UNESP- Universidade Estadual Paulista-“Júlio de Mesquita Filho” FAAC- Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Curso de Jornalismo MEMORIAL DE PROJETO EXPERIMENTAL (LIVRO-REPORTAGEM ‘DO OUTRO LADO DO ESPELHO’) Bauru, 2014 Aline Ferreira Pádua Lydia Rodrigues Souza MEMORIAL DE PROJETO EXPERIMENTAL (LIVRO-REPORTAGEM ‘DO OUTRO LADO DO ESPELHO’) Memorial de Projeto Experimental apresentado em cumprimento parcial às exigências do Curso de Jornalismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, do Departamento de Comunicação Social, da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo. Orientador do Projeto Experimental: Prof.Dr. Célio José Losnak Bauru, 2014 SUMÁRIO Capítulo I Introdução........................................................................................05 1. A escolha do tema................................................................05 2. Tema e justificativa...............................................................05 Capítulo II Produto Jornalístico........................................................................09 1. Público alvo...........................................................................09 2. Projeto Gráfico Editorial.......................................................09 3. Descrição do produto...........................................................09 4. Fontes e entrevistados.........................................................10 5. Equipamentos utilizados......................................................12 6. Atividades desenvolvidas.....................................................12 Capítulo III 1. Dificuldades encontradas....................................................14 2. Outras informações..............................................................14 3. Considerações Finais...........................................................16 Referências Bibliográficas..............................................................18 CAPÍTULO I 5 INTRODUÇÃO 1. A escolha do tema A escolha do tema deste trabalho veio da influência do primeiro projeto de extensão que participamos na faculdade, o Toque da Ciência. O projeto é um portal de divulgação científica que trabalha com jornalismo literário na seção Revista, linguagem radiofônica por meio dos podcasts e jornalismo diário na seção Agência. O projeto possibilitou que lidássemos com temas científicos, variados assuntos e fenômenos por meio do jornalismo. Também pudemos ter contato com pesquisadores, professores e profissionais de diversas áreas do conhecimento. Além das fontes oficiais, conhecemos pessoas que dividiam suas histórias conosco nas reportagens, tendo um papel essencial em meio ao contexto científico das matérias jornalísticas. Percebemos que era importante pensar no leitor, escrever do melhor modo para seu entendimento e aproximar seu cotidiano dos temas abordados. Permanecemos no projeto nos quatro anos da nossa graduação. Se o projeto Toque da Ciência marcou nossa vida acadêmica, morar em Bauru fez diferença em nossa vida pessoal. Mudar de cidade trouxe novas experiências e desafios. O Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais atava essas pontas: ciência e Bauru. O hospital consolida-se internacionalmente como centro de referência no tratamento das fissuras labiopalatinas e também de síndromes relacionadas e deficiência auditiva. Como hospital universitário, oferece cursos de pósgraduação e de extensão, especializações, mestrado e doutorado. O hospital é conhecido como Centrinho e tem 46 anos de existência. O atendimento é gratuito via Sistema Único de Saúde. 2. Tema e justificativa O livro-reportagem “Do outro lado do espelho” - A história de vida de pacientes do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (Centrinho) apresenta a trajetória de dez pacientes com fissuras labiopalatinas, as fases do tratamento e a história do Centrinho 6 desde sua fundação, em 1967, até 2013. A proposta fundamenta-se em entrevistas com pacientes ou ex-pacientes do Centrinho e com profissionais das principais áreas relacionadas ao tratamento da malformação. A fissura labiopalatina é uma malformação congênita que ocorre nos primeiros meses de gestação durante a formação da face do bebê e consiste em uma abertura no lábio ou céu da boca (palato), podendo ocorrer ao mesmo tempo nas duas estruturas. As cirurgias e os procedimentos médicos devem se iniciar quando o paciente ainda é bebê e o tratamento só é concluído, na maioria dos casos, na fase adulta, pois muitas intervenções acompanham o crescimento da face. Desse modo, a vida dos pacientes com fissura labiopalatina atendidos pelo Centrinho se relaciona com as várias etapas tratamento. Os pacientes têm suas vidas modificadas ainda pelo fator espacial. Muitos deles precisam se deslocar até a cidade de Bauru para receber o tratamento. Nesse sentido, quebram-se rotinas e cria-se a necessidade de se adequar a um novo ambiente. Em paralelo, observando as questões voltadas às individualidades de cada paciente, abordamos a relação da pessoa com a malformação levando-se em conta os fatores como a aceitação própria e o convívio social. Também trabalhamos com a história da instituição, seu crescimento, dificuldades e modificações físicas e administrativas. Assim a trajetória de vida dos pacientes, as fases do tratamento e a história da instituição foram os pilares da construção da narrativa. O tratamento envolve uma análise dos métodos médicos e a evolução destes. A história da instituição destaca o programa de tratamento de fissura labiopalatina do hospital que é centro de referência no país e se desenvolve de acordo com a trajetória de vida de pacientes de diferentes lugares, numa organização por décadas. Como justificativa para o trabalho, destacamos a função do jornalismo como prestação de serviço ao público. Assim, por meio do trabalho objetivamos contribuir para o esclarecimento do leitor em relação à malformação, às técnicas e desenvolvimento científico do tratamento e retratar a trajetória da pessoa com fissura labiopalatina, mostrando as influências da malformação na 7 identidade da pessoa, dilemas de sua inserção social e as alternativas que o tratamento oferece para a formação do indivíduo como sua reabilitação física e psicológica. O formato de livro-reportagem possibilitou uma contextualização adequada ao tema com uma abordagem histórica, científica e social por meio da linguagem do jornalismo literário. 8 CAPÍTULO II 9 PRODUTO JORNALÍSTICO 1. Público alvo O livro-reportagem destina-se ao público leigo em geral. Para pessoas que se interessem pela temática da malformação fissura labiopaltina, pela história do hospital Centrinho e/ou pelos perfis de pacientes apresentados, seja pela proximidade com o tema por serem pacientes ou pais de pacientes, seja por busca de esclarecimento pelo assunto. Procuramos alcançar pessoas que estejam tendo o primeiro contato com o tema, mas também público especializado que busque uma visão contextualizada e humanizada da temática científica retratada. 2. Projeto Gráfico-Editorial O projeto gráfico do livro-reportagem foi desenvolvido por Emanuel Antonio Guimarães Martins. Buscou-se uma diagramação clara e objetiva, trabalhando com material textual e fotográfico. O livro se encaixa na editoria “Ciência”, pois aborda a malformação e as fases de tratamento, sendo que esse material se relaciona com as fontes entrevistadas para os perfis. Optou-se por escrever os perfis com a linguagem do jornalismo literário que possibilita aprofundamento, contextualização e maior liberdade de criação. Para a parte científica e histórica foi usada a linguagem mais clara direta do jornalismo diário, pelo tipo de informação obtida que requeria maior exatidão e objetividade. 3. Descrição do produto O livro possui 165 páginas com divisão em seis capítulos, além de Agradecimentos, Epígrafe, Prefácio, Índice, Introdução e Posfácio. As fotos são de autoria das alunas Lydia Rodrigues Souza e Aline Ferreira Pádua, e também foram utilizadas imagens do arquivo do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais- Centrinho (HRAC/USP) para a parte de história da instituição. Para a abertura das décadas, entre 1960 e 2013, optamos pela utilização de fotos, assim como nos perfis de pacientes e posfácio. Duas fotos foram cedidas pelos próprios entrevistados como no caso do perfil de Miguel e 10 Cristiane Rino Valle e Diogo Garcia. Com as fotos buscou-se ilustrar a cronologia do hospital e dar personalidade aos perfis, aproximando as histórias do leitor. Como capa, escolhemos uma foto que ilustra a transformação física de um paciente (João Antônio Corrêa de Souza), apresentando três momentos temporais: o presente pela mão que segura a moldura fotográfica e dois momentos do passado que mostram a evolução do tratamento por meio das modificações faciais do paciente. A foto também traz uma referência ao passado do Centrinho, já que o arquivo fotográfico é físico e não digital como acontece atualmente e, por constar na moldura a denominação antiga do hospital: “HPRLLP” - Hospital de Pesquisa de Reabilitação de Lesões LábioPalatais. 4. Fontes e Entrevistados A produção do livro-reportagem “Do outro lado do espelho” teve início em março de 2013 com a elaboração do pré-projeto e requisição da permissão para o trabalho junto ao setor de comunicação do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC). Obtida a permissão para realização de visitas ao hospital e entrevistas, deu-se início ao levantamento bibliográfico sobre o tema a ser tratado, ou seja, fissuras labiopalatinas. Para isso foram utilizados materiais institucionais concedidos pelos assessores de imprensa do hospital, livros e artigos da biblioteca do HRAC, concedidos via empréstimo entre bibliotecas. Ainda foram consultados sites e blogs, livros que abordam as técnicas de entrevista e redação de livros reportagens, além de livrosreportagem de autores já consagrados do jornalismo. Em abril de 2013, tendo realizado leituras e fichamentos sobre o tema tratado no livro, iniciamos a seleção de fontes e entrevistas orais. Entre os dias quatro e cinco de abril, aconteceu o XIII Encontro Nacional de Associações de Pais e Pessoas com Fissura Labiopalatina e /ou Deficiência Auditiva e IX Encontro da Rede Nacional de Associações de Pais e Pessoas com Fissura Labiopalatina- Rede Profis onde pudemos conhecer membros de associações em prol dos fissurados de todo o país. Nessa ocasião fomos apresentadas a 11 Jozue Meza Pereira e Henry Cavalcante Pereira. Jozue é fundador da Alecranfra (Associação de Portadores de Lesões Labiopalatinas e Deficientes Auditivos do Estado do Acre) e pai de Henry, paciente do hospital. A entrevista aconteceu na pousada onde os dois estavam hospedados, nas proximidades do Centrinho. Nos dias seguintes, em oito de abril, realizamos uma visita guiada na Profis (Sociedade de Promoção Social do Fissurado Lábio Palatal), em Bauru, onde conhecemos a história de Fredson Evanildo Martins Pereira, um funcionário do local e paciente do Centrinho, e sua irmã, Aldria Marlen Martins Pereira. A entrevista com os irmãos ocorreu em maio, no dia nove. Na ocasião, fomos à casa de Aldria, no Jardim Camélias, onde pudemos conhecer seu esposo e filhos. No mês de abril, realizamos mais três entrevistas. No dia 23, com Fernando Tamarozzi, paciente e ex-funcionário do HRAC que conhecemos nos corredores do hospital. Entre os dias 28 e 29 com Rodrigo Inácio de Oliveira, paciente da cidade de Franca, e João Antônio Côrrea de Souza, paciente e funcionário do Centrinho. As entrevistas com Fernando e João Antônio aconteceram nas dependências do HRAC, já a entrevista com Rodrigo foi realizada em sua casa, em Franca. Já em maio, conhecemos outros dois pacientes. Alysson Carvalho foi entrevistado no dia 20 na Praça das Cerejeiras e Flávia Suano de Carvalho, no dia 25, na pousada de sua mãe, a “Pousada da Wanda”. Em junho, foram entrevistadas duas mães de pacientes: Cristiane de Azevedo Rino Valle, mãe de paciente Miguel Rino Valle, e Helenice Aparecida Porto Gera, mãe de Ana Flora Porto Gera. Ambas as entrevistas foram realizadas nas residências das fontes, uma em Bauru, outra em Franca. Entre abril e junho realizamos ainda entrevistas com profissionais do hospital: Cleide Carolina da Silva Bemoro Mondini, chefe técnica do serviço de enfermagem; Cristina Guedes de Azevedo Gonçalves, fonoaudióloga; Eudes Soares de Sá Nóbrega, cirurgião plástico; Maria Inês Gândara Graciano, diretora do Serviço Social; Marlene Aparecida Menconi, psicóloga; Terumi Okada Ozawa, cirurgiã dentista e chefe técnico do Serviço de Odontologia; Viviane Gasparoto, técnica de apoio educativo. Foram entrevistados também dois profissionais da Profis: Fernanda Fernandes Murakami, assistente social e 12 Marcos Vinício Faria, gerente geral. Outra pessoa que contribuiu para a realização do projeto foi Tiago Rodella, assessor de imprensa do HRAC. Por fim, no mês de outubro, no dia 20, foi entrevistada a mãe de paciente Samara de Paula Lemes Apolinário, mãe de Ana Laura Lemes Apolinário. 5. Equipamentos utilizados Para a execução do Projeto Experimental foram utilizados 2 notebooks, 2 gravadores de áudio, uma câmera fotográfica e 3 pen-drives. Todos os equipamentos utilizados são de propriedade das autoras deste relatório. 6. Atividades desenvolvidas Durante a realização do Projeto Experimental foram desenvolvidas as seguintes atividades: levantamento de dados bibliográficos com leitura e fichamento de livros e materiais institucionais, além de consulta periódica a sites e blogs ligados ao hospital; entrevistas com profissionais do hospital e pacientes, sendo 22 no total; transcrição dos áudios e seleção do conteúdo para o livro; redação do livro-reportagem; revisão do material. O projeto gráfico, diagramação e capa do livro-reportagem foram executados por Emanuel Antonio Guimarães Martins. A impressão foi realizada na gráfica Rápida Avalon. 13 CAPÍTULO III 14 1. Dificuldades encontradas A primeira dificuldade encontrada no processo de produção do livroreportagem “Do outro lado do espelho” diz respeito ao levantamento bibliográfico sobre a fissura labiopalatina e a história do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (Centrinho), já que muitos dos materiais disponíveis eram folhetos institucionais com pouco aprofundamento teórico ou não estava à disposição para consulta. Assim foi preciso pesquisar possíveis títulos na biblioteca virtual da Universidade de São Paulo, instituição a qual o hospital é ligado, e solicitar o empréstimo entre bibliotecas. Outra dificuldade encontrada liga-se a necessidade de que o trabalho jornalístico passasse pela liberação da assessoria do hospital, ou seja, as entrevistas e as visitas dentro do hospital precisavam ser acompanhadas pelo assessor, Tiago Rodella. Foi também por meio do setor de comunicação do hospital que conhecemos as histórias de cinco dos dez pacientes entrevistados para o trabalho. Notando a frequência com que as mesmas fontes eram indicadas para outros trabalhos de diferentes mídias, optamos por encontrar personagens para o livro por diferentes meios. Para isso, passamos a participar de grupos de pais e pacientes do Centrinho na rede social Facebook e a pedir indicação para pacientes já entrevistados ou seus familiares. Com isso, conseguimos encontrar fontes sem a indicação do setor de comunicação. Procuramos realizar as entrevistas em um ambiente mais confortável para as fontes, fugindo do ambiente hospitalar. Realizamos entrevistas nas casas das fontes, em locais públicos de Bauru e em pensões próximas ao hospital. Tivemos também a preocupação de mantermos contato com os personagens entrevistados durante o processo de produção, já que muitos passariam por cirurgias meses após as entrevistas. 2. Outras informações relevantes Cabe destacar que durante a produção do livro-reportagem nos preocupamos em abordar a temática retratada de forma abrangente, 15 contextualizada e embasada. Para isso, utilizamos 30 obras e materiais institucionais para aprofundamento da realidade e embasamento teórico, realizamos visitas constantes ao hospital e entrevistamos 22 pessoas entre pacientes, pais de pacientes e profissionais do hospital. Na seleção dos pacientes personagens dos perfis procuramos escolher pessoas com idades e histórias diferentes, respeitando a construção da narrativa em décadas, com a finalidade de mostrar a heterogeneidade de pessoas atendidas pelo hospital. Assim, para a década de 1960 escolhemos João Antônio Corrêa de Souza, um dos primeiros pacientes do Centrinho, morador de Bauru e que iniciou seu tratamento com quatro anos. Na década de 1970 estão os irmãos Fredson e Aldria Marlen Martins. Eles nasceram no estado do Pará e iniciaram o tratamento no Centrinho ainda crianças graças à ajuda de um padre que levava fissurados de todo o país para o hospital. Para a década de 1980 foram escolhidos três personagens. Fernando Tamarozzi que nasceu em Goiânia (GO) e foi deixado pelos pais em um orfanato, encontrou uma nova família em Bauru quando iniciou o tratamento no Centrinho. Rodrigo Inácio de Oliveira que nasceu em Franca (SP) e iniciou o tratamento em Ribeirão Preto onde fez somente as cirurgias iniciais. Quando começou o tratamento no Centrinho ele passou por dificuldades já que a época certa para as cirurgias havia passado. Ele desistiu do tratamento e retomou em 2013. Também Flávia Suano compõe a década de 1980. Ela nasceu no estado do Rio de Janeiro, iniciou o tratamento aos dois anos. Pouco depois foi deixada pelo pai aos cuidados de Wanda Suano, dona de uma pousada nas proximidades do hospital, que a adotou anos depois. Para a década de 1990, entrevistamos o acreano Henry Edson Cavalcante Pereira que viaja 3.216km para receber o tratamento no Centrinho. Henry é filho de Jozue Pereira, fundador de uma associação em prol dos fissurados no estado do Acre. Também faz parte dessa década Alysson Carvalho que nasceu na cidade de Cachoeira do Itapemirim (ES), viveu em Três Corações (MG) na infância e agora mora com a família em Bauru. Na década de 2000 trazemos outras duas histórias. A história de Ana Flora Porto Gera, moradora de Franca, que participou do Projeto Flórida, é narrada por sua 16 mãe Helenice Gera. Quem narra a história de Ana Laura Apolinário também é sua mãe, Samara Apolinário. Ana Laura tem oito anos e já passou por 12 cirurgias, o caso da menina é uma incógnita no hospital, pois não conseguem comprovar as suspeitas de síndrome da paciente. Na década de 2010 trazemos o personagem Miguel Rino Valle, filho de Cristiane Rino Valle, mãe bauruense que participou do Projeto Gestante. Por fim, o posfácio conta a história do nascimento e do início do tratamento de Diogo Pádua Garcia, sobrinho de uma das autoras que nasceu em outubro de 2013 com fissura labial bilateral e fenda palatina. Vale apontar que todas as entrevistas foram realizadas com adultos e, nos casos de personagens com menos de 18 anos, foram entrevistados os pais ou responsáveis. 3. Considerações Finais Finalizado o processo de produção do livro-reportagem “Do outro lado do espelho” é importante destacar a importância deste trabalho para nossa formação acadêmica. Na produção do livro-reportagem pudemos colocar em prática a totalidade dos conhecimentos adquiridos dentro e fora da sala de aula durante os quatro anos de graduação. À parte das técnicas jornalísticas utilizadas, pudemos inserir no trabalho habilidades adquiridas em disciplinas como, por exemplo, Realidade Socioeconômica Regional e Brasileira ao nos depararmos com relatos de pacientes de diferentes níveis sociais e, ainda, Antropologia e Psicologia, quando ouvimos relatos tomados por subjetividades e sentimentos em relação à malformação. Ainda, escrever o livro-reportagem foi para nós um desafio de utilizar o jornalismo como ferramenta de uma narrativa contextualizada e aprofundada. Utilizar jornalismo literário e, ao mesmo tempo, trabalhar com a linguagem científica, deu-nos a possibilidade de criar e estabelecer bases na teoria. Por fim, este livro representa um trabalho em que buscamos reunir as técnicas e teorias aprendidas no curso de jornalismo aos nossos gostos e interesses pessoais, como a narrativa de perfis e jornalismo científico. Há ainda a contribuição puramente humana. Durante os meses de preparação do trabalho de conclusão de curso conhecemos uma realidade tão distante da nossa e, também, pouco conhecida e tivemos que 17 saber respeitar os limites de cada um, inclusive de nós mesmas. Como descreve o prefácio do livro, nós jogamos nosso espelho habitual no chão para ver com mais clareza a realidade de vida de cada paciente e entender o processo de reabilitação e, assim, transpor a superfície refletora e olhar do outro lado do espelho. 18 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARMBRUSTER, Lilia Maria. Fissuras Labiopalatais: etimologia, epidemiologia e conseqüências, 2002. BACHEGA, Maria Irene. Requalificar a região do entorno do HRAC/USP : vida nova com a "Vila Centrinho".São Paulo, 2005. BOSI, Ecléa. 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Antoine de Saint-Exupéry Agradecimentos Agradeço ao meu pai, Marco Aurélio Pádua, que me ensinou a amar as letras, os livros e a traçar a vida como se fossem estrofes de uma bela poesia. A minha mãe, Nilda Ferreira Pádua, por me mostrar que posso ser forte e frágil ao mesmo tempo, por me estender a mão em todos os momentos e por ser minha melhor amiga. Aos meus padrinhos e tios, Pedro, Cleonice, Nilza, Jussara e John, por apostar e confiar na pessoa que me tornaria. Ao meu namorado, João Paulo Pavan, que além do companheirismo, teve paciência, não só para suportar os dias longe de casa, como também, e principalmente, por ouvir cada detalhe deste projeto. A Lydia Rodrigues Souza, amiga e irmã de coração, que esteve ao meu lado durante os anos de graduação, por compartilhar comigo as alegrias e tristezas destes quatro anos em Bauru e pela oportunidade de realizar este trabalho. Aline Ferreira Pádua Agradeço a minha mãe Marilda Helena Rodrigues que é uma companheira na arte da escrita e na arte da vida, a meu pai Jerônimo Francisco de Souza, amigo de ideias filosóficas que sempre está pronto para apoiar meus passos e, a minha irmã Laís Rodrigues Souza com quem divido toda minha alma e coração. Também agradeço a minha melhor amiga Aline Ferreira Pádua com quem compartilhei alegrias, tristezas e conquistas nesses quatro anos do curso de jornalismo na Unesp, sendo nossa última caminhada acadêmica este livro. Lydia Rodrigues Souza Agradecemos ao professor Célio José Losnak pela orientação e dedicação a este trabalho. Agradecemos também aos pacientes e funcionários do Centrinho, pais e familiares de pacientes, que abriram seus corações para dividir conosco parte de suas histórias. Aline Ferreira Pádua . Lydia Rodrigues Souza 9 Índice Prefácio........................................................................................ 13 Introdução................................................................................... 17 Capítulo 1:................................................................................... 23 Centrinho na década de 1960.................................................... 25 Vida: Olhos de menino............................................................... 27 Ciência: Fissuras labiopalatinas................................................ 31 Capítulo 2:................................................................................... 35 Centrinho na década de 1970.................................................... 37 Vida: Filhos do recomeço........................................................... 39 Ciência: Cirurgias....................................................................... 45 Capítulo 3:................................................................................... 49 Centrinho na década de 1980.................................................... 51 Vida: Coração bauruense........................................................... 53 Ciência: Odontologia.................................................................. 60 Vida: O protagonista................................................................... 65 Ciência: Psicologia....................................................................... 73 Vida: A bailarina......................................................................... 75 Ciência: Fonoaudiologia...................................................... 80 11 Capítulo 4:................................................................................... 85 Centrinho na década de 1990.................................................... 87 Vida: Filho do Norte................................................................... 89 Ciência: Associações................................................................... 95 Vida: O sorridente..................................................................... 102 Ciência: Recreação.................................................................... 107 Capítulo 5:................................................................................. 109 Centrinho na década de 2000.................................................. 111 Vida: Uma pétala guardada no livro...................................... 114 Ciência: Projeto Flórida............................................................ 119 Vida: A saga de duas heroínas................................................. 121 Ciência: Assistência social....................................................... 129 Capítulo 6:................................................................................. Centrinho na década de 2010.................................................. Vida: O mergulho..................................................................... Ciência: Enfermagem............................................................... 133 135 137 145 Posfácio...................................................................................... 151 Bibliografia................................................................................ 159 12 Prefácio DIANTE DO ESPELHO Lydia Rodrigues Souza Se nos posicionarmos entre dois espelhos colocados em paralelo, criamos imagens infinitas. Também somos um conjunto de diferentes imagens, mas elas não são iguais, não existe simetria e perfeição como nos espelhos paralelos. Dentro de nós, quantos existem? O que é só casca? O que é polpa e o que é semente? Somos várias imagens fragmentadas e desconexas. Desde que nasci busco mostrar o que tenho por dentro, aquilo que está além da casca. Mas revelar o rosto num baile de máscara é arriscado, chama a atenção e atrai olhares. Descobri que o espelho mais difícil de encarar é o olhar alheio. Na percepção das outras pessoas encontramos um “eu” diferente daquele que está em nosso espelho. Essa percepção nos ajuda a entender quem somos, mas também cria imagens distorcidas pelo preconceito. Durante o ano de 2013 pude conhecer pessoas que tinham que lidar com um tipo de imagem que destoa da perfeição áurea valorizada pela sociedade. Essas pessoas eram os pacientes do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, o Centrinho. Eles faziam tratamento de fissura labiopalatina, uma abertura decorrente do não fechamento dos lábios e/ou céu da boca durante a gestação. Paciente é aquele que recebe cuidados médicos ou quem revela paciência. Essas pessoas reúnem essas duas definições, pois passam cerca de 20 anos num processo de reabilitação. Realizam diversas 13 cirurgias e procedimentos médicos para reabilitar aspectos estéticos e também funcionais do nariz, boca e outras partes da face, já que a fissura pode causar alterações na fala, audição e dentição. Essas pessoas passam por uma metamorfose, mas elas não ficam no casulo, protegidas dos espelhos alheios. O desafio para esses pacientes é quebrar a película de ilusão da sociedade narcísica e aprender a enxergar do outro lado do espelho. Ver além da primeira reflexão. Com o tempo entendiam que a película refletora do mundo mostrava um ideal de beleza que era um oásis. E muitos daqueles que caminhavam em direção à miragem morriam de sede. Pois o verdadeiro belo era aquele que lhes fazia sentir bem. Porém, nem sempre era fácil enxergar do outro lado, em alguns momentos eles preferiam virar o espelho e encarar o lado opaco da superfície. O primeiro contato que tive com o Centrinho foi em 2011, quando fiz uma reportagem sobre um programa de pré-iniciação científica que envolvia alunos da escola pública. Um dos projetos de pesquisa chamava-se “a prótese odontológica e a prótese extraoral na reabilitação das malformações craniofaciais”. Foi nessa ocasião que entendi um pouco da missão do hospital pela afirmação de uma das alunas do programa: “estamos ajudando a pessoa voltar a ter o sorriso dela”. Porém, apenas em 2013, por meio das entrevistas com pacientes, pude compreender o que havia do outro lado da fissura. No início das conversas, eu também estava diante de um espelho. Era confortável ouvir as histórias com base nos meus preceitos, tomar como medida minha própria trajetória. Mas para se ver além é preciso enfrentar a travessia. Eu precisava me colocar no lugar deles para compreendê-los. Atirei meu espelho no chão. Agora eu via meu reflexo, mas ele não imitava meus movimentos. Resolvi transpor a superfície refletora. Conheci histórias de vida, com alegrias, problemas, superação, coisas de gente. Vi um tratamento, um hospital, rostos que se transformavam a cada cirurgia, viagens, escolhas, sonhos... Com o tempo de 14 tratamento essas pessoas se livravam da marca da fissura, os desvios e as cicatrizes se corrigiam. Durante nossos encontros aconteceu um processo semelhante comigo, mas no sentido contrário: a cada conversa, a cada história eu ganhava uma marca. Hoje diante do espelho tenho a certeza, não sou mais a mesma. Sou mais livre e feliz. 15 Introdução CAMINHO ATÉ O CENTRINHO Em março de 2010, em nosso primeiro ano de faculdade, entramos no projeto de extensão Toque da Ciência. Nos primeiros dias de aula, integrantes do projeto explicaram o trabalho do portal de divulgação científica em nossa sala de aula. Para nós, lidar com temas científicos envolvia escrever sobre variados assuntos, saber o porquê dos fenômenos e explorar o desconhecido por meio do jornalismo. Uma proposta que saciaria nossa vontade de experimentar o novo, conhecer pessoas e histórias. Desejos que são ainda mais fortes nos iniciantes. Diante do cartaz que anunciava o portal com a frase “gosta de ciência?”, não hesitamos e comparecemos a uma reunião para ingressar no projeto. Aprendemos a transformar a exatidão dos dados científicos e os difíceis termos específicos numa boa reportagem. Entrevistamos pesquisadores de todo país, falamos de planetas, animais, doenças, descobertas, substâncias, números. Mas concluímos que o mais importante eram as pessoas. Era preciso pensar no leitor, escrever para que ele entendesse e aproximar seu cotidiano dos temas abordados. Essa foi nossa missão por quatro anos, pois permanecemos no projeto até o final de 2013. O nosso trabalho de conclusão de curso não poderia ser um desvio dessa estrada na qual estávamos caminhando. Se o projeto Toque da Ciência marcou nossa vida acadêmica, morar em Bauru fez diferença em 17 nossa vida pessoal. Mudar de cidade trouxe novas experiências e desafios. O Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais atava essas pontas: ciência e Bauru. O hospital consolida-se internacionalmente como centro de referência no tratamento das fissuras labiopalatinas e também de síndromes relacionadas e deficiência auditiva. Na área da saúde auditiva, destaca-se o implante coclear multicanal (“ouvido biônico”), uma prótese de alta tecnologia. Como hospital universitário, oferece cursos de pós-graduação e de extensão, especializações, mestrado e doutorado. Existem ainda cursos de atualização, aprimoramento profissional, prática profissionalizante, residência médica em otorrinolaringologia e residência multiprofissional em síndromes e anomalias craniofaciais. O hospital é conhecido como Centrinho e tem 46 anos de existência. O atendimento é gratuito via Sistema Único de Saúde. Para este trabalho, escolhemos a fissura, uma malformação congênita que consiste em uma abertura no lábio ou céu da boca, podendo ocorrer nas duas estruturas. Resolvemos escrever perfis para conhecer quem são as pessoas por trás do hospital e da malformação. O tratamento da fissura labiopalatina dura em média 20 anos, pois envolve diversas cirurgias que acompanham o crescimento da face. Sendo parte da vida da pessoa desde o nascimento, o tratamento da fissura caminha ao lado da trajetória de vida desses pacientes. Existe também a história do próprio hospital que foi fundado a partir de uma pesquisa, contando com sete membros fundadores e hoje tem mais de 90 mil pacientes matriculados. Resolvemos então fazer um livro-reportagem seguindo essas três linhas: história, vida e ciência. Na parte histórica destacaremos as mudanças estruturais do hospital, a evolução nos tratamentos e os programas de apoio aos pacientes. Intercalados a essa história apresentaremos dez perfis de pacientes do hospital organizados por décadas. Junto a isso, descrições dos principais procedimentos médicos e dos setores de atendimento relacionados à fissura. 18 Com viés do jornalismo literário, que trabalha com linguagem detalhada e contextualizada, o livro explora elementos subjetivos dos pacientes. Este livro pretende contribuir para o esclarecimento do leitor em relação à malformação e suas influências na vida do paciente, ao tratamento realizado pelo Centrinho, além de contribuir para o registro do trabalho e história da instituição. DO ANTIGO EGITO À BAURU CONTEMPORÂNEA A ocorrência das malformações craniofaciais é conhecida há séculos pela humanidade. Registros históricos apontam que múmias egípcias datadas de 2.400 a 1.300 a.C. apresentavam fissuras labiopalatinas. O Museu Britânico guarda uma destas múmias em seu acervo. É do Egito que vem também a história do “Faraó Menino”, que tinha fenda palatina. Tutancaton, filho de Akhenaton, se tornou faraó entre 1336 e 1333 a.C., quando mudou seu nome para Tutancâmon, em homenagem ao deus Amon. Ele assumiu o trono ainda na infância, aos dez anos de idade. Tutancâmon governou por curto período, morrendo com apenas 19 anos. Ele teria contraído malária e fraturado o fêmur, fatores que podem ter debilitado sua saúde e o levado à morte. Ainda no Egito, foram encontradas múmias que possuíam uma prótese rudimentar de palato ligada aos maxilares por fios de ouro. A civilização Inca também registrou a ocorrência de malformações faciais e durante séculos celebrou o nascimento de crianças com fissura labiopalatina. A malformação era vista como uma característica a ser venerada e aqueles que a possuíam mostravam com orgulho seu lábio leporino, nome popular da fissura labial. Miguel Orticochea, um cirurgião plástico venezuelano, relatou possuir em seu acervo particular uma estatueta pré-colombiana datada de 2.000 a.C., encontrada nas terras do 19 Peru, que, possivelmente, retrata um chefe religioso ou político Inca, portador de lábio leporino. No entanto, os Incas são exceção porque a maioria das civilizações durante a história tem considerado as malformações como deformidades. O primeiro relato do tratamento da fissura palatina, que se tem conhecimento, foi realizado por um cirurgião chinês, Ying-Chung-Kan, e registrado em um documento que conta a história da China no período de 320 a 317 a.C. O documento relata a história de Wei-Yang-Chi, portador de fissura labial, e o tratamento de sua malformação, que consistiu em técnicas de aviamento dos bordos da fissura com sutura na sequência, deixando a operação em repouso por 100 dias, período no qual o paciente era proibido de comer alimentos sólidos, rir e até mesmo falar. O resultado deste procedimento deve ter sido relativamente bom, pois Wei-Yang-Chi tornou-se governador de seis províncias na China. No Brasil, lendas populares que envolvem os mistérios da concepção humana ainda exercem certo poder sobre as pessoas. Uma delas tenta explicar a ocorrência de fissuras labiopalatinas. Diz-se que quando uma mulher grávida traz chaves penduradas no corpo ou as guarda entre os seios durante a gestação, seu filho nascerá com os lábios cortados, ou seja, com lábio leporino. Em 1950, quando Walter Saito nasceu, na cidade de Campos do Jordão (SP), a equipe médica avisou aos pais que o garoto tinha fissura de lábio e palato. Ele também foi pioneiro na história de tratamento da fissura, pois foi o paciente número um do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, o Centrinho. Walter morou em Bauru dos 10 aos 21 anos, cursou a Faculdade de Engenharia da cidade, que hoje faz parte da Unesp e, conheceu sua esposa Ione da Silva Cruz Saito. A história do hospital se mescla com a de Walter. Ele foi operado pelo primeiro cirurgião-plástico da instituição, Dr. Wadi Kassis. Quando ele frequentava o Centrinho, o hospital se restringia a pequenas 20 salas dentro da Faculdade de Odontologia. Walter já recebeu alta, mas em novembro de 2013 ele voltou ao Centrinho para atendimentos na área de otorrinolaringologia e para trocar uma prótese odontológica. A vida de Walter não é só uma página de um antigo caderno de registro do hospital, mas uma importante parte no livro de memórias do Centrinho. 21 Capítulo 1 Foto: arquivo HRAC/USP Fachada do Centrinho quando funcionava dentro do prédio da Faculdade de Odontologia Centrinho na década de 1960 1967 e 1968 - A criação do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo foi impulsionada por uma pesquisa sobre a incidência de fissuras labiopalatinas na cidade de Bauru. A pesquisa intitulada “Contribuição para o estudo da prevalência das más formações congênitas lábio-palatais na população escolar de Bauru” foi realizada durante os anos de 1966 e 1967 e, depois, publicada pela revista da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (FOB-USP) em 1968. Os professores envolvidos nessa 25 Do outro lado do espelho pesquisa foram Halim Nagem Filho, Ney Moraes e Ronaldo Geraldo Flaquer da Rocha. O estudo avaliou alunos de 31 grupos escolares, compreendendo um total de 13.249 crianças. Desse total, 20 possuíam fissuras de lábio e/ou palato. Foi analisada uma série de fatores como idade da mãe na época da gestação, tipo de fissura, cirurgias realizadas e antecedentes familiares. Entre os alunos três não eram operados. A pesquisa constatou um alto número de casos de fissuras labiopalatinas na cidade e que os pacientes possuíam algum distúrbio decorrente da malformação. De acordo com a conclusão do estudo “a prevalência encontrada nos escolares foi de 1: 650 crianças”. Assim uma estatística nova foi revelada pela pesquisa: uma em cada 650 crianças nascidas apresentava malformação labiopalatina. Esses resultados motivaram profissionais e pesquisadores a investir em um serviço de reabilitação de lesões labiopalatinas. O hospital contou inicialmente com sete membros efetivos entre eles o ex-superintendente da instituição Dr. José Alberto de Souza Freitas, conhecido como Tio Gastão. Assim, em 1967, nascia o Centro de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais que funcionava dentro da própria FOB. A criação da faculdade também se deu de modo gradativo. A FOB só começou a funcionar em 1962, mesmo sendo criada em 1948, devido dificuldades financeiras e estruturais. Desde o início dos atendimentos havia uma preocupação em integrar pesquisa, assistência social e ensino para oferecer um tratamento que abrangesse todos os estágios de recuperação, acompanhando o desenvolvimento do paciente ao longo dos anos. Em 1968, o Centrinho atingia um total de 100 atendimentos desde sua fundação. 26 João Antônio de Souza VIDA: OLHOS DE MENINO 27 Do outro lado do espelho Nos corredores, alunos, médicos e pacientes se confundem. Aqueles com jalecos brancos e estes com vestes comuns. Uns carregam livros e cadernos. Outros levam instrumentos e fichas de papel. Outros ainda, sentados em cadeiras de espera, trazem consigo uma malformação. As salas de aula da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) e os consultórios utilizados para atender os pacientes com fissura labiopalatina se cruzam e se misturam. Sentado em um destes corredores está um garoto de apenas quatro anos. Cabelos escuros, bochechas rosadas e grandes olhos verdes. No lábio, uma fenda. O olhar do menino acompanha o movimento do local. Quarenta e seis anos mais tarde, o olhar de João Antônio Corrêa de Souza mira agora sua foto de infância. Os cabelos estão brancos e o lábio unido. Somente os olhos verdes continuam os mesmos. Ao seu redor, alas e consultórios mais que duplicaram de tamanho e estão agora bem longe das dependências da FOB. Ao fundo, um prédio de onze andares está erguido e é lá que, futuramente, novos pacientes irão aguardar seus atendimentos. O menino de olhos claros foi um dos primeiros pacientes atendido pelo Centro de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio Palatais, fundado em 1967, hoje chamado de Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, o Centrinho. João Antônio fazia parte das estatísticas apontadas por um estudo de professores da FOB que indicava que uma a cada 650 crianças bauruenses era acometida pela malformação. Ele foi o 28º paciente a iniciar um longo tratamento que duraria até a maioridade. Sua história se funde a do hospital. De paciente, ele passou a funcionário e hoje, como marceneiro, utiliza suas mãos para criar, entre outras coisas, brinquedos que alegram os pequenos durante os atendimentos. Dos quatro filhos da família Souza, João Antônio foi o único a nascer com a fissura que atingia lábio, palato e nariz. A chegada do menino foi um verdadeiro “bicho de sete cabeças” para os pais que nunca tinham visto uma criança fissurada. A mãe, por pura coincidência, trabalhava na lavanderia da FOB, mas não tinha conhecimento sobre a malformação. A família foi orientada pela equipe do Centrinho e o garoto iniciou os 28 Capítulo 1 - Vida: Olhos de menino tratamentos. Sua cirurgia de lábio foi feita pelo cirurgião Wadi Kassis, um dos primeiros do hospital. Aos dez anos de idade, em 1973, João Antônio acompanhou a mudança do Centrinho para outro prédio, separado da FOB, mas ainda no terreno da faculdade. Ele recorda que, nessa época, havia uma piscina com animais para entreter as crianças. “Saíamos da sala de atendimento e íamos para lá”. Seis anos depois, quando fez uma cirurgia para a correção da maxila, a ortognática, ele foi operado por um cirurgião norte-americano, o Dr. Larry Wolford, que veio a Bauru para ensinar técnicas cirúrgicas para os médicos do hospital. Ele conta que a cirurgia era complicada e o paciente ficava com a boca totalmente amarrada. A operação ocorreu no mês de dezembro, época das festas de final de ano, e João Antônio não podia comer como o restante das pessoas. Ele tomava sopas e líquidos e estava sempre com um canudinho ao lado. “Depois da cirurgia, eu sai do quarto e fui até a sala de som que funcionava no segundo andar. Era dia da festa de Natal e eu comecei a dançar. Os médicos apareceram e eu levei uma baita bronca”, conta ele. Aos 22 anos, João Antônio desenvolveu problemas de audição. Hoje, ele usa aparelho auditivo e é atendido no Centrinho pelo Cedalvi - Centro de Atendimento aos Distúrbios da Audição, Linguagem e Visão. Na época da escola, antes de realizar as cirurgias, ainda garoto, João Antônio se sentia diferente e sentava separado dos colegas. “Todos eram perfeitos e eu era todo aberto”, comenta. O pequeno disfarçava, chegava como quem não queria nada e começava a brincar, mas alguns grupos não o aceitavam. Ele sofreu com os olhares e as chacotas das outras crianças, mas criou uma forma de se defender. Durante anos, ele afirma não ter se olhado no espelho. “Hoje em dia que eu comecei a me olhar no espelho, antes eu pegava o pente e penteava sem olhar mesmo”, afirma ele. O ano de 1985 foi marcado pelo casamento com Elena e a chegada do filho Weslei. A família tinha começado a se formar tempos atrás quando João Antônio iniciou o namoro com a irmã de um de seus amigos. O caminho até o altar foi longo já que quando João conheceu Elena ela estava em outro relacionamen29 Do outro lado do espelho to. Mas o bauruense não desistiu da paixão. Até a mãe da moça duvidava de um final feliz. Ele ia todos os dias de bicicleta na porta do colégio de Elena e via a garota ir embora acompanhada de outro rapaz. Um dia, a sorte virou e João Antônio passou a acompanhar Elena aonde ela ia. Com o tempo a família aumentou, o filho casou e presenteou os pais com duas netas de coração. João Antônio é funcionário do Centrinho há 25 anos. Antes disto, ele fez cursos de marcenaria e eletricidade e trabalhou em outros locais. “O Centrinho, para mim, é uma família. Não tem diferença entre os funcionários. Todos são iguais no tratamento”, afirma. No hospital, ele trabalha como técnico de marcenaria fazendo reparos, consertos e ainda criando. Ele serra, lixa, cola, prega e dá vida a brinquedos que vão compor o setor de Recreação do hospital. Ele já montou jogos como “resta um” e “dama gigante”. “Faço para contribuir com as meninas do setor. Eu pesquiso na internet e monto”, conta ele. Do bolso, João Antônio retira uma moldura fotográfica onde estão lado a lado, duas fotos que mostram a evolução de seu tratamento: uma traz um garoto ainda durante as primeiras consultas, outra mostra um jovem reabilitado. Esta é uma das fotos que guardou para recordar seu tratamento. Ele se observa nos retratos e comenta sobre a grande diferença entre o menino de 1967 e o homem de 2013. “No começo, a fissura me deixou triste e me influenciou. Mas depois eu fui aprendendo a lidar. Quando uma criança nasce, ela não sabe andar. Ela vai devagar até que levanta e sai correndo. Assim fui eu”, afirma ele. Da sala em que trabalha todos os dias, João Antônio viu o novo prédio do hospital nascer. Ele acompanhou a demolição das casas que havia no local e viu as primeiras estacas e tijolos serem colocados. Da porta de sua sala que se abre para o prédio azul, ele espera ver, em um futuro próximo, outros garotos serem acolhidos. “Eu acho que daqui a uns dois anos o prédio novo vai estar funcionando. É isso que quero ver”, diz ele. 30 CIÊNCIA: FISSURAS LABIOPALATINAS As fissuras labiopalatinas estão entre as anomalias congênitas mais comuns e são as mais frequentes das anomalias craniofaciais. Estas se definem na presença de qualquer defeito ou lesão estrutural da anatomia da face ou crânio durante o período de gestação. As fissuras de lábio e/ou palato ocorrem logo no início da gravidez e se desenvolvem até a 12ª semana de gestação. A fissura que atinge o lábio ou o lábio e a gengiva, conhecida popularmente como lábio leporino, se forma até a oitava semana, enquanto a fissura de palato, chamada de goela de lobo, é formada até a 12ª semana de gravidez. As fissuras labiopalatinas podem ocorrer de forma isolada, virem associadas a outras malformações, ou ainda, a diversas síndromes genéticas. O quadro clínico desta anomalia varia desde uma forma simples, como um corte no vermelhidão do lábio - região central do lábio superior – até fendas complexas como as que atingem lábio e palato, levando ao comprometimento da estética da face, dentição, audição e fala. A incidência das fissuras labiopalatinas varia de um caso a cada 700 ou mil nascidos brancos no mundo. Outros grupos étnicos, como os negros apresentam menor incidência da fissura, sendo de 0,3 casos a cada mil nascimentos. Já em grupos como os dos indígenas, chineses e japoneses, a média de ocorrência da malformação é maior sendo de 3,6 casos a cada mil nascidos em indígenas, de 2,1 casos a cada mil em japoneses e de 1,7 a cada mil nascimentos em chineses. No Brasil, pesquisas realizadas pelo Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/USP) apontam a média de um bebê fissurado a cada 650 nascidos. A fissura isolada de lábio é mais comum no sexo masculino, enquanto a de palato isolado ocorre com mais frequência em meninas. O diagnóstico pode ser realizado durante a gestação, entre o quarto e quinto mês, por meio do exame de ultrassonografia 31 Do outro lado do espelho ou após o nascimento com exames clínicos do recém-nascido. A indicação é que, logo após o diagnóstico, os familiares sejam encaminhados a um centro especializado em anomalias craniofaciais para receber as primeiras orientações sobre os cuidados com o bebê, como alimentação e higienização, conhecer as etapas terapêuticas que envolvem o tratamento, realizar exames para diagnóstico de possíveis síndromes associadas, ou ainda, tirar dúvidas sobre as primeiras cirurgias, e a possibilidade de comprometimento de fala, audição e dentição. As causas de ocorrência das fissuras labiopalatinas ligam-se tanto a fatores genéticos quanto aos fatores ambientais. Não é possível prever quando um bebê irá nascer com fissura, mas existem fatores que podem potencializar a ocorrência desta malformação. A combinação da hereditariedade familiar a fatores externos aos quais a mãe é exposta durante a gestação podem resultar no nascimento de uma criança com fissura. Entre os fatores ambientais estão, por exemplo, infecção congênita por doenças como rubéola, toxoplasmose e HIV, consumo de tabaco, álcool ou drogas ilícitas, deficiência nutricional da gestante, estresse, deficiência em ácido fólico no organismo da mãe, diabetes gestacional, hipertiroidismo, hipertensão e o uso de alguns medicamentos, como os anticonvulsivantes. Assim como em outras doenças de causa multifatorial, os riscos de recorrência das fissuras são baseados em estimativas empíricas, ou seja, pela observação direta da recorrência da anomalia em diversas famílias. Os fatores genéticos relacionados à ocorrência das fissuras labiopalatinas têm sido bastante estudados nos últimos anos. Pesquisas recentes de larga escala genômica descreveram várias regiões cromossômicas e genes candidatos às causas dessa malformação, mas os resultados são variáveis e dependentes, entre alguns fatores, do grupo étnico avaliado. As pesquisas indicam que um mesmo polimorfismo genético, ou seja, um conjunto de formas genéticas pode conferir proteção ou risco para o desenvolvimento das fissuras em populações de diferentes 32 32 Capítulo 1 - Ciência: Fissuras labiopalatinas ancestralidades. Destaca-se que vários dos polimorfismos relacionados à pacientes com fissura em populações homogêneas como as europeias, asiáticas e africanas, não se confirmaram na população brasileira, em decorrência, provavelmente, da intensa miscigenação de nossa população. A prevenção das fissuras labiopalatinas é possível por meio do planejamento familiar, em que o casal deverá passar por exames médicos e estudos genéticos. Há também a indicação para o uso do ácido fólico durante a gestação. Desde 2004, o HRAC/USP, em parceria com a Universidade de Iowa (EUA) e outros centros de pesquisa brasileiros, tem desenvolvido o “Programa de Prevenção de Fissuras Orais” que visa analisar os efeitos da ingestão de diferentes concentrações de ácido fólico na pré-concepção e durante o primeiro trimestre da gravidez, bem como a ocorrência de fissuras de lábio e palato em bebês nascidos de mulheres em situação de risco. A seleção de voluntários se encerou em 2012 e agora é desenvolvido o estudo de subfenótipos, ou seja, a atividade dos genes em conjunto com o ambiente, e o estudo de recorrência da fissura. FISSURAS LABIOPALATINAS SINDRÔMICAS As fissuras labiopalatinas e fissuras palatinas sindrômicas correspondem a cerca de 25% de todas as formas de fissuras. São caracterizadas pela presença da fissura associada a outra alteração no indivíduo. As fissuras sindrômicas são representadas por um grande número de síndromes que variam, principalmente, no tipo de anomalia associada à fissura. Dentre as formas sindrômicas mais comuns estão a síndrome de Van der Woude e a síndrome Velocardiofacial, ambas com padrão de herança dominante. 33 Capítulo 2 Foto: arquivo HRAC/USP Apresentação musical das crianças na Recreação Centrinho na década de 1970 1973 - A unidade de tratamento já era conhecida como Centrinho e passou por uma expansão no espaço físico, saindo de dentro da Faculdade de Odontologia de Bauru. Antes da inauguração dessa sede própria, várias cirurgias foram feitas nas instalações do Hospital Beneficência Portuguesa, já que o Centrinho não possuía um centro cirúrgico. 1973 - Nesse ano nasce o Serviço Social. No ano seguinte, também foi criado um fundo de solidariedade que era mantido a partir de doações e renda gerada por cursos. 37 Do outro lado do espelho 1975 - Criação da Sociedade de Promoção do Fissurado Labio-Palatal (Profis), uma entidade filantrópica independente que presta atendimento aos pacientes do Centrinho. 1976 - Centrinho se transforma num hospital universitário subordinado à reitoria da Universidade de São Paulo. 1977 - Crise orçamentária da Universidade de São Paulo atinge o Centrinho. Número de pacientes era superior aos leitos disponíveis. Obras de novas instalações para dar apoio aos pacientes estavam paradas por falta de verba. 1978 - Centrinho realiza a primeira cirurgia ortognática no Brasil. A cirurgia envolve o desenvolvimento ósseo e dental, trabalhando com a correção da face nas áreas da maxila e mandíbula. 38 Fredson e Aldria Pereira VIDA: FILHOS DO RECOMEÇO 39 Do outro lado do espelho Os dois irmãos eram muito pequenos para entender o que faziam embarcando naquele imenso veículo com asas na companhia da mãe. Fredson, com quatro anos de idade, caminhava sozinho e arriscava as palavras. Aldria, ainda no colo da mãe, carregava a inocência de um bebê de apenas dez meses. A pequena menina trazia nos lábios o maior sorriso de todos. Não daqueles de plena felicidade, mas dos que são marcados por uma fissura labiopalatina bilateral, que não deixa a feição entristecer. O irmão tinha o que a mãe chamava de boca de lobo. Faltava-lhe o céu da boca, o palato. Os três saíram do interior do Pará para percorrer 3.084 quilômetros em direção a Bauru, no interior de São Paulo. Tão pequenos não poderiam imaginar o que essa viagem tão longa em um avião da Força Aérea Brasileira significaria em suas vidas. Um padre, cujo nome e carisma se confundem, o Alegria, foi quem os encontrou na cidade de Monte Alegre, no Pará, e os encaminhou ao Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru. Quarenta anos depois deste dia, os irmãos – Aldria Marlen Martins Pereira e Fredson Evanildo Martins Pereira – cujos sorrisos se tornaram bem diferentes, estão mais uma vez juntos. Desta vez, na sala da casa de Aldria, no Jardim Camélias, em Bauru, e revivem, ao narrar, cada lembrança de suas histórias. A primeira visita ao hospital, conhecido como Centrinho, durou um mês. Na época, os pequenos irmãos paraenses ficaram internados para o diagnóstico, exames e cirurgia. Fredson fez a primeira cirurgia no palato e Aldria nos lábios. Eles fariam novas viagens nas quais foram as únicas companhias um do outro. Aldria chegou a enfrentar toda a distância de sua cidade ao hospital sozinha. Nessa viagem, aos dois anos de idade, a menina voltou ao Pará sem poder operar, pois contraíra malária. À parte das consultas, exames e cirurgias, os dois recordam cenas de um hospital pouco convencional, onde as crianças internadas podiam brincar com cães da raça Dálmata, se refrescar na piscina ou compartilhar os muitos brinquedos ali existentes. Fredson e Aldria ainda trazem na memória o dia em que, na companhia de outras crianças e pacientes, visitaram um circo instalado nas proximidades do hospital. 40 Capítulo 2 - Vida: Filhos do recomeço Fredson não faria novas cirurgias até a maioridade. O menino foi morar com um tio em Belém, capital do estado, aos sete anos e não pôde voltar a Bauru. Ele diz não se recordar muito da família por ter saído muito cedo de casa e confessa não gostar de lembrar os motivos que o fizeram ir morar com os parentes. Com um jeito tímido e reservado de quem não passou pela vida em brancas nuvens, Fredson prefere lembrar-se de quando ajudava o tio na oficina de ourives. Morando de favor, como ele conta, não conseguiu completar o ensino médio e não teve muitas oportunidades. “Mas eu sempre acreditei que um dia as coisas iriam dar certo para mim”, relembra. Aldria mudou-se para Belém na mesma época em que o irmão. Ela foi morar na casa de uma amiga da mãe, mas manteve contato com os pais, Francisco dos Santos Pereira e Antônia Martins Maior, e com outros dois irmãos. A menina, que logo começou a trabalhar, estudou apenas até a quarta série do ensino fundamental. Seu objetivo era conseguir o dinheiro das passagens para retomar o tratamento. Os irmãos tiveram a chance de retornar ao Centrinho apenas em 1988, quando uma mãe de paciente, cujo nome recordam ser Kátia, conseguiu, por meio do programa Carona Amiga, quatro passagens para Aldria e Fredson. Somente ela pôde embarcar. Fredson não tinha dinheiro para cobrir os gastos com alimentação que teria longe de casa. Aos quinze anos, Aldria saia de sua terra natal para não mais regressar. Ela havia decidido recomeçar em Bauru. Poucos meses após a partida da irmã, Fredson conseguiu embarcar para a mesma viagem que Aldria fizera: a de uma nova vida a quilômetros e quilômetros de distância. Fredson recorda em detalhes sua chegada a Bauru. Ele conta que não sabia sequer onde ficava o hospital e diz ter recebido a ajuda de ‘um anjo em forma humana’, que além de lhe indicar o caminho ao Centrinho, ofereceu-lhe um lanche. “Eu sempre tive anjos em minha frente”, afirma Fredson. Os irmãos foram acolhidos pelo serviço social do hospital e direcionados à Profis – Sociedade de Promoção Social do Fissurado Labiopalatal. Lá, por apresentarem carências econômicas, foram encaminhados para pensões que ficam nas redondezas do hospital e que foram pagas com o apoio da associação. Pouco depois, Aldria foi aco41 Do outro lado do espelho lhida por uma das assistentes sociais do Centrinho, de nome Silvana, que lhe ofereceu casa e trabalho. Fredson também ofereceu sua força de trabalho em troca de moradia. Ele permaneceu na pensão da Terezinha – atualmente desativada – como hóspede e funcionário. Pouco depois, Fredson deixaria a pensão para trabalhar como acompanhante de uma senhora idosa, parente de uma assistente social do Centrinho. Fredson frequentou o Núcleo Integrado de Reabilitação e Habilitação do HRAC, o NIRH, e lá participou do projeto de plantação para hortas. Ele aprendeu outros ofícios, trabalhou em diferentes empresas e retornou ao Centrinho como estagiário no almoxarifado. Há 16 anos Fredson trabalha na Profis, tendo passado por diversas funções dentro da instituição. “Só em Bauru conquistei minha independência”, afirma Fredson. “Só pude viver de verdade quando consegui me manter e me tornei livre”, diz. A irmã, Aldria, também participou do NIRH em cursos profissionalizantes como os de babá e doméstica. Ela ainda retornou à escola, mas não terminou os estudos. Aldria construiu uma nova família em Bauru. Foi em terras paulistas, no ano de 1998, que a paraense conheceu o marido. Passaram-se 15 anos e a família aumentou. Da relação com José Carlos da Costa nasceram Gabriel, de 14 anos, e Giovana, de 10 anos. O filho mais velho, assim como a mãe, nasceu com fissura de lábio bilateral. Quando ficou grávida pela primeira vez, Aldria temeu que seu bebê nascesse com fissura. “No dia em que o Gabriel nasceu as assistentes sociais não queriam que eu visse o meu bebê”, conta Aldria. “Então eu disse a eles que já sabia que meu filho tinha fissura”. A chegada do filho não trouxe inseguranças para Aldria que estava certa sobre o tratamento que ele teria no Centrinho. Ela conta que, no hospital, recebeu todas as instruções de alimentação e higiene com o bebê. “Com três meses o Gabriel fez a primeira cirurgia”, relembra Aldria. “Ele já fez o lábio e o palato e a próxima será o enxerto. Ele já entende, mas tem medo das cirurgias”, conta a mãe. Aldria abandonou o tratamento para cuidar do filho. O irmão, Fredson, terminou o processo de reabilitação e faz apenas 42 Capítulo 2 - Vida: Filhos do recomeço acompanhamento odontológico. Ele reclama da voz que, para ele, ao telefone soa em tom feminino, mas diz que seu tratamento fonoaudiólogo evoluiu o máximo que podia devido à idade. Já amadurecidos pelo tempo, pelas agruras e belezas da vida, os irmãos recordam as marcas deixadas pelo preconceito sofrido na infância. Fredson acredita que as chacotas que sofreu na escola, em Belém, o atrapalharam nesta época. “Eu me retraía e ficava no canto”, diz Fredson. “O ruim era o deboche das pessoas que fingiam não entender o que eu falava”, conta ele. Já Aldria, não entendia o porquê somente ela e o irmão tinham fissura na cidade em que nasceram. “Fui me aceitar como sou somente aqui”, conta ela. Em Bauru, ela entendeu a malformação que possuía e viu que mais pessoas eram iguais a ela. Para Aldria, o filho vive em uma realidade diferente onde o preconceito não é tão forte. Aldria lembra com carinho da terra natal. Ela recorda com emoção na voz e nos olhos a última vez que esteve por lá. Nessa época, ela era ainda solteira e agora deseja regressar para levar os filhos para a mãe conhecer. “Minha mãe só conhece meus filhos por fotos na internet”, diz Aldria. Ela sente saudade da família e da cidade que deixou para trás e, às vezes, tem até vontade de voltar a viver por lá. Já Fredson nunca quis voltar. Com um sorriso no rosto, o irmão diz que Bauru representa o ar que respira. Aqui Fredson se sente em casa, acolhido. A vida de antes, aquela que ele prefere não trazer à memória, foi muito sofrida, por isso, ele repete feliz que sua vida começou quando desembarcou de vez em terras bauruenses. “A fissura me ajudou mais que atrapalhou. Outras coisas foram piores que a fissura”, afirma Fredson. “Aqui tenho pessoas que me acolhem, se interessam e preocupam comigo mesmo com a minha idade. Aqui eu criei laços”, conta. A irmã diz apenas que a cidade e o hospital são responsáveis por tudo o que construiu. “Se não fosse por isso, eu não estaria aqui”, afirma. Na sala da casa em que Aldria viveu durante os últimos quinze anos, as lembranças do passado dos dois irmãos fundem-se com os sonhos para o futuro. O grupo se completa com a chegada de Giovana e Gabriel, que estavam na escola, e do marido 43 Do outro lado do espelho de Aldria. As fotos na estante mostram cenas da família. Cenas como a deste momento de recordações e projeções, de uma sala repleta de sorrisos e de histórias vividas e a viver, eternizado em uma nova foto para compor a estante da sala da casa de muro branco no Jardim Camélias. 44 CIÊNCIA: CIRURGIAS De etimologia latina a palavra ‘fissura’ significa fenda, abertura. No contexto patológico o termo genérico denota qualquer abertura anatômica que diverge do normal. A fissura pode envolver qualquer região da face ou do crânio, mas é mais comum no lábio e palato. Ela ocorre na ausência de fusão entre os processos faciais embrionários. Após o nascimento de um bebê com fissura de lábio e/ou palato, o primeiro passo para a reabilitação é a realização de procedimentos cirúrgicos para a reconstituição labiopalatina. A queloplastia e a palatoplastia representam as primeiras cirurgias plásticas reparadoras executadas durante o longo e complexo tratamento de pacientes com fissuras. Essas cirurgias, chamadas de primárias, são realizadas em tecido mole, na primeira infância, com o objetivo de reconstruir o defeito morfológico de lábio e palato, respectivamente. Em conjunto com as demais abordagens terapêuticas, esses procedimentos contribuem decisivamente para a reabilitação das fissuras labiopalatinas. A cirurgia de reconstituição da fissura labial, queloplastia, deve ser realizada a partir dos três meses de idade, se a criança apresentar as condições mínimas de saúde exigidas para o procedimento, como peso ideal. A reconstrução de toda a estrutura anatômica do lábio, como mucosa, músculo e tecido cutâneo, é o ponto mais importante da queloplastia. Segundo Eudes Soares de Sá Nóbrega, médico cirurgião do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, hoje, aos três meses de vida do paciente, opera-se o lábio, a aba do nariz e o palato anterior. Já a cirurgia para a reconstrução do palato, palatoplastia, é feita até um ano de idade. Inicialmente, opera-se o palato anterior, ou duro, e depois, o palato mole. As técnicas e protocolos para o reparo das fissuras de lábio e palato divergem consideravelmente entre cirurgiões e centros 45 Do outro lado do espelho cirúrgicos. Essa falta de uniformidade foi comprovada em estudos acadêmicos como os de Shar et al (2001). Esses autores constataram a existência de 194 protocolos de atendimento diferentes em 201 centros cirúrgicos europeus. No Brasil, o protocolo padrão do Centrinho já foi modificado devido à influência de centros cirúrgicos do exterior e pelo intercâmbio de experiência. Como aponta Eudes Nóbrega, inicialmente, o hospital realizava a cirurgia do lábio aos três meses, do palato duro com um ano de idade e do palato mole com um ano e meio de idade. Posteriormente, pesquisadores da Universidade da Flórida (EUA) demonstraram que os melhores resultados de reabilitação eram alcançados em pacientes que operavam o palato completo durante o primeiro ano de vida. Em outro estudo, pesquisadores da Suécia orientaram sobre as melhorias em se operar o palato posterior, o mole, após a cirurgia do lábio. Estes e outros estudos, realizados também em parceria com universidades e centros de pesquisa, foram adotados pelo Centrinho e contribuíram para a evolução do tratamento das fissuras labiopalatinas. Como resultado da diminuição das idades cirúrgicas, por exemplo, obteve-se a diminuição dos problemas de fala em crianças decorrente do chamado golpe de culote, que ocorre quando os processos de fala se iniciam com o palato ainda aberto. Outros procedimentos cirúrgicos realizados pelos cirurgiões plásticos durante a reabilitação dos pacientes com fissura são relativos ao nariz. Entre eles, podemos citar a cirurgia para levantar a columela, parte central do nariz, realizada ainda na infância. Eudes Nóbrega aponta que existem certos limites para determinadas cirurgias reparadoras. “O tratamento tem que ser contínuo e o ideal é que até os 18 anos a pessoa esteja tratada. Infelizmente, devido a grande demanda e a pouca disponibilidade de cirurgiões dentista de ortognática, muitos pacientes demoram a fazer a cirurgia e concluir o tratamento”, ressalta. Segundo ele, alguns pacientes não ficam contentes com os resultados, mesmo tendo atingido o limite humano de reabilitação. Para o cirurgião, o mais importante no processo de reabilitação 46 Capítulo 2 - Ciência: Cirurgias do fissurado é a assiduidade do paciente durante o tratamento e passar por todos os profissionais no período ideal, já que os resultados podem variar quando as cirurgias são realizadas fora do protocolo padrão de atendimento. 47 Capítulo 3 Foto: arquivo HRAC/USP Pacientes aguardam atendimento no ambulatório Centrinho na década de 1980 1980 - No início da década o Centrinho buscou convênios a fim de melhorar e ampliar o atendimento. Foi então firmado um convênio com o extinto Inamps- Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social. 1982- Prédio da Recreação é inaugurado. No início as atividades incluíam um parque infantil, quadra de esportes, piscinas e animais. 1983 - Foi criada a Unidade de Ensino e Pesquisa – UEP que auxiliou na divulgação do conhecimento técnico-científico. 51 Do outro lado do espelho 1985 - Início do convênio com a Funcraf – Fundação Para o Estudo e Tratamento das Deformidades Crânio Faciais. A Funcraf é uma instituição que apoia a parte técnica, administrativa e financeira do hospital, trabalha na captação de recursos e contratação de funcionários. Em 2013 foi decidido em um acordo entre o Ministério do Trabalho e a Universidade de São Paulo que a Funcraf não atuará mais na contratação de recursos humanos. 1985 - Elaboração do projeto arquitetônico do novo prédio anexo ao Centrinho, o “Prédião”, com previsão de 11 andares. 1985 - Centrinho busca descentralizar atendimentos. É aprovada a construção de um núcleo regional para tratamento de fissuras labiopalatinas em Belém (PA) com o apoio da Finesp (Financiadora de Estudos e Projetos). 1987- Atendimento a deficientes auditivos e visuais por meio do Centro de Atendimento aos Distúrbios da Audição, Linguagem e Visão – CEDALVI. O atendimento aos deficientes auditivos também é realizado no Centro Educacional do Deficiente Auditivo - CEDAU, unidade que faz parte do hospital, na Divisão de Saúde Auditiva ou no Centro de Pesquisas Audiológicas - CPA. 1988 - O hospital atendia em média 150 pacientes no ambulatório e 25 na internação. 1989 – Realização do primeiro implante ósseointegrado, prática cirúrgica referente ao tratamento odontológico que utiliza estruturas de metal como raízes artificiais dos dentes. 1989 - É lançada a pedra fundamental do “Prédião”. A expectativa da obra era de 21 mil metros quadrados com a capacidade para 200 leitos. 52 Fernando Tamarozzi VIDA: CORAÇÃO BAURUENSE 53 Do outro lado do espelho O mês de novembro se aproximava do fim. Enfeites e luzes começavam aos poucos a tomar todos os cantos da cidade. O bom velhinho se preparava para levar alegria às crianças. A estrela de Belém já apontava ao longe para anunciar a aproximação do nascimento do Deus cristão. Era 22 de novembro de 1981. O pequeno Fernando, aos dois anos, fazia sua primeira consulta no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais e estava prestes a receber um presente de Natal. Quando era ainda um bebê, o menino, que nascera com fissura de lábio unilateral e transforame (palato parcialmente aberto), foi abandonado pelos pais biológicos em um orfanato de Goiânia, sua cidade natal. Seus pais não tinham condições para criá-lo e o deixaram no abrigo. Lá, uma equipe o encaminhou, quase dois anos depois, para participar de um programa de reabilitação oferecido em Bauru, pelo Centrinho, a pacientes de outras regiões do país. Nesta viagem, ele iniciaria o longo caminho para o tratamento de sua malformação e teria uma surpresa: Fernando ganharia um pai, uma mãe e um novo lar. Pedro Tamarozzi e Clarisse Ceschini Tamarozzi se apaixonaram por Fernando assim que o viram pela primeira vez no Centrinho. Pedro era funcionário do setor de manutenção do hospital e levou o menino para passar o Natal em sua casa. Ele e a esposa não tinham filhos e resolveram adotar o pequeno goiano que passou a ser chamado de Fernando Ceschini Dias Tamarozzi. Àquela época, como conta Fernando, muitos funcionários do hospital levavam pacientes para passar as festas de final de ano em suas casas, já que em dezembro o Centrinho ficava em recesso por algumas semanas e muitos pacientes que vinham de longe ficavam meses em Bauru. Anos mais tarde, Fernando ganharia um irmão. Ele comenta que, na adolescência, teve curiosidade de conhecer suas origens e de entender o porquê de os pais biológicos não o terem aceitado, mas com o tempo deixou esta história para trás. “Falar que eu não tenho vontade de saber é mentira, mas se eu quiser mesmo posso pegar o prontuário e lá deve contar toda a minha história. Posso até ir conhecer, mas minha vida é aqui”, comenta. Por volta dos três anos de idade, já vivendo na casa dos pais adotivos, Fernando passou pela primeira cirurgia de lábio. Ele 54 Capítulo 3 - Vida: Coração bauruense se lembra de sua mãe contar que o mais difícil era a higienização do local operado, mas afirma que nunca deu trabalho durante o tratamento. “Tinha até uma tia da pediatria que me deixava dormir quando eu chegava para o atendimento. Eu deitava em uma cadeira e dormia. Ela fazia todos os procedimentos e eu nem via”, recorda. Durante os atendimentos e cirurgias o pai de Fernando sabia passo a passo do que acontecia através de notícias trazidas pelos colegas de trabalho. “Os amigos do meu pai passavam, me viam e contavam para ele: Olha, eu vi o Fer lá, vi o Fer aqui”, conta. Foram também os colegas de trabalho de Pedro que o avisaram de uma pequena travessura do filho no hospital. Aos 13 anos, o garoto aguardava para fazer uma de suas sessões semanais de fisioterapia quando decidiu tirar um cochilo em um dos colchonetes da sala. Fernando conta que passou a chave na porta e dormiu. “Eles batiam, batiam e eu não acordava”, lembra. O dorminhoco só acordou uma hora depois quando funcionários da manutenção abriram a fechadura da porta. “Depois disso pararam de deixar as chaves na porta”, conta ele. Ao longo do tratamento, Fernando fez oito cirurgias, entre elas, a ortognática e de nariz foram as que mais o marcaram. Devido aos procedimentos da ortognática, que faz a correção da mandíbula, Fernando ficou uma semana internado na UTI. Ele, na época com 18 anos, teve complicações no pulmão e precisou usar sonda. “Nessa eu passei apertado. O pós-operatório é muito ruim. Você fica todo inchado e é difícil para comer e falar”, conta. Fernando ficou cinco meses sem poder se alimentar com comida sólida. Entre novembro e março daqueles anos, era só sopa e líquido. Tudo batido e coado. “Eu sempre fui muito brincalhão e meus primos me zuavam que iam fazer um churrasco só para me cornetar”, comenta. A cirurgia do nariz não teve contratempos, mas Fernando se recorda da dificuldade em respirar devido ao tampão colocado nas narinas. Ele relata sua conversa com o cirurgião no dia da operação: “Olha, eu quero operar o nariz, mas só vou operar se no dia seguinte eu puder comer comida normal”. Geralmente, neste procedimento, os médicos indicam até dois dias a base de líquidos e sopa para 55 Do outro lado do espelho cicatrizar melhor a cirurgia. Mas Fernando, já com 20 anos, teve o consentimento do médico e foi liberado para comer. Ele relembra: “eu operei de manhã e a noite me trouxeram um prato de sopa. Eu já estava legal, tinha tomado caldo o dia inteiro. Eu olhei para a enfermeira e falei: ‘Olha, eu não vou comer sopa’. E ela: ‘Não, mas você tem que comer’. Eu disse: ‘Eu não vou comer porque o cirurgião é meu amigo e falou que iria indicar para mim que eu ia comer sólido’. Fiz o pessoal ligar para o cirurgião para confirmar. Eles foram atrás e viram que estava indicado que eu poderia fazer a dieta geral. Eles me trouxeram um arroz com feijão, salsicha e purê de batata. Foi o melhor jantar que eu já comi na minha vida”. No bairro Independência, o goiano se tornou bauruense. Ali, Fernando foi criado e por lá permaneceu até pouco tempo depois do casamento com a esposa Michele. Ainda durante a infância, estudou em colégios públicos e privados da cidade. Ele conta que a molecada ‘pegava no pé’ e ‘tirava sarro’, mas diz que nunca ligou e até acha normal essas brincadeiras quando não prejudicam os colegas. “Uma única vez eu deitei na minha cama e comecei a pensar por que eu tinha fissura, bronquite e também tinha que usar um aparelho para endireitar as costas. Então, na verdade, eu tinha um monte de coisinhas que meus amigos não tinham. E eu fiquei me questionando por que meus amigos corriam, jogavam bola sem ter nada. Mas isso foi uma única vez. Eu sempre levei numa boa”, lembra Fernando. Quando as cirurgias ocorriam no período escolar, ele afirma que sua mãe nunca o deixou perder aula e preparava uma mochila com lanche líquido e sopa para o menino comer na hora do intervalo. Com um jeito brincalhão, o filho de Pedro e Clarisse conta que sempre foi sapeca e diz que nunca teve problemas em falar sobre sua malformação. Ele garante que até hoje a família brinca de falar em voz fanha. “Eu nunca fui criado na base de dó. Eu lembro que meu primo Nélio, eu chamava de Negó, porque eu tinha dificuldade de pronunciar. Mas aí, meus tios e meus pais, tiravam sarro, mas era algo saudável”, diz. Fernando afirma que nunca foi inseguro. Sempre muito falastrão 56 Capítulo 3 - Vida: Coração bauruense e travesso, ele nunca se sentiu menos ou mais que ninguém por causa da fissura. “Às vezes, eu mesmo falo fanho para quebrar o gelo com as pessoas. Eu falo assim para eles perceberem que eu não me importo”, conta ele. Com um tino aguçado para se relacionar com as pessoas, escolher Relações Públicas como área de atuação foi uma decisão prazerosa para Fernando, que quando saiu do colegial, não tinha ideia de que área deveria seguir. Ele se interessou pelo curso quando soube que essa formação possibilitaria um maior contato com as pessoas. Formado em 1998, pela Universidade do Sagrado Coração, Fernando trabalhou até o final de 2013 no setor de Comunicação do Centrinho. Lá ele atuou com eventos, recebendo os visitantes, fazendo visitas guiadas onde contava a história do hospital e organizando as festividades. Antes de atuar como relações públicas, ele fez de tudo um pouco dentro do hospital. Foi do almoxarifado, para o setor de enfermagem e de lá ao faturamento, ainda cobria alguém quando precisava. Ele começou a trabalhar no hospital entre os 12 e 13 anos, quando participou do Núcleo de Reabilitação e Habilitação para o paciente. Nesse programa, os pacientes participavam de alguma atividade dentro do Centrinho ou realizavam trabalhos fora do hospital. Os adolescentes trabalhavam meio período por dia e recebiam ajuda de custo. Depois de iniciar com os trabalhos no setor de almoxarifado, Fernando prestou o concurso da Funcraf (Fundação para o Estudo e Tratamento das Deformidades Crânio Faciais) e passou a atuar na pós-graduação com suporte técnico. Em 2010 surgiu a oportunidade de migrar para a área de eventos e ele não deixou passar. Trinta anos depois daquele primeiro Natal que passou com seus pais adotivos, Fernando se veste de papai Noel para presentear com sorrisos e carinhos as crianças internadas no Centrinho durante o mês natalino. Para ele, o diferencial do trabalho realizado pelo setor de eventos é comemorar com os pacientes qualquer data diferente, desde o Dia do Índio até o Dia das Crianças. O objetivo é fazer com que a criança em atendimento, que perde as atividades comemorativas da escola, se sinta mais a vontade e possa viver essas experiências. Fernando considera que ter sido paciente e trabalhado no 57 Do outro lado do espelho hospital onde se reabilitou faz toda a diferença. “Eu vejo muitas mães apreensivas e como já tenho experiência e me considero totalmente recuperado, sempre que dá, paro e converso um pouco, explico que o caminho é longo, mas que lá na frente vai ter a recompensa”, conta ele. Com problemas envolvendo a Funcraf, a Universidade de São Paulo decidiu pelo desligamento de funcionários contratados pela fundação e tem aberto gradativamente concursos para preencher estas vagas. Fernando foi um dos funcionários afastados de seus cargos no final de 2013. Dois mil e cinco foi o ano do casamento com a Michele. A moça que conheceu em uma das noites que foi sozinho até o ‘Jack Pub’, uma das casas noturnas de shows de Bauru. Em um dia daqueles em que a turma não decidia qual seria o passeio da vez, Fernando resolveu ir sozinho até a casa noturna. O plano era ouvir uma boa música e fazer novos amigos. Quando chegou ao bar, ele avistou a moça com quem se casaria anos depois, se aproximou e disse: “Oi, eu sou o Fernando” e a chamou para conversar. Disso surgiu o namoro, logo o casal comprou um apartamento e decidiu unir as escovas de dente. Os dois ainda não têm filhos. Bateram na trave, mas a gravidez não saiu. Fernando diz não ter receio de ter um filho com fissura ou síndrome e afirma que só pensa em criá-lo bem. O casal conhece as recomendações sobre o uso do ácido fólico, que pode evitar a malformação, mas não se preocupa muito com isso. “Às vezes, você bola as coisas e não sai do jeito que você quer. Se tiver fissura, legal. Se não tiver, vai ser bom porque não vai passar pelo que eu passei”, comenta. Quando solteiro, ele diz não ter sido namorador. Bem que quis ter mais relacionamentos, mas nunca deu certo. Ou porque elas não gostavam, ou porque ele não gostava. Ele não se preocupava com a questão da fissura, não achava que isso iria atrapalhar. Fernando garante que sua alto-estima nunca deixou a fissura aparecer mais que seu jeito de ser. Fernando cresceu junto com o hospital, viu e viveu suas transformações, ora como paciente, ora como funcionário. Ele estava por lá quando o hospital foi aos poucos dobrando suas dimensões físicas e também quando o “Prédião” se erguia dos 58 Capítulo 3 - Vida: Coração bauruense alicerces. O Fernando paciente se recorda do quiosque com peixes e tartarugas que existia no hospital, na ala onde hoje se encontra um gramado com dois quiosques onde os pacientes podem relaxar. Para ele, com o tempo não foi mais possível manter essas estruturas dentro de um hospital devido às legislações, mas lembra que era ótimo para as crianças entrarem em contato com os animais. O Fernando funcionário não concorda com a disposição de alguns setores dento do hospital, acredita que muitos profissionais ainda são pouco abertos às novidades e vê como desafio a ser superado a união da experiência de alguns profissionais com a novidade trazida por outros. Enquanto paciente e funcionário, ele aponta as evoluções técnicas dos tratamentos que têm facilitado e diminuído o tempo de reabilitação dos pacientes, mas também pontua que a humanização característica do Centrinho tem se tornado mais burocrática devido ao crescimento do hospital. “O Centrinho para mim como paciente representa tudo na minha saúde. Aqui eu fui bem cuidado, bem tratado. Tive todo o apoio na área de odontologia, na cirurgia, na área da psicologia, no social, em tudo. Para muitos pacientes representa exatamente isso”, afirma Fernando. “É uma coisa que eu acho que não verei em outro lugar, totalmente gratuito. Aqui temos um tratamento muito além do que se espera de uma instituição pública. Porque não trata somente a fissura. Nos trata para a vida”, comenta. O goiano de alma bauruense ainda não recebeu alta de todos os setores de atendimento do Centrinho, mas se considera 99% recuperado. 59 CIÊNCIA: ODONTOLOGIA A formação da face de um bebê se inicia na terceira semana de gestação e prossegue até a 12ª semana. Durante esse período, existe uma fenda no lábio e palato do feto e a fusão das partes em formação ocorre, geralmente, até o final do terceiro mês de gravidez. Em casos em que essa fusão não se concretiza, a fenda continua aberta dando origem às fissuras labiopalatinas. Em bebês com fissura, ainda durante o período intrauterino, as estruturas do lábio e palato, que estão abertas, recebem pressão da musculatura e dos movimentos do feto ganhando maior amplitude. As estruturas ósseas presentes na região da fissura acompanham esses movimentos e sofrem alterações. A ruptura pode atingir somente o lábio e palato ou também o arco da gengiva. Quando a fissura atinge a gengiva pode causar, por exemplo, a ausência de dentes e o aparecimento de dentes neonatais ou conóides, que são dentes menores que o normal. Ainda, outras deformações da face em pacientes com fissura, como a retração da maxila, se originam dos próprios procedimentos cirúrgicos primários, como do lábio e palato, que criam pressões contrárias ao crescimento facial devido às cicatrizes cirúrgicas. Para corrigir estas e outras falhas provocadas pela fissura labiopalatina, os profissionais de odontologia atuam desde o diagnóstico do paciente até procedimentos cirúrgicos complexos como a ortognática. No Centinho, como aponta Terumi Okada Ozawa, cirurgiã dentista e chefe técnica do Serviço de Odontologia do hospital, os profissionais de odontologia começam a atuar na reabilitação do paciente, quando possível, mesmo antes do nascimento. Quando a mãe descobre que terá um filho com fissura labiopalatina, por meio do ultrassom morfológico, e entra em contato com o hospital, já passa a receber instruções da área odontológica sobre as fases do tratamento do bebê. “Nós explicamos que a criança pode se tornar um indivíduo apto a realizar qualquer atividade, 60 Capítulo 3 - Ciência: Odontologia desde que faça todos os tratamentos na época e hora certa e com profissionais adequados. O que não pode é fazer um tratamento estanque, somente pela estética. Esses pacientes precisam ser monitorados para que desenvolvam uma fala melhor, uma estética melhor, com os dentes bem encaixados para que possam se alimentar bem”, afirma Terumi. Segundo ela, as odontopediatras orientam a família sobre a importância da higienização da gengiva e língua, já que a saúde da criança é fator decisivo para a realização das cirurgias e bons resultados no pós-operatório. São também as odontopediatras que monitoram o possível aparecimento de dentes neonatais na região da fissura e fazem sua remoção, impedindo que eles sejam aspirados durante a sucção da mamadeira ou chupeta, ou ainda, provoquem sangramentos. Como aponta Terumi em casos de fissura de lábio e gengiva, após o enxerto ósseo no local da falha do arco gengival e uso de aparelho ortodôntico, o tratamento já pode ser finalizado com sucesso. Por outro lado, quando a fissura abrange lábio, gengiva e palato, o tratamento envolve estruturas morfológicas e funcionais ligadas à fala, alimentação, respiração e se torna mais longo e complexo. O setor de odontologia também acompanha a evolução dos pacientes por meio de estudos e pesquisas. Antes das cirurgias primárias e durante todo o tratamento são coletados moldes da boca, fotografias e modelos panorâmicos para acompanhar o desenvolvimento do caso, realizar análises e comparações. ENXERTO ÓSSEO Pacientes com fissura de lábio e palato apresentam falta de osso na região da ruptura gengival. Como aponta Terumi Ozawa, com a não união das estruturas durante a formação intrauterina, o osso deixa de ser formado e não se desenvolve de forma natural durante o crescimento da criança. Segundo ela, mesmo após o fechamento do tecido gengival, a falha no osso continua e provoca 61 Do outro lado do espelho uma modificação na arcada. Os dentes do paciente ficam tortos ou se fixam ao redor da fissura e não podem ser movimentados pela ausência de estrutura óssea. Ainda, sem essa estrutura, a aba nasal fica para baixo devido à falta de sustentação. Assim, para dar origem a uma ponte óssea no local da fissura é utilizado um procedimento cirúrgico chamado enxerto ósseo. No HRAC/USP, o enxerto é realizado a partir da segunda dentição do paciente, ou seja, entre os oito e 13 anos de idade. A cirurgiã dentista indica que há inúmeras formas de se realizar este procedimento cirúrgico retirando fragmentos de osso da região do molar ou da crista ilíaca e ainda com o uso de materiais produzidos em laboratório que induzem o crescimento ósseo na região da fissura. No Centrinho, quando o enxerto é realizado com a retirada de fragmentos de osso do próprio paciente, a operação é feita por um cirurgião plástico e um cirurgião dentista em conjunto. O primeiro faz um corte na região da crista ilíaca, próxima à bacia, realiza a raspagem e retira parte do osso. O segundo insere o material coletado na região da fissura. Entre 60 e 90 dias a área começa a ossificar. Nos casos em que se utilizam as chamadas BMP, proteínas ósseas morfo genéticas, produzidas em laboratório, apenas o cirurgião dentista participa do procedimento. Ele insere o material imerso em uma esponja na região da fissura e fecha o local. A ossificação ocorre dentro do mesmo prazo. Terumi explica que, atualmente, o hospital tem reduzido o número de enxertos com retirada de fragmentos ósseos da crista ilíaca, a fim de evitar que o paciente passe por uma cirurgia na região da bacia e outra na boca simultaneamente, e assim, diminuir o tempo de recuperação. Ela afirma que os procedimentos que utilizam material ósseo do próprio paciente têm custo reduzido quando comparado ao BMP, que é um produto importado e originário de novas tecnologias. 62 Capítulo 3 - Ciência: Odontologia ORTOGNÁTICA Terumi Ozawa explica que os pacientes com fissura podem apresentar um desenvolvimento normal do encaixe dos dentes ou um quadro de deficiência do arco maxilar. Segundo ela, as cirurgias de lábio e palato, tão importantes para restabelecer a estética da criança e propiciar uma fala sem distorções, provoca também uma cicatriz que, muitas vezes, exerce pressão e inibe o crescimento da maxila superior. Assim, em relação à parte inferior, a maxila superior fica retraída, provocando uma deformidade na face do paciente. “É comum encontrarmos pacientes que tenham essa restrição no crescimento. A maxila vai ficando cada vez mais cruzada, na frente ou atrás”, afirma ela. Nesses casos, a partir dos sete anos de idade, os pacientes iniciam o uso de um aparelho ortodôntico para a expansão do arco ou, ainda, utilizam uma máscara para estimular o crescimento da maxila e encaixá-la no lugar certo. No entanto, como explica Terumi, nem sempre é possível corrigir a retração da maxila com o uso do aparelho, surgindo a necessidade da cirurgia ortognática. “Os pacientes que tem essa mordida cruzada têm também uma face deficiente. Então, esteticamente, a maxila fica muito para trás. Sem a cirurgia não conseguimos um encaixe bom para os dentes, nem deixá-los com uma aparência facial normal”, afirma. Em casos de grande discrepância na posição da maxila, o tratamento se inicia com o uso de aparelho ortodôntico para reposicionamento dos dentes e, depois, é realizado o procedimento cirúrgico. Terumi explica que durante a ortognática o cirurgião dentista corta o osso da maxila e o posiciona corretamente, movimentando-o para frente ou para trás, com o auxílio de placas e parafusos cirúrgicos. Após a cirurgia, o paciente precisa usar elásticos que prendem os dentes e, durante um mês, não pode realizar muitos movimentos, podendo se alimentar apenas com líquidos. Ainda, é preciso um período com o acompanhamento de um fisioterapeuta. 63 Do outro lado do espelho Nos casos em que o uso do aparelho consegue encaixar os arcos maxilares, o tratamento odontológico se encerra aos 13 anos de idade, já em casos de mordida cruzada o tratamento é de no mínimo 20 anos. A ortognática é realizada quando o crescimento da face já se encerrou, ou seja, após os 16 anos em meninas e 18 anos em meninos. Segundo a cirurgiã-dentista, atualmente, os profissionais do HRAC trabalham de forma a causar menores danos aos pacientes durante o tratamento. Assim, é preciso que as cirurgias de lábio e palato sejam realizadas de forma delicada a fim de não causar cicatrizes. Ela afirma ainda que os centros de pesquisa sobre fissuras labiopalatinas de todo o Brasil estão integrados na busca de melhores formas de realizar as cirurgias e obter melhores resultados estéticos e funcionais. 64 Rodrigo de Oliveira VIDA: O PROTAGONISTA 65 Do outro lado do espelho Antes de entrar no palco todo artista tem seu ritual. Uma oração, uma técnica de concentração de Yoga, é quase hora de entrar. Rodrigo Inácio de Oliveira sabe que uma hora o show tem que acontecer, não há mais tempo para ensaios, é preciso dançar. Em agosto de 2013, Rodrigo deu continuidade ao tratamento no Centrinho que havia abandonado há cerca de 10 anos. O recomeço da caminhada para a reabilitação tornou-se para ele a apresentação principal no espetáculo da vida. Rodrigo instalou um aparelho no céu da boca e realizou uma cirurgia de expansão maxilar. O aparelho tipo Haas e a operação possibilitam a expansão da arcada dentária, criando os espaços necessários entre os dentes. O aparelho foi elaborado pelo ortodontista americano Andrew Haas e consiste em uma estrutura acrílica instalada no céu da boca. Um dos aspectos que mais incomoda Rodrigo é a incorreção de seus dentes. Essa nova etapa do tratamento envolve não só estética, mas também coragem e superação do medo. Ele ficou em Bauru por 12 dias e teve retorno marcado para quatro meses depois. Rodrigo passou mal no pós-cirúrgico, teve paralisia facial e sentiu muita dor. Ele não conseguia dormir, os medicamentos contra a dor não faziam efeito, tinha que chamar a enfermeira a todo momento. Um mês depois da cirurgia, o problema de paralisia facial já estava sendo resolvido e o rosto desinchava. A reclamação passou a ser a vontade de comer coisas simples como pão com café e não poder, já que a dieta líquida é obrigatória durante um mês no pós-cirúrgico, seguida de alimentação pastosa por quatro meses. Na parede da sala de sua casa, há uma foto dele com sete anos. Com o cabelo mais claro, Rodrigo-menino fazia pose segurando um telefone. O nariz projetado para baixo e a cicatriz nos lábios indicavam a fissura bilateral no lábio. Por trás dessa foto, uma história de muitos encontros e desencontros. Era o quinto parto na vida de Sebastiana Inácio de Jesus. Com 45 anos, um filho temporão. Durante a gravidez ela passou por uma suspeita de aborto, teve que ficar toda a gestação em 66 Capítulo 3 - Vida: O protagonista repouso. Rodrigo nasceu de oito meses, o parto marcado para janeiro aconteceria no dia 14 de dezembro, um presente de Natal adiantado. Depois da gestação difícil, a mãe esperava para acolher a criança que Deus lhe enviava. A criança nasceu, mas o médico não mostrou o bebê, veio com as mãos vazias conversar com Sebastiana. O menino havia nascido com uma fissura no lábio e se ela não fosse aceitar a criança, encaminhariam direto para adoção. Mas amor de mãe foi feito para abraçar todos os filhos sem distinção. Decidiu, sem hesitar, que aceitaria Rodrigo com o mesmo carinho que recebeu seus outros quatro filhos. O menino foi então encaminhado para o hospital mais próximo onde faria a cirurgia para fechar os lábios. Nascido no interior de São Paulo na cidade de Franca, ele realizou sua primeira cirurgia aos três meses na cidade de Ribeirão Preto, no Hospital Santa Lydia. Rodrigo hoje tem 32 anos e é educador físico. Ele conta sobre o inesperado encontro que resultou no início de seu tratamento no Centrinho: “Eu fui descoberto na rua, por um olheiro! Eu estava andando na rua com minha cunhada, quando a mãe de um paciente me parou e me pegou pelo braço perguntando quem era minha mãe. Então minha cunhada achou que eu tinha feito alguma coisa errada e disse que ela era minha mãe”. A mulher tinha um filho com fissura e queria convidá-los para uma reunião da Associação Francana de Fissurados, a Afisfran. Ela questionou se Rodrigo era atendido pelo Centrinho e a cunhada explicou que ele não fazia tratamento, só havia feito a operação para fechar os lábios quando bebê. Eles participaram da reunião e a Afisfran encaminhou a proposta de tratamento de Rodrigo para o Centrinho. O hospital então enviou uma carta de Caso Novo e Rodrigo viajou com a cunhada para Bauru: “aquilo para mim era tudo novidade, eu não sabia o jeito que seria, mas havia o medo da cirurgia em si. Pela avaliação, eles falaram que eu teria que refazer a cirurgia que realizei em Ribeirão, então eu recomecei um tratamento com 10 anos de idade”. Era a vida que convidava Rodrigo para uma dança. 67 Do outro lado do espelho A fissura não era tema das conversas em família na casa de Rodrigo. “Não conversávamos sobre isso, eles me tratavam normal, mas não tinha esse tipo de diálogo. Tanto que só foi falado mais sobre meu tratamento quando fui para Bauru”. Sobre casos de fissura na família, ele conta que a tia, irmã de sua mãe, teve uma fissura unilateral, a abertura era pequena. A fissura dela não foi reparada, pois na época em que nasceu os esclarecimentos sobre o assunto eram poucos, sua tia morava na zona rural o que também dificultou o acesso ao tratamento. Na primeira cirurgia, Rodrigo e sua cunhada foram de carro por conta própria, depois começaram a ir pelo programa Carona Amiga, contando assim com a ajuda do município para viajar. Nesse programa, as prefeituras das cidades cedem conduções para que o paciente se locomova até o Centrinho e o hospital agenda e agrupa os atendimentos por município. “Na verdade, minha mãe nunca me acompanhou de modo efetivo nas cirurgias, se fosse por ela eu não faria mais, eu fiz essa com três meses porque estava aberto, depois não procuraram melhorar. Hoje eu já assumi o tratamento, mas minha irmã ainda me acompanha”, conta Rodrigo. A mãe dele já viajou três vezes para Bauru para acompanhá-lo no tratamento, mas Rodrigo preocupa-se muito com ela e prefere que ela fique em Franca já que Sebastiana não se sentiu confortável no ambiente hospitalar. “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta”. Esse trecho do livro “O ateneu” de Raul Pompéia traz o diálogo entre o personagem Sérgio e seu pai, na porta do colégio. Essa passagem descreve um dos períodos difíceis na vida de Rodrigo: a escola. “Eu tive um trauma na infância, minha mãe me superprotegia por causa da fissura e por me achar muito pequeno. Assim, não me colocaram na pré-escola. Então eu tive essa dificuldade para me desvincular da minha mãe. Não dei conta de frequentar a primeira série, eu tinha medo dela me deixar na escola e não buscar mais”. Fazendo terapia, Rodrigo descobriu que o medo que ele sentia de ser abandonado na escola era o mesmo de quando estava em tratamento na infância. “Eu 68 Capítulo 3 - Vida: O protagonista tinha medo do ato cirúrgico, mas o que eu temia mesmo era minha cunhada me deixar lá e nunca mais me buscar. Eu tinha que ficar o tempo todo grudado nela por causa desse receio de ser abandonado”, recorda. Na escola, o pátio era o ringue de luta e o adversário era o preconceito. Olhares e dedos apontavam as diferenças no seu rosto. Todo esse sofrimento se silenciava na escola, Rodrigo não reclamava para a mãe com medo dela se sentir culpada. “No recreio eu ficava na sala, não era de ficar brincando, correndo, então não aproveitava aquela parte gostosa da escola, de interação. Eu tinha amizades, mas eram muito restritas, sempre fui muito quieto, eu era muito medroso”, comenta. Apesar das dificuldades da vida escolar, Rodrigo gostava de estudar e quando voltou para cursar a primeira série, já sabia ler e escrever, pois tinha aprendido em casa com seus irmãos. Ele manteve essa postura durante a faculdade, não perdia aula para ficar conversando ou ir a bares. Porém, a escola não lhe agrada até hoje: “eu fiz licenciatura, mas nunca exerci porque eu percebo que o ambiente escolar ainda me amedronta um pouco”. Rodrigo é formado em Educação Física pela Universidade de Franca. Fazer uma faculdade era um sonho distante, devido às dificuldades financeiras. Na família de Rodrigo os irmãos trabalhavam, mas não haviam cursado uma universidade. “Na minha infância eu fiz teatro, fiz coral, mas quando eu entrei na dança eu descobri o corpo e fui ter contato com o meu próprio corpo também. E conhecendo meu corpo, eu conheci a Educação Física. Então eu me interessei e tive a certeza no meu coração: é educação física que eu quero”, conta. Atualmente ele trabalha com ginástica laboral e pilates, a dança é um hobby e uma grande paixão. Com 15 anos, Rodrigo assumiu a responsabilidade de manter financeiramente sua casa. Os irmãos dele já eram casados e cuidavam de suas próprias famílias, sua mãe não ganhava aposentadoria e seu pai havia falecido quando ele tinha 11 anos. “Para fazer a faculdade eu tive que trabalhar, conseguia me bancar, mas 69 Do outro lado do espelho era bem restrito, o dinheiro era para pagar a faculdade, não podia comer um bombom. Mas para mim foi uma superação porque eu consegui fazer a faculdade com o meu trabalho”. Rodrigo trabalhou numa farmácia e como estagiário na área de educação física. Rodrigo interrompeu o tratamento durante 10 anos, mas decidiu continuar a reabilitação há cerca de um ano e meio, então reativou o prontuário e passou por novas avaliações médicas. “Quando eu estava com uns 15 anos, o médico disse que eu tinha que fazer a expansão cirúrgica e depois a cirurgia ortognática. Eu me assustei muito, falei que não iria fazer e decidi parar o tratamento”, confessa Rodrigo. Em uma das avaliações com o cirurgião plástico, foi verificado que a mordida de Rodrigo estava com desvio. “O médico perguntou se eu estava usando aparelho na boca e eu disse que não”. Rodrigo acredita que se tivesse usado um aparelho expansatório na idade correta, não teria que passar por cirurgias mais complexas. “Eu acho que já era para terem colocado um aparelho expansatório, ainda quando a arcada dentária estava mole para expandir e não foi colocado. Pela idade eu já tinha passado da época de colocar aparelho, teria então que fazer uma expansão cirúrgica. Eu fiquei com raiva do hospital porque não era para eu fazer essa cirurgia se eles tivessem me colocado o aparelho”, reclama. Rodrigo conta que quando tinha uns 22 anos, a equipe médica o informou que não adiantaria colocar aparelho porque os ossos da região da boca já estavam calcificados pela idade, ele teria que fazer a cirurgia de expansão, além de colocar o aparelho. “Decidi colocar mesmo assim, por minha conta e risco, mas não tive sucesso. Todas as dores que eu não passei com a cirurgia, eu passei com o aparelho. É um aparelho que você tem que ativar com uma chavinha, vai abrindo a arcada. Foi aí que eu tirei o aparelho e não quis mais fazer nenhuma cirurgia, fiquei revoltado”. Na cirurgia de 2013, foi implantado o mesmo aparelho que ele havia colocado quando fez a tentativa por conta própria no passado, mas desta vez foi feito o procedimento cirúrgico após a colocação do aparelho. 70 Capítulo 3 - Vida: O protagonista Antes de interromper o tratamento no Centrinho, Rodrigo havia feito cirurgias nos lábios e no nariz. No fim, um recomeço. Um dos motivos que estimularam Rodrigo a se dedicar à reabilitação novamente foi o término de um relacionamento amoroso. “Quando você está num relacionamento é como se você tivesse colocado uma máscara, eu não precisava de ninguém me querer mais, pois eu já tinha encontrado alguém. Minha amiga brinca dizendo assim: ‘eu tenho certeza que ela te amou, porque a maior prova de amor que ela pode ter te dado foi largar você. Porque agora que ela saiu da sua vida você vai poder se reconhecer, a sua máscara caiu de novo, as pessoas irão te notar’. Então eu quis fazer a cirurgia para eu poder me sentir mais seguro”. Não foi muito fácil para Rodrigo se envolver num relacionamento. Quando saía para se divertir, as pessoas ao redor pareciam ter uma beleza que o espelho dele não refletia, pois muitas vezes o que ele enxergava era só a fissura. As pessoas olhavam para ele: seria uma paquera? Não, certamente reparavam sua boca ou seu nariz diferente. Rodrigo tentava se lembrar dos seus valores, sabia que também era uma pessoa interessante, mas recordar suas qualidades na mente não convencia seu coração e todos os outros continuavam melhores que ele. Mas de repente Rodrigo conheceu alguém especial, ele queria fazer o que fosse possível para ver essa pessoa feliz e o impossível também. A vida naquele momento era uma balança para equilibrar: “se a pessoa me aceitava do jeito que eu era, com a fissura, se ela me beijava, tinha contato físico, relação sexual comigo, eu teria que fazer algo para compensar”, pensava. Até com os amigos havia insegurança, ele tinha receio de encostar a boca no rosto das pessoas ao cumprimentar, mas um dia uma amiga o acordou do pesadelo: “eu não tenho nojo de você, se quiser me dar um beijo no rosto você pode, não precisa encostar só a face. Você definitivamente não se vê como a gente te vê, eu quero muito que um dia você conheça esse Rodrigo que a gente conhece, eu tenho certeza que você vai se apaixonar por 71 Do outro lado do espelho ele”, afirmou. Apesar de ainda se sentir um pouco inseguro, hoje ele já consegue perceber melhor esse “outro Rodrigo”. No passado, uma mão sempre indicava o caminho que Rodrigo deveria seguir, desde a mulher na rua que lhe puxara pelo braço para recomendar o Centrinho, até seus familiares, que o acompanhavam para o tratamento. Hoje mesmo com a “mão de Deus” guiando seu destino, Rodrigo é quem dita o ritmo na dança da vida. “Eu tomei a minha vida com as minhas mãos, eu decido se faço ou não. No começo, Bauru era uma lembrança pesada, começar a ir sozinho foi um processo complicado, mas também um aprendizado muito rico porque eu vi como eu cresci. A melhor coisa é você poder decidir a sua vida”, afirma. 72 CIÊNCIA: PSICOLOGIA O desafio do primeiro passo para um bebê ao aprender a andar, a socialização na escola, as inquietações da adolescência e a longa estrada para o amadurecimento na vida adulta. Para quem nasce com fissura labiopalatina, essas etapas se mesclam a uma rotina de cirurgias e processos para reabilitação. Para auxiliar o paciente nessa jornada, o serviço de psicologia do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (Centrinho) orienta os pacientes no tratamento da fissura labiopalatina e busca amenizar possíveis medos e ansiedades. O serviço de psicologia do Centrinho trata os aspectos psicológicos relacionados às malformações dentro da proposta de interdisciplinaridade do hospital. Assim, além dos procedimentos médicos, todos os pacientes passam pelo setor antes das cirurgias ou em momentos específicos. Em relação à fissura labiopalatina, o atendimento pode começar antes da criança nascer. “Devido à melhora tecnológica do exame de ultrassonografia tem se observado um número maior de gestantes com bebês fissurados que são acompanhadas pelo serviço de psicologia”, relata a psicóloga do Centrinho Marlene Aparecida Menconi. No início do tratamento, o atendimento se direciona mais aos pais que estão passando por um processo de aceitação. “Nenhum pai espera um filho com problema, no início eles ainda estão fragilizados, paralisados por essa situação da criança tão pequenininha precisar de uma cirurgia”, explica Marlene. De acordo com a psicóloga essa introdução precoce aos tratamentos contribui para uma possível superproteção dos pais. “As mães costumam proteger as crianças de doenças que podem atrapalhar na cirurgia como gripes e de quedas pela região da boca estar fragilizada, então elas fazem uma superproteção inconscientemente”. Outro tipo de comportamento que pode ocorrer 73 Do outro lado do espelho é a rejeição ou sentimento de culpa. “A aceitação é maior em famílias de níveis socioeconômicos mais baixos e a dificuldade de aceitação é mais problemática em classes altas, em que existe um maior questionamento da situação”, expõe a psicóloga. Há casos até de abandono por um dos cônjuges ou ambos. A fase escolar pode ser considerada um estágio de questionamentos, ligados à curiosidade típica das crianças. Caso ocorra algum tipo de discriminação em relação à fissura, o serviço de psicologia do Centrinho esclarece professores e diretores da unidade de ensino sobre a malformação. A criança pode passar por dificuldades de aceitação da própria aparência. Entre quatro e cinco anos elas tendem a questionar sobre a fissura ao se olharem no espelho, por exemplo. A psicóloga alerta para comportamentos extremados: “Existem mães de bebês que nem fizeram a primeira cirurgia e já estão preocupadas com o preconceito”. Não existem regras sobre como a criança irá lidar com malformação, porém “a fissura em nenhum momento limita o nível cognitivo”, ressalta Marlene. A adolescência é outra fase em que o paciente com fissura labiopalatina pode encontrar dificuldades que envolvem além do relacionamento social, as relações afetivas. Segundo a psicóloga, o jovem pode pensar que ninguém vai se interessar por ele por causa da fissura, situação que vai se amenizando com o crescimento. “Nós buscamos sempre ser aceitos no grupo que estamos, se não conseguimos, começamos a cobrar os outros ou a nós mesmos”. Marlene comenta que algumas pessoas passam por essa fase de um modo mais tranquilo, outras com uma postura maior de cobrança ou imposição da própria opinião. Todo esse processo de aceitação durante o crescimento e o modo como a pessoa lida com a fissura labiopalatina varia entre os pacientes, sendo importante então “observar as características individuais de cada um”, afirma a psicóloga. 74 Flávia Suano VIDA: A BAILARINA 75 Do outro lado do espelho “Pousada da Wanda”, indica os dizeres da placa de ferro pendurada na faixada da casa de número 86 da rua Joaquim Fidélis. Por trás da porta de entrada, uma sala de estar. Do lado esquerdo, um sofá e uma estante. Ao fundo, sobre uma mesa branca, aparelho de telefone e alguns papéis. Pequenas dançarinas de gesso se equilibram nas pontas dos pés sobre os móveis. Seus gestos e passos congelados enfeitam o local. Nas paredes, envolta em seu vestido lilás e branco, os retratos de uma bailarina real. Ela é Flávia Suano de Carvalho. A jovem de 24 anos, que ensaiou seus primeiros passos na cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, estrelou na arte e na vida, nos palcos do interior paulista. Aos dois anos de idade, ela bailava em terras bauruenses e encantava os olhares de Wanda Suano e César de Carvalho, seus pais adotivos. Longe dos palcos da arte por onde dançou durante dez anos, hoje Flávia trabalha no setor administrativo de uma empresa em Bauru, cursa pós-graduação em finanças e, nas horas vagas, faz companhia para a mãe na pousada da família, que hospeda pacientes em tratamento no Centrinho. Ela conhece bem a rotina dos clientes da mãe. Não apenas pela convivência com os inúmeros pais e pacientes que passaram pelo local nos últimos 22 anos, mas por ela própria ser paciente do hospital. Flávia nasceu com fissura unilateral completa. Sua malformação atingia o lábio e todo o céu da boca. O ano de 1991 marcaria a primeira cirurgia da pequena bailarina no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais. Esse ano seria também de grandes mudanças na vida de Flávia. Ela e o irmão, que nasceu com fissura bilateral, vieram do Rio de Janeiro na companhia do pai biológico, Jorge, para procurar tratamento em Bauru. A família passou por diversos locais até se hospedar na pousada de Wanda. O pai decidiu ficar em terras paulistas para trabalhar e, assim, facilitar o tratamento dos filhos. Por não saber como cuidar da menina, o pai biológico de Flávia decidiu deixá-la aos cuidados de outra família. Foi Wanda quem se ofereceu para ficar com a menina enquanto Jorge ia resolvendo a vida. Nos primeiros anos, ele visitava Flávia e cuidava do filho mais velho. Com o tempo deixou de aparecer. O menino foi viver em um abrigo, onde ficou até os 18 anos. “Não tenho noção de 76 Capítulo 3 - Vida: A bailarina quem seja minha mãe biológica e não lembro mais como era meu pai”, diz Flávia. “Não sabemos ao menos como ele vive hoje”, afirma. Hoje o irmão de Flávia completa a família de Wanda e César. Ele faz companhia para César enquanto Flávia fica com a mãe na pensão. A jovem conta que seus pais adotivos chegaram a procurar sua família biológica para saber se queriam conhecê-la, mas nunca obtiveram resposta. “Quando eu fiz 21 anos, fui conhecer minha terra, no Rio de Janeiro. Fomos de férias e minha mãe perguntou se eu não queria ir atrás da minha família. Mas eu não quis mexer com isso, achei melhor deixar quieto”, afirma. Ao longo do tratamento, Flávia fez cirurgia no lábio, palato e nariz. Ainda durante a infância, ela realizou o enxerto ósseo para fechar o espaço que a fissura deixara aberto em sua gengiva. “Foi com raspagem de osso mesmo. Agora eles têm uma tecnologia bem avançada. Antes tinha que ter muitos cuidados pós-cirúrgicos. Hoje o pessoal faz cirurgia e em poucos dias pode ir embora”, conta. Ela recorda que, na ocasião, teve de ficar 45 dias sem fazer atividade física ou esforço. Ou seja, nada de ir ao balé. Na escola, ela não podia correr como os colegas e ficava sentada para evitar uma possível rejeição do organismo. A menina não tinha medo da sala branca e dos bisturis. “Eu sempre estava preparada para as cirurgias. Isso é o de menos para quem faz muitas cirurgias como os fissurados. O que pega mesmo é a recuperação porque tem que ter muito cuidado”, comenta. Flávia já recebeu alta do setor cirúrgico e frequenta o Centrinho para o tratamento odontológico e auditivo. Quando menina, Flávia estudou em colégios públicos de Bauru, sempre próximos à pousada da mãe. Ela se recorda da curiosidade das crianças na escola e diz que tentava explicar. “Eu falava com naturalidade sobre minha fissura porque eu já estava acostumada com as pessoas que sempre vinham em casa. E eles perguntavam: ‘Mas como é isso?’. Algumas pessoas não sabiam como era. Hoje acho que entendem melhor. Mas há cinco ou dez anos atrás as pessoas não sabiam o que era”, conta. Uma vez, também no colégio, ela escutou de alguém: “Ah, coitada da Flávia!”. Ao que respondeu: “Coitada nada! Eu tenho uma vida normal”. Flávia terminou a graduação em administração em 2011 e hoje 77 Do outro lado do espelho estuda finanças. A profissão escolhida foi uma surpresa para todos que pensavam que ela seguiria o balé como profissão. “Pratiquei durante dez anos. Era um hobby mesmo. Depois eu parei por causa da faculdade e do trabalho”, conta. Por causa do balé, Flávia participou de apresentações de dança e teatro no Centrinho. Em uma delas, apresentou danças da cultura do norte brasileiro a profissionais dos Estados Unidos que visitavam o hospital. Diferente da maioria dos adolescentes, aos 15 anos, Flávia se sentia bem esteticamente e acreditava que não precisava de mais cirurgias. “O dia em que o clínico falou que eu podia ou não fazer a cirurgia eu disse: chega! Era só o estético. Eu não acho que tem necessidade de mexer mais”, diz. Para ela, demonstrar que se sente segura indica aos outros que sua fissura não a diferencia. Nas paqueras nunca sentiu um olhar diferente. “Senti que me olhavam como uma pessoa normal e não como uma pessoa que tinha fissura”, afirma ela. Na pousada da mãe, Flávia esteve em contato com muitos pacientes do Centrinho. Por lá, conheceu histórias de pessoas vindas de todas as regiões do Brasil. Ela se recorda do caso de um paciente chamado Diego, de Sergipe, que tem síndrome e surdez e que passou por várias cirurgias complicadas. “Ele é um caso de superação. Cursou direito e passou no exame da OAB”, conta. Outra paciente chamada Ana, do Recife, também está nas lembranças de Flávia. Ela conta que Ana além de ter fissura, não tem parte dos dedos das mãos e dos pés, o que a faz se sentir cansada ao caminhar. Mas afirma que, apesar de tudo, a moça leva uma vida normal e é fonoaudióloga. Para Flávia, estar em contato com essas pessoas a fez ver quão simples era seu caso. Ela ainda comenta que a vivência nas pousadas auxilia muitos pais a entenderem melhor a malformação dos filhos e a descobrirem o caminho que deverão percorrer para a reabilitação. A fissura mudou o rumo da vida de Flávia. Foi a necessidade de tratamento que a fez encontrar uma nova família. Seus pais percorreram um longo caminho até conhecerem a pequena em Bauru. Wanda vivia em Manaus, no Amazonas, e por lá conheceu César que viajava a trabalho. Os dois decidiram partir para o sudeste do país, onde vivia a família de César, e em Bauru fun78 Capítulo 3 - Vida: A bailarina daram a “Pousada da Wanda”. Na sala hoje repleta de pequenas dançarinas de enfeite, o casal acolheu Flávia e a chamaram de filha. Vinte e dois anos depois de sua chegada, sentada na mesma sala da casa de número 86, ela agradece à família que a recebeu. 79 CIÊNCIA: FONOAUDIOLOGIA Por comunicação, entende-se a troca de informações entre dois indivíduos. Esta ação pressupõe a emissão de uma mensagem e sua recepção. Um dos canais mais comuns para a efetivação do ato comunicacional entre os humanos é aquele que se estabelece entre a fala e a audição. Para que a fala seja concretizada, organização e planejamento das estruturas anatômicas, como integridade auditiva, neuromuscular e dos aparelhos de reprodução dos sons são fundamentais. Da mesma forma, para que a recepção da fala produzida seja eficaz é preciso que os mecanismos fisiológicos do aparelho auditivo funcionem de forma organizada. Neste, como em outros processos comunicativos, existem interferências e ruídos, na maioria dos casos, causados por modificações da fala e/ou audição. Aqui, aparece a figura do profissional de fonoaudiologia que atua na prevenção e reabilitação das disfunções comunicativas. O fonoaudiólogo trabalha em cinco vertentes: audiologia, voz, linguagem, motricidade (ligada à alimentação) e saúde coletiva. FALA Os distúrbios da fala são interpretados, geralmente, de forma negativa na sociedade e, no caso das fissuras labiopalatinas, a fala, aliada à estética, é um dos aspectos mais estigmatizantes para o paciente. Nesses casos, as alterações são variadas e vão desde a distorção de um fonema até casos de hipernasalidade, voz fanha, e mecanismos compensatórios que tornam a fala incompreensível. O problema de disfunções na fala, como aponta Cristina Guedes de Azevedo Gonçalves, fonoaudióloga do HRAC/USP, aparece apenas em fissuras de palato, o céu da boca. Ela explica que quando a malformação atinge apenas os lábios, a cirurgia corretiva, que é realizada aos três meses de vida do paciente, impede 80 Capítulo 3 - Ciência: fonoaudiologia que, ao iniciar os processos relacionados à fala, a criança tenha dificuldades ou reproduza sons disformes. Em casos de fenda palatina, ausência parcial ou total do palato, o ideal é que a cirurgia de reconstrução seja realizada até os 12 meses de vida da criança para impedir distúrbios provocados pela ausência desta estrutura. O palato separa a cavidade bucal da cavidade nasal. Ele é composto por uma parte óssea, que é dura, chamada de palato anterior ou duro, por uma parte mole, que é muscular, o chamado palato mole e, por estruturas de mucosa, como a úvula ou campainha. Quando há a falta de palato ocorre uma ligação entre as cavidades, o que leva a comunicação de alimentos e líquidos na região e provoca a produção de sons pelo nariz. Cristina Guedes aponta que não se trata apenas de fechar a região palatina em pacientes com fissura durante as cirurgias. Ela explica que o cirurgião precisa reconstruir as estruturas de forma a garantir sua funcionalidade, sobretudo no caso do palato mole, que tem de funcionar como uma porta, abrindo e fechando. “O palato mole fecha em determinadas atividades, como quando engolimos e deglutimos alimentos, ou quando a gente assopra ou faz sons orais. Se o médico reconstruiu, mas o palato não desempenha a função de fechar nessas atividades, começamos a notar algumas alterações”, afirma. Em casos de pacientes que demoram a realizar a cirurgia de palato ou em casos em que o palato não funciona adequadamente as disfunções da fala são mais comuns. Aqui, surgem as chamadas articulações compensatórias, caracterizadas pela produção de sons na garganta, próxima à laringe ou cordas vocais, ou ainda, com a projeção da língua para trás, o que gera uma fala distorcida e pouco compreensível. De modo geral, pacientes com fissuras podem apresentar os seguintes distúrbios da fala: distúrbios articulatórios do desenvolvimento, que correspondem a alterações comuns da fase de aquisição dos fonemas; distúrbios articulatórios compensatórios, que correspondem a distúrbios do aprendizado decorrentes das alterações estruturais, provocadas pela própria fissura palatina 81 Do outro lado do espelho ou pela presença de fístulas no palato; distúrbios obrigatórios, que correspondem a alterações decorrentes exclusivamente da disfunção velofaríngea, como a hipernasalidade e a emissão de ar nasal; adaptações compensatórias, relacionadas a distorções na produção articulatória frente a alterações estruturais, como as deformidades dentofaciais. A fonoaudióloga explica que a disfunção velofaríngea abrange as estruturas do palato mole, úvula, das paredes da faringe e do fundo da garganta e ocorre quando, mesmo operadas não funcionam bem, ocasionando a voz fanha e alteração dos sons. O setor de fonoaudiologia do Centrinho surgiu na década de 1970, quando especialidades como a odontologia já estavam consolidadas. No hospital, como aponta Cristina Guedes, o primeiro contato entre o fonoaudiólogo e o paciente ocorre durante a primeira visita, quando a família e a criança passam por avaliações da equipe de diagnóstico. Essa equipe, que acolhe os chamados Casos Novos, é composta por profissionais de três áreas: fonoaudiologia, ortodontia e cirurgia. Nessa primeira consulta, em se tratando de bebês que tenham fissura de lábio e palato, os pais já recebem as orientações sobre o desenvolvimento da fala da criança. “As crianças fissuradas têm toda capacidade para desenvolver fala. O que pode acontecer é elas desenvolverem algumas alterações de fala antes das primeiras cirurgias, então passamos algumas orientações que evitem essas disfunções dos sons até que o palato seja operado”, afirma a fonoaudióloga. Realizada a cirurgia primária de palato, o paciente volta a ser avaliado pelos profissionais da fonoaudiologia que irão fazer um acompanhamento do desenvolvimento da fala da criança. A família é encaminhada para uma avaliação na cidade onde mora, em até 30 dias depois do procedimento cirúrgico. Quando a criança operada apresenta alguma alteração de fala é encaminhada ao tratamento terapêutico de fonoaudiologia. As terapias são realizadas nos municípios de origem dos pacientes e o HRAC faz o acompanhamento da evolução dos casos, entra em contato com 82 Capítulo 3 - Ciência: fonoaudiologia os profissionais de cada localidade, quando necessário, e passa informações e instruções para as terapias. O Centrinho também oferece um programa de terapia fonoaudiológica intensiva, em que o paciente permanece em Bauru durante um mês, com sessões diárias de tratamento para a fala. Este programa é oferecido para casos específicos que não tenham recurso para o tratamento fonoaudiológico na sua cidade de origem. O acompanhamento fonoaudiólogo no Centrinho prossegue até a adolescência, em média, o paciente recebe alta da especialidade com 12 anos de idade. Cristina Guedes afirma que mesmo nos casos de pacientes que não apresentam disfunção da fala, esse acompanhamento é realizado, já que na adolescência o tecido da adenoide evolui e pode provocar alterações na voz. Ela explica que quando a fissura é apenas nos lábios, o acompanhamento da fonoaudióloga se encerra na primeira consulta, a não ser que a criança apresente dificuldades auditivas. A fonoaudióloga aponta que o foco atual do tratamento fonoaudiológico é a prevenção em relação às alterações de fala na fissura. Ela indica duas formas de prevenir as disfunções de fala: a primeira delas seria a realização da palatoplastia até o primeiro ano de idade do paciente, a segunda é fazer a criança sentir pressão na boca antes de operar o palato. “Orientamos os pais a pressionar a narina do bebê, encostando de levinho, quando ele faz sons orais, para ele perceber a diferença dessa pressão do ar na boca”, diz ela. AUDIÇÃO A associação entre perda auditiva e fissura labiopalatina tem sido estudada desde o século XIX. Em 1898, Alt já observava possíveis repercussões da fissura palatina na audição. A frequente ocorrência de perda auditiva em pacientes com fissura labiopalatina foi relatada por Gutzmann e Gutzmann, em 1983, quando observaram que 50% de seus pacientes com fissura de palato apresentavam perda auditiva. Embora não exista unanimidade 83 Do outro lado do espelho quanto à prevalência da perda da audição em pacientes com fissura labiopalatina, há um consenso que essa perda ocorre com maior prevalência nos indivíduos com fissuras do que naqueles que não a apresentam. Um estudo conduzido no HRAC analisou a ocorrência de perda auditiva em pacientes com idade entre quatro e oito anos de idade, com fissura de lábio e fissura de palato, por meio da audiometria por via aérea. Os resultados apontaram que pacientes com fissura palatina apresentam limiares aéreos diferentes dos com fissura de lábio, sugerindo que a presença da fissura palatina é um fator importante a ser considerado, já que a fissura de lábio não interferiu na sensibilidade auditiva da população estudada. A efusão da orelha média, que é causada pela presença de líquido no interior dessa estrutura, sem uma real infecção, tem sido apontada como um fator desencadeante dessa perda auditiva em indivíduos com fissura palatina, em virtude da malformação anatômica e da deficiência funcional da musculatura da tuba auditiva e do palato mole. 84 Capítulo 4 Foto: arquivo HRAC/USP Ar livre e descontração mudam a rotina dos pacientes Centrinho na década de 1990 1990 - Primeiro implante coclear multicananal no Brasil é feito no Centrinho. Conhecido como ouvido biônico, a prótese substitui a função da cóclea, estrutura do ouvido interno responsável por transformar os estímulos sonoros em sinais elétricos que chegarão ao cérebro. 1991 - Criação do Núcleo Integrado de Reabilitação e Habilitação (Nirh)- programa de capacitação profissional para pacientes, incluía o ensino de Libras para deficientes auditivos e projetos educativos. 87 Do outro lado do espelho 1992 – Realização do primeiro enxerto ósseo em pacientes com fenda labial no Brasil. A cirurgia envolve a reconstrução da cavidade óssea da maxila e da mandíbula. A primeira paciente a ser operada chamava-se Elis Ribeirete e tinha nove anos na época. O procedimento foi trazido por três médicos do Reino Unido que auxiliaram na capacitação de profissionais do Centrinho. 1993 - Paralisação na construção do “Prédião”. 1996 - Início do Projeto Flórida em parceria com a Universidade da Flórida (EUA). O projeto envolve a comparação de técnicas cirúrgicas e a troca de conhecimento entre as instituições por meio de projetos de pesquisa. 1996 - Criação de Programas de Pós Graduação, residência médica, aprimoramento profissional e estágio. 1998 - O hospital recebeu nova e atual denominação: Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC/USP). 88 Henry Pereira VIDA: FILHO DO NORTE 89 Do outro lado do espelho À luz de lampião no seio da floresta amazônica, um choro de criança cumprimenta o mundo. No berço verde, nasceu Henry Edson Cavalcante Pereira. Há cerca de 70 Km do município de Rio Branco (AC) o menino nascia pelas mãos do pai, Jozue Meza Pereira. Com dificuldade de tirar o bebê da mãe, ele conta que puxou Henry pela boca: “quando meti o dedo, parecia ter ido até o cérebro dele, eu apavorei. Quando nasceu, eu botei ele em cima da barriga da minha mulher e disse: “mamãe, o neném tem um probleminha, ele nasceu fissurado, mas temos um lugar onde ele fique bom. Eu já conhecia o Centrinho”, conta Jozue. Hoje, com 22 anos, Henry descreve seu nascimento: “nasci no meio do mato, nossa casa era de madeira, construída há dois metros do chão. Ficava longe da cidade, para se chegar numa rodovia sem asfalto com destino à cidade caminhava-se 20 km a pé, numa estradinha estreita”. Henry nasceu no Projeto de Assentamento Dirigido Humaitá. O local é um assentamento do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e se localiza no município Porto Acre, região que consiste num desdobramento de Rio Branco. Na região que Henry nasceu ressoa o apito de uma locomotiva fantasma. Ele conta sobre a minissérie Mad Maria, gravada pela emissora Globo em 2005, para descrever sobre sua terra. A produção televisiva relatava a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré que cortava a floresta amazônica, ligando o município de Porto Velho a Guajará-Mirim, em Rondônia. Uma história de coragem e persistência, marcada pela morte de milhares de trabalhadores, vítimas de acidentes de trabalho e de doenças como malária e febre amarela. Henry nasceu com uma fenda unilateral no lábio e o palato aberto. Para construir seu caminho para a reabilitação, ele também trilhou caminhos difíceis. Seu pai conhecia o Centrinho desde sua fundação. “Passei a enviar pacientes para o hospital em 1989, quando fui morar na Amazônia Ocidental, sou paramédico e membro voluntário da defesa civil, sempre estive ligado a causas como do Hospital do Câncer, hansenianos e do fogo selvagem do Mato Grosso (doença caracterizada pelo surgimento de bolhas e feridas na pele). Eu comecei a andar por Bauru por volta de 1962, pegava o trem 90 Capítulo 4 - Vida: Filho do Norte em Bauru e ia para Campo Grande. Eu mandei alguns pacientes para o Centrinho, então um filho meu nasceu fissurado, aí eu virei Centrinho até na cor!”, conta. Jozue usa aparelho auditivo e também faz tratamento no Cedau (Centro Educacional do Deficiente Auditivo) que faz parte do Centrinho. A primeira vez que Jozue havia encontrado uma criança com fissura operada foi em um ônibus numa viagem do Rio de Janeiro para Porto Alegre. “Eu vi uma menininha que tinha sido operada, muito bem operada, muito bonita. Então perguntei para o pai dela onde tinham feito a cirurgia. Aí ele me deu o envelope de agendamento do Centrinho com o nome e endereço do hospital”, explica. Com cerca de um ano de idade Henry cruzou o Brasil, veio do Acre para Bauru com seu pai para fazer sua primeira cirurgia no Centrinho. O tratamento trouxe um novo sorriso para Henry e para sua família. A mãe que viu seu filho nascer com o céu da boca e o lábio aberto, pôde envolvê-lo num abraço de tranquilidade e esperança. Para Henry, Bauru representava um novo mundo a se descobrir, ele era um menino ativo, conhecido por todo o pessoal do Centrinho. “Anota aí: ele chegou aqui pequeno e nunca chorou para tomar uma injeção, ele não tem medo”, ressalta o pai com orgulho. Henry carrega essa coragem nas cirurgias até hoje, ele prefere entender o que vai acontecer na cirurgia e não tem medo dos procedimentos médicos. Porém uma cirurgia foi mais complicada para ele, o enxerto ósseo, realizada quando ele tinha entre 10 e 12 anos de idade. Do olho fechado pelo inchaço pós-cirúrgico saíram lágrimas ao conversar com a mãe por telefone. “Como a cirurgia é muito violenta, o rosto ficou muito inchado e roxo, então quando a gente sai da cirurgia, não se reconhece”, explica Henry. Ele fez seis cirurgias até hoje, a maioria plástica, para corrigir o lábio. Ele considera como mais complexas, o enxerto e a cirurgia ortognática que fez para ajustar a posição do maxilar. “Passei por todas as áreas, falta a faringoplastia para ajeitar a voz porque não tenho a campainha, também tenho que fazer a plástica no nariz”. Em novembro de 2013 ele fez a cirurgia ortognática. No dia nove ele postou fotos no site de relacionamentos Facebook, com o rosto bem inchado após a cirurgia, mas acalmou os amigos 91 Do outro lado do espelho com mensagens: “já, já vou ficar bom e estarei de volta”. Dia 15 de novembro o acreano já estava em casa. Fazer viagens longas, vencendo as dificuldades financeiras, não foi o único desafio na vida de Henry. Ele e os irmãos andavam dez quilômetros de bicicleta em estradas de terra de casa até a escola, em Rio Branco. O lugar era precário, Jozue fazia parte da administração e lutava para não deixar faltar merenda ou material escolar. Entre a casa e os livros muitas subidas, descidas, poeira e lama. Para chegar ao destino, iam de bicicleta, carro de boi ou de zorra. Jozue explica a zorra: “são dois varões compridos de uns quatro metros, vai uma canga no pescoço do boi e tábuas onde ele e a irmã sentavam. Isso não tem a possibilidade de atolar em lugar nenhum, não tem roda, passa por dentro da água, de pedra, de tudo”. Às quatro horas da madrugada Henry e sua irmã, Monique Naiá, saiam de casa para cumprir a jornada escolar. Tudo feito sem faltas nem atraso, mesmo no inverno amazônico que são seis meses de chuva e lama. A vida já havia lhes dado sabedoria para transpor os obstáculos que surgem pelo caminho. Para quem já havia vivenciado tantas adversidades, os contratempos em Bauru foram superados com coragem. Dormir ao relento no parque Vitória Régia foi apenas mais um desafio. Em 2005, Henry e seu pai estavam sem dinheiro para ficar em pousadas e não havia vagas na PROFIS (associação que presta assistência social aos pacientes do Centrinho). “Dormimos duas noites no Parque Vitoria Régia, sem nenhum acanhamento ou temor, pois o atendimento do Centrinho compensava o sacrifício”, define Jozue. Henry diz que nunca teve que interromper o tratamento, “sempre dávamos um jeitinho”. Pai e filho guiados pela força de um espírito desbravador já reuniram num grande abraço o norte e o sul do país. Aproveitando a ida para Bauru já foram para o Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre. Henry tem uma personalidade calma e forte, não se incomodava com as brincadeiras de colegas sobre sua fissura e não tem dificuldade para fazer amizades. “Eu só ficava meio chateado quando eu falava e a pessoa não me entendia, melhorei muito minha voz, a fonoaudióloga disse que para evoluir tenho que fazer a cirurgia da campainha. A gente se acha diferente e tem 92 Capítulo 4 - Vida: Filho do Norte vergonha, mas bullying eu nunca sofri”. Henry considera que as pessoas não o viam de modo diferente, apesar de muitos desconhecerem a fissura labiopalatina. O pai conclui: “Isso eu acho que é efeito da própria personalidade que ele tem, as pessoas não tem coragem de perguntar porque ele fala assim, não sabem que ele foi fissurado.“Também por causa da minha personalidade, as pessoas nem me perguntavam o que ele tinha”. Henry é casado e se interessa pelas possíveis formas de prevenir a malformação, pois tem consciência sobre a possibilidade de ter um filho com fissura. Ele comenta da importância da ingestão de ácido fólico durante a gravidez: “teve uma lei também para aumentar o acido fólico em alguns alimentos como a farinha de trigo e outros alimentos para evitar a fissura”. Em 2002, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) determinou que as farinhas de trigo e de milho fabricadas no Brasil ou importadas deverão ser enriquecidas com ferro e ácido fólico. Henry divide seu coração entre Acre e Bauru. “Lá eu moro num sítio, não gostava muito, preferia a cidade, mas agora me acostumei. Na minha casa mora meu pai, minha mãe, eu, minha esposa, cachorro, gato, um cavalo e uma égua. Gosto muito de animais”. Em Bauru, seus lugares preferidos são o Vitória Régia, calçadão e shopping. “Tem meu mundo em Rio Branco e meu mundo no Centrinho. Bauru é minha segunda cidade, eu adoro esse lugar. No Centrinho é como se estivesse livre, como se eu estivesse na minha casa, eu em sinto bem e quando eu terminar meu tratamento vou ter que vir no Centrinho, pegar uma moto e vir para Bauru”. Quando Henry fala sobre viajar de moto do Acre para Bauru, não é um exagero. Além de ser um apaixonado por Motocross, o espírito de aventura parece ser hereditário: seu pai já viajou com uma moto Biz os 3.216 km que separam as duas cidades, uma prova de que as pessoas são movidas por sonhos. “Se eu não fosse fissurado eu não seria a pessoa que eu sou hoje, se eu também não tivesse o pai que eu tenho, eu não seria a pessoa que eu sou hoje. Ele me ensinou muito, a maioria das coisas que eu sei eu não aprendi na escola, mas sim com ele e procuro ensinar as outras pessoas. Sem a fissura eu também não 93 Do outro lado do espelho ia conhecer Bauru”, conclui o jovem do Acre. Henry fez da fissura uma trilha para conhecer novos mundos, encontrando em cada obstáculo uma oportunidade de superação. 94 CIÊNCIA: ASSOCIAÇÕES ALECRANFA E A LUTA DE JOZUE Jozue Meza Pereira ajudou seu filho Henry a vir ao mundo e esteve ao lado dele nas 18 vezes em que ele veio para Bauru a tratamento. O homem de bigode eriçado, óculos com lentes fotocromáticas e voz firme apresenta-se: “sou paramédico voluntário há quase 50 anos e membro da Defesa Civil internacional desde 1957”. E enumera algumas de suas experiências: “sou gaúcho, estudei no Chile, na Argentina, fiz faculdade de biologia, agronomia e hoje sou amazonólogo”. Jozue que já morou e visitou tantos lugares, reside agora há 15 Km da capital Rio Branco no sítio Finca Héstia. Sobre o nome do sítio, Finca significa “propriedade” em espanhol e Héstia é uma deusa grega, protetora da moradia e da família. O nome reflete o perfil multicultural de Jozue. Ele é presidente da única associação de pessoas com fissuras labiopalatinas do estado do Acre. Em 2001 ele fundou a ALECRANFA (Associação de Portadores de Lesões Lábio Palatais e Deficientes Auditivos do Estado do Acre). Jozue criou a associação com o objetivo de representar os pacientes e assegurar seus direitos. Porém, ele já encaminhava pacientes para o Centrinho antes de fundar a associação. “Houve a necessidade de formar a associação para dar personalidade jurídica aos pacientes, para facilitar tanto a aquisição de passagens como a ajuda de custo para os pacientes viajarem, que são benefícios difíceis de conseguir”, explica Jozue. A entidade possui uma planta e um projeto para construção da sede e de um Centro Social de Atendimento em terreno doado pela Prefeitura Municipal de Rio Branco (AC). Mesmo sem essas partes construídas, a associação agenda, encaminha pacientes para o Centrinho e divulga o trabalho do hospital. Além disso, por meio da associação, ele oferece hospedagem para pacientes do interior do estado do Acre em uma casa de passagem dentro do próprio sítio de sua família. O objetivo é construir uma sede 95 Do outro lado do espelho própria para oferecer serviços como odontologia, fonoaudiologia, psicologia, assistência social e clínica pediátrica. Jozue explica a situação da Associação: “nós temos o terreno, a planta e o dinheiro para construção, nos falta assessoria para adequar toda documentação para levar ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e ao Ministério da Providência Social em Brasília”. Um dos problemas, por exemplo, era que a planta feita pelo arquiteto não seguia uma exigência de ter uma quadra poliesportiva. Como se trata de uma organização comunitária isso era exigido. O terreno que a prefeitura cedeu não comportava a quadra, assim Jozue demorou dois anos para conseguir outra área junto ao terreno. Essa é uma das dificuldades que ele enfrenta para consolidar a associação. Outra ação que Jozue realiza por meio da ALECRANFA é a orientação sobre a obtenção de passagens pelo Tratamento Fora do Domicílio, um instrumento legal instituído em 1999, pela Portaria nº 55 da Secretaria de Assistência à Saúde (Ministério da Saúde). O TFD é um benefício que garante tratamento médico em outro Estado ou município aos pacientes do Sistema Único de Saúde, quando esgotadas todas as formas de tratamento no local em que o paciente reside. O TFD busca garantir o deslocamento até o Estado ou município e a permanência do paciente, por meio de uma ajuda de custo que inclui passagens de ida e volta, alimentação e hospedagem. O benefício é destinado para procedimento de média e alta complexidade, envolvendo consultas médicas, tratamento ambulatorial, hospitalar e cirúrgico. A solicitação de TFD deve ser feita pelo médico assistente do município de origem, nas unidades assistenciais vinculadas ao SUS. Segundo o manual de normatização do TFD do Estado de São Paulo, quando o pedido do benefício for negado, o Estado disponibilizará atendimento em serviço do SUS no próprio estado que garanta o tratamento solicitado. Jozue solicita o benefício quando viaja para atendimento no Centrinho. Na estadia de Jozue e Henry, a hospedagem é feita com 96 Capítulo 4 - Ciência: Associações o dinheiro deles, quando não ficam na PROFIS. Após aproximadamente 30 dias eles conseguem um reembolso de R$ 375,00. “O que não cobre todas as despesas nunca”, ressalta Jozue. “Durante muitos anos vínhamos para o Centrinho de ônibus, quase quatro dias de viagem. Agora devido a minha idade e algumas ações na Justiça estamos viajando de avião, pegando três aviões em um dia para ida e três para volta. Uma viagem extremamente cansativa já que ficamos sem dormir por mais de 24 horas seguidas”, relata Jozue. Do Acre até Bauru, Jozue e seu filho Henry fazem 14 horas de voo, passando por Brasília e São Paulo. Ajudar a diminuir a dor das pessoas sempre foi objetivo da vida de Jozue. Esse sonho o impulsionou a desenvolver a associação no Acre. Em abril de 2013 aconteceu o XIII Encontro Nacional de Associações de Pais e Pessoas com Fissura Labiopalatina e/ ou Deficiência Auditiva e o IX Encontro da Rede Nacional de Associações de Pais e Pessoas com Fissura Labiopalatina- Rede Profis. No encontro que reuniu diversas associações do país, Jozue chamava a atenção pelo interesse em participar, perguntando e dando sua opinião.“Na reunião eu vi o depoimento de algumas senhoras que tem sua associação montada, têm carros para transporte de pacientes, tem tudo e nós não temos absolutamente nada. Em 20 anos não conseguimos nada”, desabafa. Jozue considera que a falta de colaboradores e sua decisão de não se aliar a partidos políticos dificultam seu trabalho com a associação. “Eu preciso de pessoas que assumam, eu já estou com 73 anos de idade, está quase na hora de eu parar, mas eu não desanimo nunca. Eu faço com carinho e dedicação aquilo que eu me proponho a fazer”, declara o sonhador. ATENDIMENTO AOS FISSURADOS NO ACRE A Fundhacre (Fundação Hospital Estadual do Acre) atende fissurados labiopalatais por meio do Praff (Programa de Reabilitação e Assistência ao Fissurado da Face). Segundo Jozue Pereira, 97 Do outro lado do espelho com o oferecimento de assistência por esse programa, alguns pacientes perderam o direito ao TFD, já que o benefício só pode ser ativado caso a cidade não ofereça o tratamento necessário. Diante de casos como esses, Jozue encaminhou ofícios à Justiça Federal questionando a qualidade e legalidade do tratamento oferecido pelo programa em relação à continuidade dos procedimentos cirúrgicos, já que um tratamento completo requer cerca de 20 anos e alguns médicos da equipe possuíam contratos temporários ou não residiam no Acre. Em carta aberta publicada em seu blog, Jozue destaca: “Pela Fundhacre vem passando profissionais de cirurgia plástica há anos realizando apenas os primeiros procedimentos em nossos fissurados, deixando para trás um enorme contingente de pacientes com defeitos na face, na arcada dentária e na fala pelo não acompanhamento, contrariando o que determina a Organização Mundial da Saúde, a ONU e o ECA”. Como resultado Jozue diz que “foram obtidos liminares judiciais e mandados de segurança garantindo aos pacientes o prosseguimento do tratamento no Centrinho, com determinação de passagens aéreas e ajuda de custo”. De acordo com Caroline Lucena, uma das responsáveis pelo Praff, “como o tratamento da fissura é bastante complexo às vezes é necessário o TFD, mas para outras especialidades relacionadas ao tratamento da fissura. Na parte de cirurgia plástica nossos médicos são capazes de realizar todo tratamento, os pacientes normalmente conseguem fazer o tratamento sem ter que se deslocar”, afirma. O programa existe há cinco anos e faz parte do Sistema Único de Saúde. PROFIS Em Bauru, a Profis (Sociedade de Promoção Social do Fissurado Lábio-Palatal) é a associação que auxilia os pacientes de baixa renda em tratamento no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, o Centrinho. A entidade foi fundada em 1975 para prestar assistência social aos pacientes. Uma das motivações para a sua criação foi o 98 Capítulo 4 - Ciência: Associações grande número de pessoas de classes sociais baixas atendidas pelo hospital e a preocupação em garantir o acesso e a continuidade do tratamento. Trata-se de uma entidade filantrópica de direito privado, sem fins lucrativos. A entidade possui três segmentações: Profis Cursos que compreende as aulas teóricas de especialização e aperfeiçoamento em odontologia, Profis Clínica com a parte prática dos cursos e a Profis Social. A Profis se mantém por meio de contribuição voluntária dos associados, arrecadações, donativos e cursos de aperfeiçoamento e especialização na área de odontologia. A maior parte da renda da Profis Social vem dos cursos de especialização. Bazares e almoços são outras formas de arrecadar recursos financeiros para a Profis. Os bazares são realizados mensalmente com roupas, calçados e acessórios doados por lojas ou pela comunidade. No ano de 2013 a previsão de arrecadação era de três mil reais com os bazares. Já a previsão orçamentária de investimento relativa aos programas oferecidos era de 505 mil reais durante o ano. Alimentação e hospedagem são os principais serviços oferecidos pela PROFIS Social, além disso, a entidade fornece medicamentos, cestas básicas e cursos para pacientes e acompanhantes carentes. O espaço para atendimento dos pacientes compreende sala de descanso, berçário, alojamento de paciente com 80 leitos e quarto para motoristas de ambulância ou carros oficiais que trazem pacientes de outras cidades. Por dia, cerca de 200 pessoas frequentam a sala de descanso. A entidade procura fazer um trabalho diferenciado para quem precisa de uma estada mais longa. A Profis possui um quarto reservado para mães que têm filho nas UCE (Unidade de Cuidados Especiais) ou na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Centrinho. Como os filhos estão internados, elas permanecem mais tempo na entidade, ficando entre três e quatro meses. Essas crianças, geralmente, têm outras síndromes associadas à fissura 99 Do outro lado do espelho labiopalatina. Ter um espaço próprio para esses usuários auxilia na troca de experiências entre as mães, além de ajudar no estado emocional já que, além de cuidar da criança em tratamento, muitas mães ficam preocupadas com os filhos e família que permaneceram na cidade de origem. O serviço social da Profis acompanha esse tipo de permanência. A entidade busca no acolhimento aos pacientes amenizar o estresse da rotina de tratamento. São realizadas datas comemorativas em parceria com o Centrinho por meio do projeto “Humaniza Profis” e atividades recreativas. No Dia das Mães, por exemplo, sorrisos de verdadeiras guerreiras retribuem o recebimento de uma rosa. Outros projetos aproximam os pacientes da cidade de Bauru como o “Conheça Bauru”, feito em parceria com a empresa de ônibus Grande Bauru. A iniciativa envolve visitas em lugares como o Zoológico e Jardim Botânico. REDE PROFIS Com o intuito de reunir as associações de pais e pessoas com fissura labiopalatina de todo o país, foi criada a Rede Profis em 2004. A organização busca integrar, representar e defender os interesses institucionais de suas associadas. Atualmente são 30 associações, sendo 21 filiadas. Contribuições de suas associadas e doações fazem parte da receita da Rede. O valor e periodicidade da contribuição são definidos e aprovados em uma Assembléia Geral Ordinária que ocorre anualmente. A Rede também promove a troca de conhecimentos técnico-científicos por meio de debates e cursos a fim de capacitar dirigentes, voluntários e profissionais das entidades filiadas. Trata-se de uma organização civil sem fins lucrativos. A Rede Profis também articula políticas junto aos poderes públicos e entidades privadas para assegurar os direitos da pessoa portadora de deficiência. Em 2013, uma das questões debatidas no IX Encontro da Rede, realizado em Bauru, foi o projeto de lei nº161 de 2013 100 Capítulo 4 - Ciência: Associações que classifica a fissura labiopalatina como deficiência física, no Estado de São Paulo. Esse projeto tem como objetivo equiparar, para efeitos jurídicos, as pessoas com essa malformação e os deficientes físicos e mentais, ampliando os direitos dos fissurados. 101 Alysson Carvalho VIDA: O SORRIDENTE 102 Capítulo 4 - Vida: O sorridente Sentado em um dos bancos da Praça Dom Pedro II, no centro de Bauru, o rapaz exibe um largo sorriso metálico. Ele tem olhos castanhos, cabelos curtos e escuros, sobrancelhas grossas, pele clara e rosada. É alto, mede 1,80 metro. Usa calça jeans, tênis, camiseta do colégio técnico, blusão listrado em azul e preto e uma mochila. O cair da noite não tira o brilho dos seus olhos ou diminui sua empolgação. Com o jeito brincalhão de um jovem de 18 anos, ele conta uma história. Não daquelas inventadas, como a da vez em que enganou os amigos na rede social Facebook dizendo que iria ser pai. Essa é a história do seu próprio nascimento. Seu nome é Alysson Antônio Carvalho de Paula. Espírito-santense de nascimento, mineiro de coração e bauruense por destino, o jovem vive há nove anos na cidade com nome de sanduíche. Foi por conta de uma fissura que atingia lábio e palato que ele veio parar em terras do noroeste paulista. O dono do sorriso aberto e espontâneo acabara de desembarcar de um ônibus coletivo antes de se sentar no banco da praça. Ele voltava de uma longa tarde de estudos na escola técnica onde faz edificações e andava sem pressa porque, naquele dia, não teria aulas na faculdade onde estuda engenharia elétrica. Esse era um de seus primeiros dias de férias. Dividir seu tempo entre os dois cursos e o trabalho em uma construtora não é empecilho para quem, na infância, se desdobrava entre a escola, brincadeiras, consultas na fonoaudióloga e que, ainda, precisava percorrer 482 km entre sua cidade, Três Corações (MG), e Bauru, para ser atendido no Centrinho. Ao estilo zombeteiro, Alysson já “pregava peças” desde a barriga da mãe. Primeiro, deu um susto nos pais, quando, em um dos ultrassons da mãe, aos cinco ou seis meses de gestação, o médico, ao ver uma bipartição no bebê em formação, disse à família que ele nasceria com duas cabeças. A confusão logo se desfez e souberam que o menino teria fissura de lábio e palato. Tempos depois, ele teimaria em nascer antes da hora pegando os pais de surpresa quando viajavam pela cidade de Cachoeira de Itapemirim, no Espírito Santo. Era 26 de janeiro de 1995. No hospital em que o menino nasceu uma equipe informou aos pais sobre a malformação do filho e indicaram o tratamen103 Do outro lado do espelho to realizado no Centrinho. Duas semanas depois, aos 15 dias de vida, Alysson já estava em Bauru, na companhia dos pais, Jamile Conceição de Carvalho e Ricardo Carvalho de Paula, para a primeira consulta. A família foi atendida pela equipe de Casos Novos, passou pelos procedimentos médicos e recebeu instruções de como cuidar da alimentação e higienização do bebê. Mais confortados, Jamile e Ricardo partiram para a cidade de Três Corações, onde moravam. Três meses depois eles regressariam com Alysson para a cirurgia do lábio. O trajeto entre Três Corações e Bauru se tornaria, com o tempo, habitual para a família que percorria a distância entre os dois municípios a cada seis meses. Com um ano de idade, Alysson passou pela cirurgia de reconstrução do palato e, aos nove, realizou o enxerto ósseo para recomposição da gengiva. Ele passou pelo enxerto ósseo tradicional, procedimento que retira fragmentos de osso da bacia para completar a arcada. Atualmente, é utilizada uma proteína artificial, chamada de BMP, no lugar do fragmento ósseo, o que diminui o tempo de pós-operatório dos pacientes. Na época, Alysson ficou seis meses em recuperação. Primeiro, ele passou três meses se alimentando com líquidos e sopas, em seguida, dois meses comendo alimentos pastosos e, por fim, pode voltar, aos poucos, aos alimentos sólidos. Sua próxima cirurgia, que fará em 2014, é a ortognática, para o encaixe da maxila. Ele afirma não se preocupar com os procedimentos cirúrgicos e diz: “Ah, vai fazer? Então v’ambora! Se for bom eu tenho que fazer”. De tanto dividir os dias entre os estados de Minas Gerais e São Paulo, em 2004, a família Carvalho de Paula decidiu por ficar de vez em Bauru. A filha mais velha de Jamile e Ricardo, chamada Samantha, ficou em terras mineiras. A caçula da casa, Isabela, veio fazer companhia aos pais e ao irmão. O tratamento de Alysson influenciou na decisão dos pais em relação à mudança de cidade e, aqui, ele passou a frequentar as sessões de fonoaudiologia e odontologia no próprio Centrinho. Antes, o menino fazia os acompanhamentos mensais em Três Corações de acordo com orientações dos profissionais de Bauru. Durante a infância e adolescência, Alysson frequentou o grupo de teatro no Centrinho. Entre cortinas e luzes, durante 104 Capítulo 4 - Vida: O sorridente quatro anos, ele subiu aos palcos para interpretar diversos personagens e, assim, despertou o jeito brincalhão. As peças eram ensaiadas e representadas no setor de recreação, mas a trupe de Alysson entrou em cena também fora dos muros do hospital. A vivência com os profissionais do setor foi tão íntima, que a chefe da recreação, Márcia, se tornou madrinha da Isabela, irmã mais nova de Alysson. Ele guarda boas recordações da época do teatro, dos amigos que fez e diz que a recreação é um local importante para os pacientes porque os faz esquecer de que estão dentro de um hospital em tratamento. “Você não fica mais naquele clima de quem vai fazer uma cirurgia. Ali você se sente mais alegre, têm dinâmicas em grupo, é muito divertido”, afirma. Com a desinibição que os palcos lhe deram, Alysson não se intimida em falar sobre a temida fase da adolescência e sobre as primeiras paqueras. Ele afirma que nunca teve problemas para falar sobre sua fissura durante a adolescência e lembra que respondia tudo o que lhe perguntavam. Ele recorda de ter escutado algumas brincadeiras de mau gosto durante este período, mas diz que era “desencanado”, brincava também e tentava conversar e explicar aos colegas. Seguro de si mesmo ele afirma: “Eu cheguei até a pensar: Nossa, por que eu? Mas nada que me abalasse. Eu sempre fui muito positivo em relação à fissura”. Sobre os romances, ele conta que quando começou a sair com os amigos em Bauru, ficava com receio em relação às garotas, mas que com o tempo isso mudou. “Eu ia conversar, contava algumas piadas e dava tudo certo”, conta. Para o viajante sorridente que escolheu Bauru como novo lar, o Centrinho é uma segunda casa. Alysson se sentiu acolhido em um abraço pelo hospital. “Os pacientes chegam e o hospital os acolhe e abraça. Isso é muito bom. Conhecemos os médicos e enfermeiros e sabemos que eles realmente gostam de fazer o que fazem e isso é muito bonito”, diz ele. Com o mesmo amor que tem pelo seu primeiro lar, a casa onde vive com os pais, Alysson recorda com carinho de cada cantinho do hospital. Ele diz ter ficado triste quando reformaram o bloco odontológico e demoliram uma praça que existia no local para a construção de novas salas. 105 Do outro lado do espelho “Quando eu cheguei e vi aquele bloco, fiquei chateado porque eu gostava muito de brincar na antiga praça. Era como se fosse um cantinho meu”, comenta. O caminho de Alysson rumo à reabilitação ainda não chegou ao fim. Ele ainda terá que enfrentar cirurgias e pós-operatórios complicados antes de receber alta do hospital. Para um viajante experiente como ele, serão somente mais alguns embarques por cirurgias ortognática e de nariz antes de chegar ao destino final. No banco da praça onde está sentado, ele vê o dia virar noite e se apressa. Ele se encaminha para mais um de seus embarques. Este, bem mais simples e tranquilo, em um ônibus urbano que o levará para casa. 106 CIÊNCIA: RECREAÇÃO O serviço de Recreação foi criado em 1974 com o objetivo de promover atividades lúdicas e educativas para os pacientes e seus pais. O setor atende a proposta de humanização do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP (Centrinho). A Recreação compreende espaços como a brinquedoteca, sala dramática e cantinho da leitura. Os pacientes desenvolvem atividades plásticas, de expressão corporal e musical, participam de dinâmicas de grupo, brincam e jogam. Segundo a técnica de apoio educativo Viviane Gasparoto, “o trabalho da recreação é receber os pacientes do pré e pós-operatório. O Centrinho não estimula o paciente a ficar acamado. Então a maior parte do tempo, dentro das condições cirúrgicas, eles vêm para o setor”. A convivência dos pacientes no espaço da Recreação possibilita uma integração entre aqueles que já operaram e os que esperam a cirurgia. Essa troca de experiências tranquiliza pais e crianças. Viviane explica que o objetivo é atender o paciente de forma individualizada e amenizar o estresse da internação. “Os pacientes passam por todo processo de internação. A criança fica irritada, chorando, mas quando ela entra aqui na brinquedoteca, já muda. Vê o colorido, esse tanto de brinquedo. É instantânea a mudança de comportamento da criança”, descreve. Pacientes de todas as idades e também pais e mães frequentam o setor. “Geralmente os pais estão muito mais tensos que os bebês. Os bebês choram, porque eles estão de jejum e não entendem porque estão sem comer. Uma estratégia que usamos é pedir para a mãe deixar que peguemos o bebê no colo, porque acreditamos que a tensão dos pais passa para a criança”, explica. O espaço da Recreação que compreende a chamada sala dramática possui um palco de teatro. “Trabalhamos expressão corporal através de brincadeiras como mímica, teatro relâmpago, 107 Do outro lado do espelho show brega, temos fantasias para os adultos também”, pontua Viviane. Na programação do setor, podemos destacar também as atividades plásticas. Viviane conta que o trabalho que os pacientes mais gostam é o de pirografar na madeira. “Eu brinco com eles que madeira é um material que não acaba nunca, é uma lembrança eterna! Então eles pirografam uma mensagem, um desenho, escrevem “Centrinho-Bauru” com a data. Vêm mães aqui que têm guardada a madeira que pirografou há 10, 15 anos atrás, é uma recordação”, detalha Viviane. Apesar do clima descontraído do espaço de Recreação, existe a preocupação em respeitar a situação de cada paciente ou familiar. “Quando a criança entra no centro cirúrgico é um momento mais delicado, que exige uma maior privacidade. A sala de espera cirúrgica acolhe quem está acompanhando esse procedimento. São desenvolvidas atividades de artesanatos, jogos e plástica”, explica Viviane. A recreação envolve o lado educativo também. São trabalhadas datas comemorativas que contribuem para que as crianças e os adolescentes em fase escolar não percam essas datas, quando estão em tratamento. Existem também projetos da Recreação que não são feitos nas salas do setor, mas em outros ambientes como no ambulatório, em quartos de internação, até na Unidade de Cuidados Especiais e de Tratamento Intensivo, sendo tomados os devidos cuidados com a higienização dos brinquedos. As atividades externas envolvem a exibição de filmes e a contação de histórias, por exemplo. 108 Capítulo 5 Foto: arquivo HRAC/USP Pacientes aproveitam o momento pré e pós - cirúrgico em atividades de recreação Centrinho na década de 2000 2000 – Recebe o prêmio “Qualidade Hospitalar 2000”, concedido pela Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde, resultante de pesquisa de satisfação dos usuários feita no ano. 2002 - Cerca de 200 pessoas passam diariamente por atendimento ambulatorial 111 Do outro lado do espelho 2002 - Centrinho recebe doação de livros pelo Programa Biblioteca Viva. A iniciativa faz parte do projeto Biblioteca Viva da Abrinq. As obras foram utilizadas pelo setor da Recreação com pacientes e funcionários. 2004 - Centrinho atinge 60 mil pacientes cadastrados desde sua fundação. 2005 - “Prédião” ainda não funciona por falta de verbas. Faltam estruturas da parte de construção civil, elétrica e hidráulica. As novas instalações auxiliariam no atendimento especializado em casos complexos de síndromes e deformidades craniofaciais. 2005 - Pacientes não-fissurados passam a ter acesso a serviços médico-hospitalares e ambulatoriais oferecidos pelo Centrinho, por meio de parceria com o Departamento Regional de Saúde de Bauru e com a Secretaria Municipal de Saúde de Bauru. 2007 - Centrinho recebe o pesquisador Michael Carstens que realiza a primeira cirurgia de enxerto com utilização de proteína osteomorfogênica (BMP-Bone Morphogenetic Protein). A equipe do Centrinho acompanhou o procedimento que é uma alternativa para a cirurgia de enxerto ósseo com tecido da região do quadril. A proteína é sintetizada em laboratório e induz células-tronco do paciente a se transformarem em células do tecido ósseo. 2008 - Centrinho colabora com projeto científico internacional e recebe cirurgiões de cinco centros europeus. O estudo inclui o uso de uma técnica do cirurgião-plástico da área das anomalias craniofaciais, Brian Sommerland, por todas essas instituições participantes. O projeto foi aprovado pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos 112 2008 - Uma das principais parcerias do hospital é a Funcraf, instituição que apoia o Centrinho desde sua criação em 1985. A Fundação atuou na contratação de funcionários sendo que essa ação também era desenvolvida pela USP. Em 2008 foi instaurado pelo Ministério Público do Trabalho um Inquérito Civil para investigar irregularidades nesse sistema de contratação de recursos humanos. Foi denunciada inadequação na contratação que não era feita por concurso público da USP, o que é irregular, pois os funcionários trabalhavam em um hospital ligado à Universidade de São Paulo, instituição pública de ensino. A decisão se baseia no artigo 37, inciso II, da Constituição Federal: “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. 113 Ana Flora e Helenice Gera VIDA: UMA PÉTALA GUARDADA NO LIVRO 114 Capítulo 5 - Vida: Uma pétala guardada no livro No ano de 2000, teóricos do apocalipse falavam do Juízo Final. Não passou de mais uma previsão errada do fim do mundo. Era também o ano do Bug do Milênio, que se converteu num mito da tecnologia. A virada de 1999 para 2000 causaria uma pane mundial nos sistemas de computadores, afetando bancos, aeroportos e empresas. O motivo do caos seria um erro de informática nos computadores mais antigos, que interpretavam as datas de acordo com os dois últimos dígitos e leriam o ano de 2000 como 1900. No final, não passou de um susto, nada de grave aconteceu. É nesse ano que nasce Ana Flora Porto Gera, apreensão e surpresas também fizeram parte do dia 23 de janeiro de 2000. Longe dos temores em escala global da informática ou do apocalipse, foi o mundo particular de uma mãe, ansiosa para pegar sua filhinha no colo, que estremeceu. O alívio marca o desfecho feliz da história da menina de 13 anos. Hoje, Ana Flora e sua família também podem dizer: não passou de um susto, nada de grave aconteceu. Quando Ana Flora nasceu, a equipe médica suspeitava que ela tivesse síndrome de Pierre Robin, pois possuía o queixo projetado para trás e a fissura de palato, características dessa sequência de anomalias. Sua mãe, Helenice Aparecida Porto Gera, não conhecia a síndrome e a dúvida dos médicos virou o desespero da mãe. Ana Flora ficou em observação e foi internada no Hospital Regional de Franca (SP) durante oito dias por não conseguir mamar. “Eu ia três vezes ao dia tirar leite enquanto ela ficou internada, mas não me deixavam vê-la direito. Era uma coisa bem desumana, fiquei muito brava”, conta Helenice que depois conseguiu a permissão de passar mais tempo com a filha. No hospital, colocaram uma cânula em Ana Flora para que sua língua não prejudicasse a respiração, que foi retirada 24 horas depois. A cânula oral é um tubo introduzido na boca que evita uma possível falta de oxigenação e facilita a respiração. Com oito dias de vida, Ana Flora trouxe uma inesperada viagem para seus pais. O hospital de Franca recomendou o início de um tratamento em Bauru, no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, o Centrinho. Num carro da UTI, a pequena criança viajava com 115 Do outro lado do espelho uma sonda para alimentação enquanto seus pais seguiam a ambulância de carro. Já na recepção, a equipe médica do Centrinho questionou por que o bebê estava com sonda já que tinha um aspecto saudável e informou que, provavelmente, ela não tinha a síndrome de Pierre Robin. Nos primeiros dias do tratamento, uma fonoaudióloga trouxe uma mamadeira com o bico mole e mais longo, comum de modelos antigos. Ana Flora mamou na hora sem dificuldades. A possibilidade de síndrome foi descartada, Ana Flora tinha apenas a abertura no céu da boca, a fissura de palato. As indagações ocupavam a cabeça de Helenice. Teria sido a batida de carro que aconteceu quando ela estava grávida de dois meses? Um susto, mas sem consequências graves já que ela estava com o cinto de segurança. Porém, o bebê pode ter colocado a língua no céu da boca, prejudicando o fechamento do palato, uma possibilidade dada pelos médicos. “Quando a gente é mãe fica pensando: por que aconteceu, por que é que nasce assim? Tem que aceitar o problema e tentar resolver. Eu pensava: ‘tenho que fazer minha parte’”. Uma nova jornada se iniciava, mas Helenice se sentia mais segura com o tratamento acolhedor que recebeu no Centrinho. “Ela ficou três dias em Bauru em observação na enfermaria. Eu podia ficar com ela, dar banho e cuidar. Eu vi muita cirurgia, muita criança sofrendo em situações mais sérias, aí percebi que ela não tinha era nada”, relata Helenice. Em seus pensamentos ainda estava a lembrança de quando ela, chorando, observava Ana Flora no hospital de Franca. A mãe e o bebê que poucos dias antes formavam quase que um só, separados por um vidro gelado. Na ocasião, um médico passou por ela de roupa e alma esterilizada e disse que se o bebê estivesse bem ele estaria em casa com ela, como se a situação dolorosa fosse uma obviedade áspera. “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, quem traz no corpo a marca Maria, Maria...” Milton Nascimento descreve as batalhas na vida de uma mulher na letra da música “Maria Maria”. Helenice pôde vivenciar esse espírito de luta durante os primeiros dias após o nascimento de Ana Flora. Longe de casa, os incômodos do parto ainda sugavam a energia 116 Capítulo 5 - Vida: Uma pétala guardada no livro do corpo da mãe. À noite, só as paredes estranhas do quarto que se hospedou lhe faziam companhia, o seu marido que a havia acompanhado a Bauru na viagem retornou para Franca para cuidar de Raíssa, a outra filha do casal. Helenice tinha que ir a pé ao hospital, que ficava próximo do local onde ela se hospedou. Foram três dias em uma cidade que ela não conhecia, mas o esforço estava valendo a pena e logo ela poderia voltar para casa. Nem a chuva que acompanhava Helenice nas suas idas ao hospital levava embora a esperança da volta. Nessa temporada em Bauru, Helenice descobriu situações opostas a dela: “Quando eu estava no Centrinho do lado do berço dela, tinha uma senhora tão pobre que quando falaram para ela ir embora, ela ficou triste e dizia: ‘aqui tem comida, agora vou ter que ir trabalhar’. Enquanto tudo que eu queria era ir embora. Eu fiquei bem chocada com a situação”. Helenice voltou para Bauru com a filha um mês depois para consulta. Ana Flora estava bem de saúde e deveria se preparar para fazer o fechamento do palato com um ano. A menina descobria o mundo, interagia, subia em tudo, só não falava muito. O único problema era o costume de chupar o dedo que atrasou em seis meses a operação. Depois da cirurgia, Ana Flora ficou com os braçinhos amarrados em talas para evitar que colocasse a mão na boca. Ela se comportou bem até que tirou as talas sozinha quando o prazo de recuperação estava perto do final, como se entendesse o que estava acontecendo com ela. Só era difícil resistir às tentações de não poder comer o que a dieta do pós-operatório não permitia. Ainda bem que a irmã Raíssa colaborava, nada de comer “alimentos proibidos” perto da pequena que seguia uma dieta líquida. Tendo escolhido a carreira de professora, Helenice se acostumou a ensinar, mas teve que aprender muita coisa para cuidar de Ana Flora no pós-operatório. Ela fazia questão de seguir de forma rigorosa as orientações da nutricionista, a dieta exigia alimentação líquida durante 30 dias. Outra orientação do pós-operatório era observar a região operada na boca da criança para prevenir infecções. Por medo, Helenice teve dificuldade para fazer isso, então levava a filha ao médico em Franca. Mesmo que tivesse que 117 Do outro lado do espelho fazer isso todos os dias da recuperação, não media esforços para que não acontecesse nenhum problema. A cirurgia que Ana Flora realizou fazia parte do Projeto Flórida, que é uma parceria de pesquisas entre o Centrinho e a Universidade da Flórida nos Estados Unidos. A mãe conta que: “antes a cirurgia era feita com enxerto e havia uma chance grande de ter que fazer uma segunda cirurgia porque a voz ficava fanhosa. Os cirurgiões dos EUA estavam estudando uma forma de fazer a cirurgia com o alongamento do palato. Essa cirurgia era mais agressiva, dolorida e inchava mais, mas valia a pena porque diminuía muito a chance de uma segunda cirurgia por causa da voz”. Helenice assinou um termo concordando com a nova técnica cirúrgica, que foi realizada com sucesso. Quando Ana Flora recebeu alta do Centrinho, após concluir o processo da cirurgia de palato, continuou o tratamento com dentista e fonoaudióloga em Franca. Ela nunca teve problemas de voz fanhosa, uma possível consequência de quem possui fissura de palato. Ana Flora sente-se aliviada por terminar o tratamento de fonoaudiologia que fez até os 12 anos. A garota não se lembra de quase nada da época do tratamento, mas sua história está registrada na memória de sua mãe, que consegue reconstruir com as areias do passado essas grandes lembranças como se tudo tivesse acabado de acontecer. Ana Flora, que gosta de ler histórias fantásticas, pode até escrever seu próprio livro um dia, aventuras não faltam. 118 CIÊNCIA: PROJETO FLÓRIDA O projeto Flórida é um convênio de cooperação internacional entre o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo e o Centro Craniofacial da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. A parceria que começou em 1996 envolve a realização de projetos de pesquisa e o intercâmbio de profissionais e alunos. O projeto analisa as técnicas cirúrgicas para os pacientes com fissura labiopalatina. O objetivo é comparar o crescimento craniofacial, a fala e a função velofaríngea (relativa ao palato mole e paredes da faringe) em crianças com fissura labiopalatina, após as primeiras cirurgias de lábio e palato. Para essa comparação, aplicaram-se técnicas distintas para reparo do lábio e do palato. Em relação às cirurgias de palato, foram analisadas a técnica de “Furlow” e a técnica de “Von Langenbeck” em cerca de 500 pacientes. Os dois procedimentos são aplicados no fechamento do céu da boca e no reposicionamento da musculatura para que o paciente não tenha problemas de fala. A técnica de “Furlow” alonga em maior extensão o palato do que a técnica tradicional de “Von Langenbeck”, já usada no Centrinho. A técnica “Furlow” foi desenvolvida pelo cirurgião plástico Leonard Furlow da Universidade da Flórida. Na reparação do lábio as técnicas observadas foram a de “Spina” e “Millard”, a primeira para fissuras bilaterais e a segunda para as unilaterais. Também foram realizadas avaliações em que as cirurgias eram feitas em pacientes com 9 a 12 meses de idade em comparação a outro grupo que realizava o procedimento na faixa etária de 15 a 18 meses. Em 2012, uma nova etapa do Projeto Flórida priorizou o estudo dos efeitos das cirurgias de palato na audição de pacientes com anomalias craniofaciais, abordando também os distúrbios da fala e o crescimento facial. 119 Do outro lado do espelho Atualmente o Projeto Flórida se encontra em fase conclusiva, uma das modificações resultante desse programa foi a antecipação da idade para cirurgia primária de palato de 18 para 12 meses. Também foi constatado que os pacientes operados pela técnica de “Furlow” tiveram melhor resultados de fala que os operados pela técnica de “Von Langenbeck”. Outro avanço foi a padronização de protocolos para documentação clínica para todas as áreas de atendimento aos pacientes com fissura labiopalatina. 120 Ana Laura Apolinário VIDA: A SAGA DE DUAS HEROÍNAS 121 Do outro lado do espelho A jornada do herói consiste em etapas presentes em todas as narrativas. Esse conceito foi desenvolvido no livro “O Herói de Mil Faces”, de Joseph Campbell, no século XX. Em 1998, o roteirista Christopher Vogler publicou o livro “A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores”, em que os conceitos de Campbell foram organizados em 12 estágios. A jornada pode ser identificada em mitos, fábulas e contos de fadas. Até numa história real esse processo pode ser encontrado. No livro Vogler afirma: “cheguei à convicção de que a Jornada do Herói é nada menos do que um compêndio para a vida, um abrangente manual de instrução na arte de sermos humanos”. A vida que Samara e sua filha Ana Laura têm levado é uma prova disso. A jornada na divisão feita pelo roteirista se inicia com o herói em seu cotidiano: Samara de Paula Lemes Apolinário tinha 23 anos e ainda era uma jovem imatura que morava em Pindamonhangaba (SP). O segundo passo é o chamado à aventura: em 2005, após o nascimento da sua filha Ana Laura Lemes Apolinário, grandes desafios surgem na vida dessas heroínas. Na jornada do herói existem 12 passos. Ana Laura, hoje com oito anos, também já superou 12 obstáculos, pois esse é o número de cirurgias que ela fez no tratamento da fissura de lábio e palato que possui. A história começa na Santa Casa de Pindamonhangaba quando uma menininha nasce no dia 6 de outubro. A mãe de primeira viagem não estranhou de imediato a demora para que a criança fosse levada para o quarto, mas as horas foram passando e ela começou a se preocupar. Quatro horas após o parto, uma psicóloga e uma fonoaudióloga entraram no quarto de Samara levando um panfleto com uma menina na capa, que Samara achou muito bonita: “mãe, sua filha nasceu assim”, disseram. Era um panfleto sobre fissura labiopalatina que mostrava uma menina com a cirurgia feita e atrás do papel havia uma foto de como a pessoa tinha nascido. “Mas a fissura da menina era só de um lado, não era igual a da Ana Laura que era bilateral e bem maior. Quando trouxeram minha filha era bem pior do que a menina da foto, não 122 Capítulo 5 - Vida: A saga de duas heroínas era um cortinho, pegou muito o nariz dela e a gengiva”, descreve Samara que desconhecia o que era fissura. A partir desse momento, Samara não pôde mais voltar para casa. Como num momento triste de um conto de fadas não havia mais migalhas pelo caminho, era preciso seguir na inesperada trilha que a vida lhe oferecia. Durante um mês Ana Laura ficou na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) da Santa Casa onde nasceu e depois passou 60 dias na UCE (Unidade de Cuidados Especiais) do Centrinho. A internação era necessária, porque Ana Laura tinha uma grande dificuldade de respirar devido a uma obstrução grave na garganta, a língua dela também não ficava na posição correta, tampando a passagem de ar. Ana Laura não conseguia se amamentar. O terceiro passo da teoria da jornada do herói é a recusa ao chamado. A hesitação veio da família de Samara, já que ela sempre aceitou o fato da filha ter nascido com fissura labiopalatina. Quando Ana Laura nasceu, seu pai Roosevelt Alves tinha acabado de passar no concurso do Corpo de Bombeiros. Ele ficou seis meses em regime de internato e nem pôde acompanhar Samara no dia do parto. “Foi o pior período da minha vida porque eu passei tudo sozinha. Ele viu que eu sou uma mulher forte, que eu passei por cima de tudo sozinha, esses seis meses viajando sozinha para Bauru, então ele se acomodou”, conta Samara. O pai de Ana Laura veio a Bauru uma vez para acompanhá-las em uma consulta, mas desde que a garota nasceu ele não superou o fato dela ter a malformação, acontecimento que até hoje o abala. Ele apoia financeiramente o tratamento da filha e também se preocupa com a saúde dela, mas não participa das viagens para Bauru. “Minha mãe e meu pai não iam em casa me visitar quando ela operava, eu não tive apoio de ninguém pra vir para Bauru. Todas as crianças que vão operar eu vejo que vai a família inteira. Eu com a Ana Laura sempre foi eu e ela”, pontua. Diante dos casos mais graves de outras crianças que frequentam o Centrinho, Samara 123 Do outro lado do espelho considera Ana Laura uma menina saudável, inteligente e forte. “Ela é nossa alegria”, comenta. Apesar das dificuldades do apoio familiar Samara conta que teve a ajuda de muitos amigos. Dentre eles a sobrinha de seu marido, Cássia, que na época com 12 anos, revezava com Samara nos cuidados com a sonda alimentar de Ana Laura. Profissionais do Centrinho também se tornaram grandes amigos de Samara. Na trilha da reabilitação, ao lado dos passos dela e de sua filha estão também os de médicos, psicólogos, enfermeiras, cozinheiras e funcionários da limpeza. “Meus amigos de Bauru brigam para eu ficar na casa deles, todo mundo gosta da Ana Laura”, comenta. No emprego, Samara também encontrou apoio, ela trabalha na Câmara dos Vereadores de sua cidade e não tem dificuldades para faltar quando a filha é atendida no Centrinho. Com pouco mais de um mês de vida a menina dormia no berço da UCE, no dedinho da mão um aparelho media a saturação de oxigênio absorvido por ela. O aparelho da Ana Laura marcava uma saturação de oxigênio de 60% enquanto o normal é de 95%, a menina não conseguia ficar sem máscara de oxigênio. Chega então na sala uma junta médica com cinco profissionais que vieram falar com sua mãe. Samara foi informada que sua filha precisaria passar por uma traqueostomia. O procedimento cirúrgico envolve uma abertura na região da traquéia e a implantação de uma cânula (tubo) para melhorar a respiração. Diante dessa notícia, a jovem mãe vislumbrou em pensamentos um futuro difícil. Teria que largar o emprego, teria que velar o sono da menina durante todas as noites para fazer a manutenção da cânula e se, por um pequeno descuido, a passagem de ar entupisse... o risco da morte sufocava seu coração. “Não vou deixar ela fazer a traqueostomia, ela vai melhorar”, foi o que Samara afirmou. A reação foi severa: “o Dr. Hilton que é o pediatra mais antigo lá do hospital, disse que ia chamar o conselho tutelar, que eu iria até presa se precisasse, mas que ela tinha que fazer”, conta. Revoltada e nervosa, Samara começou então a chorar, nesse momento dois religiosos entraram 124 Capítulo 5 - Vida: A saga de duas heroínas no quarto. A mãe de Samara havia pedido na igreja para que eles fossem orar pela Ana Laura, Samara então aproveitou para pedir que eles ungissem a menina. Do lado do berço dela, os religiosos oraram e ungiram o bebê. Terminado o tempo de permanência de acompanhante, Samara foi para a Profis (entidade que presta assistência social aos pacientes do Centrinho). Na mitologia grega e romana existem deusas que tecem e controlam o destino dos homens. As Moiras ou Parcas são “as fiandeiras do destino” e controlam a vida de todos no tear ou Roda da Fortuna. O destino pode parecer incontestável, mas Samara tentou, por meio da fé, desmanchar as tramas do futuro que esperava Ana Laura. Ela sabia que no dia seguinte a costura estaria completa: a cirurgia seria marcada. Então a jovem mãe passou a noite inteira ajoelhada rezando, em cada oração um fio era puxado. Chegou a hora de Samara passar pelo quarto estágio da jornada do herói, o encontro com o mentor ou ajuda sobrenatural. “Era um milagre o que tinha acontecido com a Ana Laura”, essas foram as palavras do médico quando Samara chegou no outro dia na UCE. A saturação de oxigênio do aparelho de Ana Laura marcava 100%. O nível permaneceu normal durante semanas e a língua do bebê passou a ficar na posição correta. Os médicos se desculparam por terem ameaçado chamar a polícia, caso Samara tentasse impedir a traqueostomia. “O Dr. Hilton perguntou qual o santo que era o meu, porque era mesmo um milagre. Ela ainda ficou um tempo internada porque eles não acreditavam no que tinha acontecido”, relata Samara. Com essa nova fase completada, mãe e filha transpuseram o primeiro limiar, o quinto estágio, mas novas provações as aguardavam. Com três meses Ana Laura fez a cirurgia de um dos lados do lábio, não foi recomendado que ela fizesse os dois lados de uma vez. Junto com essa cirurgia ela operou três hérnias. “Ela veio para casa que nem um robozinho, porque ela estava toda enfaixada, a barriga, o rosto tudo cheio de ponto”, recorda a mãe. Três meses depois dessa primeira cirurgia ela fechou o outro 125 Do outro lado do espelho lado do lábio, o que mudou bastante a aparência da menina. A cirurgia de palato também feita aos seis meses de idade exigiu a paciência de quem monta um quebra-cabeça complicado. “O céu da boca dela não fechava, tinha que fazer de pedacinho em pedacinho. O médico queria até usar uma prótese de palato, mas eu tinha fé que ia fechar. Ela opera muito, fez sete só para o céu da boca que hoje é perfeito. Daqui a três meses ela vai fazer a cirurgia de levantamento de columela (parte do nariz próximo ao lábio). Vai alongar o narizinho. Eu estou super ansiosa, porque é estético, né!?”, ressalta Samara. A mãe conta que o formato do nariz de Ana Laura é uma das características que as pessoas mais reparam, as crianças na escola frequentemente questionam por que o nariz dela é abaixado. Ana Laura também possui deficiência auditiva, a associação entre perda auditiva e fissuras labiopalatina já foi abordada por muitos estudos e é consenso que a perda ocorre com maior frequência nos indivíduos com fissuras labiopalatinas em comparação a não-fissurados. Ana Laura nasceu sem parte da orelha direita que tem perda total da audição. No outro ouvido ela tem perda de moderada à severa e usa um aparelho auditivo. A dificuldade auditiva atrasou a fala da menina, que só começou a conversar com quatro anos. O comprometimento da fala demorou a ser avaliado. “Foi um pouco erro do hospital porque desde quando ela nasceu eu pedia para passar no CPA ou Cedalvi (centros de saúde auditiva). E foram me enrolando até que com quatro anos ela não falava nada, então eu disse que queria fazer exames de qualquer jeito”, ressalta Samara. Já suspeitaram que Ana Laura tivesse alguma síndrome, pois além da fissura labiopalatina e dos problemas decorrentes, a menina é muito agitada e tem características físicas que podem ser ligadas a alguma síndrome como os olhos puxados. “Ana Laura é uma incógnita no hospital”, afirma Samara, pois a seção de Genética do Centrinho não diagnosticou nenhuma síndrome até hoje. Foram até enviados exames de Ana Laura para os Estados Unidos, mas não foi constatada nenhuma alteração. 126 Capítulo 5 - Vida: A saga de duas heroínas Na escola, Ana Laura se dá bem com todo mundo, é muito comunicativa, mesmo tendo problemas de fala. Com oito anos de idade, a menina ainda está na pré-escola. Ela entrou na escola aos seis anos e não aprendeu muito no primeiro ano. Ana Laura começou a avançar mais quando mudou para a escola em que está atualmente. “Ela sempre foi muito hiperativa, o neuropediatra dela mandou dar aqueles remédios como Ritalina. Eu não dei. Se Deus enviou ela assim agitada, eu vou cuidar dela assim, porque com esses remédios a criança fica grogue, sonolenta, eu vou aguentar ela assim”, afirma Samara. Na saga, existem momentos que o herói passa por grandes provações ou crises que podem ser percebidas do sexto ao oitavo estágio da jornada. “Chegou uma hora que eu não queria fazer mais nada, eu tive depressão, já pensei em largar a Ana Laura, largar tudo”, desabafa. As dificuldades do tratamento, as recorrentes viagens para Bauru com seis horas de duração e a falta de apoio já enfraqueceram a guerreira. Samara se preocupa como Ana Laura lidará com a fissura no futuro. “O preconceito vem até da gente mesmo, que fica pensando como vai ser quando crescer. Ela olha para mim e fala da orelha: ‘mãe é pequenininha, por que não cresceu?’. Eu sempre penso isso dela mocinha e fico abatida, ela é muito dependente de mim. Eu tenho medo, às vezes, eu choro olhando para ela dormindo e penso como vai ser quando ela for moça, como ela vai aceitar”, detalha. Na nona etapa o herói ganha uma recompensa: as conquistas das heroínas foram muitas. Ana Laura já passou por diversas fases do tratamento com sucesso nas cirurgias, elas fizeram vários amigos e Samara se tornou mais madura e confiante. “O Centrinho é uma mãe que me apoiou muito. A felicidade que eu tenho hoje com Ana Laura eu devo aos profissionais que cuidaram dela. Ela não é um paciente comum, ela tem quatro prontuários no hospital, enquanto um paciente adulto tem dois”, pontua Samara. A cada desafio vivido no tratamento elas se sentem mais fortes para voltar para casa, renascendo com 127 Do outro lado do espelho esperança a cada provação. As heroínas cumprem as etapas “O caminho de volta” e “Ressurreição”. “Olha mãe, como eu sou linda!”, declara Ana Laura diante do espelho. Samara confirma sem hesitação. Vestida de rosa da cabeça aos pés, antes de tirar foto passa batom e faz poses. Ana Laura é muito vaidosa e sabe que toda menina é uma princesa. Mas no conto de fadas da sua vida, Ana Laura não é uma donzela na torre à espera de um príncipe que a resgate. É ela mesma que desbrava os perigos para poder ser feliz, derrotando bruxas e monstros a cada cirurgia ou olhar de preconceito. O último estágio da jornada do herói é o retorno para o mundo comum com a recompensa ou elixir que beneficia as outras pessoas. E o que a princesa Ana Laura tem para oferecer é o exemplo de sua força para lutar pela reabilitação, construindo com alegria o seu próprio castelo. 128 CIÊNCIA: ASSISTÊNCIA SOCIAL O setor de Serviço Social do HRAC/USP surgiu em 1973 pelas mãos da então estagiária Maria Inês Gândara Graciano, hoje diretora do setor no hospital. Esta área tem a função de facilitar o acesso dos pacientes ao tratamento e garantir sua continuidade. “De nada adiantaria essa estrutura, se os pacientes não tivessem como chegar até nós”, afirma Maria Inês. “Nosso foco principal é avaliar se os pacientes apresentam alguma dificuldade para dar seguimento ao tratamento, para aí podermos intervir. Avaliamos cada caso para entender por que um paciente interrompeu o tratamento e trabalhamos para trazê-lo de volta. Esse é o principal desafio do Serviço Social”. A atuação da assistência social no hospital é dividida em três áreas: ambulatório, internação e projetos comunitários. Para realizar essas tarefas, o setor conta com 13 profissionais. No ambulatório, as assistentes sociais participam do acolhimento aos casos novos e dão orientações aos pais e familiares sobre o processo de reabilitação. Ainda na primeira consulta, o paciente passa por um estudo social que visa identificar suas necessidades e possibilidades em relação ao tratamento. “Temos o Plantão Social onde acompanhamos todos os pacientes. Nosso foco é entender as questões sociais que podem interferir no tratamento e no processo de reabilitação de cada um”, afirma a diretora do Serviço Social. Na ala de internação, os profissionais do setor realizam reuniões diárias com os pacientes que serão internados, tanto para acolhimento quanto para orientação sobre a rotina no ambiente hospitalar. Ainda são feitas entrevistas individuais com os pacientes antes e depois das cirurgias. Na internação, é realizado um trabalho mais intensivo com as mães de bebês com fissura ou sindrômicos que permanecem internados por longo período na Unidade de Cuidados Especiais ou na Unidade de Terapia Intensiva. O Serviço Social também realiza o acompanhamento das altas. 129 Do outro lado do espelho Os profissionais de assistência social do Centrinho atuam também em projetos comunitários que envolvem programas que incentivam os pais de pacientes a se tornarem representantes dos usuários do Centrinho em seu município de origem e projetos que estimulam a oferta de carona entre os pacientes. Entre os projetos comunitários estão: Agentes multiplicadores: pretende capacitar a ação de pais-coordenadores (representantes dos usuários) e de profissionais ou leigos (representantes da comunidade), para o processo participativo e organizativo em auxílio à reabilitação, como na criação de associações de apoio ao fissurado labiopalatal. Carona amiga: consiste no agendamento dos pacientes agrupados por municípios. As prefeituras fazem um cadastro dos pacientes moradores da cidade e cedem as conduções municipais para fins de tratamento no Centrinho. A meta é propiciar a união das pessoas e a racionalização do transporte municipal, de forma a facilitar o processo de reabilitação e estimular a organização popular. Casos Novos: acolhe e recebe os pacientes que dão início ao tratamento no Centrinho. Mobilização de recursos institucionais e comunitários: envolve diferentes parcerias. A parceria com os recursos institucionais engloba as Unidades de Alojamento de pacientes, cabendo ao Serviço Social prestar assistência em extensão aos serviços de plantão in loco, aos casos de ambulatório e internação. Mobilização do Tratamento Fora do Domicílio (TFD) do Sistema Único de Saúde (SUS): objetiva assegurar o benefício TFD, que permite aos usuários do SUS o acesso a atendimentos não disponíveis em seus municípios de origem. O Programa envolve 130 Capítulo 5 - Ciência: Assistência Social o fornecimento de passagens de ida e de volta e ajuda de custo ao paciente do Centrinho e a seu acompanhante. Parceria com prefeituras municipais: propõe intercâmbio com as prefeituras por meio de assessorias, cursos, estágios e eventos científicos. Parceria com promotorias públicas: possibilita a continuidade do processo de reabilitação dos pacientes atendidos no Centrinho, prevenindo casos de abandono de tratamento ou intervindo nos mesmos, assegurando-lhes direitos de cidadania. 131 Capítulo 6 Foto: arquivo HRAC/USP Tecnologia e pesquisa possibilitam avanços no tratamento Centrinho na década de 2010 2011 – Após acordo entre USP e Ministério Público em 2011, foi decido que a universidade abriria concursos públicos para admitir funcionários e, que aqueles contratados pela Funcraf, teriam que deixar o Centrinho gradativamente. 2012 - O Hospital conta com 244 alunos matriculados nos cursos de pós- graduação e especialização e titulou até então 964 especialistas, mestres e doutores no país e no exterior. 135 Do outro lado do espelho 2013 – Funcionários contratados pela Funcraf começam a ser dispensados. Atualmente cerca de 20 funcionários da Funcraf permanecem no Centrinho dos 287 inicialmente vinculados. 2013- Drª. Regina Célia Bortoleto Amantini assume a superintendência do hospital, cargo ocupado pelo Dr. José Alberto de Souza Freitas, conhecido como tio Gastão, da fundação do Centrinho até sua aposentadoria em maio de 2012. 2013 - Até agosto de 2013, 90.106 pacientes estavam nos registros de matrícula do Hospital. Do total de matriculados, cerca de 53 mil apresentam anomalias craniofaciais e 35 mil são pacientes da área de saúde auditiva 2013 - O Centrinho completa 46 anos de atuação e é o hospital de referência para o tratamento de fissuras labiopalatinas no Brasil e na América Latina. 136 Cristiane e Miguel Valle VIDA: O MERGULHO 137 Do outro lado do espelho No século XX, Bauru foi sede do projeto da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, inaugurada em 1906. Alguns anos depois a cidade receberia duas ferrovias: Sorocabana e Paulista, tornando-se um importante entroncamento ferroviário. Se a vida fosse uma viagem de trem, firme em seus trilhos e no seu caminho predeterminado, os dias fluiriam consistentes através dos tempos. Quando Cristiane de Azevedo Rino Valle decidiu engravidar pela segunda vez, preparou corpo e espírito para a chegada do bebê. Pastora, seguiu as orientação da bíblia: “ungi minha barriga, fiz jejum e orei”. Ficou grávida no dia que programou na “tabelinha”. Era seu dia fértil e tudo estava acontecendo como planejado. Até que um mar denso se formou sob a vida de Cristiane. Na sua história, tudo sempre tinha sido programado. Mas aquele acontecimento não estava em seus planos. Levava uma vida saudável, livre de vícios, não fez raio-X durante a gestação e tomou ácido fólico todos os dias. Seguiu todos os cuidados como na sua primeira gestação. Como era difícil entender por que isso estava acontecendo com ela: nas linhas harmônicas de sua vida, um desvio. O pequenino lábio aberto e o nariz achatado: a imagem no ultrassom de quatro dimensões confirmava que seu filho nasceria com fissura de lábio e palato. Não conseguia nem colocar a mão na barriga. “Eu não posso sentir essa rejeição, meu Deus!”, murmurava para si mesma após o exame. Depois dessa notícia iniciou-se uma investigação que envolveu desde os médicos, que buscaram se informar melhor sobre a fissura labiopalatina, até a família e os amigos. Deformação, problema, defeito. Essas palavras terríveis povoavam seus pensamentos. De tanto pensar em tudo que podia acontecer, ela já não sabia em que pensar. As infinitas respostas das pesquisas na internet só trouxeram mais apreensão. Quando o telefone tocava era sempre mais alguém com uma teoria de como seria a criança fissurada. Não faltavam palpites para construir a imagem de uma aberração. “Eu pensava como eu ia cuidar, como seria minha vida. Se ele ia 138 Capítulo 6 - Vida: O mergulho ser feio... mexeu muito com minha vaidade. Quem quer ter filho feio? Ninguém!”. Esses eram os pensamentos de Cristiane no início da gravidez de Miguel Rino Valle. “Meu Deus que coisa horrível, obrigada por não ser comigo”, era o que pensava antes quando via os pacientes na entrada do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, o Centrinho. Cristiane não se sentia culpada, pois havia feito tudo certo na gestação, por isso queria saber o motivo, devia haver um porquê. Diante da ausência de outros fatores, os médicos que acompanharam o caso de Cristiane concluíram que o motivo da fissura era o risco populacional geral. Os estudos sobre a malformação propõem que a fissura labiopalatina é resultante de fatores ambientais e genéticos, não há uma causa específica. A obstetra havia indicado que Cristiane visitasse o Centrinho e ali estava ela, grávida de seis meses. “Antes era com os outros, agora é comigo”, pensava. Cristiane participaria do Programa de Acolhimento a Gestantes. Foi assim que antes mesmo de Miguel nascer, ela foi atendida pelo Centrinho. Os desafios dessa nova jornada já começaram na recepção do hospital, no primeiro dia do Programa. Uma criança com um caso complicado de fissura estava bem ao lado dela e acenou. Cristiane não conseguiu se conter, era só lágrimas e desespero.“Eu tive uma crise de choro, acho que comecei a mudar de cor. As pessoas da recepção perceberam e me encaminharam para uma salinha. Essa foi a minha primeira entrada no Centrinho, em pânico”, conta Cristiane. O marido Renato Valle era seu porto seguro e estava lá para acalmá-la. Recobrado o equilíbrio, ela se encontrou com a enfermeira, era a hora de descobrir tudo. Porém, nesse momento todas as perguntas se esvaíram da cabeça dela, só restou escutar a onda de informações. A enfermeira deu orientações sobre amamentação, primeiros cuidados e cirurgias iniciais. A névoa do medo começava a se dissipar. “Não era nada daquilo que eu pensava que ia ser. Nessa fase eu já tinha trabalhado aquele sentimento 139 Do outro lado do espelho momentâneo de rejeição, foi uma coisa de momento que depois passou e eu aceitei”, recorda Cristiane. A vida voltava aos trilhos. Era hora de se preocupar com a primeira fase da reabilitação. Cristiane era tomada pela ansiedade, sua mente vislumbrava uma corrida por todas as fases até o fim do processo, mas o barco da vida ainda içava as velas para a grande viagem. O programa de acolhimento envolvia um contato com bebês já operados e sem operar. Primeiro a enfermeira apresentou uma criança com uma fissura bem pequena. “Bem que o meu poderia ser assim”, desejou Cristiane. As mães vinham e davam uma palavra de apoio. A experiência era gradativa, dos casos mais simples aos mais complicados. Não era fácil, aquilo era tão novo. Cristiane hesitava até para pegar no colo os bebês que a enfermeira oferecia. Em uma das etapas, a enfermeira orientou sobre a limpeza da boca e nariz do bebê fissurado, áreas que necessitam de uma atenção maior devido às cirurgias. Primeiro, hesitação; depois, prática. Com cautela ela testou se dava pé, depois já conseguia mergulhar: “chegou uma hora que eu já estava me sentindo uma médica, eu estava neutralizada, eu pegava e limpava dali e daqui”, descreve. No final do dia, mãe e enfermeira se emocionaram num abraço de lágrimas. Meses depois, havia chegado o dia do nascimento, na sala do parto um clima de nervosismo e expectativa. A tensão do momento atrapalhava, a anestesia não havia sido aplicada com sucesso e os médicos a alertavam sobre o risco de convulsão. O pediatra do Centrinho que acompanhou a gestação de Cristiane a acalmou pegando em sua mão: “fica calma, estou aqui com você. Deixa ela, o neném vai nascer com fissura, ela tem todo o direito de ficar nervosa”, dizia. “Senti ele como um paizão”, comenta Cristiane. No programa de acolhimento, Cristiane havia sido atendida pela enfermeira Isabel Lisboa que se tornou uma grande amiga. No dia 21 de novembro de 2011, Cristiane ligou para ela para contar a novidade da chegada de Miguel. “Se Deus me deu esse neném, um a cada 600 e poucos casos e foi comigo, então Deus me 140 Capítulo 6 - Vida: O mergulho deu um presente. Eu vou ser a melhor mãe do mundo, a melhor mãe de fissurado de Bauru”. Amor e alívio envolviam os pensamentos de Cristiane após o nascimento de Miguel. “Está vendo essa boquinha?! Foi Deus que quis que eu vivesse dessa forma”, afirmava a mãe para o filho. “Eu entendi que isso trabalhou na minha vaidade, porque às vezes a gente precisa ser mexida para a gente dar valor. Então tudo que ele é, era para ser. Eu recebi aquilo como um presente, nessa fase eu já tinha mudado tudo”. O mar em ressaca, revolto por incertezas, se transformou num cenário de calmaria. Cristiane se dedicava nos cuidados com o filho. Passava óleos para não ressecar a boca que não fechava por causa da fissura, buscava o melhor tipo de mamadeira, seguia todas as orientações aprendidas no Centrinho. Miguel era o príncipe da família, todos queriam cuidar dele. Com a mãozinha sobre a barriga de Cristiane, a irmã de Miguel, atualmente com quatro anos, já o apoiava no caminho para a reabilitação. “A gente falava que ele tinha um dodói na boca que ia operar, depois que o Miguel nasceu ela ficava olhando e querendo cuidar dele” conta. Cristiane evitava passear com ele para mantê-lo saudável, pois quando Miguel respirava o ar não passava pela filtragem do nariz, entrava direto pela boca por causa da fissura do palato, o que aumentava as chances dele ficar doente. Mantê-lo em casa nos três primeiros meses evitava também os olhares turvos. “Duas vezes que eu saí com ele, as pessoas se chocavam e não foi legal sentir aqueles olhares. Eu decidi esperar ele operar porque eu também não tinha que ficar passando por isso”, desabafa. A mãe se acostumou a lidar com a curiosidade dos outros. Quando trabalhava na parte administrativa de uma escola e levava o Miguel com ela, sempre respondia para as crianças com tranquilidade: “ele operou, costurou a boquinha”. Os desafios de lidar com a fissura vinham em ondas, a amamentação foi uma das primeiras. Miguel chorava e chorava alto, queria mamar. Cristiane tentou colocá-lo no peito para 141 Do outro lado do espelho estimular o leite descer. Faltava a pressão necessária na boca do pequeno, não foi possível que Miguel fosse amamentado no peito. A saída foi usar a bombinha para tirar o leite e depois usar o banco de leite. A rotina envolvia correria e esforço para que o alimento chegasse antes do choro. Com três meses Miguel passou pela primeira cirurgia, a de fechamento da fissura labial. Era hora de enfrentar os aventais verdes, máscaras, luvas e portas com vidros translúcidos. A imagem de um açougue passa pela cabeça de Cristiane, uma comparação desagradável provocada pela apreensão do momento. Mas ela recupera-se prontamente. É preciso coragem materna para levar o filho nos braços dentro do centro cirúrgico e entregá-lo para a equipe de enfermagem: “É bem tenso, da outra vez eu entrei no vestiário e fiquei chorando um tempão”, revela. A cirurgia de lábio durou quatro horas. O tempo se arrastava pela tarde, Cristiane aguardava na Recreação e tentava se distrair montando um quebra-cabeça. Apesar da agonia, o tempo de internação também representa troca de conhecimento. Cristiane conheceu várias pessoas e histórias: “tem uma mãe de cada jeito, é o Brasil aqui nesse hospital. Essas experiências são edificantes e me fazem pensar que graças a Deus é só isso, graças a Deus que é tão fácil”. Fim da cirurgia, o choro rouco e bravo de Miguel aperta o coração materno. Depois de todo procedimento médico, a preocupação é com as regras da recuperação: um mês sem mamadeira, cuidados para não colocar a mão na boca, dieta líquida e remédios. Porém, o novo sorriso de Miguel faz tudo valer a pena. “Fizeram um milagre, porque não parecia com ele, mudou completamente o rosto porque o lábio era bem aberto. A boquinha dele é pequena como a minha e do meu marido, ficou super bonitinho”, conta Cristiane. A transformação está registrada em fotos, o álbum de Miguel guarda as mudanças do sorriso. Com um ano e dois meses Miguel realizou o fechamento de parte do palato, correspondente ao palato duro que é a parte 142 Capítulo 6 - Vida: O mergulho anterior do céu da boca. Cristiane conta que o cirurgião responsável pelo caso explicou que se fosse feito o fechamento total do palato poderia haver o rompimento da fenda. Foi escolhido fazer a cirurgia do palato duro e depois esperar a pele esticar para fazer a parte detrás, que é o palato mole. Miguel também tem uma abertura atrás do dente, pois a fissura atinge a gengiva. “Está nascendo um monte de dentes, ele tem dois, podia acontecer de não nascer nada. É meio tortinha a gengivinha dele, mas ele tem um sorriso, tem um vão no meio, mas deu certo o sorriso. É tão engraçado”, detalha Cristiane. Na época das cirurgias, Cristiane altera seu comportamento. O jeito de andar fica mais rápido e há agitação até nos mínimos gestos. É preciso deixar tudo em ordem, fazer tudo que é necessário e de preferência sem demora. A filha pequena, a casa e as responsabilidades: tudo vira uma grande onda. Mais uma vez era hora de embarcar, pois o vento soprava uma nova etapa: Miguel tinha uma nova operação marcada. Cristiane nos concedia a entrevista um dia antes de mais uma fase do tratamento de Miguel no Centrinho, ele faria o fechamento do palato mole. A preparação para cirurgia exige dedicação, a criança não pode se alimentar cerca de 8 horas antes da cirurgia: “Tem um jejum muito importante antes da cirurgia, porque eles falam que a criança fica com um tubo na garganta e se estiver com alimento na barriga, pode engasgar e morrer. Então eu não dou nada mesmo! É meio judiado porque a última mamada é 5 horas da manhã e vai operar 1 hora da tarde, a criança fica com fome”, relata Cristiane. Às 6h45 do dia seguinte a rotina de internação se iniciaria. Passa pelo otorrino, nutricionista, pesa, mede, faz exame de sangue, tira foto. Essas e outras etapas são necessárias para que o paciente seja aprovado para realizar o procedimento cirúrgico. Depois da correria é hora da espera, a expectativa era que Cristiane passasse 48 horas no hospital até que Miguel recebesse alta. A cirurgia realizada acabou abrindo os pontos, resultando em novos procedimentos médicos, mas depois foi concluída com sucesso. 143 Do outro lado do espelho “Eu fico um pouco aliviada porque eu moro aqui em Bauru. Tem moça que vem sozinha, sem família e não tem com quem revezar nem para tomar banho. Elas ficam lá, sozinhas, têm a maior despesa. Existe a ajuda da Secretaria da Saúde, mas algumas não conseguem, demora e é pouco também. Eu fico com dó”, conta Cristiane. Passos ligeiros, pega um brinquedo e sorri. Joga uma pipoca na boca. Mesmo com o céu da boca fissurado ele não engasga. Miguel é uma criança saudável com um ano e sete meses e Cristiane consegue levar a vida normalmente fora dos períodos de cirurgia. “Essa orientação do programa das mães me ajudou muito, eu ter conhecido antes fez total diferença. Eu acho que eu teria ficado apavorada sem saber nada, eu vi a diferença de mães que eu conheci que não tinham nenhuma informação, não estavam conseguindo cuidar, com aqueles medos de pôr a mão...”, comenta Cristiane. Nessa viagem que é a experiência materna, as primeiras reações de Cristiane foram de rejeição e angústia, mas tudo mudou. Ela navegou na inconstância do destino, quase submergindo algumas vezes, até que conseguiu vir à tona e respirar com alívio. Aceitação, coragem e fé se tornaram os lemes desse cruzeiro em busca da reabilitação de Miguel. 144 CIÊNCIA: ENFERMAGEM Na caminhada para a reabilitação, o serviço de enfermagem orienta os pais desde o primeiro contato da família com o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (Centrinho). Esse contato pode ser feito por telefone, carta, email ou pela própria ida da família com o paciente à instituição. A função da enfermagem é dar as orientações básicas de cuidado com a criança, que podem iniciar até antes do nascimento, com o acolhimento as gestantes. O setor também realiza avaliações que colaboram no processo de liberação da criança para a cirurgia. No ambulatório é realizado, por exemplo, o controle do peso e da vacinação e também o acompanhamento da saúde do paciente para atendimentos odontológicos e fonoaudiólogos, fora do período de cirurgia. Num momento em que muitos pais sentem-se desnorteados o trabalho da enfermagem é explicar o passo a passo, mostrando que o paciente com fissura, apesar de suas necessidades específicas, é uma criança normal. Esse tratamento sem discriminação é incentivado pelas próprias enfermeiras que desenvolvem um tratamento humanizado e individualizado para cada criança. “As mães percebem que a gente trata o bebê como se fosse um bebê normal, desenvolvemos um trabalho em que enfeitamos a criança, colocamos lacinhos, deixando ela bonitinha e as mães começam a ver esse outro lado que favorece a relação entre mãe e bebê. Isso é muito gratificante para a equipe de enfermagem, porque a gente está atuando e vendo os resultados”, explica a chefe técnica do serviço de enfermagem do Centrinho, Cleide Carolina da Silva Bemoro Mondini. Um dos primeiros questionamentos das mães de crianças com fissura labiopalatina é sobre a possibilidade da amamentação. Cleide comenta que “os pais tem muita insegurança de como oferecer alimento ao bebê, se é com colher, com conta-gotas, na mamadeira 145 Do outro lado do espelho ou se vai dar o peito. Tudo isso é uma preocupação e vai depender de cada caso, se é uma criança que tem uma fissura menos complexa, um palato menos fendido ela vai ter maior facilidade para mamar. Muitas vezes o bebê consegue mamar no peito e a mãe vai ter que se adaptar ao filho”. A aceitação da criança fissurada pela mãe no aspecto psicológico também contribui para que a mãe consiga amamentar o filho com tranquilidade. Faz parte do trabalho das enfermeiras passar para as mães a segurança de que o bebê não vai engasgar com o leite. Quando não é possível o aleitamento materno, usa-se a mamadeira com o bico que a criança melhor se adaptar. Um fato que acontece com frequência é o bebê estar com sonda para alimentação quando chega ao Centrinho pela primeira vez, sem ter recebido nenhum tipo de orientação do hospital antes. “Os profissionais de outros hospitais não têm muita experiência em lidar com essas crianças. Por medo de que o bebê engasgue ou perca peso eles optam por colocar a sonda, mas não é a medida mais correta, então a gente faz a retirada no ambulatório do berçário”, explica a enfermeira. No tratamento do paciente fissurado, outro ponto que desperta receio nos pais é a higienização. A equipe de enfermagem realiza orientações sobre a limpeza oral e nasal, para que a alimentação possa ser feita de modo saudável e prazeroso para o bebê e, também, para prevenir infecções nas áreas operadas. “Os bebês gostam desse procedimento de limpeza, eles às vezes choram uma primeira vez, depois se você vai conversando com a criança, com carinho, ela se sente segura e percebe que não é agredida com aquele procedimento”, relata. PARTICIPAÇÃO DOS PAIS O trabalho da enfermagem passou por mudanças em relação à participação dos pais. As crianças eram entregues para as enfermeiras na porta da internação e ficavam cerca de cinco dias 146 Capítulo 6 - Ciência: Enfermagem internadas, enquanto isso as mães só observavam através de um vidro na parede da sala. Com a introdução do Programa Mãe Participante, em 1988, os pais ou responsáveis acompanham de perto os pacientes durante a internação. A importância desse acompanhamento é que os pais aprendem a realizar todos os cuidados do pós-operatório, por exemplo, a higienização dos pontos da cirurgia. Essa participação mais efetiva do acompanhante possibilitou ao serviço de enfermagem observar o comportamento da família com o paciente, encaminhando possíveis problemas para as áreas específicas do atendimento. A enfermagem trabalha em conjunto com a psicologia e o serviço social, podendo até entrar em contato com os profissionais da cidade do paciente quando necessário. Cleide explica que “esse acompanhamento da mãe no período de internação diminui as complicações pós-operatórias e a ansiedade da família, favorecendo a reabilitação da criança. Elas estão num ambiente estranho, mas ver um rosto conhecido faz com que a recuperação delas seja mais rápida”. Bebês sem síndrome associada à fissura labiopalatina geralmente permanecem durante dois dias na unidade semi-intensiva do hospital, já os pacientes sindrômicos têm um tratamento mais prolongado. O acompanhamento é feito durante o dia todo, mas não à noite: “a mãe não consegue ficar durante a noite, é desgastante. Eu preciso dela acordada no outro dia para aprender a fazer os procedimentos, para receber as orientações do médico. A enfermagem realiza o treinamento dos acompanhantes, mas já aconteceram casos da criança receber alta do hospital, mas a mãe não receber alta da enfermagem, porque ela não estava preparada para fazer a continuidade desses cuidados em casa”, conta a chefe da enfermagem. Além da atuação geral da enfermagem, o setor foi responsável por criar alguns projetos específicos como o Projeto Brinquedo Terapêutico que atualmente faz parte da Recreação e o Programa de Acolhimento a Gestante, o qual Cleide Mondini é uma das 147 Do outro lado do espelho fundadoras. Atualmente, a enfermeira Isabel Aurélia Lisboa é a responsável pelo Projeto Gestante. PROGRAMA BRINQUEDO TERAPÊUTICO O ambiente hospitalar pode ser assustador para uma criança, pensando em amenizar essa situação foi desenvolvido o Projeto Brinquedo Terapêutico. O objetivo é fazer a dessensibilização da criança, preparando-a para cirurgia e para o pós-operatório. O programa acontece atualmente na recreação, mas começou na enfermagem. “Enquanto as crianças estão se preparando para cirurgia elas vestem aventais, máscaras e luvas como dos médicos, pegam as bonecas e se fazem de médicos. Também é feita uma atividade de contação de histórias, explicando como será depois da cirurgia e isso tudo tem contribuído para a melhora delas no pós-operatório”, explica Cleide. Essas atividades são parte dos projetos de pesquisas como “O Brinquedo Terapêutico aplicado em crianças com fissura labiopalatina em condições pré e pós-cirúrgicas no HRAC-USP”, desenvolvido desde 2010 sendo coordenado por uma enfermeira e uma pedagoga e “O Brinquedo Terapêutico e o preparo da criança para cirurgia de correção de fissura labiopalatina”, que contou com a participação de Cleide Mondini. PROJETO GESTANTE Outro projeto desenvolvido pelo setor de enfermagem foi o de Acolhimento a Gestante. O atendimento às mães grávidas que procuram o Centrinho começou em 2001 e passou a ser um protocolo de atendimento em 2008. Durante o programa, as mães recebem orientações sobre os primeiros cuidados, amamentação, higienização e primeiras cirurgias. Além disso, existe uma etapa em que as gestantes podem conhecer bebês com 148 Capítulo 6 - Ciência: Enfermagem fissura operados e também sem operar. Esse é um dos momentos que mais emociona pais e profissionais. O programa nasceu de uma necessidade percebida quando as gestantes procuravam o hospital para receber alguma orientação. Cleide relata o início dessa experiência: “Certa vez eu levei um casal para conhecer uma criança no berçário e eu me surpreendi porque o pai dessa família, que autorizou mostrar a criança, chorava compulsivamente. Ele falava que esse outro casal estava tendo um privilégio. Esse pai acreditava que se ele e a esposa tivessem recebido as orientações antes, eles estariam numa condição melhor. Aí eu chorei junto, todo mundo chorou e aquilo me marcou. Então eu vi que a gente tinha que institucionalizar esse procedimento.” A mãe que tem o filho fissurado colabora com a recém-chegada e também se sente bem com a troca de experiências. A enfermagem incentiva essa convivência entre as mães como forma de superar as dificuldades de aceitação. A insegurança e o receio dão lugar à confiança e ao otimismo. Essa mudança pode ser observada no comportamento das mães que participaram do programa. Muitas enviam fotos do parto e dos recém-nascidos, demonstrando como essa experiência da maternidade se reestrutura de forma mais positiva para pais e criança. 149 Diogo Pádua Garcia Posfácio 151 Do outro lado do espelho O PEQUENO COMBATENTE Aline Ferreira Pádua O toque estridente do telefone ecoou por todos os cômodos da casa, penetrando paredes e portas, me fazendo, por um rápido momento, tirar os olhos do computador. Da sala, ouço a voz de minha mãe conversando com meu irmão, Tiago. Naquela manhã, sete de outubro de 2013, minha sobrinha, Isis Domingos Pádua, de 17 anos, fora às pressas para a maternidade dar à luz ao seu primeiro filho. Estávamos à espera de notícias e, por isso, detive por mais algum tempo minha atenção nas falas que vinham da sala. “Como? Ele tem fissura?”, disse minha mãe logo após atender ao telefone. Minhas pernas ficaram trêmulas e meu coração disparou. Em segundos, imagens e cenas que presenciei no Centrinho, nos últimos oito meses, se intercalaram rapidamente em minha mente. Eu me dirigi até a sala, peguei o telefone e pedi para que meu irmão mantivesse a calma. Ele não sabia que eu escrevia um livro-reportagem sobre a história de pacientes com fissura labiopalatina do Centrinho, como trabalho de conclusão de curso. Era por volta das 11 horas da manhã quando meu sobrinho, Diogo Pádua Garcia, nasceu. Sua malformação não havia sido diagnosticada nos exames de ultrassom e sua fissura de lábio bilateral e fenda palatina surpreenderam a todos. Ele foi o primeiro caso de bebê fissurado na família. As seis horas que sucederam o parto foram de angústia e questionamentos para os pais e avós do bebê. Meu telefone não parava de tocar e a cada momento alguém trazia novas teorias sobre o caso. Fui até o hospital onde mãe e filho estavam internados e tive que aguardar por três horas para que minha entrada fosse liberada. A noite já se aproximava quando consegui trocar as primeiras palavras com minha sobrinha. Ela estava abatida por conta da cirurgia cesariana e caminhava lentamente em direção ao banheiro quando eu cheguei ao quarto. Conversamos por 152 alguns minutos antes de outros visitantes chegarem. Uma de suas primeiras frases foi: “Tia, ele é lindo!”. Meu coração se acalmou e o medo de que ela sentisse rejeição por Diogo ou se culpasse pela malformação se dissiparam. Contei a ela sobre o tratamento realizado no Centrinho, em Bauru, sobre a possibilidade da total reabilitação dos pacientes com fissura e do longo caminho que ela teria que trilhar para alcançar a recuperação de seu filho. Diogo nasceu prematuro, aos sete meses, pesando 1,790 kg e medindo 43 cm. Por ser ainda muito pequeno, ele permaneceu sete dias na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal do hospital. Nesse período, quando o bebê completava cinco dias de vida, acompanhei minha sobrinha a uma das visitas diárias que ela fazia ao bebê no hospital. Ao cruzar a porta da UTI Neonatal, deixamos nossos pertences em uma mesa, higienizamos as mãos e vestimos aventais brancos. Seis incubadoras estavam dispostas em fileiras. Em uma delas, mais próxima a janela, estava Diogo. Usava apenas uma fralda descartável que lhe parecia enorme. Tão pequeno, dormia um sono profundo como se não percebesse que não estava mais no ventre materno. Suas pernas e braços longos e magros estavam cobertos por pelos escuros. As mãos que traziam dedos compridos repousavam sobre a barriguinha. Na cabeça, uma espessa cabeleira negra quase se fundia com as pequenas sobrancelhas. Nos lábios, a fissura bilateral fazia com que seu lábio superior se unisse à ponta do nariz. Ele usava sonda alimentar e uma cânula de ar próxima ao rosto fazia com que respirasse com mais facilidade. Isis se acomodou em uma cadeira ao lado da incubadora, abriu uma porta e levou as mãos para acariciar o pequeno. Alguns minutos depois, tomei coragem e repeti os gestos dela. Passamos uma hora apenas zelando pelo sono do dorminhoco. Ainda era cedo para pegá-lo no colo. Durante esse período, uma pediatra e uma psicóloga se aproximaram para relatar o estado de saúde do bebê e responder as dúvidas da mãe. Entre explicações sobre o 153 Do outro lado do espelho tempo que Diogo ficaria na UTI e sobre o uso da sonda, a pediatra afirmou: “o tipo de fissura dele é dos mais agressivos. É um caso difícil”. Minha sobrinha não disse nada, apenas chorou. A jovem mãe de primeira viagem saiu do hospital ainda em choque com as palavras da pediatra. Nos próximos dias, ela ouviria versões diferentes sobre a fissura de Diogo. Afirmaram a princípio, que a fissura era apenas de lábio. Posteriormente, disseram que a malformação atingia parte do palato. Ele vai conseguir mamar? Ele conseguirá falar? Ele vai ter uma vida normal? Foram alguns dos questionamentos que perturbaram as noites de sono de Isis e Júlio, pais de Diogo. Alguns disseram que o garoto só poderia se alimentar sem a sonda quando realizasse a primeira cirurgia, outros que ele sairia do hospital sem o aparelho. Eu tentava alertar que era preciso pensar na saúde do bebê e encaminhá-lo ao Centrinho para receber as primeiras instruções sobre os cuidados diários e tratamento. Aos 11 dias de vida, Diogo recebeu alta da maternidade onde nasceu, em São José do Rio Preto, pesando pouco mais de 1,5kg e usando sonda alimentar. Seus pais e avós saíram do hospital e pegaram estrada rumo a Bauru. A ansiedade de chegar ao Centrinho e ter informações sobre o futuro do menino foi tão grande que não se lembraram de passar em casa para pegar roupas limpas para Isis que estava há três dias internada junto com o bebê, depois que ele passou para o quarto. Três horas de viagem separavam o local de partida do Centrinho. Ao chegar a Bauru, pela hora do almoço, eu os acompanhei até o hospital. Subimos a rampa de acesso ao ambulatório do Centrinho e fomos encaminhados à sala de atendimento aos Casos Novos. A surpresa das enfermeiras foi grande ao ver que a equipe médica de Rio Preto não havia agendado o atendimento do bebê, dado alta para um recém-nascido prematuro e o encaminhado a Bauru sem o suporte de uma ambulância. O corre-corre foi grande para realizar os primeiros atendimentos e solicitar a 154 presença de um pediatra. Logo, Isis e Diogo foram levados para os primeiros atendimentos. Eu aguardava com meu irmão, o avô, Júlio, o pai, e Raquel, a avó paterna. A ansiedade do avô foi tamanha que ele aproveitou que nós nos distraímos para entrar pelos corredores do hospital procurando pela filha e neto. Logo uma das assistentes sociais apareceu preocupada acreditando que uma mãe e um bebê estavam perdidos dentro do hospital. A bronca ao avô atrapalhado ficou por sua conta. Pouco mais de uma hora depois, Isis retornou com Diogo trazendo a notícia de que eles teriam de ficar internados no hospital para realizar exames e avaliar o caso do bebê. Foram dez dias de internação na Unidade de Cuidados Especiais, a UCE. O primeiro desafio para Isis foi a despedida da família que regressava para Rio Preto enquanto ela ficava com o bebê em Bauru. Naquela sexta-feira, 18 de outubro de 2013, ela teve de deixar Diogo no Centrinho e se alojar na Profis, entidade que apoia pacientes do hospital. A nova realidade a convidava para ver faces da vida que ela não conhecia. A primeira noite foi a mais difícil. Isis me enviou mensagens por celular contando sobre o aperto que passava por estar em uma cidade desconhecida e alojada em uma associação com pessoas tão diferentes dela. Sua mãe, Andresa, me ligou chorando e pediu para que eu fosse visitá-la e que não a deixasse sozinha. A rotina diária começava pouco depois das sete da manhã. Ela entrava no hospital para passar o dia ao lado do filho e aprender como cuidar dele. No horário do almoço, ela voltava para a associação para a refeição e retornava ao hospital no período da tarde, saindo às seis horas. No sábado, segundo dia de internação do Diogo, eu fui até o hospital para conversar com minha sobrinha durante o intervalo de uma hora entre a saída da UCE e a entrada na Profis. Ela parecia mais confortável frente ao turbilhão de mudanças pelas quais passara nos últimos 19 dias, mas estava abalada com as novas situações que conheceu no hospital. Ela me contou sobre um jovem que viu no ambulatório 155 Do outro lado do espelho que tinha apenas três dedos muito longos nos pés e nas mãos e os olhos disformes. Nesse dia, ela também conheceu a história de uma mãe que está internada há meses com seu bebê na UCE e a de um menino que nascera com uma fissura tão extensa que atingia todo o nariz. Isis entendeu que a malformação de Diogo era pequena quando comparada a outros casos. Ela se questionou pelas lamentações e rebeldias da adolescência e assumiu que não imaginava o quão complexa poderia ser sua vida. Diogo recebeu alta do Centrinho após dez dias de internação. Ele ganhara peso, pesava 2 kg, continuava com a sonda, mas havia aprendido usar a mamadeira. O menino voltou para casa com a sonda alimentar para não correr o risco de perder peso e ter de ficar mais dias internado. Por ser pequeno, ele não tinha força o suficiente para sugar todo o leite necessário direto na mamadeira e por isso permaneceu com a sonda. Duas semanas depois, já no mês de novembro, mãe e filho retornaram ao hospital em Bauru para exames de rotina. A saúde de Diogo evoluiu, ele seguia ganhando peso e pôde retirar a sonda alimentar. Meu sobrinho é o paciente de número 1-72267 do Centrinho. Sua primeira cirurgia, para a reconstrução de um dos lados do lábio, está marcada para janeiro de 2014. Passado o susto de seu nascimento, a família comemora sua evolução e saúde. Os avós publicam fotos na rede social Facebook com frases de amor e carinho. Isis dedica todo seu tempo a ele que adora ficar no colo e receber mimos dos pais. Olhando para Diogo reconheço, assim como Isis fez em uma de nossas conversas em Bauru, o quão minha vida pode ser complexa e envolta por acontecimentos que não posso explicar. Quando iniciei este livro-reportagem, minha sobrinha estava no começo do namoro com Júlio, não planejava engravidar tão nova. A gravidez inesperada foi motivo de surpresa para mim que nessa época fazia visitas regulares ao Centrinho e iniciava as entrevistas para o livro. No dia em que Diogo nasceu eu estava no meu quarto lendo uma coletânea de artigos acadêmicos, entre eles, um que tratava sobre o 156 Centrinho. Seu nascimento me fez acreditar que seja Deus, seja o universo, os números ou os astros, existe algo que influi em nosso caminho e nos leva a estar prontos para situações inesperadas. Eu, que quando fui ao Centrinho pela primeira vez, sabia pouco sobre o que era fissura labiopalatina, estava pronta para receber Diogo e apoiar minha família com o que aprendi com os profissionais e pacientes que tornaram este livro possível. 157 Bibliografia ARMBRUSTER, Lilia Maria. Fissuras Labiopalatais: etimologia, epidemiologia e conseqüências, 2002. BACHEGA, Maria Irene. Requalificar a região do entorno do HRAC/ USP : vida nova com a “Vila Centrinho”.São Paulo, 2005. BOSI, Ecléa. 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Site do Centrinho: www.centrinho.usp.br Blog do Centrinho: https://centrinhousp.wordpress.com Jornal da USP: http://www.usp.br/jorusp/ Profis: www.profis.com.br 163 Formato: 14x21 cm Mancha: 9,7x5,47 cm: Tipologia: Minion Pro: Papel: Off set 75g (miolo) Supremo250g/m² (capa) Projeto Gráfico, Diagramação e Produção da Capa: Dé Guimarães [email protected] Todos os direitos reservados aos editores(as)/autores(as). É proibida a reprodução total ou parcial dos textos, fotos, ilustrações e material do livro sem autorização por escrito dos editores(as)/autores(as) (Lei de direitos Autorais nº 9610/98).