Um olhar sobre a finitude: interfaces de uma experiência

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Um olhar sobre a finitude: interfaces de uma experiência
Anna Paula Rezende Pereira
O coração tem um especial simbolismo com significativa representação social e
pessoal em nossa cultura. É natural, dentro do senso comum, direcionar os aspectos
emocionais da nossa vida à boa ou má funcionalidade do coração. Ao nos depararmos
com o adoecimento, temos a tendência de atrelar os fatores emocionais como grandes
responsáveis pelo desencadeamento da doença. As cardiopatias recebem projetivamente
as designações daquilo que se encontra no imaginário humano, e passa a não ser mais
somente uma doença de conceituação fisiológica, mas igualmente emocional e social.
Isso pôde ser encontrado ao longo da minha experiência no setor de cirurgia cardíaca do
Hospital Pedro Ernesto, onde são realizados os atendimentos psicológicos aos pacientes
submetidos às cirurgias cardíacas. Através deste trabalho de acompanhamento aos
pacientes e familiares pude avaliar o quanto as questões emocionais permeiam este
espaço e o quanto elas podem ser verdadeiras aliadas no enfrentamento desse processo
cirúrgico.
Os pacientes reagem diferentemente às doenças e à internação hospitalar. O
significado pessoal e subjetivo que a doença física desperta parece ser o fator
fundamental, para as mais distintas reações apresentadas, modulado por algumas
características, tais como: a personalidade, que está relacionada ao modo como aquele
sujeito reage frente ao adoecimento e sua busca na condução do tratamento; as
circunstâncias sociais, que abrangem como aquele paciente se encontra tanto no âmbito
social e econômico, quanto nos recursos possíveis de serem utilizados no atendimento
médico e nos cuidados no pós-operatório; e a própria natureza patológica, que reafirma
a condição clínica daquele indivíduo e as orientações realizadas durante todo o processo
de hospitalização a partir do aparecimento da doença e seu prognóstico (Romano,
1999).
A necessidade de procurar um hospital em decorrência da debilidade de sua
saúde, e descobrir-se portador de uma doença cardíaca que demandará um procedimento
cirúrgico, mexe com o psiquismo do indivíduo. Estar hospitalizado, em especial, dentro

Trabalho desenvolvido no Setor de Cirurgia Cardíaca do HUPE, sob supervisão da Mestre e Psicóloga
Cristiane Ferreira Esch e apresentado no XVII Fórum de Residência em Psicologia Clínica
Institucional, em setembro de 2013.

Residente do 1º ano de Psicologia Clínica Institucional do IP/HUPE/UERJ.
de uma unidade de tratamento intensivo a espera de uma cirurgia, significa no
imaginário do sujeito, estar mais próximo da morte, uma vez que o hospital designa um
ambiente de tensão e medo. As reações psicológicas do paciente são exacerbadas, pois
terá que enfrentar o desconhecido, acarretando em um sentimento de impotência frente
à falta de controle sobre o que acontecerá. Além disso, questões ligadas à finitude se
mostram cada vez mais presentes dentro deste contexto, geradas pela angústia e pela
insegurança vivenciadas a cada dia de permanência no hospital.
Cada vez mais a equipe de psicologia vem atuando neste contexto, com a
proposta de desmistificar as fantasias geradas pela internação, respeitando sempre o
modo de enfrentamento de cada sujeito, mas auxiliando-os na elaboração dos medos
que permeiam este espaço, uma vez que estes sentimentos trazem repercussões
negativas no emocional do paciente, refletindo no seu processo de tratamento e
conseqüente recuperação. O receio da morte abre espaço para questionamentos e
reflexões, não apenas sobre a condição atual em que estes pacientes se encontram, mas
também permitem uma releitura de suas propostas de vida.
Ao buscar um entendimento sobre esse processo vivenciado pelo sujeito me vem
a constatação de que o homem é o único ser vivo que tem consciência de sua finitude,
isto é, a única certeza da vida é a de que um dia morreremos. A morte é a última etapa
do ciclo vital, o momento crucial em que se deixa tudo aquilo que foi conquistado
durante a vida. A única experiência, entretanto, que cada um de nós tem com a morte é a
morte “do outro”. Portanto, partimos sempre de um referencial externo, onde o outro é a
figura de simbolização dessa experiência (Veloso, 1999). Assim, a angústia apontada
por todos nós é consequência dessa falta de controle sobre como, onde e quando
morreremos. Da mesma forma, esta falta de controle é vivenciada também pelos
familiares que desconhecem o tempo que resta ao sujeito adoecido.
Entende-se a família como um sistema de interrelações entre as partes, assim
quando a família sofre mudanças em uma de suas partes ocorrem mudanças em todas as
outras. É importante sinalizarmos as demandas e dificuldades apresentadas pelos
pacientes quando vivenciam o processo de hospitalização, mas, além disso, devemos
compreender que o processo de adoecimento e suas repercussões também são
vivenciados pela família, que consiste no elo vital para o paciente. Mediante o contato
com os pacientes no CTI, pude verificar o quanto a família está envolvida com o doente
neste contexto, e que as repercussões positivas ou negativas acerca da condição clínica
do sujeito são vivenciadas também por seus familiares. Ou seja, o processo de
adoecimento vivido pelo sujeito também é experimentado coletivamente.
Quando há o adoecimento de um familiar, todos os outros membros da família
podem vivenciar sentimentos de medo, choque e descrença quanto à condição clínica
apresentada. Da mesma forma que o paciente sofre uma ruptura com os seus hábitos e
com as rotinas do dia a dia, a família também passa por esse processo, vendo-se,
portanto com a necessidade de se reorganizar, inclusive no que diz respeito à
redistribuição dos papéis e das funções no dia a dia daquela dinâmica familiar.
É necessária a conscientização de que o adoecer é conjunto, temos que ter um
olhar e escuta ativa para o sofrimento do familiar que é uma força potente de ajuda no
tratamento e recuperação do paciente. Neste sentido, a família pode ser uma grande
aliada da equipe que baseada nas orientações recebidas, será o estimulador do paciente
na adesão ao tratamento e no seguimento das recomendações posteriores.
Durante a minha experiência na clínica especializada em cirurgia cardíaca, pude
observar o quanto alguns familiares eram considerados peças-chave no estabelecimento
de estratégias para favorecer a recuperação do paciente, possibilitando, assim, uma
efetiva abordagem no cuidado ao paciente de acordo com a sua demanda.
A ação do psicólogo no hospital está em possibilitar um espaço de escuta tanto
ao paciente como aos familiares. Sua intervenção está no sentido de diminuir a
ansiedade de ambos, assim como promover um contato mais acessível entre o paciente,
a família e a equipe multiprofissional. É sempre conveniente, do ponto de vista
psicológico, instruir a família sobre o que ela vai encontrar do outro lado da porta do
CTI, ou seja, prepará-la para ver e estar com seu familiar internado, buscando, assim,
estimular atitudes que propiciem contribuições positivas para o bem estar geral daquele
paciente durante o período de internação (Simões, 2007)
É importante ao psicólogo ainda estar atento aos aspectos da dinâmica familiar,
na medida em que tal dinâmica acompanhará em seu período de hospitalização e nem
sempre há muito o quê se fazer, a não ser o esforço para que tanto o paciente como a
família possam adequar à situação com menor sofrimento emocional. É essencial ao
profissional de psicologia entender os sentimentos de anseios, angústias e impotência
vivenciados pela família, salientando que a escuta oferecida pode ser importante na
ajuda a esta família a atravessar este momento de crise, além de orientar o familiar sobre
como lidar com o paciente. Além disso, é necessária a ocupação do lugar de mediador
no acompanhamento, tentando diminuir sua angústia e a sensação de falta de controle
que ocorre pela ruptura do vínculo família/paciente (Ismael, 2004). O psicólogo
contribui ainda para a recuperação do paciente, na medida em que atua como um
membro da equipe que busca realizar uma ponte entre família-paciente-equipe de saúde
e com isso favorece a expressão de necessidades e sua conseqüente atenção, na medida
do possível.
O acolhimento é um processo contínuo e não apenas uma etapa do atendimento
que se dá nas portas dos hospitais. Deve envolver toda a equipe de saúde nas suas
diferentes áreas de atuação, pois a hospitalização representa, para muitos, um momento
de fragilidade e de medo. Assim, além do sofrimento e da insegurança que a doença
ocasiona, o paciente irá necessitar da atenção da equipe para intervir em seu próprio
processo de tratamento, de modo que o mesmo tenha o melhor desdobramento possível.
O acolhimento é condição fundamental para o diálogo, para o encontro entre paciente e
equipe. Acolher significa tentar compreender o que estes nos dizem, que se traduz em
saber ouvir. O ouvir favorece o diálogo, principalmente se a alteridade for considerada
quando lidamos com o cuidado desse sujeito. No entanto, a diferença é o contorno da
alteridade. É necessário haver no cuidado, em especial, no acolhimento àquele que
chega ao hospital, a conjugação da identidade e da diferença que permeiam as relações
estabelecidas entre equipe com os pacientes e seus familiares.
Geralmente, a equipe de saúde que atua em CTI concentra seus cuidados no paciente.
Entretanto, os grupos familiares também ajudam a equipe a compreender melhor a
dinâmica do cuidado com o doente, facilitando a transmissão de informações e
estimulando-o na adesão ao tratamento.
Portanto, aqui é necessário ratificar que a atuação da psicologia está voltada para
a tríade paciente, família e equipe de saúde. As famílias ao se sentirem mais acolhidas
na sua dor e orientadas com relação aos cuidados, tratamento e evolução da doença,
podem contribuir muito mais na ajuda ao seu familiar. É necessário, além de conhecer a
família, dar voz às suas dúvidas e inseguranças que geram ansiedade e angústia, para
que possam ser verdadeiras parceiras dos nossos pacientes durante toda a internação.
Tanto a família quanto o paciente que entra no hospital para qualquer tipo de
tratamento não serão os mesmos no momento de sua alta. Eles tomam contato com seu
limite, com sua fragilidade e sua impotência, mas também com sua força e capacidade.
Existem momentos de fragilidade psicológica, que se bem trabalhados podem resultar
em um maior crescimento para o binômio paciente/família. O psicólogo, neste caso,
deve estar atento para observar quais as mudanças na dinâmica familiar e intervir
adequadamente, promovendo um bom contato entre família e equipe multiprofissional,
além de contribuir para a reorganização psicológica diante desse momento de crise na
vida dos pacientes e familiares.
Caso clínico: Uma experiência contada sob o olhar da psicologia
O.M, paciente de 66 anos, se internou no CTI cardíaco do HUPE para a
realização de uma cirurgia de troca valvar aórtica. Ao me apresentar como psicóloga do
setor, ele já havia realizado o procedimento, porém, encontrava-se muito inseguro
acerca de sua recuperação. Sua preocupação estava ligada à esposa, seu único vínculo
familiar, além de seus animais de estimação. O.M trabalhou durante muito tempo na
área de televisão, na parte de gravação de novelas de uma emissora, há alguns anos, ele
se aposentou e a partir de então dedicou-se estritamente ao cuidado com a casa, com os
bichos e com a esposa, que atualmente trabalha como técnica de enfermagem num
hospital próximo ao HUPE. Devido a necessidade de permanência no hospital por um
tempo maior que o previsto em função das medicações necessárias para sua
recuperação, O.M encontrava-se muito solitário, apresentando humor deprimido e um
discurso pessimista a respeito de sua recuperação.
Ao longo dos nossos encontros, busquei fornecer um espaço de escuta às
angústias vivenciadas por ele, conhecendo a partir da sua história de vida, questões que
pudessem ter uma relação com as demandas trazidas por ele no processo de internação.
O.M trazia a tona pensamentos sobre a finitude, uma vez que nunca tinha tido contato
com hospital e nunca havia feito qualquer cirurgia. O adoecimento, a internação e a
necessidade de cirurgia concorreram para a manifestação de uma fragilidade até então
nunca vivenciada por ele, apontando o quanto ele estava vulnerável, e o quanto a
possibilidade de morte iminente que pairava por aquele setor, através do estado dos
outros pacientes, o influenciava a pensar sobre a sua própria morte.
Pensar na morte acarretava um sofrimento, pela perda de referenciais, pelo
afastamento de sua esposa e de seus animais. O tempo de internação lhe parecia
infindável e a cada dia O.M estava sentindo-se descrente sobre a sua recuperação e a
possibilidade de alta. Apesar de suas inseguranças, a presença da psicologia trazia
sentimentos de esperança e confiança, uma vez que as intervenções realizadas buscavam
minimizar as angústias apresentadas, reafirmando os pontos de conquistas alcançados
por ele ao longo dos dias e da importância de sua condição emocional para o processo
de recuperação.
Outro ponto relevante sobre esse caso foi a importância de sua esposa para o
processo de recuperação. Em contato com a equipe, a esposa sinalizou o quanto O.M
era inseguro e que, em geral, mostrava-se descrente quanto ao sucesso de qualquer
coisa, quando as situações não aconteciam conforme ele planejava. Isso era uma prática
vivenciada no seu dia a dia, abrangendo sua vida social. Assim, o que é vivenciado lá
fora também passa a existir nas relações dentro do hospital. Um dos nossos papéis era
de mostrar que o imprevisto não significava insucesso, mas representava outros
caminhos, que poderiam acarretar em progressos a partir da condição de abertura que o
sujeito pudesse experimentar. O.M sentia-se confiante mediante o discurso apresentado
por sua esposa, assim como pela presença da psicologia. Ou seja, a comunicação com a
família foi fundamental para entender o contexto de vida do paciente, suas demandas e
permitir a identificação de abordagens e intervenções potencialmente facilitadoras para
a vivência do adoecimento e da hospitalização.
Portanto, a percepção de suas ansiedades, a escuta atenta a seus relatos e aos da
esposa, além da compreensão de seus sentimentos de vulnerabilidade representaram
elementos importantes no decorrer dos atendimentos, quando muitas questões puderam
ser trabalhadas, como, por exemplo, o aparecimento de
novas perspectivas que
surgiram a medida que suas fantasias a respeito da irrecuperabilidade foram sendo
desmistificadas, abrindo, portanto, espaço para novos horizontes após a sua alta.
Referências Bibliográficas
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Doença e família. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
LAMANNO-ADAMO, Vera L. C. A família sob impacto. In BOTEGA, Neury José (Org.). Prática Psiquiátrica no
hospital geral. Interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2002.
MAZUTTI, Sandra Regina Gonzaga; GARCIA, José Carlos Teixeira. Família do paciente cardiopata. In RIBEIRO,
Ana Lucia Alves e GAGLIANI, Mayra Luciana. Psicologia e Cardiologia: um desafio que deu certo - SOCESP. São
Paulo, editora Atheneu, 2010.
ROMANO, Bellkiss W. A família vem ao hospital com seu papel no processo do adoecer. In ROMANO, Bellkiss W.
Princípios para a prática da psicologia clínica em hospitais São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
SENRA, Dante Fanganiello; GUIMARÃES, Carina Pirró Alves. UTI de Cirurgia Cardíaca. In RIBEIRO, Ana Lucia
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SILVA, Israel Ferreira da; RIBEIRO, Ana Lucia Alves. Anestesia em Cirurgia Cardíaca: alterações de
comportamento no pós-operatório. In RIBEIRO, Ana Lucia Alves e GAGLIANI, Mayra Luciana. Psicologia e
Cardiologia: um desafio que deu certo - SOCESP. São Paulo, editora Atheneu, 2010.
SIMÕES, Luana Freitas. Possibilidades de atuação da psicologia no cti cardíaco – Trabalho apresentado na I jornada
de Fisioterapia/Hupe, 2007.
VELOSO, Laís Helena. Finitude humana: as representações dos profissionais de saúde diante da morte. Em Pauta,
Rio de Janeiro, Cadernos da Faculdade de Serviço Social da UERJ, n. 14, p. 73-83, 1999.
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