
viajarem, que são benefícios difíceis de conseguir”, explica Jozue.
A entidade possui uma planta e um projeto para construção
da sede e de um Centro Social de Atendimento em terreno doado
pela Prefeitura Municipal de Rio Branco (AC). Mesmo sem essas
partes construídas, a associação agenda, encaminha pacientes
para o Centrinho e divulga o trabalho do hospital. Além disso,
por meio da associação, ele oferece hospedagem para pacientes
do interior do estado do Acre em uma casa de passagem dentro
do próprio sítio de sua família. O objetivo é construir uma sede
95
Do outro lado do espelho
própria para oferecer serviços como odontologia, fonoaudiologia,
psicologia, assistência social e clínica pediátrica.
Jozue explica a situação da Associação: “nós temos o terreno,
a planta e o dinheiro para construção, nos falta assessoria para
adequar toda documentação para levar ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e ao Ministério da Providência Social
em Brasília”. Um dos problemas, por exemplo, era que a planta
feita pelo arquiteto não seguia uma exigência de ter uma quadra
poliesportiva. Como se trata de uma organização comunitária
isso era exigido. O terreno que a prefeitura cedeu não comportava
a quadra, assim Jozue demorou dois anos para conseguir outra
área junto ao terreno. Essa é uma das dificuldades que ele enfrenta
para consolidar a associação.
Outra ação que Jozue realiza por meio da ALECRANFA é a
orientação sobre a obtenção de passagens pelo Tratamento Fora
do Domicílio, um instrumento legal instituído em 1999, pela
Portaria nº 55 da Secretaria de Assistência à Saúde (Ministério
da Saúde). O TFD é um benefício que garante tratamento médico
em outro Estado ou município aos pacientes do Sistema Único de
Saúde, quando esgotadas todas as formas de tratamento no local
em que o paciente reside. O TFD busca garantir o deslocamento
até o Estado ou município e a permanência do paciente, por meio
de uma ajuda de custo que inclui passagens de ida e volta, alimentação e hospedagem. O benefício é destinado para procedimento
de média e alta complexidade, envolvendo consultas médicas,
tratamento ambulatorial, hospitalar e cirúrgico.
A solicitação de TFD deve ser feita pelo médico assistente do
município de origem, nas unidades assistenciais vinculadas ao
SUS. Segundo o manual de normatização do TFD do Estado de
São Paulo, quando o pedido do benefício for negado, o Estado
disponibilizará atendimento em serviço do SUS no próprio estado
que garanta o tratamento solicitado.
Jozue solicita o benefício quando viaja para atendimento no
Centrinho. Na estadia de Jozue e Henry, a hospedagem é feita com
96
Capítulo 4 - Ciência: Associações
o dinheiro deles, quando não ficam na PROFIS. Após aproximadamente 30 dias eles conseguem um reembolso de R$ 375,00. “O
que não cobre todas as despesas nunca”, ressalta Jozue.
“Durante muitos anos vínhamos para o Centrinho de ônibus, quase quatro dias de viagem. Agora devido a minha idade
e algumas ações na Justiça estamos viajando de avião, pegando
três aviões em um dia para ida e três para volta. Uma viagem extremamente cansativa já que ficamos sem dormir por mais de 24
horas seguidas”, relata Jozue. Do Acre até Bauru, Jozue e seu filho
Henry fazem 14 horas de voo, passando por Brasília e São Paulo.
Ajudar a diminuir a dor das pessoas sempre foi objetivo da vida
de Jozue. Esse sonho o impulsionou a desenvolver a associação
no Acre. Em abril de 2013 aconteceu o XIII Encontro Nacional
de Associações de Pais e Pessoas com Fissura Labiopalatina e/
ou Deficiência Auditiva e o IX Encontro da Rede Nacional de
Associações de Pais e Pessoas com Fissura Labiopalatina- Rede
Profis. No encontro que reuniu diversas associações do país, Jozue
chamava a atenção pelo interesse em participar, perguntando e
dando sua opinião.“Na reunião eu vi o depoimento de algumas
senhoras que tem sua associação montada, têm carros para transporte de pacientes, tem tudo e nós não temos absolutamente nada.
Em 20 anos não conseguimos nada”, desabafa.
Jozue considera que a falta de colaboradores e sua decisão
de não se aliar a partidos políticos dificultam seu trabalho com
a associação. “Eu preciso de pessoas que assumam, eu já estou
com 73 anos de idade, está quase na hora de eu parar, mas eu não
desanimo nunca. Eu faço com carinho e dedicação aquilo que eu
me proponho a fazer”, declara o sonhador.
ATENDIMENTO AOS FISSURADOS NO ACRE
A Fundhacre (Fundação Hospital Estadual do Acre) atende
fissurados labiopalatais por meio do Praff (Programa de Reabilitação e Assistência ao Fissurado da Face). Segundo Jozue Pereira,
97
Do outro lado do espelho
com o oferecimento de assistência por esse programa, alguns
pacientes perderam o direito ao TFD, já que o benefício só pode
ser ativado caso a cidade não ofereça o tratamento necessário.
Diante de casos como esses, Jozue encaminhou ofícios à Justiça
Federal questionando a qualidade e legalidade do tratamento
oferecido pelo programa em relação à continuidade dos procedimentos cirúrgicos, já que um tratamento completo requer
cerca de 20 anos e alguns médicos da equipe possuíam contratos
temporários ou não residiam no Acre. Em carta aberta publicada em seu blog, Jozue destaca: “Pela Fundhacre vem passando
profissionais de cirurgia plástica há anos realizando apenas os
primeiros procedimentos em nossos fissurados, deixando para
trás um enorme contingente de pacientes com defeitos na face, na
arcada dentária e na fala pelo não acompanhamento, contrariando
o que determina a Organização Mundial da Saúde, a ONU e o
ECA”. Como resultado Jozue diz que “foram obtidos liminares
judiciais e mandados de segurança garantindo aos pacientes o
prosseguimento do tratamento no Centrinho, com determinação
de passagens aéreas e ajuda de custo”. De acordo com Caroline
Lucena, uma das responsáveis pelo Praff, “como o tratamento da
fissura é bastante complexo às vezes é necessário o TFD, mas para
outras especialidades relacionadas ao tratamento da fissura. Na
parte de cirurgia plástica nossos médicos são capazes de realizar
todo tratamento, os pacientes normalmente conseguem fazer o
tratamento sem ter que se deslocar”, afirma. O programa existe
há cinco anos e faz parte do Sistema Único de Saúde.
PROFIS
Em Bauru, a Profis (Sociedade de Promoção Social do Fissurado Lábio-Palatal) é a associação que auxilia os pacientes de baixa
renda em tratamento no Hospital de Reabilitação de Anomalias
Craniofaciais da Universidade de São Paulo, o Centrinho.
A entidade foi fundada em 1975 para prestar assistência social aos pacientes. Uma das motivações para a sua criação foi o
98
Capítulo 4 - Ciência: Associações
grande número de pessoas de classes sociais baixas atendidas pelo
hospital e a preocupação em garantir o acesso e a continuidade
do tratamento. Trata-se de uma entidade filantrópica de direito
privado, sem fins lucrativos. A entidade possui três segmentações:
Profis Cursos que compreende as aulas teóricas de especialização
e aperfeiçoamento em odontologia, Profis Clínica com a parte
prática dos cursos e a Profis Social.
A Profis se mantém por meio de contribuição voluntária dos
associados, arrecadações, donativos e cursos de aperfeiçoamento
e especialização na área de odontologia. A maior parte da renda
da Profis Social vem dos cursos de especialização.
Bazares e almoços são outras formas de arrecadar recursos
financeiros para a Profis. Os bazares são realizados mensalmente com roupas, calçados e acessórios doados por lojas ou
pela comunidade. No ano de 2013 a previsão de arrecadação
era de três mil reais com os bazares. Já a previsão orçamentária
de investimento relativa aos programas oferecidos era de 505
mil reais durante o ano.
Alimentação e hospedagem são os principais serviços
oferecidos pela PROFIS Social, além disso, a entidade fornece
medicamentos, cestas básicas e cursos para pacientes e acompanhantes carentes.
O espaço para atendimento dos pacientes compreende sala
de descanso, berçário, alojamento de paciente com 80 leitos e
quarto para motoristas de ambulância ou carros oficiais que
trazem pacientes de outras cidades. Por dia, cerca de 200 pessoas
frequentam a sala de descanso.
A entidade procura fazer um trabalho diferenciado para quem
precisa de uma estada mais longa. A Profis possui um quarto
reservado para mães que têm filho nas UCE (Unidade de Cuidados Especiais) ou na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do
Centrinho. Como os filhos estão internados, elas permanecem
mais tempo na entidade, ficando entre três e quatro meses. Essas
crianças, geralmente, têm outras síndromes associadas à fissura
99
Do outro lado do espelho
labiopalatina. Ter um espaço próprio para esses usuários auxilia
na troca de experiências entre as mães, além de ajudar no estado
emocional já que, além de cuidar da criança em tratamento,
muitas mães ficam preocupadas com os filhos e família que
permaneceram na cidade de origem. O serviço social da Profis
acompanha esse tipo de permanência.
A entidade busca no acolhimento aos pacientes amenizar o estresse da rotina de tratamento. São realizadas datas comemorativas em parceria com o Centrinho por meio do projeto “Humaniza
Profis” e atividades recreativas. No Dia das Mães, por exemplo,
sorrisos de verdadeiras guerreiras retribuem o recebimento de
uma rosa. Outros projetos aproximam os pacientes da cidade de
Bauru como o “Conheça Bauru”, feito em parceria com a empresa
de ônibus Grande Bauru. A iniciativa envolve visitas em lugares
como o Zoológico e Jardim Botânico.
REDE PROFIS
Com o intuito de reunir as associações de pais e pessoas com
fissura labiopalatina de todo o país, foi criada a Rede Profis em
2004. A organização busca integrar, representar e defender os
interesses institucionais de suas associadas. Atualmente são 30
associações, sendo 21 filiadas. Contribuições de suas associadas
e doações fazem parte da receita da Rede. O valor e periodicidade
da contribuição são definidos e aprovados em uma Assembléia
Geral Ordinária que ocorre anualmente.
A Rede também promove a troca de conhecimentos técnico-científicos por meio de debates e cursos a fim de capacitar dirigentes, voluntários e profissionais das entidades filiadas. Trata-se de uma organização civil sem fins lucrativos. A Rede Profis
também articula políticas junto aos poderes públicos e entidades
privadas para assegurar os direitos da pessoa portadora de deficiência. Em 2013, uma das questões debatidas no IX Encontro
da Rede, realizado em Bauru, foi o projeto de lei nº161 de 2013
100
Capítulo 4 - Ciência: Associações
que classifica a fissura labiopalatina como deficiência física, no
Estado de São Paulo. Esse projeto tem como objetivo equiparar,
para efeitos jurídicos, as pessoas com essa malformação e os deficientes físicos e mentais, ampliando os direitos dos fissurados.
101
Alysson Carvalho
VIDA: O SORRIDENTE
102
Capítulo 4 - Vida: O sorridente
Sentado em um dos bancos da Praça Dom Pedro II, no centro
de Bauru, o rapaz exibe um largo sorriso metálico. Ele tem olhos
castanhos, cabelos curtos e escuros, sobrancelhas grossas, pele
clara e rosada. É alto, mede 1,80 metro. Usa calça jeans, tênis,
camiseta do colégio técnico, blusão listrado em azul e preto e
uma mochila. O cair da noite não tira o brilho dos seus olhos ou
diminui sua empolgação. Com o jeito brincalhão de um jovem de
18 anos, ele conta uma história. Não daquelas inventadas, como a
da vez em que enganou os amigos na rede social Facebook dizendo
que iria ser pai. Essa é a história do seu próprio nascimento. Seu
nome é Alysson Antônio Carvalho de Paula. Espírito-santense
de nascimento, mineiro de coração e bauruense por destino, o
jovem vive há nove anos na cidade com nome de sanduíche. Foi
por conta de uma fissura que atingia lábio e palato que ele veio
parar em terras do noroeste paulista.
O dono do sorriso aberto e espontâneo acabara de desembarcar de um ônibus coletivo antes de se sentar no banco da praça.
Ele voltava de uma longa tarde de estudos na escola técnica onde
faz edificações e andava sem pressa porque, naquele dia, não teria
aulas na faculdade onde estuda engenharia elétrica. Esse era um
de seus primeiros dias de férias. Dividir seu tempo entre os dois
cursos e o trabalho em uma construtora não é empecilho para
quem, na infância, se desdobrava entre a escola, brincadeiras,
consultas na fonoaudióloga e que, ainda, precisava percorrer
482 km entre sua cidade, Três Corações (MG), e Bauru, para ser
atendido no Centrinho.
Ao estilo zombeteiro, Alysson já “pregava peças” desde a
barriga da mãe. Primeiro, deu um susto nos pais, quando, em
um dos ultrassons da mãe, aos cinco ou seis meses de gestação,
o médico, ao ver uma bipartição no bebê em formação, disse à
família que ele nasceria com duas cabeças. A confusão logo se
desfez e souberam que o menino teria fissura de lábio e palato.
Tempos depois, ele teimaria em nascer antes da hora pegando
os pais de surpresa quando viajavam pela cidade de Cachoeira
de Itapemirim, no Espírito Santo. Era 26 de janeiro de 1995.
No hospital em que o menino nasceu uma equipe informou
aos pais sobre a malformação do filho e indicaram o tratamen103
Do outro lado do espelho
to realizado no Centrinho. Duas semanas depois, aos 15 dias
de vida, Alysson já estava em Bauru, na companhia dos pais,
Jamile Conceição de Carvalho e Ricardo Carvalho de Paula,
para a primeira consulta. A família foi atendida pela equipe de
Casos Novos, passou pelos procedimentos médicos e recebeu
instruções de como cuidar da alimentação e higienização do
bebê. Mais confortados, Jamile e Ricardo partiram para a cidade de Três Corações, onde moravam. Três meses depois eles
regressariam com Alysson para a cirurgia do lábio.
O trajeto entre Três Corações e Bauru se tornaria, com o tempo, habitual para a família que percorria a distância entre os dois
municípios a cada seis meses. Com um ano de idade, Alysson passou pela cirurgia de reconstrução do palato e, aos nove, realizou
o enxerto ósseo para recomposição da gengiva. Ele passou pelo
enxerto ósseo tradicional, procedimento que retira fragmentos de
osso da bacia para completar a arcada. Atualmente, é utilizada
uma proteína artificial, chamada de BMP, no lugar do fragmento
ósseo, o que diminui o tempo de pós-operatório dos pacientes.
Na época, Alysson ficou seis meses em recuperação. Primeiro,
ele passou três meses se alimentando com líquidos e sopas, em
seguida, dois meses comendo alimentos pastosos e, por fim, pode
voltar, aos poucos, aos alimentos sólidos. Sua próxima cirurgia,
que fará em 2014, é a ortognática, para o encaixe da maxila. Ele
afirma não se preocupar com os procedimentos cirúrgicos e diz:
“Ah, vai fazer? Então v’ambora! Se for bom eu tenho que fazer”.
De tanto dividir os dias entre os estados de Minas Gerais e São
Paulo, em 2004, a família Carvalho de Paula decidiu por ficar de
vez em Bauru. A filha mais velha de Jamile e Ricardo, chamada
Samantha, ficou em terras mineiras. A caçula da casa, Isabela, veio
fazer companhia aos pais e ao irmão. O tratamento de Alysson
influenciou na decisão dos pais em relação à mudança de cidade
e, aqui, ele passou a frequentar as sessões de fonoaudiologia e
odontologia no próprio Centrinho. Antes, o menino fazia os
acompanhamentos mensais em Três Corações de acordo com
orientações dos profissionais de Bauru.
Durante a infância e adolescência, Alysson frequentou o
grupo de teatro no Centrinho. Entre cortinas e luzes, durante
104
Capítulo 4 - Vida: O sorridente
quatro anos, ele subiu aos palcos para interpretar diversos personagens e, assim, despertou o jeito brincalhão. As peças eram
ensaiadas e representadas no setor de recreação, mas a trupe de
Alysson entrou em cena também fora dos muros do hospital.
A vivência com os profissionais do setor foi tão íntima, que
a chefe da recreação, Márcia, se tornou madrinha da Isabela,
irmã mais nova de Alysson. Ele guarda boas recordações da
época do teatro, dos amigos que fez e diz que a recreação é
um local importante para os pacientes porque os faz esquecer
de que estão dentro de um hospital em tratamento. “Você não
fica mais naquele clima de quem vai fazer uma cirurgia. Ali
você se sente mais alegre, têm dinâmicas em grupo, é muito
divertido”, afirma.
Com a desinibição que os palcos lhe deram, Alysson não se
intimida em falar sobre a temida fase da adolescência e sobre as
primeiras paqueras. Ele afirma que nunca teve problemas para
falar sobre sua fissura durante a adolescência e lembra que respondia tudo o que lhe perguntavam. Ele recorda de ter escutado
algumas brincadeiras de mau gosto durante este período, mas diz
que era “desencanado”, brincava também e tentava conversar e
explicar aos colegas. Seguro de si mesmo ele afirma: “Eu cheguei
até a pensar: Nossa, por que eu? Mas nada que me abalasse. Eu
sempre fui muito positivo em relação à fissura”. Sobre os romances, ele conta que quando começou a sair com os amigos em
Bauru, ficava com receio em relação às garotas, mas que com o
tempo isso mudou. “Eu ia conversar, contava algumas piadas e
dava tudo certo”, conta.
Para o viajante sorridente que escolheu Bauru como novo
lar, o Centrinho é uma segunda casa. Alysson se sentiu acolhido
em um abraço pelo hospital. “Os pacientes chegam e o hospital
os acolhe e abraça. Isso é muito bom. Conhecemos os médicos e
enfermeiros e sabemos que eles realmente gostam de fazer o que
fazem e isso é muito bonito”, diz ele. Com o mesmo amor que
tem pelo seu primeiro lar, a casa onde vive com os pais, Alysson
recorda com carinho de cada cantinho do hospital. Ele diz ter ficado triste quando reformaram o bloco odontológico e demoliram
uma praça que existia no local para a construção de novas salas.
105
Do outro lado do espelho
“Quando eu cheguei e vi aquele bloco, fiquei chateado porque eu
gostava muito de brincar na antiga praça. Era como se fosse um
cantinho meu”, comenta.
O caminho de Alysson rumo à reabilitação ainda não chegou
ao fim. Ele ainda terá que enfrentar cirurgias e pós-operatórios
complicados antes de receber alta do hospital. Para um viajante
experiente como ele, serão somente mais alguns embarques por
cirurgias ortognática e de nariz antes de chegar ao destino final.
No banco da praça onde está sentado, ele vê o dia virar noite e
se apressa. Ele se encaminha para mais um de seus embarques.
Este, bem mais simples e tranquilo, em um ônibus urbano que
o levará para casa.
106
CIÊNCIA: RECREAÇÃO
O serviço de Recreação foi criado em 1974 com o objetivo de
promover atividades lúdicas e educativas para os pacientes e seus
pais. O setor atende a proposta de humanização do Hospital de
Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP (Centrinho).
A Recreação compreende espaços como a brinquedoteca, sala
dramática e cantinho da leitura. Os pacientes desenvolvem atividades plásticas, de expressão corporal e musical, participam de
dinâmicas de grupo, brincam e jogam.
Segundo a técnica de apoio educativo Viviane Gasparoto,
“o trabalho da recreação é receber os pacientes do pré e pós-operatório. O Centrinho não estimula o paciente a ficar acamado.
Então a maior parte do tempo, dentro das condições cirúrgicas,
eles vêm para o setor”.
A convivência dos pacientes no espaço da Recreação possibilita
uma integração entre aqueles que já operaram e os que esperam
a cirurgia. Essa troca de experiências tranquiliza pais e crianças.
Viviane explica que o objetivo é atender o paciente de forma individualizada e amenizar o estresse da internação. “Os pacientes
passam por todo processo de internação. A criança fica irritada,
chorando, mas quando ela entra aqui na brinquedoteca, já muda.
Vê o colorido, esse tanto de brinquedo. É instantânea a mudança
de comportamento da criança”, descreve. Pacientes de todas as
idades e também pais e mães frequentam o setor. “Geralmente
os pais estão muito mais tensos que os bebês. Os bebês choram,
porque eles estão de jejum e não entendem porque estão sem
comer. Uma estratégia que usamos é pedir para a mãe deixar que
peguemos o bebê no colo, porque acreditamos que a tensão dos
pais passa para a criança”, explica.
O espaço da Recreação que compreende a chamada sala
dramática possui um palco de teatro. “Trabalhamos expressão
corporal através de brincadeiras como mímica, teatro relâmpago,
107
Do outro lado do espelho
show brega, temos fantasias para os adultos também”, pontua
Viviane. Na programação do setor, podemos destacar também as
atividades plásticas. Viviane conta que o trabalho que os pacientes
mais gostam é o de pirografar na madeira. “Eu brinco com eles
que madeira é um material que não acaba nunca, é uma lembrança eterna! Então eles pirografam uma mensagem, um desenho,
escrevem “Centrinho-Bauru” com a data. Vêm mães aqui que
têm guardada a madeira que pirografou há 10, 15 anos atrás, é
uma recordação”, detalha Viviane. Apesar do clima descontraído do espaço de Recreação, existe a preocupação em respeitar a
situação de cada paciente ou familiar. “Quando a criança entra
no centro cirúrgico é um momento mais delicado, que exige uma
maior privacidade. A sala de espera cirúrgica acolhe quem está
acompanhando esse procedimento. São desenvolvidas atividades
de artesanatos, jogos e plástica”, explica Viviane.
A recreação envolve o lado educativo também. São trabalhadas datas comemorativas que contribuem para que as crianças e
os adolescentes em fase escolar não percam essas datas, quando
estão em tratamento.
Existem também projetos da Recreação que não são feitos nas
salas do setor, mas em outros ambientes como no ambulatório, em
quartos de internação, até na Unidade de Cuidados Especiais e de
Tratamento Intensivo, sendo tomados os devidos cuidados com a
higienização dos brinquedos. As atividades externas envolvem a
exibição de filmes e a contação de histórias, por exemplo.
108
Capítulo 5
Foto: arquivo HRAC/USP
Pacientes aproveitam o momento pré e pós - cirúrgico em atividades de
recreação
Centrinho na década de 2000
2000 – Recebe o prêmio “Qualidade Hospitalar 2000”, concedido pela Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da
Saúde, resultante de pesquisa de satisfação dos usuários feita
no ano.
2002 - Cerca de 200 pessoas passam diariamente por atendimento ambulatorial
111
Do outro lado do espelho
2002 - Centrinho recebe doação de livros pelo Programa
Biblioteca Viva. A iniciativa faz parte do projeto Biblioteca Viva
da Abrinq. As obras foram utilizadas pelo setor da Recreação
com pacientes e funcionários.
2004 - Centrinho atinge 60 mil pacientes cadastrados desde
sua fundação.
2005 - “Prédião” ainda não funciona por falta de verbas. Faltam estruturas da parte de construção civil, elétrica e hidráulica.
As novas instalações auxiliariam no atendimento especializado
em casos complexos de síndromes e deformidades craniofaciais.
2005 - Pacientes não-fissurados passam a ter acesso a serviços
médico-hospitalares e ambulatoriais oferecidos pelo Centrinho,
por meio de parceria com o Departamento Regional de Saúde de
Bauru e com a Secretaria Municipal de Saúde de Bauru.
2007 - Centrinho recebe o pesquisador Michael Carstens
que realiza a primeira cirurgia de enxerto com utilização de
proteína osteomorfogênica (BMP-Bone Morphogenetic Protein). A equipe do Centrinho acompanhou o procedimento que
é uma alternativa para a cirurgia de enxerto ósseo com tecido
da região do quadril. A proteína é sintetizada em laboratório e
induz células-tronco do paciente a se transformarem em células
do tecido ósseo.
2008 - Centrinho colabora com projeto científico internacional e recebe cirurgiões de cinco centros europeus. O estudo
inclui o uso de uma técnica do cirurgião-plástico da área das
anomalias craniofaciais, Brian Sommerland, por todas essas
instituições participantes. O projeto foi aprovado pelo Instituto
Nacional de Saúde dos Estados Unidos
112
2008 - Uma das principais parcerias do hospital é a Funcraf,
instituição que apoia o Centrinho desde sua criação em 1985. A
Fundação atuou na contratação de funcionários sendo que essa
ação também era desenvolvida pela USP. Em 2008 foi instaurado pelo Ministério Público do Trabalho um Inquérito Civil
para investigar irregularidades nesse sistema de contratação de
recursos humanos. Foi denunciada inadequação na contratação
que não era feita por concurso público da USP, o que é irregular,
pois os funcionários trabalhavam em um hospital ligado à Universidade de São Paulo, instituição pública de ensino. A decisão
se baseia no artigo 37, inciso II, da Constituição Federal: “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação
prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego,
na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo
em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.
113
Ana Flora e Helenice Gera
VIDA: UMA PÉTALA GUARDADA
NO LIVRO
114
Capítulo 5 - Vida: Uma pétala guardada no livro
No ano de 2000, teóricos do apocalipse falavam do Juízo Final. Não passou de mais uma previsão errada do fim do mundo.
Era também o ano do Bug do Milênio, que se converteu num
mito da tecnologia. A virada de 1999 para 2000 causaria uma
pane mundial nos sistemas de computadores, afetando bancos,
aeroportos e empresas. O motivo do caos seria um erro de informática nos computadores mais antigos, que interpretavam
as datas de acordo com os dois últimos dígitos e leriam o ano
de 2000 como 1900. No final, não passou de um susto, nada de
grave aconteceu. É nesse ano que nasce Ana Flora Porto Gera,
apreensão e surpresas também fizeram parte do dia 23 de janeiro de 2000. Longe dos temores em escala global da informática
ou do apocalipse, foi o mundo particular de uma mãe, ansiosa
para pegar sua filhinha no colo, que estremeceu. O alívio marca
o desfecho feliz da história da menina de 13 anos. Hoje, Ana
Flora e sua família também podem dizer: não passou de um
susto, nada de grave aconteceu.
Quando Ana Flora nasceu, a equipe médica suspeitava que
ela tivesse síndrome de Pierre Robin, pois possuía o queixo
projetado para trás e a fissura de palato, características dessa
sequência de anomalias. Sua mãe, Helenice Aparecida Porto
Gera, não conhecia a síndrome e a dúvida dos médicos virou o
desespero da mãe. Ana Flora ficou em observação e foi internada
no Hospital Regional de Franca (SP) durante oito dias por não
conseguir mamar. “Eu ia três vezes ao dia tirar leite enquanto
ela ficou internada, mas não me deixavam vê-la direito. Era uma
coisa bem desumana, fiquei muito brava”, conta Helenice que
depois conseguiu a permissão de passar mais tempo com a filha.
No hospital, colocaram uma cânula em Ana Flora para que sua
língua não prejudicasse a respiração, que foi retirada 24 horas
depois. A cânula oral é um tubo introduzido na boca que evita
uma possível falta de oxigenação e facilita a respiração.
Com oito dias de vida, Ana Flora trouxe uma inesperada
viagem para seus pais. O hospital de Franca recomendou o
início de um tratamento em Bauru, no Hospital de Reabilitação
de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, o
Centrinho. Num carro da UTI, a pequena criança viajava com
115
Do outro lado do espelho
uma sonda para alimentação enquanto seus pais seguiam a
ambulância de carro.
Já na recepção, a equipe médica do Centrinho questionou por
que o bebê estava com sonda já que tinha um aspecto saudável e
informou que, provavelmente, ela não tinha a síndrome de Pierre
Robin. Nos primeiros dias do tratamento, uma fonoaudióloga
trouxe uma mamadeira com o bico mole e mais longo, comum de
modelos antigos. Ana Flora mamou na hora sem dificuldades. A
possibilidade de síndrome foi descartada, Ana Flora tinha apenas
a abertura no céu da boca, a fissura de palato.
As indagações ocupavam a cabeça de Helenice. Teria sido a
batida de carro que aconteceu quando ela estava grávida de dois
meses? Um susto, mas sem consequências graves já que ela estava com o cinto de segurança. Porém, o bebê pode ter colocado
a língua no céu da boca, prejudicando o fechamento do palato,
uma possibilidade dada pelos médicos. “Quando a gente é mãe
fica pensando: por que aconteceu, por que é que nasce assim? Tem
que aceitar o problema e tentar resolver. Eu pensava: ‘tenho que
fazer minha parte’”.
Uma nova jornada se iniciava, mas Helenice se sentia mais
segura com o tratamento acolhedor que recebeu no Centrinho.
“Ela ficou três dias em Bauru em observação na enfermaria. Eu
podia ficar com ela, dar banho e cuidar. Eu vi muita cirurgia,
muita criança sofrendo em situações mais sérias, aí percebi que
ela não tinha era nada”, relata Helenice. Em seus pensamentos
ainda estava a lembrança de quando ela, chorando, observava Ana
Flora no hospital de Franca. A mãe e o bebê que poucos dias antes
formavam quase que um só, separados por um vidro gelado. Na
ocasião, um médico passou por ela de roupa e alma esterilizada
e disse que se o bebê estivesse bem ele estaria em casa com ela,
como se a situação dolorosa fosse uma obviedade áspera.
“Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana
sempre, quem traz no corpo a marca Maria, Maria...” Milton
Nascimento descreve as batalhas na vida de uma mulher na letra
da música “Maria Maria”. Helenice pôde vivenciar esse espírito de
luta durante os primeiros dias após o nascimento de Ana Flora.
Longe de casa, os incômodos do parto ainda sugavam a energia
116
Capítulo 5 - Vida: Uma pétala guardada no livro
do corpo da mãe. À noite, só as paredes estranhas do quarto que
se hospedou lhe faziam companhia, o seu marido que a havia
acompanhado a Bauru na viagem retornou para Franca para
cuidar de Raíssa, a outra filha do casal. Helenice tinha que ir a pé
ao hospital, que ficava próximo do local onde ela se hospedou. Foram três dias em uma cidade que ela não conhecia, mas o esforço
estava valendo a pena e logo ela poderia voltar para casa. Nem a
chuva que acompanhava Helenice nas suas idas ao hospital levava
embora a esperança da volta.
Nessa temporada em Bauru, Helenice descobriu situações
opostas a dela: “Quando eu estava no Centrinho do lado do berço
dela, tinha uma senhora tão pobre que quando falaram para ela
ir embora, ela ficou triste e dizia: ‘aqui tem comida, agora vou ter
que ir trabalhar’. Enquanto tudo que eu queria era ir embora. Eu
fiquei bem chocada com a situação”.
Helenice voltou para Bauru com a filha um mês depois para
consulta. Ana Flora estava bem de saúde e deveria se preparar
para fazer o fechamento do palato com um ano. A menina descobria o mundo, interagia, subia em tudo, só não falava muito.
O único problema era o costume de chupar o dedo que atrasou
em seis meses a operação.
Depois da cirurgia, Ana Flora ficou com os braçinhos amarrados em talas para evitar que colocasse a mão na boca. Ela se
comportou bem até que tirou as talas sozinha quando o prazo
de recuperação estava perto do final, como se entendesse o que
estava acontecendo com ela. Só era difícil resistir às tentações de
não poder comer o que a dieta do pós-operatório não permitia.
Ainda bem que a irmã Raíssa colaborava, nada de comer “alimentos proibidos” perto da pequena que seguia uma dieta líquida.
Tendo escolhido a carreira de professora, Helenice se acostumou a ensinar, mas teve que aprender muita coisa para cuidar de
Ana Flora no pós-operatório. Ela fazia questão de seguir de forma
rigorosa as orientações da nutricionista, a dieta exigia alimentação líquida durante 30 dias. Outra orientação do pós-operatório
era observar a região operada na boca da criança para prevenir
infecções. Por medo, Helenice teve dificuldade para fazer isso,
então levava a filha ao médico em Franca. Mesmo que tivesse que
117
Do outro lado do espelho
fazer isso todos os dias da recuperação, não media esforços para
que não acontecesse nenhum problema.
A cirurgia que Ana Flora realizou fazia parte do Projeto
Flórida, que é uma parceria de pesquisas entre o Centrinho e
a Universidade da Flórida nos Estados Unidos. A mãe conta
que: “antes a cirurgia era feita com enxerto e havia uma chance
grande de ter que fazer uma segunda cirurgia porque a voz ficava
fanhosa. Os cirurgiões dos EUA estavam estudando uma forma
de fazer a cirurgia com o alongamento do palato. Essa cirurgia era
mais agressiva, dolorida e inchava mais, mas valia a pena porque
diminuía muito a chance de uma segunda cirurgia por causa da
voz”. Helenice assinou um termo concordando com a nova técnica
cirúrgica, que foi realizada com sucesso.
Quando Ana Flora recebeu alta do Centrinho, após concluir
o processo da cirurgia de palato, continuou o tratamento com
dentista e fonoaudióloga em Franca. Ela nunca teve problemas de
voz fanhosa, uma possível consequência de quem possui fissura
de palato. Ana Flora sente-se aliviada por terminar o tratamento
de fonoaudiologia que fez até os 12 anos.
A garota não se lembra de quase nada da época do tratamento, mas sua história está registrada na memória de sua mãe, que
consegue reconstruir com as areias do passado essas grandes
lembranças como se tudo tivesse acabado de acontecer. Ana Flora,
que gosta de ler histórias fantásticas, pode até escrever seu próprio
livro um dia, aventuras não faltam.
118
CIÊNCIA: PROJETO FLÓRIDA
O projeto Flórida é um convênio de cooperação internacional
entre o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da
Universidade de São Paulo e o Centro Craniofacial da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. A parceria que começou em
1996 envolve a realização de projetos de pesquisa e o intercâmbio
de profissionais e alunos.
O projeto analisa as técnicas cirúrgicas para os pacientes com
fissura labiopalatina. O objetivo é comparar o crescimento craniofacial, a fala e a função velofaríngea (relativa ao palato mole e
paredes da faringe) em crianças com fissura labiopalatina, após
as primeiras cirurgias de lábio e palato. Para essa comparação,
aplicaram-se técnicas distintas para reparo do lábio e do palato.
Em relação às cirurgias de palato, foram analisadas a técnica
de “Furlow” e a técnica de “Von Langenbeck” em cerca de 500
pacientes. Os dois procedimentos são aplicados no fechamento
do céu da boca e no reposicionamento da musculatura para que
o paciente não tenha problemas de fala. A técnica de “Furlow”
alonga em maior extensão o palato do que a técnica tradicional de
“Von Langenbeck”, já usada no Centrinho. A técnica “Furlow” foi
desenvolvida pelo cirurgião plástico Leonard Furlow da Universidade da Flórida. Na reparação do lábio as técnicas observadas
foram a de “Spina” e “Millard”, a primeira para fissuras bilaterais
e a segunda para as unilaterais.
Também foram realizadas avaliações em que as cirurgias
eram feitas em pacientes com 9 a 12 meses de idade em comparação a outro grupo que realizava o procedimento na faixa
etária de 15 a 18 meses.
Em 2012, uma nova etapa do Projeto Flórida priorizou o estudo dos efeitos das cirurgias de palato na audição de pacientes
com anomalias craniofaciais, abordando também os distúrbios
da fala e o crescimento facial.
119
Do outro lado do espelho
Atualmente o Projeto Flórida se encontra em fase conclusiva,
uma das modificações resultante desse programa foi a antecipação
da idade para cirurgia primária de palato de 18 para 12 meses.
Também foi constatado que os pacientes operados pela técnica de
“Furlow” tiveram melhor resultados de fala que os operados pela
técnica de “Von Langenbeck”. Outro avanço foi a padronização
de protocolos para documentação clínica para todas as áreas de
atendimento aos pacientes com fissura labiopalatina.
120
Ana Laura Apolinário
VIDA: A SAGA DE DUAS HEROÍNAS
121
Do outro lado do espelho
A jornada do herói consiste em etapas presentes em todas as
narrativas. Esse conceito foi desenvolvido no livro “O Herói de
Mil Faces”, de Joseph Campbell, no século XX. Em 1998, o roteirista Christopher Vogler publicou o livro “A jornada do escritor:
estrutura mítica para escritores”, em que os conceitos de Campbell
foram organizados em 12 estágios. A jornada pode ser identificada
em mitos, fábulas e contos de fadas. Até numa história real esse
processo pode ser encontrado. No livro Vogler afirma: “cheguei
à convicção de que a Jornada do Herói é nada menos do que um
compêndio para a vida, um abrangente manual de instrução na
arte de sermos humanos”. A vida que Samara e sua filha Ana
Laura têm levado é uma prova disso. A jornada na divisão feita
pelo roteirista se inicia com o herói em seu cotidiano: Samara de
Paula Lemes Apolinário tinha 23 anos e ainda era uma jovem
imatura que morava em Pindamonhangaba (SP). O segundo
passo é o chamado à aventura: em 2005, após o nascimento da
sua filha Ana Laura Lemes Apolinário, grandes desafios surgem
na vida dessas heroínas. Na jornada do herói existem 12 passos.
Ana Laura, hoje com oito anos, também já superou 12 obstáculos,
pois esse é o número de cirurgias que ela fez no tratamento da
fissura de lábio e palato que possui.
A história começa na Santa Casa de Pindamonhangaba quando uma menininha nasce no dia 6 de outubro. A mãe de primeira
viagem não estranhou de imediato a demora para que a criança
fosse levada para o quarto, mas as horas foram passando e ela
começou a se preocupar. Quatro horas após o parto, uma psicóloga e uma fonoaudióloga entraram no quarto de Samara levando
um panfleto com uma menina na capa, que Samara achou muito
bonita: “mãe, sua filha nasceu assim”, disseram. Era um panfleto
sobre fissura labiopalatina que mostrava uma menina com a
cirurgia feita e atrás do papel havia uma foto de como a pessoa
tinha nascido. “Mas a fissura da menina era só de um lado, não
era igual a da Ana Laura que era bilateral e bem maior. Quando
trouxeram minha filha era bem pior do que a menina da foto, não
122
Capítulo 5 - Vida: A saga de duas heroínas
era um cortinho, pegou muito o nariz dela e a gengiva”, descreve
Samara que desconhecia o que era fissura.
A partir desse momento, Samara não pôde mais voltar para
casa. Como num momento triste de um conto de fadas não havia
mais migalhas pelo caminho, era preciso seguir na inesperada
trilha que a vida lhe oferecia. Durante um mês Ana Laura ficou
na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) da Santa Casa onde
nasceu e depois passou 60 dias na UCE (Unidade de Cuidados
Especiais) do Centrinho. A internação era necessária, porque
Ana Laura tinha uma grande dificuldade de respirar devido a
uma obstrução grave na garganta, a língua dela também não
ficava na posição correta, tampando a passagem de ar. Ana Laura
não conseguia se amamentar.
O terceiro passo da teoria da jornada do herói é a recusa
ao chamado. A hesitação veio da família de Samara, já que ela
sempre aceitou o fato da filha ter nascido com fissura labiopalatina. Quando Ana Laura nasceu, seu pai Roosevelt Alves
tinha acabado de passar no concurso do Corpo de Bombeiros. Ele ficou seis meses em regime de internato e nem pôde
acompanhar Samara no dia do parto. “Foi o pior período da
minha vida porque eu passei tudo sozinha. Ele viu que eu sou
uma mulher forte, que eu passei por cima de tudo sozinha,
esses seis meses viajando sozinha para Bauru, então ele se
acomodou”, conta Samara. O pai de Ana Laura veio a Bauru
uma vez para acompanhá-las em uma consulta, mas desde que
a garota nasceu ele não superou o fato dela ter a malformação,
acontecimento que até hoje o abala. Ele apoia financeiramente
o tratamento da filha e também se preocupa com a saúde dela,
mas não participa das viagens para Bauru. “Minha mãe e meu
pai não iam em casa me visitar quando ela operava, eu não
tive apoio de ninguém pra vir para Bauru. Todas as crianças
que vão operar eu vejo que vai a família inteira. Eu com a Ana
Laura sempre foi eu e ela”, pontua. Diante dos casos mais graves de outras crianças que frequentam o Centrinho, Samara
123
Do outro lado do espelho
considera Ana Laura uma menina saudável, inteligente e forte.
“Ela é nossa alegria”, comenta.
Apesar das dificuldades do apoio familiar Samara conta que
teve a ajuda de muitos amigos. Dentre eles a sobrinha de seu marido, Cássia, que na época com 12 anos, revezava com Samara nos
cuidados com a sonda alimentar de Ana Laura. Profissionais do
Centrinho também se tornaram grandes amigos de Samara. Na
trilha da reabilitação, ao lado dos passos dela e de sua filha estão
também os de médicos, psicólogos, enfermeiras, cozinheiras e
funcionários da limpeza. “Meus amigos de Bauru brigam para eu
ficar na casa deles, todo mundo gosta da Ana Laura”, comenta.
No emprego, Samara também encontrou apoio, ela trabalha na
Câmara dos Vereadores de sua cidade e não tem dificuldades para
faltar quando a filha é atendida no Centrinho.
Com pouco mais de um mês de vida a menina dormia no berço
da UCE, no dedinho da mão um aparelho media a saturação de
oxigênio absorvido por ela. O aparelho da Ana Laura marcava
uma saturação de oxigênio de 60% enquanto o normal é de 95%, a
menina não conseguia ficar sem máscara de oxigênio. Chega então na sala uma junta médica com cinco profissionais que vieram
falar com sua mãe. Samara foi informada que sua filha precisaria
passar por uma traqueostomia. O procedimento cirúrgico envolve uma abertura na região da traquéia e a implantação de uma
cânula (tubo) para melhorar a respiração. Diante dessa notícia, a
jovem mãe vislumbrou em pensamentos um futuro difícil. Teria
que largar o emprego, teria que velar o sono da menina durante
todas as noites para fazer a manutenção da cânula e se, por um
pequeno descuido, a passagem de ar entupisse... o risco da morte
sufocava seu coração. “Não vou deixar ela fazer a traqueostomia,
ela vai melhorar”, foi o que Samara afirmou. A reação foi severa:
“o Dr. Hilton que é o pediatra mais antigo lá do hospital, disse que
ia chamar o conselho tutelar, que eu iria até presa se precisasse,
mas que ela tinha que fazer”, conta. Revoltada e nervosa, Samara
começou então a chorar, nesse momento dois religiosos entraram
124
Capítulo 5 - Vida: A saga de duas heroínas
no quarto. A mãe de Samara havia pedido na igreja para que eles
fossem orar pela Ana Laura, Samara então aproveitou para pedir
que eles ungissem a menina. Do lado do berço dela, os religiosos
oraram e ungiram o bebê. Terminado o tempo de permanência
de acompanhante, Samara foi para a Profis (entidade que presta
assistência social aos pacientes do Centrinho).
Na mitologia grega e romana existem deusas que tecem e
controlam o destino dos homens. As Moiras ou Parcas são “as
fiandeiras do destino” e controlam a vida de todos no tear ou
Roda da Fortuna. O destino pode parecer incontestável, mas
Samara tentou, por meio da fé, desmanchar as tramas do futuro
que esperava Ana Laura. Ela sabia que no dia seguinte a costura
estaria completa: a cirurgia seria marcada. Então a jovem mãe passou a noite inteira ajoelhada rezando, em cada oração um fio era
puxado. Chegou a hora de Samara passar pelo quarto estágio da
jornada do herói, o encontro com o mentor ou ajuda sobrenatural.
“Era um milagre o que tinha acontecido com a Ana Laura”, essas
foram as palavras do médico quando Samara chegou no outro
dia na UCE. A saturação de oxigênio do aparelho de Ana Laura
marcava 100%. O nível permaneceu normal durante semanas e
a língua do bebê passou a ficar na posição correta. Os médicos se
desculparam por terem ameaçado chamar a polícia, caso Samara
tentasse impedir a traqueostomia. “O Dr. Hilton perguntou qual
o santo que era o meu, porque era mesmo um milagre. Ela ainda
ficou um tempo internada porque eles não acreditavam no que
tinha acontecido”, relata Samara.
Com essa nova fase completada, mãe e filha transpuseram
o primeiro limiar, o quinto estágio, mas novas provações as
aguardavam. Com três meses Ana Laura fez a cirurgia de um dos
lados do lábio, não foi recomendado que ela fizesse os dois lados
de uma vez. Junto com essa cirurgia ela operou três hérnias. “Ela
veio para casa que nem um robozinho, porque ela estava toda
enfaixada, a barriga, o rosto tudo cheio de ponto”, recorda a mãe.
Três meses depois dessa primeira cirurgia ela fechou o outro
125
Do outro lado do espelho
lado do lábio, o que mudou bastante a aparência da menina. A
cirurgia de palato também feita aos seis meses de idade exigiu
a paciência de quem monta um quebra-cabeça complicado. “O
céu da boca dela não fechava, tinha que fazer de pedacinho em
pedacinho. O médico queria até usar uma prótese de palato, mas
eu tinha fé que ia fechar. Ela opera muito, fez sete só para o céu
da boca que hoje é perfeito. Daqui a três meses ela vai fazer a
cirurgia de levantamento de columela (parte do nariz próximo
ao lábio). Vai alongar o narizinho. Eu estou super ansiosa, porque é estético, né!?”, ressalta Samara. A mãe conta que o formato
do nariz de Ana Laura é uma das características que as pessoas
mais reparam, as crianças na escola frequentemente questionam
por que o nariz dela é abaixado.
Ana Laura também possui deficiência auditiva, a associação
entre perda auditiva e fissuras labiopalatina já foi abordada por
muitos estudos e é consenso que a perda ocorre com maior frequência nos indivíduos com fissuras labiopalatinas em comparação
a não-fissurados. Ana Laura nasceu sem parte da orelha direita
que tem perda total da audição. No outro ouvido ela tem perda
de moderada à severa e usa um aparelho auditivo. A dificuldade
auditiva atrasou a fala da menina, que só começou a conversar com
quatro anos. O comprometimento da fala demorou a ser avaliado.
“Foi um pouco erro do hospital porque desde quando ela nasceu eu
pedia para passar no CPA ou Cedalvi (centros de saúde auditiva). E
foram me enrolando até que com quatro anos ela não falava nada,
então eu disse que queria fazer exames de qualquer jeito”, ressalta
Samara. Já suspeitaram que Ana Laura tivesse alguma síndrome,
pois além da fissura labiopalatina e dos problemas decorrentes, a
menina é muito agitada e tem características físicas que podem ser
ligadas a alguma síndrome como os olhos puxados. “Ana Laura é
uma incógnita no hospital”, afirma Samara, pois a seção de Genética do Centrinho não diagnosticou nenhuma síndrome até hoje.
Foram até enviados exames de Ana Laura para os Estados Unidos,
mas não foi constatada nenhuma alteração.
126
Capítulo 5 - Vida: A saga de duas heroínas
Na escola, Ana Laura se dá bem com todo mundo, é muito
comunicativa, mesmo tendo problemas de fala. Com oito anos
de idade, a menina ainda está na pré-escola. Ela entrou na escola
aos seis anos e não aprendeu muito no primeiro ano. Ana Laura
começou a avançar mais quando mudou para a escola em que está
atualmente. “Ela sempre foi muito hiperativa, o neuropediatra dela
mandou dar aqueles remédios como Ritalina. Eu não dei. Se Deus
enviou ela assim agitada, eu vou cuidar dela assim, porque com
esses remédios a criança fica grogue, sonolenta, eu vou aguentar
ela assim”, afirma Samara.
Na saga, existem momentos que o herói passa por grandes
provações ou crises que podem ser percebidas do sexto ao oitavo
estágio da jornada. “Chegou uma hora que eu não queria fazer
mais nada, eu tive depressão, já pensei em largar a Ana Laura,
largar tudo”, desabafa. As dificuldades do tratamento, as recorrentes viagens para Bauru com seis horas de duração e a falta de
apoio já enfraqueceram a guerreira. Samara se preocupa como
Ana Laura lidará com a fissura no futuro. “O preconceito vem até
da gente mesmo, que fica pensando como vai ser quando crescer.
Ela olha para mim e fala da orelha: ‘mãe é pequenininha, por que
não cresceu?’. Eu sempre penso isso dela mocinha e fico abatida,
ela é muito dependente de mim. Eu tenho medo, às vezes, eu choro
olhando para ela dormindo e penso como vai ser quando ela for
moça, como ela vai aceitar”, detalha.
Na nona etapa o herói ganha uma recompensa: as conquistas
das heroínas foram muitas. Ana Laura já passou por diversas
fases do tratamento com sucesso nas cirurgias, elas fizeram
vários amigos e Samara se tornou mais madura e confiante. “O
Centrinho é uma mãe que me apoiou muito. A felicidade que
eu tenho hoje com Ana Laura eu devo aos profissionais que
cuidaram dela. Ela não é um paciente comum, ela tem quatro
prontuários no hospital, enquanto um paciente adulto tem
dois”, pontua Samara. A cada desafio vivido no tratamento elas
se sentem mais fortes para voltar para casa, renascendo com
127
Do outro lado do espelho
esperança a cada provação. As heroínas cumprem as etapas “O
caminho de volta” e “Ressurreição”.
“Olha mãe, como eu sou linda!”, declara Ana Laura diante do
espelho. Samara confirma sem hesitação. Vestida de rosa da cabeça aos pés, antes de tirar foto passa batom e faz poses. Ana Laura
é muito vaidosa e sabe que toda menina é uma princesa. Mas no
conto de fadas da sua vida, Ana Laura não é uma donzela na torre
à espera de um príncipe que a resgate. É ela mesma que desbrava
os perigos para poder ser feliz, derrotando bruxas e monstros a
cada cirurgia ou olhar de preconceito. O último estágio da jornada
do herói é o retorno para o mundo comum com a recompensa
ou elixir que beneficia as outras pessoas. E o que a princesa Ana
Laura tem para oferecer é o exemplo de sua força para lutar pela
reabilitação, construindo com alegria o seu próprio castelo.
128
CIÊNCIA: ASSISTÊNCIA SOCIAL
O setor de Serviço Social do HRAC/USP surgiu em 1973 pelas mãos da então estagiária Maria Inês Gândara Graciano, hoje
diretora do setor no hospital. Esta área tem a função de facilitar
o acesso dos pacientes ao tratamento e garantir sua continuidade.
“De nada adiantaria essa estrutura, se os pacientes não tivessem
como chegar até nós”, afirma Maria Inês. “Nosso foco principal
é avaliar se os pacientes apresentam alguma dificuldade para dar
seguimento ao tratamento, para aí podermos intervir. Avaliamos
cada caso para entender por que um paciente interrompeu o tratamento e trabalhamos para trazê-lo de volta. Esse é o principal
desafio do Serviço Social”.
A atuação da assistência social no hospital é dividida em três
áreas: ambulatório, internação e projetos comunitários. Para
realizar essas tarefas, o setor conta com 13 profissionais. No
ambulatório, as assistentes sociais participam do acolhimento
aos casos novos e dão orientações aos pais e familiares sobre o
processo de reabilitação. Ainda na primeira consulta, o paciente
passa por um estudo social que visa identificar suas necessidades e
possibilidades em relação ao tratamento. “Temos o Plantão Social
onde acompanhamos todos os pacientes. Nosso foco é entender as
questões sociais que podem interferir no tratamento e no processo
de reabilitação de cada um”, afirma a diretora do Serviço Social.
Na ala de internação, os profissionais do setor realizam reuniões diárias com os pacientes que serão internados, tanto para
acolhimento quanto para orientação sobre a rotina no ambiente
hospitalar. Ainda são feitas entrevistas individuais com os pacientes antes e depois das cirurgias. Na internação, é realizado
um trabalho mais intensivo com as mães de bebês com fissura ou
sindrômicos que permanecem internados por longo período na
Unidade de Cuidados Especiais ou na Unidade de Terapia Intensiva. O Serviço Social também realiza o acompanhamento das altas.
129
Do outro lado do espelho
Os profissionais de assistência social do Centrinho atuam
também em projetos comunitários que envolvem programas que
incentivam os pais de pacientes a se tornarem representantes dos
usuários do Centrinho em seu município de origem e projetos que
estimulam a oferta de carona entre os pacientes. Entre os projetos
comunitários estão:
Agentes multiplicadores: pretende capacitar a ação de pais-coordenadores (representantes dos usuários) e de profissionais
ou leigos (representantes da comunidade), para o processo participativo e organizativo em auxílio à reabilitação, como na criação
de associações de apoio ao fissurado labiopalatal.
Carona amiga: consiste no agendamento dos pacientes agrupados por municípios. As prefeituras fazem um cadastro dos
pacientes moradores da cidade e cedem as conduções municipais para fins de tratamento no Centrinho. A meta é propiciar
a união das pessoas e a racionalização do transporte municipal,
de forma a facilitar o processo de reabilitação e estimular a
organização popular.
Casos Novos: acolhe e recebe os pacientes que dão início ao
tratamento no Centrinho.
Mobilização de recursos institucionais e comunitários: envolve
diferentes parcerias. A parceria com os recursos institucionais
engloba as Unidades de Alojamento de pacientes, cabendo ao
Serviço Social prestar assistência em extensão aos serviços de
plantão in loco, aos casos de ambulatório e internação.
Mobilização do Tratamento Fora do Domicílio (TFD) do Sistema Único de Saúde (SUS): objetiva assegurar o benefício TFD,
que permite aos usuários do SUS o acesso a atendimentos não
disponíveis em seus municípios de origem. O Programa envolve
130
Capítulo 5 - Ciência: Assistência Social
o fornecimento de passagens de ida e de volta e ajuda de custo ao
paciente do Centrinho e a seu acompanhante.
Parceria com prefeituras municipais: propõe intercâmbio
com as prefeituras por meio de assessorias, cursos, estágios e
eventos científicos.
Parceria com promotorias públicas: possibilita a continuidade
do processo de reabilitação dos pacientes atendidos no Centrinho,
prevenindo casos de abandono de tratamento ou intervindo nos
mesmos, assegurando-lhes direitos de cidadania.
131
Capítulo 6
Foto: arquivo HRAC/USP
Tecnologia e pesquisa possibilitam avanços no tratamento
Centrinho na década de 2010
2011 – Após acordo entre USP e Ministério Público em 2011,
foi decido que a universidade abriria concursos públicos para
admitir funcionários e, que aqueles contratados pela Funcraf,
teriam que deixar o Centrinho gradativamente.
2012 - O Hospital conta com 244 alunos matriculados nos
cursos de pós- graduação e especialização e titulou até então 964
especialistas, mestres e doutores no país e no exterior.
135
Do outro lado do espelho
2013 – Funcionários contratados pela Funcraf começam a ser
dispensados. Atualmente cerca de 20 funcionários da Funcraf
permanecem no Centrinho dos 287 inicialmente vinculados.
2013- Drª. Regina Célia Bortoleto Amantini assume a superintendência do hospital, cargo ocupado pelo Dr. José Alberto
de Souza Freitas, conhecido como tio Gastão, da fundação do
Centrinho até sua aposentadoria em maio de 2012.
2013 - Até agosto de 2013, 90.106 pacientes estavam nos
registros de matrícula do Hospital. Do total de matriculados,
cerca de 53 mil apresentam anomalias craniofaciais e 35 mil são
pacientes da área de saúde auditiva
2013 - O Centrinho completa 46 anos de atuação e é o hospital de referência para o tratamento de fissuras labiopalatinas
no Brasil e na América Latina.
136
Cristiane e Miguel Valle
VIDA: O MERGULHO
137
Do outro lado do espelho
No século XX, Bauru foi sede do projeto da Estrada de
Ferro Noroeste do Brasil, inaugurada em 1906. Alguns anos
depois a cidade receberia duas ferrovias: Sorocabana e Paulista, tornando-se um importante entroncamento ferroviário.
Se a vida fosse uma viagem de trem, firme em seus trilhos e
no seu caminho predeterminado, os dias fluiriam consistentes
através dos tempos. Quando Cristiane de Azevedo Rino Valle
decidiu engravidar pela segunda vez, preparou corpo e espírito
para a chegada do bebê. Pastora, seguiu as orientação da bíblia:
“ungi minha barriga, fiz jejum e orei”. Ficou grávida no dia
que programou na “tabelinha”. Era seu dia fértil e tudo estava
acontecendo como planejado. Até que um mar denso se formou
sob a vida de Cristiane. Na sua história, tudo sempre tinha sido
programado. Mas aquele acontecimento não estava em seus
planos. Levava uma vida saudável, livre de vícios, não fez raio-X
durante a gestação e tomou ácido fólico todos os dias. Seguiu
todos os cuidados como na sua primeira gestação. Como era
difícil entender por que isso estava acontecendo com ela: nas
linhas harmônicas de sua vida, um desvio. O pequenino lábio
aberto e o nariz achatado: a imagem no ultrassom de quatro
dimensões confirmava que seu filho nasceria com fissura de
lábio e palato. Não conseguia nem colocar a mão na barriga. “Eu
não posso sentir essa rejeição, meu Deus!”, murmurava para si
mesma após o exame.
Depois dessa notícia iniciou-se uma investigação que envolveu
desde os médicos, que buscaram se informar melhor sobre a fissura labiopalatina, até a família e os amigos. Deformação, problema,
defeito. Essas palavras terríveis povoavam seus pensamentos. De
tanto pensar em tudo que podia acontecer, ela já não sabia em
que pensar. As infinitas respostas das pesquisas na internet só
trouxeram mais apreensão. Quando o telefone tocava era sempre
mais alguém com uma teoria de como seria a criança fissurada.
Não faltavam palpites para construir a imagem de uma aberração.
“Eu pensava como eu ia cuidar, como seria minha vida. Se ele ia
138
Capítulo 6 - Vida: O mergulho
ser feio... mexeu muito com minha vaidade. Quem quer ter filho
feio? Ninguém!”. Esses eram os pensamentos de Cristiane no
início da gravidez de Miguel Rino Valle.
“Meu Deus que coisa horrível, obrigada por não ser comigo”,
era o que pensava antes quando via os pacientes na entrada do
Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, o Centrinho. Cristiane não se sentia
culpada, pois havia feito tudo certo na gestação, por isso queria
saber o motivo, devia haver um porquê. Diante da ausência de
outros fatores, os médicos que acompanharam o caso de Cristiane concluíram que o motivo da fissura era o risco populacional
geral. Os estudos sobre a malformação propõem que a fissura
labiopalatina é resultante de fatores ambientais e genéticos, não
há uma causa específica.
A obstetra havia indicado que Cristiane visitasse o Centrinho
e ali estava ela, grávida de seis meses. “Antes era com os outros,
agora é comigo”, pensava. Cristiane participaria do Programa de
Acolhimento a Gestantes. Foi assim que antes mesmo de Miguel
nascer, ela foi atendida pelo Centrinho. Os desafios dessa nova
jornada já começaram na recepção do hospital, no primeiro dia
do Programa. Uma criança com um caso complicado de fissura
estava bem ao lado dela e acenou. Cristiane não conseguiu se
conter, era só lágrimas e desespero.“Eu tive uma crise de choro,
acho que comecei a mudar de cor. As pessoas da recepção perceberam e me encaminharam para uma salinha. Essa foi a minha
primeira entrada no Centrinho, em pânico”, conta Cristiane. O
marido Renato Valle era seu porto seguro e estava lá para acalmá-la. Recobrado o equilíbrio, ela se encontrou com a enfermeira,
era a hora de descobrir tudo. Porém, nesse momento todas as
perguntas se esvaíram da cabeça dela, só restou escutar a onda
de informações. A enfermeira deu orientações sobre amamentação, primeiros cuidados e cirurgias iniciais. A névoa do medo
começava a se dissipar. “Não era nada daquilo que eu pensava
que ia ser. Nessa fase eu já tinha trabalhado aquele sentimento
139
Do outro lado do espelho
momentâneo de rejeição, foi uma coisa de momento que depois
passou e eu aceitei”, recorda Cristiane. A vida voltava aos trilhos.
Era hora de se preocupar com a primeira fase da reabilitação.
Cristiane era tomada pela ansiedade, sua mente vislumbrava uma
corrida por todas as fases até o fim do processo, mas o barco da
vida ainda içava as velas para a grande viagem.
O programa de acolhimento envolvia um contato com bebês
já operados e sem operar. Primeiro a enfermeira apresentou uma
criança com uma fissura bem pequena. “Bem que o meu poderia
ser assim”, desejou Cristiane. As mães vinham e davam uma palavra de apoio. A experiência era gradativa, dos casos mais simples
aos mais complicados. Não era fácil, aquilo era tão novo. Cristiane
hesitava até para pegar no colo os bebês que a enfermeira oferecia.
Em uma das etapas, a enfermeira orientou sobre a limpeza
da boca e nariz do bebê fissurado, áreas que necessitam de uma
atenção maior devido às cirurgias. Primeiro, hesitação; depois,
prática. Com cautela ela testou se dava pé, depois já conseguia
mergulhar: “chegou uma hora que eu já estava me sentindo
uma médica, eu estava neutralizada, eu pegava e limpava dali e
daqui”, descreve. No final do dia, mãe e enfermeira se emocionaram num abraço de lágrimas.
Meses depois, havia chegado o dia do nascimento, na sala do
parto um clima de nervosismo e expectativa. A tensão do momento atrapalhava, a anestesia não havia sido aplicada com sucesso e
os médicos a alertavam sobre o risco de convulsão. O pediatra do
Centrinho que acompanhou a gestação de Cristiane a acalmou
pegando em sua mão: “fica calma, estou aqui com você. Deixa ela,
o neném vai nascer com fissura, ela tem todo o direito de ficar
nervosa”, dizia. “Senti ele como um paizão”, comenta Cristiane.
No programa de acolhimento, Cristiane havia sido atendida
pela enfermeira Isabel Lisboa que se tornou uma grande amiga.
No dia 21 de novembro de 2011, Cristiane ligou para ela para
contar a novidade da chegada de Miguel. “Se Deus me deu esse
neném, um a cada 600 e poucos casos e foi comigo, então Deus me
140
Capítulo 6 - Vida: O mergulho
deu um presente. Eu vou ser a melhor mãe do mundo, a melhor
mãe de fissurado de Bauru”. Amor e alívio envolviam os pensamentos de Cristiane após o nascimento de Miguel.
“Está vendo essa boquinha?! Foi Deus que quis que eu vivesse dessa forma”, afirmava a mãe para o filho. “Eu entendi
que isso trabalhou na minha vaidade, porque às vezes a gente
precisa ser mexida para a gente dar valor. Então tudo que ele
é, era para ser. Eu recebi aquilo como um presente, nessa fase
eu já tinha mudado tudo”.
O mar em ressaca, revolto por incertezas, se transformou num
cenário de calmaria. Cristiane se dedicava nos cuidados com o
filho. Passava óleos para não ressecar a boca que não fechava por
causa da fissura, buscava o melhor tipo de mamadeira, seguia
todas as orientações aprendidas no Centrinho. Miguel era o
príncipe da família, todos queriam cuidar dele. Com a mãozinha
sobre a barriga de Cristiane, a irmã de Miguel, atualmente com
quatro anos, já o apoiava no caminho para a reabilitação. “A gente
falava que ele tinha um dodói na boca que ia operar, depois que o
Miguel nasceu ela ficava olhando e querendo cuidar dele” conta.
Cristiane evitava passear com ele para mantê-lo saudável,
pois quando Miguel respirava o ar não passava pela filtragem do
nariz, entrava direto pela boca por causa da fissura do palato, o
que aumentava as chances dele ficar doente. Mantê-lo em casa
nos três primeiros meses evitava também os olhares turvos.
“Duas vezes que eu saí com ele, as pessoas se chocavam e não foi
legal sentir aqueles olhares. Eu decidi esperar ele operar porque
eu também não tinha que ficar passando por isso”, desabafa. A
mãe se acostumou a lidar com a curiosidade dos outros. Quando trabalhava na parte administrativa de uma escola e levava o
Miguel com ela, sempre respondia para as crianças com tranquilidade: “ele operou, costurou a boquinha”.
Os desafios de lidar com a fissura vinham em ondas, a
amamentação foi uma das primeiras. Miguel chorava e chorava
alto, queria mamar. Cristiane tentou colocá-lo no peito para
141
Do outro lado do espelho
estimular o leite descer. Faltava a pressão necessária na boca
do pequeno, não foi possível que Miguel fosse amamentado no
peito. A saída foi usar a bombinha para tirar o leite e depois
usar o banco de leite. A rotina envolvia correria e esforço para
que o alimento chegasse antes do choro.
Com três meses Miguel passou pela primeira cirurgia, a de
fechamento da fissura labial. Era hora de enfrentar os aventais verdes, máscaras, luvas e portas com vidros translúcidos. A imagem
de um açougue passa pela cabeça de Cristiane, uma comparação
desagradável provocada pela apreensão do momento. Mas ela
recupera-se prontamente. É preciso coragem materna para levar
o filho nos braços dentro do centro cirúrgico e entregá-lo para a
equipe de enfermagem: “É bem tenso, da outra vez eu entrei no
vestiário e fiquei chorando um tempão”, revela.
A cirurgia de lábio durou quatro horas. O tempo se arrastava pela tarde, Cristiane aguardava na Recreação e tentava se
distrair montando um quebra-cabeça. Apesar da agonia, o tempo de internação também representa troca de conhecimento.
Cristiane conheceu várias pessoas e histórias: “tem uma mãe
de cada jeito, é o Brasil aqui nesse hospital. Essas experiências
são edificantes e me fazem pensar que graças a Deus é só isso,
graças a Deus que é tão fácil”.
Fim da cirurgia, o choro rouco e bravo de Miguel aperta o
coração materno. Depois de todo procedimento médico, a preocupação é com as regras da recuperação: um mês sem mamadeira,
cuidados para não colocar a mão na boca, dieta líquida e remédios.
Porém, o novo sorriso de Miguel faz tudo valer a pena. “Fizeram
um milagre, porque não parecia com ele, mudou completamente
o rosto porque o lábio era bem aberto. A boquinha dele é pequena
como a minha e do meu marido, ficou super bonitinho”, conta
Cristiane. A transformação está registrada em fotos, o álbum de
Miguel guarda as mudanças do sorriso.
Com um ano e dois meses Miguel realizou o fechamento
de parte do palato, correspondente ao palato duro que é a parte
142
Capítulo 6 - Vida: O mergulho
anterior do céu da boca. Cristiane conta que o cirurgião responsável pelo caso explicou que se fosse feito o fechamento total do
palato poderia haver o rompimento da fenda. Foi escolhido fazer
a cirurgia do palato duro e depois esperar a pele esticar para
fazer a parte detrás, que é o palato mole. Miguel também tem
uma abertura atrás do dente, pois a fissura atinge a gengiva. “Está
nascendo um monte de dentes, ele tem dois, podia acontecer de
não nascer nada. É meio tortinha a gengivinha dele, mas ele tem
um sorriso, tem um vão no meio, mas deu certo o sorriso. É tão
engraçado”, detalha Cristiane.
Na época das cirurgias, Cristiane altera seu comportamento.
O jeito de andar fica mais rápido e há agitação até nos mínimos
gestos. É preciso deixar tudo em ordem, fazer tudo que é necessário e de preferência sem demora. A filha pequena, a casa e as
responsabilidades: tudo vira uma grande onda. Mais uma vez era
hora de embarcar, pois o vento soprava uma nova etapa: Miguel
tinha uma nova operação marcada. Cristiane nos concedia a entrevista um dia antes de mais uma fase do tratamento de Miguel
no Centrinho, ele faria o fechamento do palato mole.
A preparação para cirurgia exige dedicação, a criança não
pode se alimentar cerca de 8 horas antes da cirurgia: “Tem um
jejum muito importante antes da cirurgia, porque eles falam que a
criança fica com um tubo na garganta e se estiver com alimento na
barriga, pode engasgar e morrer. Então eu não dou nada mesmo!
É meio judiado porque a última mamada é 5 horas da manhã e vai
operar 1 hora da tarde, a criança fica com fome”, relata Cristiane.
Às 6h45 do dia seguinte a rotina de internação se iniciaria.
Passa pelo otorrino, nutricionista, pesa, mede, faz exame de
sangue, tira foto. Essas e outras etapas são necessárias para que
o paciente seja aprovado para realizar o procedimento cirúrgico.
Depois da correria é hora da espera, a expectativa era que Cristiane passasse 48 horas no hospital até que Miguel recebesse alta. A
cirurgia realizada acabou abrindo os pontos, resultando em novos
procedimentos médicos, mas depois foi concluída com sucesso.
143
Do outro lado do espelho
“Eu fico um pouco aliviada porque eu moro aqui em Bauru.
Tem moça que vem sozinha, sem família e não tem com quem
revezar nem para tomar banho. Elas ficam lá, sozinhas, têm
a maior despesa. Existe a ajuda da Secretaria da Saúde, mas
algumas não conseguem, demora e é pouco também. Eu fico
com dó”, conta Cristiane.
Passos ligeiros, pega um brinquedo e sorri. Joga uma pipoca
na boca. Mesmo com o céu da boca fissurado ele não engasga.
Miguel é uma criança saudável com um ano e sete meses e
Cristiane consegue levar a vida normalmente fora dos períodos
de cirurgia. “Essa orientação do programa das mães me ajudou
muito, eu ter conhecido antes fez total diferença. Eu acho que
eu teria ficado apavorada sem saber nada, eu vi a diferença de
mães que eu conheci que não tinham nenhuma informação,
não estavam conseguindo cuidar, com aqueles medos de pôr a
mão...”, comenta Cristiane.
Nessa viagem que é a experiência materna, as primeiras reações de Cristiane foram de rejeição e angústia, mas tudo mudou.
Ela navegou na inconstância do destino, quase submergindo
algumas vezes, até que conseguiu vir à tona e respirar com alívio.
Aceitação, coragem e fé se tornaram os lemes desse cruzeiro em
busca da reabilitação de Miguel.
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CIÊNCIA: ENFERMAGEM
Na caminhada para a reabilitação, o serviço de enfermagem
orienta os pais desde o primeiro contato da família com o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (Centrinho).
Esse contato pode ser feito por telefone, carta, email ou pela
própria ida da família com o paciente à instituição. A função
da enfermagem é dar as orientações básicas de cuidado com
a criança, que podem iniciar até antes do nascimento, com o
acolhimento as gestantes. O setor também realiza avaliações
que colaboram no processo de liberação da criança para a
cirurgia. No ambulatório é realizado, por exemplo, o controle
do peso e da vacinação e também o acompanhamento da saúde
do paciente para atendimentos odontológicos e fonoaudiólogos,
fora do período de cirurgia.
Num momento em que muitos pais sentem-se desnorteados
o trabalho da enfermagem é explicar o passo a passo, mostrando
que o paciente com fissura, apesar de suas necessidades específicas, é uma criança normal. Esse tratamento sem discriminação
é incentivado pelas próprias enfermeiras que desenvolvem um
tratamento humanizado e individualizado para cada criança.
“As mães percebem que a gente trata o bebê como se fosse um
bebê normal, desenvolvemos um trabalho em que enfeitamos a
criança, colocamos lacinhos, deixando ela bonitinha e as mães
começam a ver esse outro lado que favorece a relação entre mãe
e bebê. Isso é muito gratificante para a equipe de enfermagem,
porque a gente está atuando e vendo os resultados”, explica a
chefe técnica do serviço de enfermagem do Centrinho, Cleide
Carolina da Silva Bemoro Mondini.
Um dos primeiros questionamentos das mães de crianças com
fissura labiopalatina é sobre a possibilidade da amamentação. Cleide comenta que “os pais tem muita insegurança de como oferecer
alimento ao bebê, se é com colher, com conta-gotas, na mamadeira
145
Do outro lado do espelho
ou se vai dar o peito. Tudo isso é uma preocupação e vai depender
de cada caso, se é uma criança que tem uma fissura menos complexa, um palato menos fendido ela vai ter maior facilidade para
mamar. Muitas vezes o bebê consegue mamar no peito e a mãe
vai ter que se adaptar ao filho”. A aceitação da criança fissurada
pela mãe no aspecto psicológico também contribui para que a
mãe consiga amamentar o filho com tranquilidade. Faz parte
do trabalho das enfermeiras passar para as mães a segurança de
que o bebê não vai engasgar com o leite. Quando não é possível
o aleitamento materno, usa-se a mamadeira com o bico que a
criança melhor se adaptar.
Um fato que acontece com frequência é o bebê estar com sonda
para alimentação quando chega ao Centrinho pela primeira vez,
sem ter recebido nenhum tipo de orientação do hospital antes.
“Os profissionais de outros hospitais não têm muita experiência
em lidar com essas crianças. Por medo de que o bebê engasgue
ou perca peso eles optam por colocar a sonda, mas não é a medida mais correta, então a gente faz a retirada no ambulatório do
berçário”, explica a enfermeira.
No tratamento do paciente fissurado, outro ponto que desperta
receio nos pais é a higienização. A equipe de enfermagem realiza
orientações sobre a limpeza oral e nasal, para que a alimentação possa ser feita de modo saudável e prazeroso para o bebê e,
também, para prevenir infecções nas áreas operadas. “Os bebês
gostam desse procedimento de limpeza, eles às vezes choram uma
primeira vez, depois se você vai conversando com a criança, com
carinho, ela se sente segura e percebe que não é agredida com
aquele procedimento”, relata.
PARTICIPAÇÃO DOS PAIS
O trabalho da enfermagem passou por mudanças em relação
à participação dos pais. As crianças eram entregues para as enfermeiras na porta da internação e ficavam cerca de cinco dias
146
Capítulo 6 - Ciência: Enfermagem
internadas, enquanto isso as mães só observavam através de um
vidro na parede da sala. Com a introdução do Programa Mãe
Participante, em 1988, os pais ou responsáveis acompanham de
perto os pacientes durante a internação. A importância desse
acompanhamento é que os pais aprendem a realizar todos os
cuidados do pós-operatório, por exemplo, a higienização dos
pontos da cirurgia. Essa participação mais efetiva do acompanhante possibilitou ao serviço de enfermagem observar o
comportamento da família com o paciente, encaminhando
possíveis problemas para as áreas específicas do atendimento. A
enfermagem trabalha em conjunto com a psicologia e o serviço
social, podendo até entrar em contato com os profissionais da
cidade do paciente quando necessário.
Cleide explica que “esse acompanhamento da mãe no período de internação diminui as complicações pós-operatórias e a
ansiedade da família, favorecendo a reabilitação da criança. Elas
estão num ambiente estranho, mas ver um rosto conhecido faz
com que a recuperação delas seja mais rápida”.
Bebês sem síndrome associada à fissura labiopalatina geralmente permanecem durante dois dias na unidade semi-intensiva
do hospital, já os pacientes sindrômicos têm um tratamento mais
prolongado. O acompanhamento é feito durante o dia todo, mas
não à noite: “a mãe não consegue ficar durante a noite, é desgastante. Eu preciso dela acordada no outro dia para aprender a
fazer os procedimentos, para receber as orientações do médico.
A enfermagem realiza o treinamento dos acompanhantes, mas
já aconteceram casos da criança receber alta do hospital, mas
a mãe não receber alta da enfermagem, porque ela não estava
preparada para fazer a continuidade desses cuidados em casa”,
conta a chefe da enfermagem.
Além da atuação geral da enfermagem, o setor foi responsável
por criar alguns projetos específicos como o Projeto Brinquedo
Terapêutico que atualmente faz parte da Recreação e o Programa
de Acolhimento a Gestante, o qual Cleide Mondini é uma das
147
Do outro lado do espelho
fundadoras. Atualmente, a enfermeira Isabel Aurélia Lisboa é a
responsável pelo Projeto Gestante.
PROGRAMA BRINQUEDO TERAPÊUTICO
O ambiente hospitalar pode ser assustador para uma
criança, pensando em amenizar essa situação foi desenvolvido o Projeto Brinquedo Terapêutico. O objetivo é fazer a
dessensibilização da criança, preparando-a para cirurgia e
para o pós-operatório. O programa acontece atualmente na
recreação, mas começou na enfermagem. “Enquanto as crianças estão se preparando para cirurgia elas vestem aventais,
máscaras e luvas como dos médicos, pegam as bonecas e se
fazem de médicos. Também é feita uma atividade de contação
de histórias, explicando como será depois da cirurgia e isso
tudo tem contribuído para a melhora delas no pós-operatório”,
explica Cleide.
Essas atividades são parte dos projetos de pesquisas como
“O Brinquedo Terapêutico aplicado em crianças com fissura
labiopalatina em condições pré e pós-cirúrgicas no HRAC-USP”,
desenvolvido desde 2010 sendo coordenado por uma enfermeira
e uma pedagoga e “O Brinquedo Terapêutico e o preparo da
criança para cirurgia de correção de fissura labiopalatina”, que
contou com a participação de Cleide Mondini.
PROJETO GESTANTE
Outro projeto desenvolvido pelo setor de enfermagem foi o
de Acolhimento a Gestante. O atendimento às mães grávidas
que procuram o Centrinho começou em 2001 e passou a ser
um protocolo de atendimento em 2008. Durante o programa,
as mães recebem orientações sobre os primeiros cuidados,
amamentação, higienização e primeiras cirurgias. Além disso,
existe uma etapa em que as gestantes podem conhecer bebês com
148
Capítulo 6 - Ciência: Enfermagem
fissura operados e também sem operar. Esse é um dos momentos
que mais emociona pais e profissionais.
O programa nasceu de uma necessidade percebida quando
as gestantes procuravam o hospital para receber alguma orientação. Cleide relata o início dessa experiência: “Certa vez eu
levei um casal para conhecer uma criança no berçário e eu me
surpreendi porque o pai dessa família, que autorizou mostrar
a criança, chorava compulsivamente. Ele falava que esse outro
casal estava tendo um privilégio. Esse pai acreditava que se ele
e a esposa tivessem recebido as orientações antes, eles estariam
numa condição melhor. Aí eu chorei junto, todo mundo chorou
e aquilo me marcou. Então eu vi que a gente tinha que institucionalizar esse procedimento.”
A mãe que tem o filho fissurado colabora com a recém-chegada e também se sente bem com a troca de experiências.
A enfermagem incentiva essa convivência entre as mães como
forma de superar as dificuldades de aceitação. A insegurança e o
receio dão lugar à confiança e ao otimismo. Essa mudança pode
ser observada no comportamento das mães que participaram do
programa. Muitas enviam fotos do parto e dos recém-nascidos,
demonstrando como essa experiência da maternidade se reestrutura de forma mais positiva para pais e criança.
149
Diogo Pádua Garcia
Posfácio
151
Do outro lado do espelho
O PEQUENO COMBATENTE
Aline Ferreira Pádua
O toque estridente do telefone ecoou por todos os cômodos
da casa, penetrando paredes e portas, me fazendo, por um rápido momento, tirar os olhos do computador. Da sala, ouço a
voz de minha mãe conversando com meu irmão, Tiago. Naquela
manhã, sete de outubro de 2013, minha sobrinha, Isis Domingos Pádua, de 17 anos, fora às pressas para a maternidade dar à
luz ao seu primeiro filho. Estávamos à espera de notícias e, por
isso, detive por mais algum tempo minha atenção nas falas que
vinham da sala. “Como? Ele tem fissura?”, disse minha mãe
logo após atender ao telefone. Minhas pernas ficaram trêmulas
e meu coração disparou. Em segundos, imagens e cenas que
presenciei no Centrinho, nos últimos oito meses, se intercalaram
rapidamente em minha mente. Eu me dirigi até a sala, peguei o
telefone e pedi para que meu irmão mantivesse a calma. Ele não
sabia que eu escrevia um livro-reportagem sobre a história de
pacientes com fissura labiopalatina do Centrinho, como trabalho
de conclusão de curso.
Era por volta das 11 horas da manhã quando meu sobrinho,
Diogo Pádua Garcia, nasceu. Sua malformação não havia sido
diagnosticada nos exames de ultrassom e sua fissura de lábio
bilateral e fenda palatina surpreenderam a todos. Ele foi o
primeiro caso de bebê fissurado na família. As seis horas que
sucederam o parto foram de angústia e questionamentos para
os pais e avós do bebê. Meu telefone não parava de tocar e a
cada momento alguém trazia novas teorias sobre o caso. Fui
até o hospital onde mãe e filho estavam internados e tive que
aguardar por três horas para que minha entrada fosse liberada.
A noite já se aproximava quando consegui trocar as primeiras
palavras com minha sobrinha. Ela estava abatida por conta
da cirurgia cesariana e caminhava lentamente em direção
ao banheiro quando eu cheguei ao quarto. Conversamos por
152
alguns minutos antes de outros visitantes chegarem. Uma
de suas primeiras frases foi: “Tia, ele é lindo!”. Meu coração
se acalmou e o medo de que ela sentisse rejeição por Diogo
ou se culpasse pela malformação se dissiparam. Contei a ela
sobre o tratamento realizado no Centrinho, em Bauru, sobre
a possibilidade da total reabilitação dos pacientes com fissura
e do longo caminho que ela teria que trilhar para alcançar a
recuperação de seu filho.
Diogo nasceu prematuro, aos sete meses, pesando 1,790 kg e
medindo 43 cm. Por ser ainda muito pequeno, ele permaneceu
sete dias na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal do hospital.
Nesse período, quando o bebê completava cinco dias de vida,
acompanhei minha sobrinha a uma das visitas diárias que ela
fazia ao bebê no hospital. Ao cruzar a porta da UTI Neonatal,
deixamos nossos pertences em uma mesa, higienizamos as mãos
e vestimos aventais brancos. Seis incubadoras estavam dispostas
em fileiras. Em uma delas, mais próxima a janela, estava Diogo.
Usava apenas uma fralda descartável que lhe parecia enorme.
Tão pequeno, dormia um sono profundo como se não percebesse
que não estava mais no ventre materno. Suas pernas e braços
longos e magros estavam cobertos por pelos escuros. As mãos
que traziam dedos compridos repousavam sobre a barriguinha.
Na cabeça, uma espessa cabeleira negra quase se fundia com
as pequenas sobrancelhas. Nos lábios, a fissura bilateral fazia
com que seu lábio superior se unisse à ponta do nariz. Ele usava
sonda alimentar e uma cânula de ar próxima ao rosto fazia com
que respirasse com mais facilidade.
Isis se acomodou em uma cadeira ao lado da incubadora, abriu
uma porta e levou as mãos para acariciar o pequeno. Alguns
minutos depois, tomei coragem e repeti os gestos dela. Passamos
uma hora apenas zelando pelo sono do dorminhoco. Ainda era
cedo para pegá-lo no colo. Durante esse período, uma pediatra
e uma psicóloga se aproximaram para relatar o estado de saúde
do bebê e responder as dúvidas da mãe. Entre explicações sobre o
153
Do outro lado do espelho
tempo que Diogo ficaria na UTI e sobre o uso da sonda, a pediatra
afirmou: “o tipo de fissura dele é dos mais agressivos. É um caso
difícil”. Minha sobrinha não disse nada, apenas chorou. A jovem
mãe de primeira viagem saiu do hospital ainda em choque com
as palavras da pediatra. Nos próximos dias, ela ouviria versões
diferentes sobre a fissura de Diogo. Afirmaram a princípio, que
a fissura era apenas de lábio. Posteriormente, disseram que a
malformação atingia parte do palato.
Ele vai conseguir mamar? Ele conseguirá falar? Ele vai ter
uma vida normal? Foram alguns dos questionamentos que
perturbaram as noites de sono de Isis e Júlio, pais de Diogo.
Alguns disseram que o garoto só poderia se alimentar sem a
sonda quando realizasse a primeira cirurgia, outros que ele
sairia do hospital sem o aparelho. Eu tentava alertar que era
preciso pensar na saúde do bebê e encaminhá-lo ao Centrinho
para receber as primeiras instruções sobre os cuidados diários
e tratamento.
Aos 11 dias de vida, Diogo recebeu alta da maternidade onde
nasceu, em São José do Rio Preto, pesando pouco mais de 1,5kg
e usando sonda alimentar. Seus pais e avós saíram do hospital
e pegaram estrada rumo a Bauru. A ansiedade de chegar ao
Centrinho e ter informações sobre o futuro do menino foi tão
grande que não se lembraram de passar em casa para pegar
roupas limpas para Isis que estava há três dias internada junto
com o bebê, depois que ele passou para o quarto. Três horas de
viagem separavam o local de partida do Centrinho. Ao chegar
a Bauru, pela hora do almoço, eu os acompanhei até o hospital.
Subimos a rampa de acesso ao ambulatório do Centrinho e
fomos encaminhados à sala de atendimento aos Casos Novos.
A surpresa das enfermeiras foi grande ao ver que a equipe médica de Rio Preto não havia agendado o atendimento do bebê,
dado alta para um recém-nascido prematuro e o encaminhado
a Bauru sem o suporte de uma ambulância. O corre-corre foi
grande para realizar os primeiros atendimentos e solicitar a
154
presença de um pediatra. Logo, Isis e Diogo foram levados para
os primeiros atendimentos. Eu aguardava com meu irmão, o
avô, Júlio, o pai, e Raquel, a avó paterna. A ansiedade do avô foi
tamanha que ele aproveitou que nós nos distraímos para entrar
pelos corredores do hospital procurando pela filha e neto. Logo
uma das assistentes sociais apareceu preocupada acreditando
que uma mãe e um bebê estavam perdidos dentro do hospital.
A bronca ao avô atrapalhado ficou por sua conta. Pouco mais
de uma hora depois, Isis retornou com Diogo trazendo a notícia
de que eles teriam de ficar internados no hospital para realizar
exames e avaliar o caso do bebê. Foram dez dias de internação
na Unidade de Cuidados Especiais, a UCE.
O primeiro desafio para Isis foi a despedida da família que
regressava para Rio Preto enquanto ela ficava com o bebê em
Bauru. Naquela sexta-feira, 18 de outubro de 2013, ela teve de
deixar Diogo no Centrinho e se alojar na Profis, entidade que
apoia pacientes do hospital. A nova realidade a convidava para
ver faces da vida que ela não conhecia. A primeira noite foi a
mais difícil. Isis me enviou mensagens por celular contando sobre o aperto que passava por estar em uma cidade desconhecida
e alojada em uma associação com pessoas tão diferentes dela.
Sua mãe, Andresa, me ligou chorando e pediu para que eu fosse
visitá-la e que não a deixasse sozinha.
A rotina diária começava pouco depois das sete da manhã.
Ela entrava no hospital para passar o dia ao lado do filho e
aprender como cuidar dele. No horário do almoço, ela voltava
para a associação para a refeição e retornava ao hospital no período da tarde, saindo às seis horas. No sábado, segundo dia de
internação do Diogo, eu fui até o hospital para conversar com
minha sobrinha durante o intervalo de uma hora entre a saída
da UCE e a entrada na Profis. Ela parecia mais confortável frente
ao turbilhão de mudanças pelas quais passara nos últimos 19
dias, mas estava abalada com as novas situações que conheceu no
hospital. Ela me contou sobre um jovem que viu no ambulatório
155
Do outro lado do espelho
que tinha apenas três dedos muito longos nos pés e nas mãos e
os olhos disformes. Nesse dia, ela também conheceu a história
de uma mãe que está internada há meses com seu bebê na UCE
e a de um menino que nascera com uma fissura tão extensa que
atingia todo o nariz. Isis entendeu que a malformação de Diogo
era pequena quando comparada a outros casos. Ela se questionou pelas lamentações e rebeldias da adolescência e assumiu que
não imaginava o quão complexa poderia ser sua vida.
Diogo recebeu alta do Centrinho após dez dias de internação.
Ele ganhara peso, pesava 2 kg, continuava com a sonda, mas
havia aprendido usar a mamadeira. O menino voltou para casa
com a sonda alimentar para não correr o risco de perder peso e
ter de ficar mais dias internado. Por ser pequeno, ele não tinha
força o suficiente para sugar todo o leite necessário direto na
mamadeira e por isso permaneceu com a sonda. Duas semanas
depois, já no mês de novembro, mãe e filho retornaram ao hospital em Bauru para exames de rotina. A saúde de Diogo evoluiu,
ele seguia ganhando peso e pôde retirar a sonda alimentar.
Meu sobrinho é o paciente de número 1-72267 do Centrinho.
Sua primeira cirurgia, para a reconstrução de um dos lados do
lábio, está marcada para janeiro de 2014. Passado o susto de seu
nascimento, a família comemora sua evolução e saúde. Os avós
publicam fotos na rede social Facebook com frases de amor e
carinho. Isis dedica todo seu tempo a ele que adora ficar no colo
e receber mimos dos pais. Olhando para Diogo reconheço, assim
como Isis fez em uma de nossas conversas em Bauru, o quão
minha vida pode ser complexa e envolta por acontecimentos
que não posso explicar. Quando iniciei este livro-reportagem,
minha sobrinha estava no começo do namoro com Júlio, não
planejava engravidar tão nova. A gravidez inesperada foi motivo
de surpresa para mim que nessa época fazia visitas regulares
ao Centrinho e iniciava as entrevistas para o livro. No dia em
que Diogo nasceu eu estava no meu quarto lendo uma coletânea de artigos acadêmicos, entre eles, um que tratava sobre o
156
Centrinho. Seu nascimento me fez acreditar que seja Deus, seja
o universo, os números ou os astros, existe algo que influi em
nosso caminho e nos leva a estar prontos para situações inesperadas. Eu, que quando fui ao Centrinho pela primeira vez, sabia
pouco sobre o que era fissura labiopalatina, estava pronta para
receber Diogo e apoiar minha família com o que aprendi com
os profissionais e pacientes que tornaram este livro possível.
157
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Valle;
Cristina Guedes de Azevedo Gonçalves, fonoaudióloga do HRAC/
USP;
Eudes Soares de Sá Nóbrega, cirurgião plástico HRAC/USP;
Fernanda Fernandes Murakami, assistente social da PROFIS;
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Fernando Ceschini Dias Tamarozzi, paciente e ex-funcionário do
HRAC/USP;
Flávia Suano de Carvalho, paciente do HRAC/USP;
Fredson Evanildo Martins Pereira, paciente do HRAC/USP;
Helenice Aparecida Porto Gera, mãe da paciente Ana Flora Porto
Gera;
Henry Edson Cavalcante Pereira, paciente do HRAC/USP;
João Antônio Corrêa de Souza, paciente e funcionário do HRAC/
USP;
Jozue Meza Pereira, pai do paciente Henry Edson Cavalcante Pereira e fundador da Alecranfa;
Maria Inês Gândara Graciano, diretora do Serviço Social do
HRAC/USP;
Marcos Vinício Faria, gerente geral da PROFIS;
Marlene Aparecida Menconi, psicóloga do HRAC/USP;
Rodrigo Inácio de Oliveira, paciente do HRAC/USP;
Samara de Paula Lemes Apolinário, mãe da paciente Ana Laura
Lemes Apolinário;
Terumi Okada Ozawa, cirurgiã dentista e chefe técnico do Serviço
de Odontologia do HRAC/USP;
Tiago Rodella, assessor de imprensa do HRAC/USP;
Viviane Gasparoto, técnica de apoio educativo do HRAC/USP.
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Blog do Centrinho: https://centrinhousp.wordpress.com
Jornal da USP: http://www.usp.br/jorusp/
Profis: www.profis.com.br
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Formato: 14x21 cm
Mancha: 9,7x5,47 cm:
Tipologia: Minion Pro:
Papel: Off set 75g (miolo)
Supremo250g/m² (capa)
Projeto Gráfico,
Diagramação e
Produção da Capa: Dé Guimarães
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