maria inês sarno otranto a interação linguageira dentista - PUC-SP

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MARIA INÊS SARNO OTRANTO
A INTERAÇÃO LINGUAGEIRA DENTISTA-PACIENTE NA ATIVIDADE
DE TRABALHO EM TRIAGEM DE CLÍNICA ODONTOLÓGICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada e
Estudos da Linguagem, na área de concentração Linguagem
em Situações de Trabalho, sob a orientação da Profª. Drª.
Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2006
2
(assinaturas da banca examinadora, após a defesa pública da dissertação)
Banca Examinadora
____________________________________________
Profª Drª Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva
____________________________________________
Profª Drª Beth Brait
____________________________________________
Profª Drª Elenice Aparecida Nogueira Gonçalves
3
Ao Tom, por todos os quês.
Aos meus pais, vivos na minha saudade, pelo quê definitivo.
4
Agradeço
À Profª. Drª. Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva, pela orientação, tanto a empírica como
a discursiva.
À Profª. Drª. Beth Brait, pelo estímulo inestimável.
À Profª. Drª. Elenice Nogueira Gonçalves, pelo incentivo primeiro: chamamento.
Ao CNPq, pelo patrocínio da imprescindível bolsa de estudo.
Aos colegas do Grupo Atelier, pelo apoio acadêmico, e mais ainda, pela amizade.
À Denise, pela disponibilidade para testar uma hipótese.
À Otília Ninin, por fada-madrinha.
5
Creio que este texto do teólogo Rubem Alves expressa bem as dificuldades encontradas
quando se escreve uma dissertação. Foi difícil o processo de construção desta pesquisa:
fazer, desfazer, refazer. Mas ela foi “escrita com sangue”. É continuação do meu corpo,
minha casa, minha bandeira, meu horizonte, meu altar...
O mundo acadêmico é algo aterrorizador. Escrever é uma coisa que produz medo.
E todos tratam de se proteger pelo estilo rebuscado e excessivamente técnico, na
esperança de que os leitores tomem águas barrentas por águas profundas. De fato,
o ideal de um texto científico é de algo tão perfeitamente tecido, tão provado e
comprovado, que o leitor fique mudo, só lhe restando o silêncio... Estou seguindo
um conselho de Nietzsche: “escrever com sangue”. É necessário que o texto, como
continuação do meu corpo, participe das minhas sombras e das minhas luzes. O
texto tem de abrigar o desejo, sugerir o fascínio dessa fala que pode virar pele,
casa, bandeira, horizonte, altar...
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RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo caracterizar o gênero de atividade do dentista como uma
atividade de trabalho / relação de serviço, presumindo que o atendimento dado ao paciente
durante a consulta inicial poderia começar a construir um efeito de sentido de “atendimento
humanizado”. Ela foi feita no Setor de Triagem da clínica odontológica de uma escola de
aperfeiçoamento profissional, na cidade de São Paulo, e se justifica porque, atualmente, há
uma demanda social por “humanização no atendimento ao paciente odontológico”, em que
o dentista, além de cuidar da promoção de saúde e da prevenção de doenças bucais,
segundo as prescrições do seu trabalho técnico-profissional e de acordo com o Código de
Ética Odontológica, também compreenda a dimensão da comunicação por meio da
interação linguageira com o paciente. Desse modo, vai-se procurar estabelecer a relação
texto/contexto, levando-se em conta a memória discursiva em relação à Odontologia,
quando comparada à Medicina. Para a análise dos dados, recorre-se a um pluralismo
teórico-metodológico: à ergologia (Schwartz), à psicologia do trabalho na vertente da
Clínica da Atividade (Clot) e à autoconfrontação simples (Faïta), disciplinas do trabalho; ao
princípio do dialogismo (Bakhtin) e às noções da teoria enunciativo-discursiva
(Maingueneau), teorias de linguagem; e utilizam-se os aportes e as contribuições do grupo
“Linguagem e Trabalho” sobre a co-construção de sentidos na interação, durante a
atividade (Boutet, Lacoste, Grosjean). Na elaboração dos dados de pesquisa, os métodos
usados foram entrevista, diário de campo, gravação em áudio e autoconfrontação simples.
O resultado da pesquisa, em que pese o fato de se haver analisado apenas um único ator
social, aponta para uma possível conclusão de que, ao exercer sua atividade de trabalho
segundo os preceitos ético-profissionais exigidos, o dentista pode promover um
atendimento humanizado, quando cria condições de o outro – o paciente, expressar sua voz.
7
SUMMARY
This research aims to analyse the genre of activity of the dentist, considering it as a work
activity / service relationship, and presuming that the “humanized attendance care”
meaning effect starts building itself during the dialogic interaction activity in the first
consultation. The research data were collected at the Triage Room of the dental clinic of a
professional improvement school, in São Paulo. The research justifies itself because, nowa-days, there is a social demand for the “humanized care for the dental patient” whith the
dentist following the techno-professional prescriptions of his work (i.e. taking care of,
promoting oral health and preventing bucal diseases) and of the Dental Ethic Code, but also
being aware of the comunicative interaction with the patient. In this sense, the text/context
relationship will be established, considering the discursive memory relating the dental and
the medical professions. For the analysis of the data corpus various theories and
methodologies were used, as ‘ergologics’ (Schwartz), the psychology of the work as seen
by the ‘Activity Clinic’ (Clot) and self-confrontation (Faïta), work disciplines; the
‘dialogism’ concept (Bakhtin) and the ‘french enunciative-discoursive discourse analysis’
(Maingueneau), language theories; and the french group ‘Language and Work’ conceptions
and contribuitions about the meaning co-construction during interaction in the activity
(Boutet, Lacoste, Grosjean). The methods used for the research data construction were
interviews, field booknotes, audio recordings and self-confrontation. The research outcome,
despite the fact that only one social actor was analysed, points out to a possible conclusion
that during his work activity the dentist can be as ethical as professionally required and
promote a humanized attendance, when creating conditions to the other – the patient, to
express his voice.
8
SUMÁRIO
Primeira parte: Linguagem e trabalho em pesquisa sobre a atividade do dentista
Introdução, p. 11
a. Problemática, p. 18
a.1. O gênero da atividade do dentista, p. 20
a.2. As cenas do encontro dentista-paciente: interação e diálogo, p. 25
b. Corpus: natureza e constituição
b.1. Contexto da pesquisa, p. 28
b.2. A Escola de Aperfeiçoamento Profissional e os vários setores, p. 28
b.3. O Setor de Triagem da EAP, p. 29
b.4. As funcionárias da Triagem: a dentista, a auxiliar, p. 30
b.5. Os pacientes atendidos pela Triagem, p. 31
b.6. Os textos que circulam na Triagem, p. 32
c. Objetivo e Questão de pesquisa, p. 33
d. (Hipótese e) Justificativa, p. 35
Capítulo 1: Alguns elementos históricos nas representações sobre a Odontologia, p. 38
Capítulo 2: Conceitos de “humanização”, p. 56
9
Segunda parte: Perspectivas teórico-metodológicas desta pesquisa, p. 68
Capítulo 3: Disciplinas do trabalho, p. 69
3.1. A ergonomia, p. 69
3.2. A ergologia e a renormalização das situações de trabalho, p. 71
3.3. A clínica da atividade e a confrontação dos sujeitos, p. 73
3.4. O método da autoconfrontação simples, p. 75
Capítulo 4: Teorias da linguagem, p. 77
4.1. O princípio do dialogismo, p. 78
4.2. A Análise do Discurso enunciativo-discursiva, p. 80
4.3. A co-construção de sentido na atividade, p. 85
Terceira parte: Metodologia, p. 88
Capítulo 5: A construção dos dados de pesquisa, p. 88
5.1. A entrevista inicial para autorização e consentimento, p. 88
5.2. O diário de campo, p. 89
5.3. A observação direta na Triagem, p. 90
5.4. A gravação em áudio da consulta inicial, p. 91
5.5. A autoconfrontação simples, p. 94
Quarta parte: Análise dos dados da pesquisa, p. 96
Capítulo 6: Categorias de análise lingüística, p. 98
6.1. As pessoas do discurso, p. 99
6.2. A modalização do próprio enunciado, p. 100
6.3. As vozes dos interlocutores, p. 105
6.4. O interdiscurso: Medicina / Odontologia, p. 110
10
Quinta parte: Discussão e considerações finais, p. 113
Sexta parte: Referências, p. 118
Apêndice: convenções usadas na transcrição dos diálogos da atividade, p. 125
Anexos
Primeira parte: materiais escritos sobre humanização
a. Anexo um: press release do Ministério da Saúde (divulgação 17 set. 2004) , p. 126
b. Anexo dois: notícia do jornal O Estado de São Paulo (19 ago. 2004), p. 127
c. Anexo três: notícia do jornal O Estado de São Paulo (9 abr. 2004), p. 128
Segunda parte: materiais agrupados pela pesquisadora, que se referem à Odontologia
d. Anexo quatro: Planta do 2º andar da EAP, p. 129
e. Anexo cinco: Decreto 9.311, p. 130
f. Anexo seis: Livreto Código de Ética Odontológica –
Capítulo V: DO RELACIONAMENTO, p. 131
g. Anexo sete: Ficha de triagem, p. 132
Terceira parte: materiais transcritos das gravações
h. Diálogo entre dentista e pesquisadora, em entrevista (Hospital do Câncer)
Anexo seis: Dentista F. e pesquisadora (cassete 1, lado A), p. 133
i. Diálogo entre dentista e paciente em consulta inicial (EAP)
Anexo sete: Dentista D. e paciente J. (cassete 2, lado A), p. 135
j. Diálogo entre dentista e pesquisadora - autoconfrontação simples (EAP)
Anexo oito: Dentista D. e pesquisadora. (minicassete 1, lado A), p. 144
11
Primeira parte
Linguagem e trabalho em pesquisa sobre a atividade do dentista
Introdução
“Há possibilidades infinitas de captar o mundo. Muitos pontos de vista nos escapam. No entanto, podemos
dizê-los: pela linguagem, falamos das fisionomias ocultas e não percebidas das coisas. Falamos delas em sua
ausência. Neste sentido, a palavra transcende todos os pontos de vista. A realidade não se reduz ao que pode
ser visto. Identifica-se também ao que pode ser dito”.
(Japiassu, 1990: 3)
O interesse no estudo da linguagem para as ciências do trabalho, desde o último
quarto do século XX, deve-se ao efeito das mudanças que sobrevieram no universo da
organização do trabalho, em que, de modo diversificado, mas contínuo, o lugar e o papel
do “fator humano” se impuseram de forma incontornável (Faïta, 2002: 45).
Nos últimos cinqüenta e poucos anos, na sociedade globalizada contemporânea, o
setor de serviços tem aumentado muito, com as necessidades econômicas do mercado,
constituindo-se uma parte significativa do universo do trabalho. Isso condicionou mudanças
que apresentam, entre outras conseqüências, uma transformação do estatuto, do
reconhecimento e do lugar da linguagem nos cenários profissionais, onde se pressupõem
competências relacionais, discursivas e comerciais com o destinatário, o usuário ou o
cliente do serviço. Ordens hierárquicas, modos operatórios, planejamentos, regulamentos,
encadeamentos de procedimentos, etc., são formas prescritivas assumidas pela coordenação
da ação, que recorrem ao manejo da linguagem (escrita e/ou oral). Do mesmo modo, a
interação oral está presente em quase todas as atividades de trabalho e é indispensável à
efetuação da maioria delas, o que torna a linguagem parte integrante essencial dessas
atividades. Relações de poder, de dominação, de cooperação, de aprendizagem mútua e de
solidariedade alimentam as múltiplas interações cotidianas (Lacoste, 2001: 24),
expressando-se pela linguagem.
Essa modificação de paradigma no mundo do trabalho gera condições em que a
produtividade e a competitividade se baseiam cada vez menos nos recursos primários e na
produção de bens básicos, e cada vez mais no conhecimento e na prestação de serviço,
intercambiados como mercadorias progressivamente mais valiosas, o que implica várias
12
mudanças, tanto para a economia, a política e a cultura, como, principalmente, para o
desenvolvimento individual das pessoas e para a sua interação social.
A palavra sempre se dirige a um interlocutor e é função da pessoa desse
interlocutor, variando caso se trate de uma pessoa do mesmo grupo social ou não; caso a
pessoa seja superior ou inferior na hierarquia social; caso a pessoa esteja ligada ao
locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido); etc.
(Bakhtin/Volochinov, 2004: 112). Além disso,
todo discurso incorpora outras vozes enunciativas. Assim compreendida, a
orientação dialógica, isto é, o permanente (e nem sempre simétrico) diálogo entre
discursos é um fenômeno característico deles, que implica interação viva e intensa.
Cumpre, aqui, fazer a notação de que “dialógico” é diferente de “dialogal”. Nas
situações de interação oral, as palavras do enunciador podem, a qualquer momento,
lhe “escapar” (se ele for interrompido pelo interlocutor), podem precisar ser
recuperadas ou tornadas mais precisas, em função das reações do outro, o que
constitui um discurso dialogal. No entanto, toda enunciação, mesmo produzida sem
a presença de um destinatário, é marcada por uma interatividade constitutiva,
dialógica: é uma troca, explícita ou implícita, com outros enunciadores reais ou
virtuais, e supõe sempre a presença de uma outra instância de enunciação à qual o
enunciador se dirige e com relação à qual ele constrói o próprio discurso. A
conversação pode ser considerada uma importante forma de manifestação da
interatividade essencial do discurso (Maingueneau, 2002: 54).
Daí a relevância da interação linguageira dentista-paciente, na primeira consulta,
para que se configure não apenas a impressão de competência e habilidade técnicoprofissional (que o paciente não tem condições de avaliar), mas também para que comece a
se estabelecer o efeito de sentido “atendimento humanizado” (noção que será explicitada
com mais detalhes no Capítulo 2: Conceitos de “humanização”). A linguagem é vetor de
estratégias, de relações de poder, de identidades profissionais, de modelos culturais, e a
maneira de o dentista interrogar o paciente ou de responder às suas perguntas, o modo de
explicar os tratamentos necessários, o grau de participação que ele permite ao paciente, isto
é, o dar voz ao paciente, podem fornecer pistas de leitura, em que o exercício do trabalho é
configurado por uma institucionalização da palavra (Lacoste, 2001: 40), apropriada a esse
gênero de atividade.
O trabalho oferece um exemplo sem equivalente das ligações intimamente
entrelaçadas entre a comunicação e a atividade, tanto na aprendizagem como na
cooperação, em que a prática inclui o ato material, o tocar, o gesto, a visão, e
também a palavra. A comunicação participa ativamente da construção social dos
conhecimentos, da sua memorização, da sua transmissão. O trabalho é um lugar
privilegiado para estudar as ligações entre comunicação e cognição (ibid.: 52).
13
Em todos os setores do trabalho, os apoios organizacional e instrumental da ação
coletiva evidenciam a necessidade de comunicações, que vêm ativá-la, atualizá-la,
completá-la, elucidar os erros de apreciação ou de interpretação, etc. As comunicações
tomam a forma de trocas no curso da atividade, para transmitir informações, passar
recomendações, discutir um problema urgente, programar a atividade em curso, entre
outras. Elas alimentam os atos de linguagem orientados segundo as linhas profissionais e
hierárquicas: ordens de cima para baixo (mas também de circulação horizontal) e avisos;
requisições, notificações, formulários; fichas, prontuários, atestados, relatórios; laudos,
pareceres, depoimentos, etc. Elas são indispensáveis ao funcionamento de organizações
complexas (como é o caso da gestão de uma clínica odontológica, por exemplo). As
comunicações fazem a palavra ir de um contexto sócio-histórico a outro, onde ela terá um
entendimento diferente. As comunicações também favorecem a confrontação e a reflexão,
ainda que, às vezes, possam ser consideradas como “tempo perdido”. No entanto, nas
comunicações ligadas à atividade de trabalho (sempre premida e restringida pelo tempo), o
uso da linguagem escrita1 constitui importante fato documental em eventuais processos de
natureza ético-administrativos - civis e/ou penais -, devidos tanto ao efeito de leis do
Código Civil como à lei 8.078, de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), circunstância
sempre passível de acontecer, nas relações de serviço.
Para além da necessidade profissional, a dimensão social das interações de trabalho
permite que se resolvam problemas em conjunto; que se conheçam melhor os colegas de
trabalho; que se partilhem lembranças; que se sinta prazer, ou desprazer, de estar junto.
A linguagem é parte integrante da estruturação das identidades profissionais, no
estabelecimento, na manutenção de comunidades de trabalho e na vida dos
“mundos sociais” da empresa. As identidades se marcam e se demarcam pelos
modos de interação e pelas formas discursivas. A comunicação também é o lugar
da expressão de desigualdades sociais, de antagonismos profissionais, de relações
de dominação e de elaboração de compromissos (Lacoste, 2001: 48).
Entretanto, comunicar-se não é fácil. A transparência da linguagem é uma ilusão, o
sentido se revela fugidio, a intercompreensão é sempre parcial, e a divergência de
perspectivas ou a diferença de experiências e de interesses é freqüente. Longe de ser uma
1
A linguagem oral, a computadorizada e a gravada em áudio e/ou vídeo ainda têm validade discutível como
fato documental.
14
evidência ou um dado, a comunicação é um trabalho sempre imperfeito, um ganho
provisório sobre a não-comunicação.
Até recentemente de importância desconhecida ou ignorada pelas profissões da área
de saúde, a prática do uso de linguagem adequada ao momento da interação inicial face a
face com o paciente é, entretanto, indispensável para garantir a eficácia da comunicação,
considerando-se que a interação é o caminho essencial que, enquanto dimensão
linguageira, se articula constitutivamente ao conceito de dialogismo (Brait, 2002: 135). A
relação entre a linguagem e a atividade de trabalho do dentista se evidencia não só em
textos que se produzem na própria situação de trabalho (prontuários, fichas clínicas,
receituários, atestados, formulários, avaliações, indicação ou pedido de encaminhamento e
de tratamento, laudos, etc.), mas também em texto prescritivo2 institucional sobre o ensino
da profissão: as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia
(Brasil. MEC/CNE, 2001). Instituídas em 2001, pela Câmara de Educação Superior do
Conselho Nacional de Educação (criado em 1998), essas Diretrizes elaboram um programa
pedagógico a ser executado e que está sujeito a avaliações periódicas na maneira como é
aplicado e ensinado aos estudantes. Vários documentos serviram como referência àquelas
Diretrizes: Constituição Federal Brasileira, de 1988; Lei Orgânica do Sistema Único de
Saúde, de 1990; Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996; Declaração
Mundial sobre Educação Superior no Século XXI, da Conferência Mundial sobre o Ensino
Superior, UNESCO: Paris, 1998; Relatório Final da 11ª Conferência Nacional da Saúde, de
2000, entre outros. No Art. 4º
- referente às competências e habilidades gerais do
cirurgião-dentista-, inciso III, as Diretrizes estabelecem que os profissionais precisam
aprender a se comunicar com pacientes, com outros profissionais da saúde e com a
comunidade em geral por meio de comunicação verbal, não verbal e habilidades de escrita
e leitura;
e devem ter o domínio de, pelo menos, uma língua estrangeira, além de
conhecerem tecnologias de comunicação e informação (Brasil. MEC/CNE, 2001: 23). E
estabelecem também, no Art. 6º, II3 (ibid.: 25), a inclusão de conteúdo curricular referente
2
Texto prescritivo: a prescrição de um trabalho, de uma tarefa ou de um ato, caracterizado por algumas
propriedades enunciativas, como emanar de um expert cuja presença enunciativa é apagada, e mencionar um
destinatário ou agente das ações prescritas, entre outras (Adam apud Machado, 2003:3).
3
Art. 6º - Os conteúdos essenciais para o Curso de Graduação em Odontologia devem estar relacionados com
todo o processo saúde-doença do cidadão (...) e devem contemplar: II. Ciências Humanas e Sociais – que
15
a Ciências Humanas e Sociais, para responder à demanda da sociedade por profissionais
dentistas que, além de cuidar da promoção de saúde e da prevenção de doenças, tenham
também formação humanística, cultural e ética à altura das exigências do mundo atual.
Tendo em vista a prescrição, o professor de Ciências Humanas e Sociais em
Odontologia tenta realizar essa tarefa organizando as condições de aprendizado dos alunos
(Amigues, 2002: 1), considerando que as práticas de leitura e escrita fazem parte da
organização científica do trabalho, gerando uma obrigação de letramento dos
trabalhadores, em todas as profissões (Boutet, 2005b: 1). Alguns estudantes, entretanto,
parecem não ter interesse em relação ao conteúdo da disciplina, talvez por pensarem que
Ciências Humanas e Sociais não se referem diretamente ao agir concreto do dentista, ou,
possivelmente, por não se aperceberem de que nenhuma forma de trabalho (inclusive o do
profissional da área da saúde) está separada das relações políticas, sociais, econômicas e
culturais que fundamentam as estruturas e os costumes de uma sociedade. Esses alunos não
se dão conta, provavelmente, de que toda forma de trabalho se expressa, em grande parte,
por meio da comunicação linguageira e, desse modo, parecem não valorizar o aprendizado
daquela disciplina.
Seguindo o prescrito pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Graduação em Odontologia, o projeto pedagógico (Gonçalves, 2003) de uma faculdade
particular, em São Paulo, incluía, até 2004, a disciplina de Ciências Humanísticas em todos
os semestres do curso. Em classe, os alunos eram estimulados a valorizar a comunicação
verbal e as habilidades de escrita e leitura. No entanto, para justificar a falta coletiva à
aula, alunos do 6º semestre redigiram bilhetes que mostram não apenas o baixo nível de
desempenho na produção de um texto escrito, como também a pouca importância atribuída
à disciplina, em comparação com outras do currículo (Fisiologia e Patologia, por exemplo),
o que estabelece uma relação com a problemática considerada neste estudo.
Verificar alguns bilhetes, a seguir:
incluem conteúdos referentes às diversas dimensões da relação indivíduo/sociedade, contribuindo para a
compreensão dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, éticos e legais, nos níveis
individual e coletivo, do processo saúde-doença.
16
17
18
a. Problemática
Hoje em dia, há uma maior complexidade nas atividades de trabalho que são
relações de serviço em que o “produto” oferecido é a saúde - bem inestimável, devido à
redução de investimentos em políticas de saúde pública; aos problemas sociais de
atendimento clínico e/ou hospitalar, principalmente para a população de baixa renda; aos
avanços das práticas clínico-terapêuticas e à conseqüente necessidade de atualização do
conhecimento específico; ao constante desenvolvimento tecnológico de instrumental e
aparelhos operatórios; e, principalmente, à mudança de peso dos valores atribuídos aos
pólos econômico, político (das dimensões propriamente históricas da situação) e o do
debate de saberes investidos na atividade, a que se vê convocado todo indivíduo, num meio
de trabalho particular (Schwartz, 1997: 31).
19
O profissional da saúde não ignora que, como ele, o paciente é um ser humano
complexo, com emoções, sentimentos e necessidades que vão além do problema físico mais
aparente e imediato. Como o profissional, o paciente é um ser vivo com humor, disposição
e disponibilidade extremamente variáveis, com individualidade e história próprias, com
valores pessoais e sociais, desejos, angústias, saberes, preocupações, a serem considerados
e respeitados, já que não existe um “eu” pronto ou onipotente; existem estados cerebrais
que estão em constante mutação por influência da história pessoal, das emoções, do meio
social, do acaso, os quais arranjamos em nossa narrativa particular. Natureza e cultura
não se opõem; elas se relacionam o tempo inteiro, numa troca incessante e não-linear
entre o herdado e o vivido (Ridley, 2003)4. Para lidar com essas realidades, não basta
apenas conhecer a teoria específica das ciências biológicas básicas e da propedêutica clínica
própria da área odontológica, no caso desta pesquisa, mas também há que considerar a
representação sócio-histórica que foi sendo construída sobre essa atividade de trabalho ao
longo tempo, na nossa cultura, e quais efeitos de sentido se estabelecem, para o paciente,
sobre a profissão e o profissional.
A pesquisa na situação de trabalho adota como pressuposto que o mundo só existe
como representações sócio-históricas atualizadas nos diálogos entre a atividade, o
pensamento e a linguagem (Vieira, 2002: 19). A atividade não se limita àquilo que se fez,
mas engloba também todo o entorno de possibilidades – o que não foi feito, o que poderia
ou deveria ser feito, o que se gostaria de fazer, e o que se faria para não fazer o que precisa
ser feito-, como considera a Clínica da Atividade (a ser conceituada no Capitulo 3.
Disciplinas do trabalho). Na perspectiva deste estudo, coloca-se um outro problema à
compreensão da proposta: considerar a associação do gênero da atividade primeira consulta
odontológica ao gênero cientifico da reflexão sobre a atividade do dentista como
a transposição de uma postura tradicional de isolar o material de análise da sua
situação de origem para justificar a descoberta de regularidades que, a seu turno,
induzam à aplicação de regras/respostas independentemente da dinâmica própria do
desenvolvimento da situação observada. Assim, é preciso considerar a relação
entre estabilidade das estruturas e instabilidade dos efeitos de sentido aí
integrados, devido à variabilidade das situações de comunicação, e ao papel da
comunicação na produção de sentidos (Faïta, 1998 apud Vieira, 2002: 20).
4
RIDLEY, Matt. (2003). Nature via nurture. Reino Unido: Harper Collins. Disponível em :
http://www.edge.org/books/books_index.html#ridley. Acesso em 4/abr./2005.
20
a.1. O gênero da atividade do dentista
“O gênero da atividade é um modo de saber se situar na situação de trabalho e saber como agir; é um
recurso para evitar errar sozinho diante da quantidade de bobagens possíveis. Sua adoção marca o
pertencimento a um grupo e orienta a ação.”
(Darré, 1994 apud Clot, 2001: 19)
A análise das formas históricas dos diferentes modos de cooperação e de divisão do
trabalho não é nova, e a reflexão sobre esse assunto vem sendo desenvolvida desde os
pensadores da Antigüidade até hoje em dia, passando por Adam Smith (1723-90) e por
pensadores do século XIX:
Marx (1818-83) falava do “trabalhador coletivo”, enquanto Proudhon (1809-65)
usava o termo “produtor” (coletivo de trabalho) em oposição a “trabalhador”
(indivíduo, elemento do produtor). Atualmente, muitos autores concordam que há
“uma escalada do coletivo” no trabalho, em correspondência a transformações de
ordem cultural, sociológica, tecnológica, econômica, etc., o que reativou, por parte
dos pesquisadores, a atenção atribuída ao caráter coletivo do trabalho e aos modos
de utilização da força coletiva (Efros, 1997: 42).
Os americanos Taylor (1856-1915) e Ford (1863-1947) desenvolveram modelos de
trabalho com modos específicos de organizar o processo produtivo de gerir o trabalho, de
influir e de ser influenciado por outros atores sociais, que tanto favorecem quanto impõem
limites à elaboração e disseminação de um projeto racional de mudança nas formas de
organização dos processos produtivos e nas relações sociais (Régnier)5.
Existe, entre a organização do trabalho e a atividade do próprio ator social, um
trabalho de reorganização da tarefa pelos coletivos profissionais, uma recriação da
organização do trabalho pelo trabalho de organização do coletivo. Pesquisadores
contemporâneos, como Clot et al. (2001: 19), designam essa reorganização do trabalho
como o gênero social do ofício, ou gênero profissional6, isto é, as “obrigações” a que estão
sujeitos os trabalhadores para poder trabalhar, freqüentemente apesar de tudo, às vezes
5
RÉGNIER, Karla von Döllinger. Alguns Elementos sobre a Racionalidade dos Modelos Taylorista,
Fordista e Toyotista. Disponível em: http://www.senac.br/informativo/BTS/232/boltec232d.htm. Acesso em
3/dez./2005.
6
Gênero profissional ou gênero do métier (do ofício), tomados como sinônimos, é o que leva em conta as
características do coletivo de trabalho, enquanto gênero da atividade é qualquer atividade, e todo o entorno
em que ela é exercida, independente de ser atividade de trabalho e de ser ou não remunerada, segundo Seaujat
(2005). Nos limites desta pesquisa, usam-se os termos gênero de atividade e gênero profissional
(Odontologia) como equivalentes.
21
apesar da organização prescrita do trabalho. É uma espécie de “intercalaire” social, um
corpo de avaliações partilhadas que regulam tacitamente a atividade pessoal.
Os gêneros da atividade se constituem das maneiras de pensar e de agir
sedimentadas no meio de trabalho e moldadas por ele. Isso inclui também implícitos, que
se apresentam sob a forma de normas e de regras prescritivas: valores exógenos,
elementos de cultura profissional, ou de rotinas (Faïta, 2001: 282).
Para justificar o uso da noção de “gênero”, Clot e Faïta (2000: 9) se reportam ao
conceito bakhtiniano: gêneros de discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados
(Bakhtin, 2003: 262).
Em cada esfera da atividade humana e da comunicação existem e são empregados
gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo. Uma
determinada função (científica, técnica, pública, oficial, cotidiana) e determinadas
condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram
determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos,
temáticos e composicionais relativamente estáveis (ibid.: 266).
As relações entre o sujeito, a língua e o mundo não são diretas, elas se manifestam
nos gêneros de discurso disponíveis, sendo que se eles não existissem e fosse preciso criálos pela primeira vez no processo do discurso, durante a interação, a comunicação
discursiva seria impossível (ibid.: 283). Partindo da oposição entre tarefa prescrita e
atividade real no trabalho, as formas prescritivas que os trabalhadores se impõem são, ao
mesmo tempo, coerções e recursos Clot e Faïta (2000: 11), já que, se fosse preciso criar a
cada vez, cada uma das nossas atividades na ação, o trabalho seria impossível. O gênero da
atividade repousa sobre um princípio de economia da ação e é a parte subentendida da
atividade, aquilo que os trabalhadores de um determinado meio conhecem, esperam e
reconhecem; o que lhes é comum e que os reúne sob condições reais de vida; o que eles
sabem dever fazer graças a avaliações pressupostas, sem que seja necessário reespecificar a
tarefa cada vez que ela se apresenta. É como uma “senha” conhecida apenas pelos que
pertencem ao mesmo horizonte social e profissional.
É uma memória mobilizada pela ação. Memória impessoal e coletiva que
caracteriza a atividade em situação: maneiras de se comportar, maneiras de se
dirigir ao outro, maneiras de começar e de terminar uma atividade, maneiras de
conduzi-la eficazmente ao seu objetivo. Essas maneiras de considerar as coisas e as
pessoas, em um determinado meio de trabalho, formam um repertório de atos
convencionados, retidos pela história desse meio (...) e constituídos por uma gama
sedimentada de técnicas intelectuais e corporais, tecidas entre as palavras e os
gestos do ofício. Isso constitui um esquema “pronto para agir”, um meio
econômico de se colocar na situação (...) e de organizar atribuições e obrigações do
22
gênero profissional. Ele rege não as relações intersubjetivas mas as relações
interprofissionais. (Clot et al., 2001: 19).
Se o aspecto normativo dá consistência e perenidade ao gênero da atividade, este
também é o recurso para enfrentar as exigências da ação, e o objeto de ajustes e de
modificações daqueles que o utilizam. Esse trabalho de ajustamento do gênero, para
transformá-lo em instrumento da ação, é o estilo da ação do trabalhador na situação
profissional, ou um tipo de emancipação em relação a certas coerções genéricas: na
verdade, uma dupla emancipação (ibid.: 19). De um lado, há uma emancipação em relação
à memória impessoal, com o sujeito se distanciando da coerção, conservando o benefício
do recurso, modificando e metamorfoseando a regra, o gesto ou a palavra, inaugurando uma
variante do gênero profissional. De outro lado, a emancipação em relação à história pessoal,
em que os esquemas pessoais, mobilizados na ação, são ajustados sob o duplo impulso do
sentido da atividade e da eficiência das operações. O estilo é, então, um “misto” que
descreve o esforço de emancipação do sujeito em relação à memória impessoal e em
relação à sua memória singular, esforço sempre voltado para a eficácia do seu trabalho
(ibid.: 20), havendo tantos estilos diferentes quantos são os atores sociais, num mesmo
gênero de atividade.
Essa implicação complexa do ator social se expressa de duas formas, qualificadas
como estilo: de um lado, a estilização do gênero profissional, ou adaptação à
situação atual de hábitos e efeitos da memória coletiva e das culturas do meio de
trabalho, e, por outro lado, a construção contínua de um reposicionamento pessoal
do sujeito, um gênero individual (Faïta, 2001: 282).
O gênero da atividade se apresenta, portanto, sob a forma de uma sucessão de
momentos que oferecem problemas - sempre inéditos no todo ou em parte-, a serem
resolvidos pelos atores sociais, nas situações de ação. Tais problemas supõem decisões ou
escolhas e impõem normas diferentes, afastadas da ação propriamente dita: determinações
econômicas, técnicas, regimentais, institucionais ou hierárquicas, que obrigam o sujeito a se
redefinir a partir de seus próprios conhecimentos e valores, e que convocam gêneros de
técnicas, isto é,
a ponte entre a operacionalização formal e prescrita dos equipamentos materiais e
das maneiras de agir e de pensar, com uma gama de atividades impostas, possíveis
ou proibidas, e com significações e operações anteriores formando a textura do
gênero e suas variantes. Poder-se-ia dizer que os gêneros de discurso e os gêneros
de técnicas formam os gêneros da atividade (Clot et al., 2001: 12).
23
O exercício da linguagem no universo de trabalho é dependente de um conjunto de
condições de natureza ecológica, como o barulho, o tempo, o posicionamento dos atores
sociais (Boutet, 2005b: 3). Essa ancoragem forte da linguagem no contexto da ação e nos
contextos ecológicos caracteriza uma maneira própria de se comunicar e de interagir e gera
um conjunto de propriedades dos gêneros profissionais, segundo Boutet.
Há a considerar, também, que a linguagem oral é acompanhada por manifestações
semióticas não verbais (olhar, mímicas, gestos, entonação), próprias à oralidade e
estreitamente imbricadas à atividade de trabalho que ela acompanha ou realiza (Grosjean,
2001: 143). A interação face a face, definida pela co-presença dos participantes, implica
uma prática plurissemiótica. Nela,
um pequeno número de pessoas entra em contato, se vê e se ouve, e o espaço
delimita a ação, o movimento e a disposição respectiva das pessoas, a distância, a
orientação dos corpos e dos olhares, a atenção ao outro, os gestos, as mímicas, o
conjunto dos comportamentos expressivos. (ibid.: 146).
Na análise dos dados deste estudo, algumas manifestações semióticas não-verbais
serão consideradas como parte integrante da interação dialógica que se estabelece na
primeira consulta, o que significaria, em hipótese, que tais manifestações colaboram com o
aspecto lingüístico-discursivo na construção do efeito de sentido de uma atitude
humanizada no atendimento ao paciente.
No consultório odontológico, o trabalho do dentista está sujeito a várias prescrições,
originadas em diferentes níveis e em constante tensão: a) prescrições que vêm da formação
acadêmica, com saberes específicos (Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Graduação em Odontologia), e prescrições ético-profissionais (Código de Ética
Odontológica e leis que regulam o exercício da profissão); b) prescrições organizacionais,
que se modificam conforme a instituição, o hospital ou a clínica em que esteja localizado o
consultório; c) prescrições e autoprescrições, na própria situação de trabalho, em que
ocorre reorganização das tarefas em função de interações, tanto com outros profissionais e
com pessoal auxiliar (atendente de consultório, secretária, etc.), como com o paciente (e,
eventualmente, com o acompanhante deste). Isto vai exigir do dentista, além das
competências técnicas específicas, competências discursivas, comerciais e relacionais
(estabelecidas inclusive no Capítulo V do Código de Ética - Anexo seis), a serem
24
constantemente reorganizadas na situação de trabalho do consultório, em função das várias
interações que aí se estabelecem.
No entanto, os enunciados que acontecem durante a consulta inicial mostram uma
falta de variedade de tipos de discurso, um registro lexical limitado e uma complexidade
sintática fraca, além de uma característica muito marcante que é a repetição (mesmas
frases ou mesmas palavras: o que está incomodando o senhor? Sente dor? Por que veio
procurar este serviço?), e pontuada pelo questionamento relativamente estruturado do
profissional (Grosjean, 1993: 33).
Não somente os interlocutores do dentista são numerosos, como as funções
preenchidas por ele nas suas diversas atividades são muito variadas e ele se ocupa de cada
uma dessas atividades de maneira diferenciada. Assim, o dentista, como todo indivíduo em
situação de trabalho,
dispõe de diversas “vozes”, modos de interação materializados em marcas
lingüísticas, pelos quais ele exprime sua implicação na situação e as posições que
assume, em relação ao seu interlocutor. Esta capacidade de passar facilmente de
uma posição enunciativa a outra é uma condição necessária ao exercício de toda
profissão de saúde, que certamente implica empatia com o paciente, mas que
também supõe ser capaz de manter um distanciamento em relação a ele, o que
permite ao profissional exercer um saber e aplicar técnicas que o paciente não
possui e pelos quais ele está ali (ibid.: 44).
Se as formas prescritivas estabelecem o que deve ser feito no atendimento clínicoterapêutico e como executá-lo, elas não indicam, porém, como se apresentar
discursivamente ao paciente na situação não-clínica da primeira consulta-entrevista. Assim,
na sua ação no consultório, o dentista “fabrica” (Seaujat, 2005) uma interação linguageira
para além das perguntas pré-estabelecidas do prontuário7, e prévia à ocorrência de
procedimentos clínicos. O que é ensinado na formação acadêmica e está prescrito em leis e
no Código de Ética, é que haja preenchimento de prontuário, com o objetivo de
documentação e/ou defesa em eventual processo ético ou legal. Isto é, na graduação
aprende-se gênero de discurso, gênero de técnica e a linguagem do ofício (Boutet, 2005b:
6). O gênero da atividade ou gênero profissional “consulta inicial” é construído na prática
7
O prontuário do paciente é preenchido na primeira consulta clínica, com respostas às perguntas sobre dados
de identificação pessoal; anamnese, com queixa principal e história da doença atual; história médica; história
odontológica; antecedentes mórbidos familiares; hábitos; exame físico geral extra e intrabucal - dentes e
tecidos moles (língua, bochechas, lábios).
25
da atividade industriosa cotidiana, em que o estilo de cada dentista seria uma
ressingularização das normas antecedentes (Schwartz, 1997), nas quais
as seqüências das operações são preconcebidas com um luxo de precisão, como em
todos os gêneros, de tal forma que nenhuma outra “racionalização” pareça possível,
embora modalidades múltiplas de recomposição seqüencial, espacial e temporal,
além de micro-utilização do instrumental ou micro-cooperações, negociadas no
instante mesmo da atividade, obriguem a levar em conta outras “razões”, tão
legítimas como as dadas e consideradas como sem concorrência possível (ibid.: 5).
a.2. As cenas do encontro dentista-paciente: interação e diálogo
Houve considerável avanço na área de pesquisas científicas em Odontologia e
grande desenvolvimento tecnológico dos instrumentos e aparelhos usados na prática
profissional. Atualmente, melhores efeitos terapêuticos são conseguidos com os novos
medicamentos e há mais qualidade nos materiais e maior eficácia dos métodos empregados
nos tratamentos. Esse progresso diz respeito à parte técnica do gênero profissional, no qual,
entretanto, a interação linguageira (também) exerce um papel importante, considerando-se
que a Odontologia é uma relação de serviço, na qual a comunicação é
é um bom exemplo da contribuição da linguagem na resolução de problemas, já
que há uma relação duplamente desigual: desigualdade de status entre os
interlocutores, e disparidade, menos reconhecida mas bem mais sensível, no acesso
de um e de outro aos elementos constitutivos da experiência, e aos modos de
formalização e de representação dos saberes operatórios (Faïta, 2001: 265).
O exercício da atividade profissional do dentista envolve um terceiro, o paciente,
alvo de intervenções especializadas e participante implicado na co-construção dos sentidos
e na re-elaboração de representações sócio-históricas construídas, ao longo do tempo, a
respeito da profissão Odontologia. O paciente é o indivíduo que “precisa de atendimento” e
solicita um serviço ao dentista, colocando-se naquela situação duplamente desigual: tanto
porque a demanda por tratamento ou cura o torna agente passivo e tributário da resposta do
profissional, como pelo fato de haver diferença de saberes formais entre esses
interlocutores. Por sua vez, o dentista está sujeito a exigências específicas, a normas (e
renormalizações) de procedimentos e à tomada de microdecisões, independente e apesar de
todos os prescritos que circulam no ambiente de trabalho.
26
O trabalho do dentista é sui generis, já que, mesmo quando faz parte de uma equipe
multidisciplinar, em geral ele trabalha sozinho junto ao paciente, enquanto executa os
procedimentos de sua especialidade (a menos que essa intervenção seja cirúrgicohospitalar). Outra particularidade do gênero profissional do dentista é que, em geral,
enquanto exerce sua atividade clínica, no consultório, e manipula instrumentos e aparelhos,
trabalhando na boca do paciente8, o dentista quase não fala, a não ser para fazer alguma
observação sobre o procedimento (“Vou passar uma pomada anestésica, aqui”, “Agora,
vou tirar uma radiografia”, “Atenção! Vai doer um pouco!”), se informar quanto à reação
do paciente (“Quando e como esse dente doeu?”, “Está sentindo o lábio anestesiado?”), ou
dar uma ordem (“Pode cuspir!”, “Abra mais a boca!”, “Levante a mão, se doer!”). Por
sua vez, enquanto está sendo tratado, sentado na cadeira odontológica do consultório, o
paciente não fala absolutamente nada, por razões óbvias... portanto, não há diálogo.
Cada universo de trabalho é marcado por um estilo de comunicação, uma cultura
verbal e formas privilegiadas de troca oral e/ou escrita.
No trabalho, a linguagem verbal é, ao mesmo tempo, mais essencial e menos
autônoma do que em geral se admite. Mais essencial porque as situações sem
palavras são raras, mas menos autônoma porque a comunicação se materializa
numa pluralidade de modalidades semióticas complementares: gestos e atos,
palavras e escritos. Nesse universo, onde coexistem múltiplas fontes de
informação, a palavra funciona em estreita relação com o contexto. (...) Ela
sanciona os acontecimentos técnicos, ela os prolonga, os anuncia, os interpreta.
Esta “linguagem da ação”, elíptica, às vezes codificada, dependente do contexto,
coagida pelo espaço-tempo do trabalho, ilustra a construção mútua da atividade e
da comunicação numa estreita reciprocidade entre o fazer e o dizer (Lacoste, 2001:
30).
O dentista se apresenta discursivamente na consulta inicial quando, ao preencher o
prontuário com o histórico do paciente, estarão ambos sentados frente a frente,
provavelmente num ambiente diferente daquele da sala de atendimento.
Essa primeira consulta é o momento crucial do desenvolvimento de parcerias,
estratégias, conflitos e competências, durante a qual podem ocorrer alterações importantes
na prática e na construção de sentido dessa atividade, com modificação dos assuntos
abordados e da seqüência de perguntas do prontuário, com questões pré-estabelecidas e
respostas previsíveis (Vieira, 2002:38). Nessa situação, podem ocorrer alterações
8
Paciente, neste trabalho, refere-se sempre ao paciente adulto, uma vez que tanto a clínica odontológica
pediátrica como a hebiátrica têm especificidades muito próprias, e nada do que se refira ao paciente criança
ou adolescente será contemplado nesta pesquisa.
27
importantes na prática e na construção de sentido da atividade odontológica, com
modificação dos assuntos abordados e da seqüência de perguntas do prontuário, que tem
questões pré-estabelecidas e respostas previsíveis. Nesse momento, sim, a palavra funciona
como “linguagem da ação” (Lacoste, 2001: 30), em que há reciprocidade entre o fazer e o
dizer, e há relação com o contexto sócio-histórico. As condições de produção e recepção do
discurso são coagidas pelo espaço-tempo da atividade de trabalho, com o profissional
explicando os procedimentos terapêutico-clínicos a serem seguidos nas consultas seguintes,
segundo um plano de tratamento que não propõe oferecer um “produto” pré-fabricado,
estandardizado ou com garantia de durabilidade, mas estabelece um plano de tratamento
individualizado e único para cada paciente, para alcançar um determinado “objetivo” (uma
restauração, uma prótese, um tratamento endodôntico, etc.), e justificar porque o
planejamento original poderia ser modificado em função de “n” razões fisiológicas ou
patológicas, ou por imprevistos, tudo isso afetando o “resultado” final. Assim, nas
próximas vezes em que o paciente retornar para atendimento, a manipulação do
instrumental e de aparelhos implicará interação linguageira bem mais específica,
diretamente misturada às atividades materiais, às condutas perceptíveis, gestuais, e às
manipulações de objetos e de instrumentos (ibid.: 30), o que poderia caracterizar uma
linguagem funcional, ou linguagem operativa (Boutet, 2005b: 6), nas quais
as trocas não responderiam nem ao formato do diálogo, nem àquele da conversação
ordinária; eles desenhariam uma prática da linguagem e da comunicação específica,
fortemente coagida tanto pelas ações e pelas tarefas do trabalhador, como pelo
universo material no qual elas se desenvolvem – com máquinas, aparelhos, barulho,
posicionamento dos atores sociais (ibid.: 4).
Desse modo, aquela prévia apresentação discursiva do dentista pode ser
determinante para a comunicação efetiva (ou não) com o paciente, já que este, ao se
submeter ao tratamento, tem condições de avaliar a atitude, mas não a competência do
profissional nos procedimentos técnico-operatórios de especificidade odontológica.
M
28
b. Corpus: natureza e constituição
b.1. Contexto da pesquisa
Tendo em vista a formação acadêmica desta pesquisadora, graduada pela Faculdade
de Odontologia da USP, com curso de especialização na disciplina de Endodontia9, feito
em Escola de Aperfeiçoamento Profissional particular (EAP), e a necessidade dela de
responder a uma questão de pesquisa, analisando o diálogo dentista-paciente na consulta
inicial, foi definida a escolha de um contexto em que o tratamento odontológico oferecido
a pacientes com baixo poder aquisitivo implicasse comprometimento social e, talvez por
isso, humanização no atendimento (no sentido aqui estabelecido). Por outro lado, levando
em conta que o conhecimento sobre a situação de trabalho a ser analisada, além de facilitar
a pesquisa, alcançaria um melhor resultado se contasse com o apoio dos atores sociais
envolvidos, dependendo de confiança, credibilidade e comprometimento que a
pesquisadora pudesse lhes inspirar, foi escolhido o setor de Triagem das clínicas daquela
Escola de Aperfeiçoamento Profissional, em São Paulo.
b.2. A Escola de Aperfeiçoamento Profissional e os vários setores
A Escola de Aperfeiçoamento Profissional (EAP) foi fundada em 1954, na cidade
de São Paulo. Desde 2002, a EAP tem sede própria em prédio de cinco andares, com quatro
clínicas e 110 consultórios informatizados e com equipamentos de última geração;
auditórios, teatro, biblioteca; Centros de Radiologia, Tomografia e Laser; Laboratórios de
Patologia, de Microscopia Operatória, de Informática e de Prótese; Triagem; e ProntoSocorro comunitário (funcionando 24 horas). A EAP oferece mais de 70 opções de cursos
(pagos), nas diversas áreas da Odontologia, visando a elevar a capacitação técnicocientífica de profissionais já formados. Há cursos de especialização (duração de 700 a
2.000 horas), atualização (duração de 96 a 180 horas) e reciclagem (duração de 30 a 90
9
Disciplina que trata de etiologia, diagnóstico, terapêutica e profilaxia das doenças e lesões que afetam os
tecidos dentários pulpar e periapical.
29
horas), além de cursos másteres, projeto Reciclar e cursos mensais (nas férias, por exemplo)
para atrair profissionais-alunos de outros Estados. É o mais moderno centro de educação
continuada da América do Sul e não está ligada a nenhuma universidade, embora os
professores contratados (por 50% do arrecadado pelo curso ministrado) para dar as aulas
tenham títulos acadêmicos. Os cursos de especialização são credenciados e reconhecidos
pelo Conselho Federal de Odontologia e a utilidade pública da EAP é reconhecida nos
âmbitos federal, estadual e municipal. A EAP está ligada à entidade credenciada como
filantrópica, pelo Programa de Expansão Profissional – PROEP, desde 1973, processo MJ
nº 52.375/74.
As quatro clínicas (com quarenta e oito equipos), as salas de material cirúrgico, de
esterilização de instrumental, de apoio à Prótese e do Almoxarifado; o Centro de
Radiologia; a Triagem; a sala da Assistência Social; a sala de espera dos pacientes (60
lugares); as salas de arquivos de pastas, radiografias, prontuários e documentos; o
escovódromo e um auditório (30 lugares) ficam localizados no 2º andar do prédio da EAP,
servido por lances de escada em três disposições tópicas diferentes e por quatro elevadores,
o que permite, sem dificuldades, o acesso de crianças, gestantes, idosos e deficientes físicos
aos diversos serviços especializados. (No escopo deste estudo, a facilidade de acesso aos
vários setores de serviços e a possibilidade da eventual remoção de paciente em cadeira de
rodas ou em maca são consideradas atitudes promotoras de atendimento humanizado aos
pacientes da EAP.)
A planta mostrada no Anexo quatro permite a visualização topográfica desse espaço.
b.3. O Setor de Triagem da EAP
Na sala da Triagem da EAP, estão montados três consultórios completos, embora
nenhum outro procedimento clínico se realize nesse espaço, a não ser a consulta para triar
os pacientes. Os boxes são separados por muretas de alvenaria de 1m de altura; todos têm
bancada com pia e armários; o do meio tem um computador que, teoricamente, deveria ser
usado para colocar os dados cadastrais e a anamnese dos pacientes em rede com os
30
computadores existentes nos consultórios das
clínicas. No entanto, até agosto de 2004,
prontuários,
ficha
encaminhamento
de
eram
triagem
e
de
preenchidos
manualmente. A profissional D., ator social
desta pesquisa, utiliza o consultório central, e
como não há escrivaninha onde apoiar a
documentação a ser feita, ela usa a mureta que
separa os boxes para fazer isso, de maneira a
não dar as costas ao paciente, como seria o caso
se a bancada fosse usada. O espaço físico do consultório é o mínimo necessário para a
instalação do equipo completo, da cadeira odontológica e do mocho (cadeira) da dentista.
Não há lugar ou cadeira para acompanhante.
Essa cenografia é a que atribui um estatuto pragmático e social ao gênero
profissional consulta odontológica inicial para triagem, a que pertencem os textos que
ocorrem durante a interação dentista – paciente. Isso implica essa cena específica, com
papéis para os parceiros, um modo de inscrição no tempo e no espaço, uma finalidade, etc.:
essa cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra
(Maingueneau, 2002: 87).
b.4. As funcionárias da Triagem: a dentista, a auxiliar
A profissional D. é cirurgiã-dentista, formada pela Faculdade de Odontologia da
UNISA, com especialização em Periodontia10, na mesma UNISA. Atualmente, faz pósgraduação no Programa de Mestrado Ensino em Ciências da Saúde, da Escola Paulista de
Medicina, UNIFESP. Ela é a única dentista que trabalha na Triagem e é hierarquicamente
submissa apenas à Coordenação da EAP. Desde o início de 2004, D. faz parte do quadro
efetivo de funcionários da EAP, diferentemente dos professores ministradores dos cursos,
contratados para a prestação deste serviço específico e sem vínculo empregatício com a
10
Disciplina que se especializa no estudo dos tecidos de sustentação do órgão dentário: gengivas, osso
alveolar e ligamento periodontal, e no tratamento de suas afecções.
31
escola. Isso implica diferenças de direitos, de deveres e de responsabilidades que
influenciam a gestão do trabalho, as relações interprofissionais e o envolvimento da
dentista no atendimento dado ao paciente.
Embora uma multiplicidade de atividades esteja implicada no trabalho da dentista,
quando no consultório da Triagem ela trabalha sozinha, sem auxiliar nem atendente. A
secretária C., da recepção do Setor de Triagem (verificar localização na planta do 2ª andar,
Anexo quatro), funcionária contratada da EAP, traz as pastas com ficha da assistente social
e radiografias dos pacientes, acompanha-os até a entrada do consultório e, às vezes, dá
alguma informação solicitada, postando-se em pé e atrás da cadeira do paciente. Ela nem
auxilia na recepção/acomodação dele (colocando guardanapo, por exemplo), nem interfere
em nenhum procedimento (como escrever anotações ditadas pela dentista, durante o exame
clínico).
b.5. Os pacientes atendidos pela Triagem
Para um paciente ser tratado na EAP, ele não pode ter condição financeira que lhe
permita arcar com o custo do tratamento em consultório ou clínica odontológica particular.
A avaliação sócio-econômica é feita por uma assistente social, funcionária da EAP, por
meio de entrevista agendada por telefone. Na data marcada, quando chega à portaria do
prédio, o paciente é encaminhado diretamente à sala de Assistência Social e, após a
entrevista, ele segue para o Centro de Radiologia, na sala ao lado, onde são feitas as
radiografias panorâmicas11 iniciais. Em seguida, no Centro de Atendimento ao Paciente
(Recepção e Arquivo de Prontuários), o encaminhamento prossegue: todo paciente deverá
ser examinado no Serviço de Triagem, para só então, e eventualmente (caso haja
necessidade didática ou interesse de algum professor no problema particular do paciente),
ser marcado um horário para que ele seja atendido em algum curso em andamento nas
clínicas da EAP. Atualmente, em função do elevado número de candidatos ao tratamento
nas clínicas de alto padrão tecnológico e baixo custo financeiro, há uma lista de espera (por
11
Radiografias de toda a arcada dentária, superior e inferior, numa mesma película. No decorrer do
tratamento, outras radiografias – periapicais (de pequenos grupo de dentes) - serão tiradas na própria clínica,
durante o atendimento do paciente.
32
ordem de chegada) de 2.000 pacientes, que já passaram pela assistente social e pela
Radiologia, e que aguardam, às vezes até dois anos, ser chamados pela Triagem.
Os casos em que haja necessidade de um diagnóstico diferencial ou mais específico
nos tecidos moles (gengiva, língua, bochechas, lábios, palato mole) são encaminhados pela
Triagem à Semiologia, no 3º andar. Os casos de emergência são atendidos imediatamente
no Pronto-Socorro da EAP, após o que são encaminhados para a Assistência Social e
prosseguem o cadastramento habitual. Os casos indicados para as especialidades de
Ortodontia (aparelhos de correção), Cirurgia buco-maxilo-facial ou que tenham necessidade
de atendimento hospitalar se constituem exceções e são encaminhados diretamente para
esses serviços, sem passar pela Triagem.
Resumindo, uma prescrição hierárquica oral determina que, na Triagem, apenas
pacientes já avaliados pela assistente social sejam atendidos e encaminhados para os cursos,
sem nenhuma exceção, quer para funcionários da EAP, quer para parentes de alunos ou
para pessoas indicadas por professores.
A consulta gravada em áudio, para esta pesquisa, foi a do paciente J.: o tratamento
dele na clínica da EAP ainda não havia sido terminado, devido a diferentes imprevistos que
interferiram no seu agendamento. No momento daquela consulta odontológica, havia um
problema médico a ser levado em conta - a aplicação de uma série de radioterapias para
combater um câncer de próstata.
b.6. Os textos que circulam na Triagem
Há um movimento dialógico entre os vários níveis de circulação dos prescritos
escritos e orais, no consultório de Triagem, onde o trabalho da dentista conjuga diversos
tipos de atividade:
I) a atividade odontológica da consulta inicial, delimitada por prescrições
institucionais (leis específicas e Código de Ética), hierárquicas (necessidade de prontuários;
ficha da assistente social; ficha de triagem; horário de funcionamento da Triagem) e
autoprescrições (desconhecimento de algum procedimento, limitação técnica, cansaço em
função do horário diurno ou noturno de atendimento, falta de tempo, valores pessoais e
sociais);
33
II) a atividade organizacional (dos horários de atendimento; de preenchimento de
papéis administrativos; de sugestão sobre a seqüência do plano de tratamento indicado para
cada paciente; de encaminhamento de formulário);
III) atividade de interação com o paciente (tanto para lhe fornecer explicações
diversas sobre o próprio caso, como sobre o plano de tratamento indicado para ele, numa
linguagem acessível ao entendimento do paciente);
IV) atividade de relacionamento interdisciplinar (com colegas dentistas da
Semiologia 12, da Radiologia e da coordenação da escola, todos funcionários contratados da
EAP; com professores e alunos, profissionais autônomos, os primeiros recebendo
porcentagem do que os segundos pagam, para fazer os cursos ministrados nas clínicas da
EAP; com a assistente social; etc.); e
V) atividade de interação com o pessoal auxiliar (eventuais auxiliares de
consultório; secretárias dos diversos serviços da EAP; serviço de limpeza; serviço de
compras e almoxarifado; etc.).
Nesse contexto, os escritos e os ditos a propósito de cada paciente, em diferentes
ocasiões de atendimento, tanto fornecem à dentista material que permite o conhecimento da
história clínica desse paciente ao longo do tempo, na EAP, como agem no sentido de
facilitar cooperação e colaboração do coletivo de trabalho em prol do tratamento de cada
paciente pelos vários especialistas.
c. Objetivo e Questão de pesquisa
Descrever a atividade de trabalho da área de serviços responde a um duplo cenário.
Por um lado, um cenário científico: no seio das teorias da linguagem trata-se de descrever a
emergência de gêneros discursivos, sua produção endógena e local, seus funcionamentos
lingüísticos e comunicacionais. Por outro lado, um cenário social, na medida em que estas
descrições contribuem para a definição de uma profissão e do seu modo de agir, segundo
Boutet (2005c).
12
Disciplina que estuda os sinais, sintomas, propedêutica e tratamento das doenças dos tecidos moles do
órgão bucal.
34
No gênero de atividade da primeira consulta odontológica, acontece um discurso13
polifônico entre dentista-agente-enunciador, que apresenta várias identidades (profissional
da saúde detentor de um saber acadêmico, entrevistador, confidente, parceiro, “torturador”,
amigo, etc.), e paciente-cliente-interlocutor, que ocupa um lugar discursivo também
perpassado por muitas vozes, que é participante e que atribui sentido ao discurso do
dentista. O papel da linguagem, aqui, mostra que
o sentido da ação do profissional não se esgota na ação-atividade considerada, mas
se elabora de maneira privilegiada no modo como os atores dizem e se dizem. O
sentido não está dado nem é pré-existente, mas se manifesta no momento da troca
com o outro, se estabelece na atualidade da ação do atores, possuidores de
subjetividade e saber próprios. A ação engloba uma multiplicidade de decisões
locais, que não seguem um plano pré-estabelecido, mas são adaptadas conforme
circunstâncias aleatórias (urgência, carga de trabalho, etc.), que tornam cada dia
diferente do outro. A ação jamais se realiza sem variações contextuais (Lacoste,
1995: 29).
Assim, o objetivo deste trabalho é, ao caracterizar o gênero de atividade do dentista
como uma atividade de trabalho / relação de serviço, refletir sobre a situação da primeira
consulta (durante a qual ocorre o preenchimento de prontuário), e estabelecer a relação
texto/contexto.
Dado esse objetivo, a questão de pesquisa a ser investigada é:
Como começa a se construir o efeito de sentido “atendimento humanizado” por
meio das práticas e imagens discursivas do dentista na consulta inicial, considerando que há
várias prescrições (institucionais, hierárquicas e autoprescrições) circulantes no consultório
de Triagem e que o paciente avalia o profissional por meio da atitude humana
transformada em um texto que pode ser compreendido como atitude e não ação física
(Bakhtin, 2003: 312), isto é, não pela ação do trabalho odontológico propriamente dito?
Este estudo foi desenvolvido no Programa de Estudos Pós-graduados de Lingüística
Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e se
insere na linha de pesquisa Linguagem e Trabalho. Nesse sentido, sua contribuição direta é
13
Neste trabalho de pesquisa, para simplificar noções que são mais complexas, serão tomados como
semelhantes os termos “discurso”, “texto”, “enunciado” e “enunciação”: produto da interação verbal de dois
indivíduos socialmente organizados; ato de fala delimitado pela situação social mais imediata, determinado
tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém: é o produto da
interação do locutor e do ouvinte (Bakhtin, 2004: 113). No Capítulo 5, Teorias da linguagem, esses termos
serão re-examinados.
35
dada ao projeto de pesquisa denominado O papel da linguagem na análise de práticas
profissionais (Produtividade em Pesquisa – CNPq nº 300474/04-0), desenvolvido pela
Profª. Drª. Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva, coordenadora do grupo Atelier. A minha
participação nesse grupo, formado por professores, doutorandos e mestrandos do
LAEL/PUC-SP, e de pesquisadores da UERJ, UFMT, UFPe, Uni-Rio, UNISINOS e USP,
colaborou para o meu entendimento da significação das práticas de linguagem na situação
de trabalho do profissional dentista.
d. (Hipótese) e Justificativa
Se todo discurso se atualiza como um evento, todo discurso é compreendido como
significação (Ricoeur, 1976: 23). Desse modo, o diálogo (entendido aqui no sentido
dialógico) na interação linguageira durante a primeira consulta odontológica talvez tenha
uma importância crucial nos sentidos que o paciente poderá vir a construir sobre a atividade
de trabalho do dentista.
Incorporando a idéia e a premissa segundo as quais só existe progresso se à
habilidade técnica e aos desenvolvimentos teórico-científicos próprios da profissão
corresponder desenvolvimento humano, vai-se partir da hipótese de que a atividade de
comunicação linguageira, na primeira interação dentista-paciente, poderia começar a
estabelecer um efeito de sentido de humanização no atendimento clínico, correspondendo
assim à demanda social em que, junto com a competência e a ética profissionais, atenção,
consideração e respeito no trato com os pacientes sejam exercidos e valorizados.
Apesar do interesse que o tema “humanização” desperta desde o início da década de
90 na área de ciências da saúde, em função de uma nova ideologia política, de cunho
humanístico e social (Reale, 2005)14, há poucos trabalhos escritos, segundo meu
conhecimento, voltados a entender a interação linguageira (do ponto de vista discursivo)
entre o profissional de Odontologia e o paciente. Embora se considere, aqui, a importância
do projeto pedagógico de Gonçalves (2003) - que inclui a disciplina “Ciências
14
REALE, Miguel. (8/out./2005). Quatro prêmios à cultura nacional. In: Jornal O Estado de São Paulo.
Espaço Aberto. p. A2.
36
Humanísticas” em todos os semestres do curso de graduação em Odontologia, e cujo foco,
portanto, é a educação -, as pesquisas concentram-se mais em outras atividades, tanto na
área de humanas como na de saúde: relações públicas (Nassar, 2003), psiquiatria (Labov,
197715; Ribeiro, 199516; François, 1995; e Vieira, 2002), guichê hospitalar (França, 2002),
psicologia (Sancovski, 2002), enfermagem (Fiorano, 2002), pacientes oncológicos
terminais (Pisoler, 2002)17, psicanálise (Settineri, 2001)18, medicina hospitalar e nãohospitalar (Fernandes, 1993), entre outros. [Por curiosidade, um levantamento generalizado
de referências de textos científicos sobre os assuntos “interação médico-paciente” e
“interação dentista-paciente” foi feito na Internet, considerando-se as referências escritas
tanto em português como em outras línguas. Os resultados apontam um número muito
maior de ocorrências para a área de Medicina do que para a de Odontologia19.]
Por isso, o presente trabalho visa a preencher uma lacuna ao caracterizar, sob o
ponto de vista enunciativo-discursivo, o gênero de atividade do dentista, observando a
realidade para refletir sobre ela e talvez, eventualmente, num processo constante de
reformulação e análise, sugerir uma interação mais humanizada entre dentista e paciente.
15
LABOV, William e FANSCHEL, David. (1977). Therapeutic discourse: psycotherapy as conversation.
New York: Academic Press. Referência disponível em:
http://www.oup.com/pdf/elt/library_classics/learning_index.pdf?cc=gb. Acesso em 30/set./2005
16
RIBEIRO, Branca Maria Telles. (1995). A interação médico/paciente em uma entrevista psiquiátrica.
Espaços e interfaces da Lingüística e da Lingüística Aplicada. Rio de Janeiro: p. 159-172.
17
PISOLER, Lucas Timm et al. (2002). Humanização do atendimento a pacientes extremamente graves.
Documento em PDF, disponível em: http://www.google.com.br/search?hs=9cG&hl=pt-BR&client=firefoxa&rls=org.mozilla%3AptBR%3Aofficial_s&biw=1016&q=PISOLER%2C+Lucas+Timm++&btnG=Pesquisa
r&meta=. Acesso em 28/jun./2005.
18
SETTINERI, Francisco Franke. (2001). Quando falar é tratar: o funcionamento da linguagem na
interpretação psicanalítica. Tese de doutorado defendida na Faculdade de Letras da PUC-RS, em
1º/jun./2001.
19
Em 16 de fevereiro de 2005, no portal GOOGLE, a procura para “medical-patient interaction” mostrou
1.360.000 ocorrências; para “doctor-patient interaction”, 537.000 ocorrências; para “dentist-patient
interaction”, 92.800 ocorrências; para “interação médico-paciente”, 926 ocorrências e para “interação
dentista-paciente”, 31 ocorrências. Para a Odontologia, algumas pesquisas são feitas sob o ponto de vista de
psicólogos (que enfocam emoções, como confiança e simpatia, medos e angústias) e outras, sob o ponto de
vista da Odontologia clínico-laboratorial, mais centrados no atendimento a pacientes especiais (grávidas,
cardíacos, diabéticos, pacientes leucêmicos, pacientes HIV positivos, pacientes com hepatopatias, idosos,
portadores de deficiências mentais – paralisia cerebral, síndrome de Down, etc.). Disponível em:
http://bank.rug.ac.be/ttaw2000/proia.htm. Acesso em 9/out./2005.
37
Como, no espaço dialógico em que
a atividade “consulta inicial” se desenvolve, se
refletem representações sobre a profissão do dentista, e ocorrem diversas esferas de
influência, com colaborações elaboradas e conflitos gerenciados, a avaliação das trocas
discursivas que aí acontecem se constitui um fértil campo de análises.
38
Capítulo 1
Alguns elementos históricos nas representações sobre a Odontologia
Enquanto as doenças foram consideradas como punições de deuses encolerizados e
durante todo o tempo em que conselhos, cuidados e terapêuticas provinham mais de
comunidades
religiosas
que
de
“cirurgiões”,
colocou-se
em
termos
vagos
a
responsabilidade deles, tanto pelo sucesso como pelo fracasso dos tratamentos
administrados, bem como por dor, angústia ou sofrimento que o paciente pudesse vir a
sentir.
No entanto, o código de Hamurabi, promulgado por este rei da Babilônia por volta
do século XVIII a.C., exigia que se cortasse a mão de um cirurgião, caso ele fosse
responsável por uma morte; e entre 282 preceitos, dedicava três à responsabilidade
médica, com um recurso inquietante à Lei do talião20 (Meyer, 2002: 19). Esses preceitos já
indicavam que o erro deveria ser atribuído ao cirurgião e não ao sacerdote ou ao mago.
Os deveres e as normas de conduta para os cirurgiões foram definidos por
Hipócrates no texto do Juramento, no século V a.C. A escola hipocrática separou a
medicina da religião e da magia; afastou as crenças em causas sobrenaturais das doenças e
fundou os alicerces de uma medicina mais racional e científica. Além disso, deu um sentido
de dignidade à profissão médica, estabelecendo as normas éticas de conduta que devem
nortear a vida do médico tanto no exercício profissional como fora dele, alertando para a
necessidade de compaixão, piedade, altruísmo e humanidade no trato com os pacientes.
Por volta dessa época, médicos e cirurgiões já não mais exerciam a tarefa de extrair
dentes, alegando que havia muitos riscos para o paciente (hemorragias, inevitáveis
infecções e possibilidade de morte) e argumentando que, se “arrancassem dentes”, suas
mãos poderiam ficar pesadas e sem condições para as intervenções mais delicadas de sua
atividade médica.
20
A Lei do talião (do latim talis: tal, parelho) consiste na justa reciprocidade do crime e da pena, sendo
freqüentemente simbolizada pela expressão olho por olho, dente por dente. É uma das mais antigas leis
existentes. Os primeiros indícios da Lei do talião foram encontrados no Código de Hamurabi, em 1730 a.C.
Ela permitia evitar que as pessoas fizessem justiça elas mesmas, introduzindo, assim, um início de ordem na
sociedade com relação ao tratamento de crimes e delitos. (Informação disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_do_Tali%C3%A3o. Acesso em 25/abr./2005)
39
A partir de então e ao longo da História, as representações sobre a Odontologia
foram sendo construídas de modo que a desqualificam, em relação à Medicina, tanto pela
arte (iconográfica e literária) e pela propaganda, como pelo senso comum.
Para interpretar esses efeitos de sentido, recorro a textos não verbais (iconográficos)
e verbais (escritos), considerando que texto é a realidade imediata (realidade do
pensamento e das vivências), a única da qual podem provir disciplinas e pensamento, já
que onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento (Bakhtin, 2003: 307). Ou
ainda que,
no sentido amplo de conjunto coerente de signos, também as ciências da arte (a
musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) se relacionam com textos
(produtos da arte). Pensamentos sobre pensamentos, palavras sobre palavras, textos
sobre textos: é nisso que reside a diferença fundamental entre as ciências humanas
e as ciências naturais, nas quais o homem é estudado fora do contexto e
independente deste (como em anatomia e fisiologia). A história do conhecimento
deve estar orientada para pensamentos, sentidos e significados dos outros,
realizados e dados ao pesquisador sob a forma de texto, do qual partem os estudos,
quaisquer que sejam os seus objetivos. A reprodução de um texto pelo pesquisador
(a retomada dele, a repetição da leitura, uma nova execução, uma citação) é um
acontecimento novo e singular na vida do texto, o novo elo na cadeia histórica da
comunicação discursiva, que se desenvolve na fronteira de duas consciências, de
dois sujeitos. Há uma complexa inter-relação do texto (objeto de estudo e reflexão)
e do contexto emoldurador a ser criado pelo pesquisador que interroga, faz
objeções, etc. (ibid.: 311).
O texto é um produto comunicativo que se constrói na fronteira entre o que foi
explicitamente dito e/ou mostrado e aquilo que ficou subentendido, o não-dito e/ou nãomostrado, fronteira entre o verbal e o extraverbal. O texto se organiza dentro de
determinado gênero discursivo, a partir dos mais diversos planos de expressão. Assim,
podemos falar em texto visual diante de um quadro, de uma foto ou de um filme (Brait,
2003).
A possibilidade de integrar textos não lingüísticos à interpretação das
representações sobre a Odontologia permite proceder a uma leitura mais compreensiva
daquelas representações, valendo-se do diálogo entre textos verbais e iconográficos
semanticamente convergentes, em que os diversos suportes semióticos não são
independentes uns dos outros, estando submetidos às mesmas sanções históricas e às
mesmas coerções temáticas (...), em domínios semióticos variados: enunciados, quadros,
etc. (Maingueneau, 1984: 158). Nos limites desta pesquisa, textos verbais e iconográficos
40
são usados para ilustrar o interdiscurso subjacente entre Medicina e Odontologia,
considerando que
a escrita é comparada à pintura. Longe de produzir menos do que o original, a atividade
pictórica reconstrói a realidade com base num alfabeto óptico limitado. Deste modo, o
principal efeito da pintura é resistir à tendência entrópica da visão ordinária - a imagem
umbrática de Platão - e aumentar o sentido do universo apreendendo-o na rede dos seus
signos abreviados. Porque o pintor pode dominar um outro material alfabético ele consegue
escrever um novo texto da realidade, apoiando em um conjunto de signos mínimos. A
pintura aproxima-se da ciência ao desafiar as formas perceptivas, relacionando-as com
estruturas não perceptivas. A escrita, no sentido limitado da palavra, é um caso particular de
iconicidade. A inscrição do discurso é a transcrição do mundo e a transcrição não é
reduplicação, mas metamorfose (Ricoeur, 1976: 52-3).
As operações produtoras de sentido são sempre interdiscursivas, mantendo uma
relação dialógica com vários outros discursos, no interior de um certo universo discursivo
(por exemplo, a literatura). Da mesma maneira, o princípio da intertextualidade21 também é
válido entre universos discursivos diferentes (por exemplo, a literatura, as artes plásticas, a
música e as ciências naturais) além de haver, no processo de produção de um discurso, uma
relação intertextual com outros discursos relativamente autônomos que, embora
funcionando como momentos ou etapas da produção, não aparecem na superfície do
discurso “produzido” ou “terminado”. A inteligibilidade do conteúdo das obras literárias ou
iconográficas e, em geral, dos documentos culturais, se relaciona com as condições sociais
da comunidade que os produziu ou a que se destinavam. Explicar um texto significa,
primariamente, considerá-lo como a expressão de certas necessidades socioculturais e
como uma resposta a certas perplexidades bem localizadas no espaço e no tempo (Ricoeur,
1976: 101). Em sua realização num modo determinado, o texto - a palavra, o gesto, o signo,
a pintura, o desenho, o som musical, etc. -, constitui um fato objetivo e uma força social,
ambos ideologicamente impregnados (Bakhtin/Volochinov, 2004: 118).
Em Análise do Discurso, memória discursiva e interdiscurso (tomados quase como
sinônimos) levam em consideração, na análise dos dados textuais da pesquisa, tanto a
História, a cultura, a sócio-psicologia e os fatores tecnológicos e ideológicos (como as
novas maneiras de ver o cidadão e o trabalho), como as condições de produção, circulação
e recepção dos textos. Como sugeriu Possenti (2004), “o discurso é o encontro de uma
historicidade e de uma língua”.
21
Termo cunhado por Julia Kristeva para designar o fato de que todo texto, ou toda obra, está na realidade
dialogando com outros textos, ou outras obras.
41
Assim, o processo histórico da construção de sentidos pode ser verificado em
inúmeros documentos e textos, produzidos por locutores que se expressam de vários
lugares enunciativos:
fazer história das mentalidades é inicialmente realizar alguma leitura de não
importa qual documento. Tudo é fonte para o historiador de mentalidades.
Romances, narrações escritas ou orais, poemas, contos, atas, túmulos, instituições,
objetos de maneira geral, filmes, cartas, costumes, entre outros, passam a ser
considerados, então, documentos históricos (Le Goff, J. apud Gregolin, 2003: 72).
As representações feitas sobre a Odontologia, em diferentes épocas, culturas e
sociedades, podem ser verificadas na dimensão dialógica de textos verbais e não verbais
(portanto, em planos textuais diversos), que carregam outros tipos de estruturas semióticas,
que refletem e refratam as interpretações dos posicionamentos discursivos sobre a Medicina
e a Odontologia, em relação de concorrência e reciprocamente se delimitando.
Nos
textos
iconográficos
a
seguir,
observa-se como a prática da Odontologia se
restringia a procedimentos cruentos e dolorosos,
praticados por “arranca-dentes”, geralmente
auxiliados por “assistentes” que os ajudavam na
contenção mecânica do paciente.
À esquerda, ilustração de uma tradução turca da
Cirurgia Imperial, manuscrito persa do séc. XII:
um dentista árabe usa uma cânula protetora para
cauterizar, com ácido, a polpa dental de um dente do paciente (RING, 1998: 68).
A inicial
D,
do manuscrito em latim Omne
bonum, de Jacobo, o inglês, escrito no século XV,
está decorada com a cena de um dentista arrancando
o dente de um paciente, o qual tenta segurar-lhe a
mão. [O fórceps desenhado nessa iluminura é o
mesmo instrumento de tortura usado para arrancar a
língua dos condenados a este suplício (RING, 1998:
111).]
42
A gravura satírica do séc. XVI (acima) mostra a grande quantidade de serviços
oferecidos por barbeiros: sob o mesmo teto, o paciente podia ter um dente arrancado (figura
em segundo plano), ter suas feridas curadas (figura em terceiro plano), ter o cabelo cortado
(figura em primeiro plano, no centro), ou ser sangrado (figura em primeiro plano, á direita)
(RING, 1998: 125). [É de se notar que as pernas de todas as pessoas foram pintadas como
se fossem patas de animais: insinuação de que, nesse contexto, todos os seres humanos se
assemelhariam a animais de duas patas?]
No século XVII, a depreciação do dentista em relação ao médico pode ser observada
comparando-se os discursos22 que dialogam em dois textos de linguagem visual: uma águaforte, de 1622, e um quadro a óleo, de 1632.
22
Discurso = texto = enunciado = enunciação: é um produto da interação verbal quer se trate de um ato de
fala imediato determinado pela situação de fala ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das
condições de vida de uma determinada comunidade lingüística (Bakhtin/Volochinov, 2004). O conceito de
enunciado/enunciação será retomado no Capítulo 4: Teorias da linguagem - 4.1. O princípio do dialogismo.
43
Em Der Zahnarzt (O Dentista)23,
um “barbeiro”, na função de
“dentista”,
extrai
um
dente
anterior inferior, com a ajuda de
boticão ou alavanca (já não mais
uma tenaz). O efeito de sentido
criado é o da sensação de
sofrimento
causado
por
dor
intensa. O ato cirúrgico acontece
no mesmo ambiente de trabalho utilizado para outros serviços - um lugar sem assepsia e
cheio de instrumentos como navalhas, tesouras e pincéis. Não há hierarquia nos
posicionamentos espaciais dos atores: todos se amontoam em volta do paciente. Nem o
barbeiro nem os homens que seguram o paciente vestem roupas diferentes das que usam no
exercício das tarefas diárias. A iluminação é promovida por uma única vela, segura na mão
de um pajem. O paciente senta-se na mesma cadeira onde, provavelmente, são atendidos
também os que deverão ser sangrados ou ter o cabelo cortado. Entre os observadores,
parece haver mais curiosidade que solidariedade ou respeito pelo desconforto do ser
humano vivo que está sendo sujeitado a um tratamento doloroso.
Em A lição de Anatomia do
Dr. Nicolaes Tulp24, já o título da
obra cria o efeito de sentido do
compromisso
entre
ensinar
e
aprender, na ciência de saúde
Medicina. A hierarquia sóciocultural
é
definida
pelo
posicionamento do mestre, à frente
e
23
24
separado
dos
aprendizes,
HONTHORST, Gerard von. (1622). Água-forte do quadro Der Zahnarzt (RING, 1998: 148).
REMBRANDT van Riyn. (1632). A lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp. Óleo sobre tela 169,5 x 216,5
cm. Haia: Mauritshuis. Referência obtida em: http://www.rembrandthuis.nl/2004/anatomischeles_en.html.
Acesso em 19/out./2005.
44
colocados todos juntos e de um mesmo lado da mesa cirúrgica. Professor e alunos estão
paramentados em figurinos cheios de compostura, diferentes dos do dia-a-dia; a aula
acontece em um ambiente despojado de móveis e utensílios, de aparente assepsia, e onde
não se encontra nada que não diga respeito à atividade de trabalho aí realizada. A
iluminação é promovida talvez por um lustre de velas, colocado acima da mesa cirúrgica,
fora do campo de visão do espectador do quadro. Mesmo o objeto de estudo sendo o corpo
de um cadáver (um ladrão condenado à forca, não um paciente doente que morreu), face e
mãos do Dr. Tulp revelam a atitude de um cirurgião concentrado em seu objetivo de
ensinar e os discípulos demonstram atenção e respeito à lição.
Os sentidos possíveis desses dois textos não verbais, a começar dos títulos e
levando-se em conta a sua natureza constitutivamente social, histórica e cultural, os liga a
enunciações anteriores e a enunciações posteriores, produzindo e fazendo circular
discursos (Brait, 2005: 68) que desqualificam a Odontologia em relação à Medicina.
Nos últimos anos do século XVIII e no início do século XIX,
a medicina moderna fixou sua data de nascimento juntamente com o aparecimento
da anatomia patológica. É a partir desse momento que os médicos passam a
organizar um discurso sobre a manifestação da doença no corpo dos homens, um
discurso capaz de incluir aquilo que durante séculos permaneceu abaixo do limiar
do visível e do enunciável. Esse período histórico coincide com o desenvolvimento
do capitalismo que terá como um de seus efeitos a socialização do corpo enquanto
força de trabalho e de produção. Essas duas dimensões – do corpo político e do
corpo biológico – se articularão no discurso médico; a preocupação com as doenças
e com a saúde geram atos médicos capazes de restaurar as forças produtivas, de
garantir a circulação adequada das mercadorias e de sustentar a administração e
organização dos primeiros núcleos urbanos. "O poder político da medicina consiste
em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los,
vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou
morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido,
inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro”,
segundo Foucault. No entanto, a entrada de outros discursos, seja o do sujeito que
tem um corpo doente, seja o de outros profissionais, cria alguns impasses nesse
discurso hegemônico. É no palco desses impasses que surge a possibilidade de um
grupo de trabalho, da construção de novas representações sobre os lugares de cada
um e da abertura para algumas mudanças dentro da instituição. Afinal, se a história
das instituições é sempre reveladora da história do discurso dominante, ela não
deixa de ser também a história das tentativas de resistência a esse discurso. Somos
arrastados pela linguagem da "tribo" e sofremos quando não conseguimos que a
singularidade de nossa fala se faça reconhecer. (Ribeiro de Souza, 1999).
Nas instituições públicas, acadêmicas ou hospitalares, todavia, o discurso dos
dentistas nem opunha resistência ao discurso dominante dos médicos, nem sequer
conseguia se fazer reconhecer. Várias obras plásticas do século XIX, dialogando com
45
discursos anteriores, traduziram e interpretaram, de maneira séria ou satírica, o ofício do
“tiradentes”, ligando-o quase sempre ao desconforto, algumas vezes à tortura, e sempre à
dor.
Na xilogravura de 1800, à esquerda, ajoelhado à frente do
paciente aparentemente impassível, ao estilo japonês, o
dentista lhe extrai um dente anterior superior. No solo,
observam-se dentaduras de madeira sobre uma folha de
papel de arroz (RING, 1998: 99).
Na gravura colorida à direita, produzida
por Adrien-Victor Auger em 1817, um charlatão,
que se anuncia como “dentista do Grande
Mogol”, arranca o dente de um paciente que
esperneia, apesar de manietado por um assistente
(RING, 1998: 164).
Durante o século XIX, a Europa ficou atrasada em
relação aos Estados Unidos da América, no que se referia à
Odontologia. Havia, entre os europeus, muita brincadeira a esse
respeito. O fato está ilustrado, à esquerda, no quadro de Filippo
Palizzi (1818-1899), Il caccia-mole in carnevale, no qual um
charlatão finge ter extraído parte da mandíbula (de um animal)
de um “dolorido paciente” (RING, 1998: 214).
46
Nessa mesma época, nos Estados Unidos, e pela primeira vez na história médica,
um paciente foi operado sem dor, graças à descoberta de um dentista. A cena inédita foi
protagonizada no Hospital Geral de Massachussetts, pelo dentista William Thomas Green
Morton, e pelo cirurgião John Collins Warren. No dia 16 de outubro de 1846, o médico
excisou
um
tumor
do
pescoço do jovem Gilbert
Abbott,
sem
que
este
emitisse nenhum gemido,
por estar sob o efeito do éter
sulfúrico.
No quadro Um dia de
éter25,
esse
reproduzido:
episódio
o
é
dentista
segura o inalador de cristal
por ele projetado para conter
a droga anestésica, enquanto
o cirurgião opera, observado
pelo dentista-anestesista e
por uma platéia interessada
no novo invento. Assim,
esse recurso importante e
definitivo contra a dor nos
procedimentos
clínico-
cirúrgicos, foi “descoberto”
por um dentista americano.
Rapidamente a novidade se
difundiu pela Europa: em Londres, no dia 21 de dezembro de 1846, o cirurgião inglês
Robert Liston amputou a perna de um paciente, enquanto este dormia. Depois, voltando-se
para os médicos que assistiam à operação, Liston exclamou: “esse truque ianque é vinte
25
HINCKLEY, Robert. (1882). Um dia de éter. Francis A. Countway Library if Medicine, Harvard Medical
Library/Boston Medical Library, Boston. (RING, 1998: 245).
47
vezes melhor que a hipnose!” (Ring, 1998: 233), embora o truque ianque não tenha sido
especificamente creditado ao dentista.
È de se notar que, em 1906, quase três séculos após “A Lição de Anatomia do Dr.
Nicolaes Tulp”, de Rembrandt, Vuillard pintou o quadro “Dr. Georges Viau dans son
cabinet traitant Annette Roussed”26, no qual o artista dá o tratamento de “doutor” ao
dentista, em uma obra pictórica (francesa) que não ridiculariza ou desqualifica esse
profissional, em relação ao médico. Neste quadro, o dentista está paramentado com avental
branco; um refletor frontal fornece o foco de luz específico, além da iluminação elétrica
geral do ambiente do consultório; os móveis e utensílios parecem ser apropriados ao
ambiente de trabalho odontológico; e a paciente está sentada na cadeira, (aparentemente)
tranqüila como se estivesse anestesiada e segura de que não sofrerá dor.
26
VUILLARD, Édouard. (1906). Dr. Georges Viau dans son cabinet traitant Annette Roussed. Disponível
em: http://www2004.free.fr/sujets/peinture-musee-4.htm. Acesso em 9/out./2005.
48
Enquanto na América do Norte e na Europa aconteciam avanços técnico-operatórios
da profissão, e o dentista passava a ser mais bem considerado, no Brasil, até o final do
século XVIII, ainda era o barbeiro ou sangrador que exercia o ofício de “tiradentes”.
Geralmente uma pessoa ignorante e tida em baixo conceito pela comunidade, eles
aprendiam a atividade de “arrancar dentes” com alguém mais experiente e deviam ser
fortes, impassíveis e rápidos. As suas técnicas eram rudimentares, o seu instrumental era
inadequado e não havia nenhuma norma de higiene nem recurso de anestesia.
O termo “dentista” só apareceu, aqui, em 1800. O candidato ao ofício precisava
passar por uma avaliação de conhecimento parcial de anatomia, métodos operatórios e
terapêuticos. Em 1808, com a vinda da família real para cá, foi criada a Escola Anatômica
Cirúrgica e Médica do Hospital Militar e da Marinha, transformada mais tarde na
Faculdade de Medicina da Bahia. Assim, até o século XIX, a Odontologia como atividade
de trabalho restringia-se quase que apenas às extrações dentárias, sendo que significado e
conceito de "barbeiro" podem
ser avaliados conferindo-se a
quarta
edição
Dicionário
do
da
Novo
Língua
Portuguesa, de Eduardo de
Faria, publicado no Rio de
Janeiro em 1859 (Rosenthal,
1995):
Barbeiro: s.m. - o que faz barba;
(antigo) "sangrador", cirurgião pouco
instruído que sangrava, deitava
ventosas, sarjas, punha cáusticos e
fazia operações cirúrgicas pouco
importantes, entre as quais incluíamse extrações dentárias.
“Barbeiro, Cabellereiro, Sangrador, Dentista, e Deitão-se Bixas”: o desenho27 de Debret
feito no Rio de Janeiro, em 1821, ilustra o conceito acima.
27
LARA, Sílvia. (abr. 2005). Médicos ou monstros. In: Pesquisa Fapesp, n. 110, p.90.
49
Em 1851, exigia-se que os médicos, cirurgiões, dentistas, boticários e parteiras
apresentassem suas cartas de habilitação a uma Junta de Higiene Pública. Em 1879, um
decreto determinava que ficassem anexos a cada faculdade de Medicina um curso de
Obstetrícia e Ginecologia, uma escola de Farmácia e um curso de Cirurgia Dentária. O
primeiro curso de Odontologia nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro
foi oficialmente criado por meio do decreto 9.311, de 1884 (Anexo cinco).
No século XX, embora o dentista passasse a ser visto sob outro enfoque, devido aos
avanços tanto das técnicas operatórias, como dos instrumentos e aparelhos odontológicos, o
senso comum ainda elaborava, a respeito da profissão, representações que são
transformadas e reinterpretadas por poetas, escritores e compositores populares brasileiros.
Em “D(u)(Ent)al”, o poeta José Nêumanne28, verseja tão monologicamente quanto
é possível em poesia, sobre a sensação dual de um tratamento dentário:
Um sorriso anestésico
A lâmpada na retina
O dente roto
O peito em frangalhos
O nervo exposto
A paixão secreta
A gengiva em flor
O ferro na bochecha
No espelhinho as estrelas
Do céu da boca aberta
A broca rói
A face paralítica
A língua em rosca
Num beijo por dentro?
Imóvel na cadeira
À mercê de tudo
O mundo em revista
Na sala de espera
E a vida que roda
Aqui dentro
28
NÊUMANNE, José. (1996). Solos do silêncio: poesia reunida. São Paulo: Geração Editorial. p. 83.
50
Num espiral
Dual
De dor e alívio.
Em um trecho do conto “O cobrador”, o escritor Rubem Fonseca29 reforça os
sentimentos de desconforto e raiva do paciente em relação ao dentista, e o pouco caso e
desconsideração deste em relação àquele: não há consulta inicial com interação linguageira,
nem preenchimento de prontuário, nem condição do paciente expressar a própria voz.
Na porta da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na
sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente.
Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher
acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco.
Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no
meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muito. Ele
olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes
ficarem naquele estado.
Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um
tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui - e deu uma
pancada estridente nos meus dentes da frente.
Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz
está podre, vê?, disse com pouco caso. Era um homem grande, mãos grandes e
pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. Odeio dentistas, comerciantes,
advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira.
Todos eles estão me devendo muito.
No entanto, em um outro conto do mesmo autor30, “A escolha”, subentende-se o
dentista como o profissional capaz de restituir a função mastigatória desejada pelo
personagem.
(...) Nunca sentei numa cadeira de rodas, mas dentaduras eu já tive, duplas, e sinto
uma falta danada delas. Lembro com saudade das duas, tão bonitas dentro do copo
de água onde eu as punha de noite ao deitar, a parte rosada brilhando e os dentes
todos aparecendo limpinhos, através da água. Eu escovava os dentes pelo menos
meia hora, toda noite antes de pôr no copo, usava sabão de lavar roupa, aquele azul,
não tem melhor para limpar os dentes. Um sujeito sem nenhum dente como eu tem
que saber comer direito. Banana é fácil, agora gosto mais ainda de banana, eu as
espremo com as gengivas na boca antes de engolir, vira uma pasta, sinto muito
melhor o gosto. Pão eu só posso comer o de forma, molhado no café com leite, para
não ferir minhas gengivas. Gosto de tomar sopa e comer purê de batata. E posso
comer carne moída bem cozida. Sonho, pelo menos uma vez por mês, com
costeleta de porco frita.
29
30
FONSECA, Rubem. (1979). O cobrador . In: O cobrador. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 163-182.
FONSECA, Rubem. (2002). A escolha. In: Pequenas criaturas. São Paulo: Cia das Letras. p. 9-13.
51
Já a letra da música de Moreira da Silva, Fui ao dentista31, fala de um profissional
que mais se assemelha aos antigos “tiradentes/brutamontes” do século passado do que aos
profissionais modernos e preparados de hoje em dia (embora, na letra, o autor-paciente faça
menção a um cheiro que o faz perder a consciência. No Brasil, essa é uma técnica elitista,
moderna e acessível a poucos profissionais, pelo custo da aparelhagem específica e do
investimento em curso de especialização, já que até recentemente o manuseio desse
equipamento não estava incluído na graduação: a analgesia inalatória, ou sedação
consciente, com óxido nitroso).
Fui ao dentista, pra chumbar uma panela,
Mas o gajo achou que ela, não podia obturar.
Ele me disse: “Vou mudar toda a mobília,
Tu vais ver que maravilha, Morengueira vai ficar.
Arranco tudo, arranco até o maxilar…”
- Mas doutor, o que está me doendo é o pré-molar.
Eu acho que vou ter um atrito com o senhor… Mas quando eu vi o boticão que ele trazia,
Minha tripa ficou fria, começou a tremedeira.
Quem foi que disse que o papai a boca abria,
Pra espetar a anestesia, na gengiva do Moreira.
Mas tem que ser, queira ou não queira.
Em vista disso, pra acabar com o meu berreiro,
O doutor me deu um cheiro, e eu ferrei numa soneca
E quando acordo, nem te conto camarada,
Minha boca está chupada, e a gengiva está careca.
Meu panelão levou a breca…
Enquanto espero, se a gengiva murcha e seca,
Pra mudar a perereca, provisória no bocão.
Tudo o que é efe, sai comprido, sai soprado,
Que até fico encabulado, com tamanha assopração:
Farora fofa faz fofoca no feijão.
Os efeitos de sentido e a própria memória discursiva, isto é, o discurso que traz em
si também o interdiscurso, o pessoal e o coletivo - os ´outros` indeterminados, não
concretizados, sobredestinatários que esfacelam fronteiras de espaço e de tempo (Brait,
2005: 72)-, parecem manter uma unidade discursiva (Maingueneau, 1984: 179) sobre a
Odontologia. Essas representações desqualificariam o dentista, ao não relacioná-lo à
31
SILVA, Moreira da. Fui ao dentista . Música cifrada.
Disponível no site: http://cifraclub.terra.com.br/cifras/cifras.php?idcifra=16193. Acesso em 6 jun. 2005
52
especialidade da área de ciências biológicas que trata de estruturas orgânicas essenciais
para a saúde (mastigação, fonação, nutrição, etc.) e para a comunicação social interpessoal,
mas, sim, relacionando-o à profissão menos “importante”, menos “digna”, menos “nobre” e
de “menor prestígio” em relação à Medicina, tida como humanitária, salvadora, mitigadora
da dor e dos sofrimentos humanos.
Mesmo em âmbito institucional, o Projeto de Lei nº 25, de 2002, do Senado Federal,
que define o Ato Médico32, causa reações tanto por interferir na autonomia, como por
desvalorizar e hierarquizar, em relação à Medicina, as funções de outras profissões da área
de saúde como Biologia, Biomedicina, Educação Física, Enfermagem, Farmácia,
Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Nutrição, Psicologia, Serviço Social, e
Técnicos em Radiologia, além da Odontologia.
Uma outra disposição institucional federal, de setembro de 2005, reforça a
desqualificação das ciências da saúde, Odontologia inclusa, em relação à Medicina. É a
Nova Tabela das Áreas do Conhecimento33, proposta pela Comissão Especial de Estudos
nomeada por CNPq, CAPES e FINEP, e que reduz os níveis hierárquicos da tabela em
vigor, estabelecendo apenas grande área, área e sub-área. Nela, o item 2 estabelece que,
com exceção das Ciências Biológicas e das Ciências Humanas, a denominação da grande
área é alterada: de Ciências da Saúde para Ciências Médicas e da Saúde.
No entanto, é de se salientar que o Hospital do Câncer A. C. Camargo, em São
Paulo, referência nacional no atendimento ao paciente oncológico, foi pioneiro na
implantação de uma equipe de cirurgiões-dentistas no corpo clínico, visando à integração
multidisciplinar entre os profissionais envolvidos no tratamento do câncer, para oferecer
32
Projeto de lei que assegura ao médico a exclusividade na prescrição de tratamentos e na ocupação de cargos
de chefia em unidades de saúde. A proposta tramita no Congresso Nacional desde 2002. No entanto, está
parada na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, devido às manifestações contrárias de profissionais de
outras áreas de saúde porque, defendendo interesses corporativistas dos médicos e tornando a prescrição
terapêutica exclusividade deles, tira a autonomia daqueles outros para atender seus pacientes, nas unidades
públicas de saúde.
33
Informação disponível em:
http://www.capes.gov.br/capes/portal/conteudo/NovaTabela_AreasConhecimento.pdf.
Acesso em 23/set./2005.
53
uma melhor qualidade de vida aos pacientes. Nesse hospital, a Estomatologia34 (formada
por um Diretor, um Titular, quatro residentes, um atendente de consultório odontológico e
dois alunos de mestrado) interage com outras especialidades odontológicas e com algumas
áreas da Medicina, como Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Radioterapia, Oncologia Clínica,
Pediatria, Dermatologia e Oncologia Genética, uma vez que, qualquer que seja o tipo de
tratamento ao qual o paciente oncológico seja submetido (cirúrgico, quimioterápico ou
radioterápico), é comum haver efeitos colaterais no sistema estomatognático.
Por esse motivo, e para constatar: a) que representação se faria sobre o dentista,
nesse ambiente hospitalar específico; b) se o dentista seria considerado parte integrante da
equipe multidisciplinar, do mesmo modo que o médico oncologista e os outros
profissionais da área de saúde (psicólogos, enfermeiras, radiologistas, fisioterapeutas,
fonoaudiólogas, patologistas, etc.); e c) como seria o procedimento da primeira consulta,
fosse ela médica ou odontológica; no dia 10 de agosto de 2004 foi gravada em áudio uma
entrevista, previamente agendada com o diretor do Departamento de Estomatologia, Dr. F.,
na saleta dele dentro daquele contexto hospitalar (Anexo oito). Esse material não faz parte
do corpus da pesquisa: serve apenas para ilustrar o sentido de equipe multidisciplinar, na
qual o dentista é considerado um profissional do mesmo nível de qualificação e com
responsabilidade semelhante à dos outros especialistas. Isso pode ser conferido no recorte a
seguir, feito da transcrição daquela entrevista:
6. F: e:: a primeira consulta normalmente o paciente já chega ao departamento
com uma queixa ... e frente a essa queixa são feitas todas as ... as perguntas ã:: com
relação a tempo de evolução da doença a: a queixa se dói não dói o MOTIVO que
ele chegou ao departamento... quando ele já passou por outros departamentos, a
entrevista:: se restringe aPEnas aos cuidados da boca. ... quando ele:: ... chega
PRIMEIRO no departamento de Estomatologia é:: são feitas perguntas de ordem
geral, pra saber sobre a saúde do paciente ... as doenças prévias ...
7. P: prontuário fixo estabelecido já?
8. F: sim... o prontuário daqui é fixo né? ... é o mesmo prontuário que se este
paciente passar por OUTRO departamento... ele vai lá tendo a minha entrevista...
34
Especialidade da Odontologia com diferentes denominações: Diagnóstico Bucal, Diagnóstico Oral,
Medicina Bucal e Semiologia. É responsável pelo diagnóstico e tratamento das doenças da boca e do sistema
estomatognático (ossos, músculos, dentes, gengiva, nervos, vasos, articulações e ligamentos), como as
alterações benignas e malignas de tecidos moles e ósseos, que podem ser manifestações de um quadro mais
grave e podem interferir na saúde geral do indivíduo.
54
Do último terço do século XX para cá, a representação vigente sobre os dentistas
vem se modificando e, hoje em dia, talvez em função da ideologia da beleza jovem, eles
parecem ser considerados os “estetas do sorriso”, e mais do que ser associada aos efeitos de
sentido historicamente construídos - dor, ansiedade, “tortura” e sofrimento, desconforto,
medo do tratamento preventivo e/ou curativo-, a Odontologia estaria antes relacionada ao
fato de ser a única profissão da área de saúde capaz de dar, a quem possa arcar com os
custos financeiros de tal tratamento, um belo, franco e comunicativo “sorriso de estrela”,
com gengivas sadias e rosadas e todos os dentes muito brancos e bem alinhados, como o da
figura35 abaixo.
“Ao que, num portal, vi uma mulher moça, vestida de vermelho, se ria. Na
frente da boca, ela quando ria tinha os todos dentes, mostrava em fio. Tão
bonita, só.” (Rosa, 1965: 28)
.
Essa associação mostraria, de certa forma, a aceitação da ideologia da beleza jovem,
mais ou menos generalizada, atualmente, em que todas as funções orgânicas parecem estar
ligadas à, e serem dependentes da estética visual.
No entanto, pode ser curioso
observar que, para os maias do
século IX, estético e desejável para
os que pudessem arcar com esse
luxo (naquela época, como agora,
reservado aos mais ricos), era ter os
dentes serrados e incrustados com
pedrinhas de jade e turquesa, como
se vê no crânio exposto no Museu Nacional de Antropologia do México (Ring, 1998: 14).
35
Capa do Suplemento Feminino de 14/15 ago. 2004, do jornal O Estado de São Paulo.
55
Convém observar, entretanto, que algumas pesquisas acadêmicas resultaram em
contribuições da Odontologia para a Medicina, o que talvez ajude a modificar as
complexas relações interdiscursivas entre essas profissões: a osseointegração, os dentes de
proveta e um estudo, em andamento, sobre células-tronco obtidas a partir da polpa36 de
dentes decíduos.
Descoberta em 1957 e, desde então pesquisada e difundida mundialmente pelo
ortopedista sueco professor Per-Ingvar Brånemark, osseointegração é a técnica que
permite que pessoas sem alguma parte do corpo, em decorrência de amputação, acidente,
doença ou problema congênito, possam usar uma prótese ligada diretamente ao osso por
um pino de titânio - metal leve, resistente, e não sujeito à rejeição orgânica. Esta última
característica, a bio-compatibilidade com o osso, é decisiva, tanto para a Odontologia
como para a Medicina, por permitir a reabilitação protética funcional e estética, de dentes,
de membros, de orelhas e narizes, etc.
Por outro lado, mais recentemente, o desenvolvimento de técnicas de engenharia
genética para criar dentes vivos, “de proveta”, a partir de tecidos embrionários, põe a
Odontologia na era da Medicina regenerativa e abre caminho para a criação de órgãos
maiores (Sharpe, 2005: 70)37.
Notícia veiculada na imprensa38, em dezembro de 2005, divulgou um estudo feito
por pesquisadores do Instituto Butantã, da Universidade de São Paulo, e da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre o comportamento de células-tronco obtidas da tecido pulpar
de dentes decíduos (dentes de leite): no futuro, essas células poderiam ser uma alternativa
terapêutica ao uso de células do cordão umbilical e até, talvez, das de embriões humanos.
Os estudos preliminares demonstram que aquelas células pulpares preservam características
típicas de células-tronco embrionárias e, como elas, podem dar origem a uma série de
tecidos diferenciados, como neurônios, osso, cartilagem e músculo.
36
Polpa dentária (tecido pulpar): tecido conjuntivo muito vascularizado e inervado, situado na parte central do
dente, e que assegura a nutrição, a sensibilidade e a defesa do elemento dental.
37
SHARPE, Paul T. e YOUNG, Conan S. (set. 2005). Dentes de proveta. In: Scientific American Brasil.
Edição 40. p. 70-73.
38
ESCOBAR, Herton. (2/dez./ 2005). Cientistas brigam por autoria de estudo. In: Jornal O Estado de São
Paulo. VIDA&. p. A19.
56
Capítulo 2
Conceitos de “humanização”.
“A atitude humana é um texto em potencial e pode ser compreendida (como atitude e não ação física)
unicamente no contexto dialógico da própria época (como réplica, como posição semântica, como sistema de
motivos). Cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular e nisso reside todo o seu sentido. É
aquilo que nele tem relação com a verdade, com a bondade, com a beleza, com a história.”
(Bakhtin, 2003: 312)
A atual preocupação globalizada com o tema “humanização” é evidenciada em
diferentes contextos sócio-culturais - hospitais, salas de aulas em faculdades
(principalmente de Ciências Humanas e de Ciências da Saúde) e organismos institucionais
(Ministério da Saúde, governos estaduais, Estatuto da Criança e do Adolescente) -, e
veiculada em vários suportes materiais - mídia eletrônica, imprensa escrita e televisiva, etc.
Para refletir sobre a adequação do conceito de “humanização no atendimento ao
paciente odontológico”, do ponto de vista das várias questões teóricas pertinentes à
abordagem enunciativa dos discursos, faz-se necessário um ajuste conceitual na definição e
na expansão de possíveis acepções filosóficas, sociais e institucionais do termo
“humanização”.
Num dicionário geral da Língua Portuguesa, humanização é definida como ato ou
efeito de humanizar(-se) , de tornar(-se) benévolo ou mais sociável (Houaiss, 2001: 1.555).
E, no entanto, esse ato ou efeito tem significado diferente, quando se consideram os pontos
de vista de ciências humanas, exatas ou da saúde.
I.
Ponto de vista filosófico
De um determinado ponto de vista filosófico leigo, o ser humano é um agente
transformador capaz de ampliar os limites que a natureza lhe impõe. Fabrica artefatos e cria
significados por meio do conhecimento. A identidade humana é definida por esse ser
indivisível, sujeito original dotado de necessidades próprias, cuja história singular vai da
fecundação à velhice e se enraíza num contexto sócio-cultural: família, educação, trabalho,
lazer, etc.
57
Se a compreensão de cada indivíduo a seu próprio respeito passa necessariamente pela
relação com seus semelhantes, já que cada um de nós nasce dentro de um contexto sóciocultural, a humanidade precisou criar canais comunicativos em seu interior, entre
semelhantes. A forma mais desenvolvida de comunicação é a linguagem, base das relações
entre mundo e conhecimento, entre indivíduo e sociedade, entre grupos e seus integrantes
(p.7). O processo de humanização, que se realiza em relação ao conhecimento, à linguagem
e à ação, produz um conhecimento que se situa nas condições materiais de produção da
vida, nos valores, no sentido que se atribui à existência. A humanização tornou-se possível
porque, ao mesmo tempo em que suplanta suas carências, o indivíduo é capaz de atribuir
significado às suas experiências. A preservação das experiências passadas, a memória
coletiva da sociedade, mediada pela linguagem, torna possível a vida humana (p.8). (André,
2002).
Um outro ponto de vista filosófico leigo pondera que tornar-se humano não é
simplesmente um processo biogenético, mas, sobretudo sócio-cultural, já que cada pessoa
se constitui no interior da coletividade (Ponce, 2002:16).
A evolução da humanidade, enquanto processo de humanização, ao se revelar na História,
o faz em duplo sentido: como evolução das relações estabelecidas entre a humanidade e o
mundo e como evolução das relações mútuas dos seres humanos entre si (p.17). Quanto
mais essas relações se humanizarem, mais a humanidade será livre. Humanização e
libertação são, portanto, o mesmo. Além do avanço do conhecimento, para a humanização
é fundamental o grau de socialização. Se fosse garantido a todos o acesso ao patrimônio
científico, tecnológico, filosófico e artístico da humanidade, então seríamos hoje mais livres
que ontem. Quanto mais carências têm os indivíduos, mais eles se embrutecem. Alienado de
si mesmo, forma mais grave de alienação, o indivíduo desumaniza-se cada vez mais (p.18).
(Ponce, 2002).
II.
Ponto de vista em uma área das Ciências Exatas
No ambiente acadêmico do Massachusetts Institute of Tecnology (MIT), USA,
fundado em 1865, por algum tempo houve a proposta de ensino de elementos artísticos
unidos à pedagogia para engenheiros, com história da arte, ciências humanas e sociais
sendo ensinadas, com o objetivo de dar educação humanística aos futuros técnicos em
engenharia. Mas
o MIT retornou hoje ao que era antes da última guerra: um instituto onde são formados
engenheiros, ligado à indústria e à produção militares. As virtudes morais da estética não
são mais invocadas ali. Os discursos sobre a necessidade de humanizar a vida social
tecnocrática e alargar a sensibilidade do engenheiro não têm mais vez na fala da
administração (Epstein, Judith apud Romano, 2004: 215).
III.
Pontos de vista em áreas das Ciências da Saúde
Na área de saúde, principalmente na Medicina, também se verificam diferentes
acepções da definição ou do conceito de humanização, tanto em ambiente acadêmico como
em instituições e na mídia impressa e televisiva.
58
a. Em ambientes acadêmicos
Na França, desde abril de 1993, um decreto ministerial tornou obrigatório o ensino
de humanidades e de história das ciências médicas, em todas as faculdades de Medicina do
país: uma medicina mecanizada e materialista, esquecida da diversidade humana e da
unicidade de cada homem, cometeria estragos. Para preservar o humanismo da Medicina,
impõe-se competência, compaixão e um mínimo de calor humano nas relações dos médicos
com seus doentes. O tempo de um olhar, a troca de uma palavra ou de um gesto, não se
medem; a qualidade da presença é um bem inestimável para o doente (Meyer, 2002:17).
No Brasil, cumpre salientar que, como no exterior, quase todos os trabalhos de
pesquisa ou de divulgação sobre a importância do inter-relacionamento pacienteprofissional referem-se à Medicina e são feitos sob a ótica de profissionais de outras áreas,
como as de Psicologia:
humanizar é realizar movimentos simples como sorrir, aproximar-se, resgatar a
empatia no contexto profissional, aproximar-se com delicadeza, consideração e
humildade. Ter consideração e pesar pela dor do outro, transmitidos pelo olhar,
pelo tom de voz, pelo cuidado com as palavras, pelo aperto de mão, pelo sentir
(Sancowski, 2002: 132),
de Relações Públicas:
As principais reclamações dos clientes dizem respeito ao atendimento, desde a
recepção até o relacionamento estabelecido com o médico. Entre tantas
contribuições, a definição de estratégias de comunicação para a área de saúde deve
levar em consideração transparência, ética, responsabilidade social, humanização
na prestação de serviço, credibilidade, qualidade no atendimento e no pósatendimento ao paciente (Nassar, 2003: 154),
e de Enfermagem:
A temática da “humanização em saúde / enfermagem” vem se constituindo, desde
uma perspectiva caritativa até a preocupação atual com a valorização da saúde
como direito do cidadão, inserida em projeto político de saúde. Artigos mostram a
necessidade de investir no trabalhador, valorizando a dimensão subjetiva. A
humanização do atendimento supõe encontro entre sujeitos que compartilham
saber, poder e experiência vivida, o que implica transformações políticas,
administrativas e subjetivas (Casate, 2005)39,
39
CASATE, Juliana Cristina e CORREA, Adriana Katia. (2005). Humanization in health care: knowledge
disseminated in brazilian nursing literature. In: Rev. Latino-Am. Enfermagem. [online]. Jan./Feb., v.13, n.1,
p.105-111. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-1692005000100017&script=sci_arttext&tlng=pt.
Acesso em 29/ago./2005.
59
A pesquisa quantitativa do dentista Bibancos (2003) visou a traçar o perfil da
opinião de uma amostra da população da cidade de São Paulo sobre a Odontologia. O
pesquisador destaca que
além dos procedimentos técnicos, há fatores que interferem na satisfação do paciente,
alguns diretamente ligados às características pessoais do profissional - como atenção e
respeito ao paciente -, outros, à higiene e organização do consultório.
b. Em instituições
Por outro lado, tanto organismos institucionais federais e estaduais, como alguns
particulares, usam o termo “humanização” sob outras acepções conceituais da palavra.
b.1. O Edital MCT/SCTIE/DECIT/MS/CNPq 037/2004, de 16 de julho de 2004,
estabelece a Seleção Pública de Propostas sobre Sistemas e Políticas de Saúde – Qualidade
e Humanização no SUS, com
o objetivo de expandir a produção do conhecimento básico aplicado sobre
Sistemas e Políticas de Saúde – Qualidade e Humanização no SUS, que
contribua para o desenvolvimento de ações públicas voltadas para a melhoria das
condições de saúde da população brasileira e para a superação das desigualdades
regionais e socioeconômicas, por intermédio do apoio a projetos cooperativos de
pesquisa executados por grupos atuantes na área. As propostas deverão fortalecer a
interação entre pesquisa de campo, serviço de saúde (reorganização da atenção nos
hospitais psiquiátricos, universitários e de pequeno porte: acesso, humanização,
financiamento, regionalização e integração na rede assistencial), laboratório de
pesquisa, e os setores públicos, privados, acadêmicos e empresariais40.
b.2. Para o Ministério da Saúde, ações que signifiquem a humanização do Sistema
Único de Saúde (SUS) são:
reduzir filas e diminuir o tempo que os pacientes esperam por atendimento, a partir
de ações simples, práticas e criativas, como a implantação de equipes responsáveis
por fazer “acolhimento com classificação de risco”; promover o direito dos
pacientes de serem atendidos com respeito, eficiência, rapidez, informação e
segurança; permitir o direito de o paciente receber visitas abertas e ser
acompanhado, visando à reabilitação do doente, à diminuição do tempo de
internação e à melhora da qualidade da permanência do paciente na unidade de
saúde (Anexo um).
40
Disponível no site: http://www.cnpq.br/servicos/editais/ct/edital_0372004_sist_saude.htm.
Acesso em 9/fev./2005.
60
b.3. O Programa de Reestruturação dos Hospitais de Ensino, contemplado pela
portaria interministerial (Ministérios da Educação e da Saúde) nº 1000 de 15 de abril de
2004, prevê um aperfeiçoamento do processo de humanização do atendimento ao paciente,
com
redução das filas do pronto-socorro e da demora no agendamento de consultas. (...)
Assim, não haveria mais pacientes com doenças graves nas filas de espera, mas sim
nos leitos, merecendo tratamento cada vez mais avançado, prestado por
profissionais cada vez mais preparados (Anexo dois).
(No dia 7 de abril de 2005, o presidente da República em exercício José Alencar
sancionou uma lei que pretende “humanizar o atendimento às parturientes”, concedendolhes o direito a um acompanhante antes, durante e após o parto, em todo e qualquer hospital
público ou conveniado ao SUS.)
b.4. Para a Secretaria de Saúde do governo do Estado de São Paulo,
o trabalho de humanização do hospital começa com a contratação de estudantes
“acolhedores” que cumprirão a função de recepcionar as pessoas e ajudá-las a
receber o tratamento nas unidades públicas estaduais de saúde (Anexo três).
b.5. Para entidades, hospitais e associações que cuidam de pacientes crianças e
adolescentes, assistência humanitária é considerada toda e qualquer atividade para os
acompanhantes, geralmente as mães das crianças hospitalizadas, mas também admitem a
permanência dos pais, durante o dia, nas casas de apoio para os parentes das crianças de
outros Estados. Isso já acontece na Associação de Assistência à Criança Cardíaca e à
Transplantada do Coração (ACTC), na Casa Hope e no Grupo de Apoio ao Adolescente e à
Criança com Câncer (Graacc)41.
b.6. O Estatuto da Criança e do Adolescente, criado pela Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990, ganhou força com a tendência à humanização, surgida no início da década
de 90. Programas de humanização hospitalar de alguns hospitais infantis (como Hospital
do Câncer A.C. Camargo e Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo) incluem aulas de arte ministradas por artistas
41
LOPES, Adriana Dias. (10/out./ 2004). Aula, passeio e bingo. Tudo para esquecer a dor. Jornal O Estado de
São Paulo. Primeiro Caderno, Geral, Saúde, p. A18.
61
plásticos da Associação Viva e Deixe Viver, ou palhaçadas feitas pelos atores Doutores da
Alegria (foto abaixo)42, para que os pacientes internados possam assim enfrentar melhor a
dura rotina dos tratamentos a que têm de se submeter.
b.7. Desde 2002, as Diretrizes
Curriculares Nacionais dos Cursos
de
Medicina,
Odontologia,
Enfermagem e outros, da área de
saúde, determinam a inclusão de
disciplina de Ciências Humanas e
Sociais
na
grade
visando
à
formação
humanística
e
curricular,
cultural,
ética
dos
estudantes, de modo a contribuir
para a compreensão, por parte
deles, dos determinantes sociais,
culturais,
comportamentais,
psicológicos, éticos e legais da
profissão43.
b.8. O 1º Fórum Internacional de Ética, Humanização e Qualidade do Hospital
Israelita Albert Einstein, de São Paulo, ocorrido em julho de 2001 e feito por médicos para
médicos, psicólogos e enfermeiras que atuam em unidades de terapia intensiva, já se
preocupava com questões relacionadas, especificamente, ao atendimento de pacientes
internados na UTI do hospital. Durante o evento, chegou-se à conclusão de que
“humanizar é uma atividade de pessoa para pessoas” e citou-se a frase atribuída a
Theodore Roosevelt: Nobody cares how much you know, until they know how much you
care.
42
43
Capa da revista hands. (2004). São Paulo. ano 4, n.21, abr./mai.
Disponível em http://www.redeunida.org.br/diretrizes/docs/Odontologia_Resolucao_0302.pdf. Acesso em
23/ago./2004.
62
c. Na mídia
c.1. Para o médico clínico e geriatra André Jaime, presidente do Departamento de
Clínica Médica da Associação Paulista de Medicina, há que se fazer um atendimento mais
humanizado, mostrar outras formas de entender o indivíduo que procura tratamento. O
peso que cada palavra de um médico tem, quando dita para o paciente, não é ensinado
durante as aulas. Já o professor titular da cadeira de Semiologia Médica da Faculdade de
Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, José Carlos Aguiar Bonadia, tem noção de
que, sendo o volume de informações técnico-científicas muito grande, nas Ciências
Biológicas, os alunos perdem o interesse em relação às Ciências Humanas. Daí os dois
colegas terem tido a idéia de estruturar um “1º Encontro de Humanidades” para médicos,
psicólogos e outros especialistas (Vieira, 2003:35)44.
c.2. O artigo “Doutor, me ouça!”, da revista VEJA, admite que médicos que não só
auscultam, mas escutam os pacientes são o grande objetivo a ser atingido, sendo que
o primeiro recurso de um médico, durante a consulta, é basicamente a história contada pelo
paciente. E, para entendê-la, ele precisa compreender a essência desse relato. Os
profissionais capazes de apreender as nuances das histórias de seus pacientes desenvolvem
com eles uma relação mais estreita, o que resulta em tratamentos mais precisos e eficazes.
Ao se sentir ouvido, o paciente aceitará melhor o diagnóstico e a terapia proposta, por mais
duros que sejam. “Cada palavra dita por um médico ao seu paciente é um veredicto. Assim
como o escritor, ele deve avaliar cada palavra e saber usá-la com extremo rigor”, afirma o
médico sanitarista e escritor Moacyr Scliar (Buchalla, 2004)45.
c.3. Devido à comoção pública provocada pelo caso Terri Schiavo, no primeiro
semestre de 2005, ocorreram, nos meios jornalísticos impressos e televisivos, novas
discussões a respeito do sentido de humanização e cuidados paliativos para pacientes
terminais. O padre Leo Pessini, um dos membros da Associação Internacional de Bioética e
vice-reitor do Centro Universitário São Camilo, se confessa sensibilizado por causa dos
casos em que não vê respeitado o direito do paciente de morrer em paz, com dignidade, e
diz nunca ter se sentido tão perto do ser humano e tão longe da humanização. Ele afirma
que
44
VIEIRA, Ana Luísa. (17 set. 2003). Dose de atenção. Carta Capital, São Paulo, ano X n. 258, p.35.
45
BUCHALLA, Anna Paula. (5 mai. 2004). Doutor, me ouça! VEJA, São Paulo, ano 37 n.18.
63
nas áreas de saúde e ciências da vida, já se incorpora a disciplina de bioética. É
impossível imaginar um médico que não se preocupe com esses valores humanos
em sua prática diária. Para além da mera informação, procura-se a formação. Já se
tem, no Brasil, o primeiro mestrado stritu sensu em bioética, no Centro
Universitário São Camilo, que estende o curso para diferentes áreas além da
Medicina, como Direito, Enfermagem, Psicologia, Ciências Humanas e Jornalismo
(Manir, 2005)46.
Já para o médico especialista em economia da saúde Marcos Bose Ferraz, do Centro
Paulista de Economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), humanização no
atendimento de pacientes terminais seria a “desospitalização”, ou home care (internação em
domicílio), que reduziria custos, em relação à internação hospitalar, e daria ao paciente a
oportunidade de estar na própria casa, entre familiares e amigos. No Hospital do Câncer
A.C.Camargo, em São Paulo, há alguns médicos que consideram o home care um
tratamento paliativo que, embora não vise à cura, mas ao alívio dos sintomas da doença,
evita sofrimentos desnecessários para o paciente e desocupa leitos hospitalares (Lopes,
2005)47.
c.4. No fôlder48 do Hospital Samaritano, de São Paulo, o superintendente geral Dr.
José Antonio de Lima afirma que o processo de humanização em um hospital se inicia
pelo tratamento que se dá aos colaboradores e se estende pela assistência aos clientes e
pacientes antes, durante e depois da internação.
c.5. O primeiro Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) foi
criado em 2004 para substituir o Provão. Segundo o professor Rui V. Oppermann49, da
UFRGS, nesse ano a prova para a área da Odontologia avaliou
para além dos aspectos estritamente técnicos da Odontologia, o cidadão, sua
formação ideológica, humana e intelectual. Na prova, foram abordados desde a
46
MANIR, Mônica. (27/mar./2005). Vida e morte, uma questão de dignidade. Jornal O Estado de São Paulo.
Aliás. p. J4.
47
LOPES, Adriana Dias. (3/abr./2005). Quanto mais perto da morte, maior o custo. Jornal O Estado de São
Paulo. Primeiro Caderno. Vida&. p. A21.
48
49
O objetivo É SER humano. (out./2005). Fôlder do Hospital Samaritano. Fascículo 4. p.2.
Análise das provas do ENADE. (8/nov./2004). 140 mil fazem o novo Provão. Jornal O Estado de São
Paulo. Primeiro Caderno, VIDA &, Educação, p. A10.
64
globalização, o crescimento populacional e a clonagem, até a sensibilidade
artística e poética.
c.6. O tratamento domiciliar, como aparece em matéria de jornal50, não será
considerado atendimento humanizado, por não levar em conta princípios de biossegurança
apropriados ao correto exercício da profissão e pela limitação dos procedimentos possíveis
de serem executados nessas condições de atendimento.
O atendimento em domicílio se limita, nos dias de hoje, a muito poucos
procedimentos operatórios (profilaxia supragengival, por exemplo). Será que com as
técnicas e os recursos modernos, o atendimento em domicílio caracterizaria um
“atendimento humanizado” ou apenas um conforto para aplicável a número muito limitado
de terapêuticas odonto-clínicas?
(Vale notar que não se está considerando, aqui, o caso de pacientes acamados ou
sem condições de locomoção para atendimento em outro local, quer consultório particular,
quer ambiente hospitalar.)
50
O dentista na sala. Capa do caderno ESTADÃOESTE do jornal O Estado de São Paulo, n. 570,
11/mar./2005.
65
Convém ressaltar que é possível que
o
tratamento
em
domicílio
já
existisse desde há algum tempo, para
quem pudesse pagá-lo, levando-se
em conta o quadro Il cavadenti51. Em
1875, quando ele foi pintado, ainda
não
existia
a
luz
elétrica.
O
tratamento, como representado no
quadro,
estará
sendo
feito
às
7h55min, à luz da manhã, ou às
19h55min, à luz de velas? Pela
sombra na parede, firme e definida, a
hora parece ser a da manhã: a luz
entra por uma janela grande e alta, à
direita do espectador do quadro. O
dentista, paramentado com o que
parece ser um guarda-pó claro, atende uma senhora, cujas roupas e jóias dão a impressão de
ser ela de classe social elevada. O tratamento instituído não é o de extração dentária, mas o
de restauração dentária, a se considerar o título do quadro, a aparência e a forma de
preensão do instrumento usado no procedimento. O local de atendimento seria a sala da
casa da paciente, sentada em uma poltrona de aparência confortável? Ou seria esse o
consultório particular do dentista?
Supondo-se que esse seja o domicílio da cliente, o
profissional levou seus instrumentos e medicamentos até ali. No último quarto do século
XIX, como hoje em dia, apenas algumas pessoas podiam arcar com o custo de um
tratamento em domicílio. Naquela época, antes do advento da anestesia e dos princípios de
assepsia e de biossegurança, esse conforto não excluía a apreensão, o medo e a dor do
tratamento (reparar a postura das mãos, a expressão do olhar e o aparente enrijecimento do
corpo da cliente), nem o risco de infecção a que o paciente estava sujeito.
51
CEFALY, Andrea. (1875). Il cavadenti. óleo sobre tela, 130x104 cm. (Museo Provinciale, Catanzaro)
Disponível em: http://www.abramo.it/cefaly/opere10.htm . Acesso em: 2/out./2005.
66
Embora, nas áreas da saúde, a preocupação com a humanização no atendimento ao
paciente tenha surgido no final da década de 90, o foco atual dos dentistas não parece ser a
Odontologia preventiva ou curativa, funcional ou mais humanizada, mas parece visar
apenas à Odontologia estética, muito cara e ao alcance de bem poucos.
Hoje em dia, há grande sofisticação de técnicas cirúrgicas e anestésicas, com o
desenvolvimento de pesquisas e de aparelhagem diagnóstica mais elaborada, mais eficaz e
menos invasiva; há medicamentos de última geração e com grande freqüência são feitas
novas descobertas nos campos de genética, física e química molecular; há manipulação do
genoma e de células-tronco. No entanto, paradoxalmente, a atenção, a consideração, o
respeito e o cuidado na interação durante o atendimento ao paciente parecem ter sido
relegados a um segundo plano. Os profissionais das ciências biomédicas parecem não se
lembrar de como o paciente se sente, tendo em vista as representações construídas ao longo
da História sobre essas atividades de trabalho, nas quais a assimetria das relações de
autoridade (ou de poder) é constitutiva. Os profissionais de saúde teriam se esquecido de
que tratar ainda conta, às vezes, tanto quanto curar? questiona-se Meyer (2002:11). E, no
entanto, esse efeito de sentido poderia começar a ser construído por meio da linguagem, na
interação social da consulta inicial, já que o sentido não está inscrito no texto falado: ele é
sempre múltiplo e variável de acordo com o contexto. Dessa maneira, a desigualdade de
posições na comunicação profissional-paciente, devida aos mais diferentes fatores (níveis
de conhecimento acadêmico, valores pessoais, culturais, históricos e sociais), talvez se
atenuasse.
Em vista do que foi exposto, vai-se partir da hipótese de que humanização não seja
apenas ato ou efeito, como define o dicionário; nem seja demonstrar compaixão e calor
humano ou dirigir-se ao paciente com respeito; nem seja ouvi-lo com atenção ou recorrer a
um profissional da comunicação para melhorar a interação profissional da saúde-paciente,
como propõem os autores citados neste capítulo.
Nos limites deste estudo e em que pese o fato de se haver analisado apenas um
único ator social, vai-se considerar que humanização no atendimento odontológico seja a
atitude humana transformada em um texto individual, único e singular (Bakhtin, 2003:
312), estabelecida no contexto dialógico do consultório quando, ao exercer sua atividade de
trabalho segundo os preceitos ético-profissionais, o dentista leva em conta a alteridade
67
constitutiva (história, valores, cultura e sentimentos) do Outro – o paciente – e cria
condições de ele expressar sua voz.
Tal atitude (atendimento humanizado) parece começar a se constituir por meio da
interação linguageira nessa situação específica de trabalho, durante a qual o discurso do
profissional dialoga com textos prescritivos e com discursos de vários interlocutores
(incluindo o interdiscurso em relação à Medicina), e na qual se expressam também as
memórias convergentes, já que o discurso se encontra preso entre duas delas: uma
memória “interna”, que se enriquece e aumenta sua autoridade à medida que o
tempo passa e que os textos se acumulam; e uma memória de filiação “externa”,
que legitima o discurso ao inscrevê-lo na linha dos anteriores semelhantes e ao
colocar uma linha correspondente de adversários (aquela com a qual se identificam
as figuras do Outro). Que, dentre todo o dizível de uma formação discursiva, uma
coisa e não outra coisa tenha sido dita é um dado incontornável (Maingueneau,
1984: 131).
68
Segunda parte
Perspectivas teórico-metodológicas desta pesquisa
“O trabalho do pintor está sob a pintura, assim como a realidade está sob o visível. O trabalho e a realidade
são, desse modo, dissimulados pela visibilidade que criam.”
(Bernard Noël, in Guérin, 2001:VIII)
A atividade humana sempre é uma arbitragem, um espaço de possíveis a negociar,
um debate de normas antecedentes (ligadas a gêneros da atividade e à “tradição”) e
renormalizações, ao mesmo tempo operacionais e éticas, onde não existe execução, mas
criação de estratégias singulares para enfrentar os desafios do contexto de trabalho
(Schwartz, 2000: 34). A transmissão de prescrições e a reincorporação de normas são
imanentes a toda atividade, o tempo todo são retrabalhadas, estão sujeitas a microdecisões
e são recolocadas, em diferentes graus, na história da atividade, dependendo de como, de
por quê e do que se transmite (saberes, técnicas, procedimentos coletivos, valores), numa
relação dialógica entre conceitos e experiências. Isso confere uma dimensão “humanizada”
ao trabalho, em que saberes científicos, saberes advindos da experiência profissional,
questões éticas e existenciais, desafios econômicos, exigência de qualidade técnica, etc., se
cruzam, se superpõem, se reencontram,
se completam, se enriquecem mutuamente
(Matheron, 1997: 256).
Essa relação entre fazer e dizer se materializa na criação verbal da interação,
refletindo o pluripertencer dos sujeitos a vários universos simultaneamente (cognitivo,
afetivo, fisiológico, social) ligados a um centro humano de singularização (França, 2002:
75), e implica a criação de uma metodologia específica para cada situação particular, em
que estão misturadas atividades materiais, práticas sociais sem linguagem, prática
profissional e manifestações plurissemióticas, como fala e escrita, tom de voz, gestos,
olhar, ações, etc.
Desse modo, sem se tratar de assunto exclusivo a lingüistas, a integração linguagem
e trabalho se constitui questão de interesse para pesquisadores ergonomistas, filósofos,
sociólogos, médicos, psicólogos e outros profissionais, que perceberam o quanto não é
possível compreender a atividade de trabalho humana sem incluir o exame das trocas
69
linguageiras que acontecem entre as pessoas direta ou indiretamente envolvidas nas
situações do trabalho sob investigação. Assim,
a troca conceitual entre disciplinas não traz nenhuma solução; igualmente ineficaz é
a escolha de uma disciplina, dentre várias, como liderança teórica que teria a
responsabilidade de fornecer modelos às demais. É no engajamento conjunto no
terreno das situações de trabalho, na confrontação e na avaliação dos avanços
recíprocos que os benefícios da troca podem ser constatados e formalizados. (Faïta,
2002: 59).
Em vista do exposto, vai-se recorrer a conceitos de disciplinas do trabalho e de
teorias de linguagem, para embasar a análise do corpus desta pesquisa.
Capítulo 3
Disciplinas do trabalho
“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe é no meio da travessia.” (Rosa, 1965)
3.1. A ergonomia
A ergonomia surgiu como uma disciplina cujo objetivo era contribuir para a
discussão teórica e a pesquisa de métodos de ação que pudessem sugerir processos de
melhoria e transformação das condições do trabalho humano, adaptando a máquina ao
homem.
Na França, a ergonomia começou a ser desenvolvida na metade da década de 1950,
com Suzanne Pacaud, André Ombredane, Faverge e Leplat. Em 1954, foi criado o primeiro
laboratório de ergonomia em meio industrial francês, sem que se adotasse, ainda, a palavra
ergonomia: Laboratório de Estudos Fisiológicos. Mais recentemente, muitos trabalhos de
pesquisa se desenvolvem no laboratório de ergonomia do Conservatoire National des Arts
et Métiers, sob a direção do professor Alain Wisner, onde se reconhece que compreender o
trabalho para transformá-lo é um desafio que passa por muitos níveis, por ser uma questão
de cidadania, fundamental para os desenvolvimentos pessoal, social, tecnológico e
econômico (Sznelwar: 2001: XI). É importante mencionar que a formação de Wisner em
Medicina foi fundamental para sua trajetória de ergonomista, e justifica a ênfase que ele
70
atribui à estreita relação entre saúde e trabalho, na medida em que há heterogeneidade de
mundos sociais e confronto de normas implicados na vida no trabalho, e a gestão da tensão
entre subjetividade e atividade tem conseqüência para a saúde do trabalhador.
Para a ergonomia, a tarefa,
isto é, o trabalho prescrito, fixado em condições
determinadas e prevendo resultado antecipado, se cumpriria no trabalho real, sem
considerar que a atividade de trabalho é sempre uma estratégia de adaptação do ator social
à situação, em que há uma distância entre as condições reais de trabalho e os resultados
efetivos. O trabalho apresenta um caráter duplo - pessoal e sócio-econômico, conforme o
ângulo em que é abordado, o da pessoa que trabalha ou o da empresa, e
o analista do trabalho sempre se confronta com a singularidade de uma pessoa que,
no ato profissional, põe em jogo toda a sua vida pessoal (história, experiência
profissional e vida extraprofissional) e social (experiência na empresa, identidade e
reconhecimento profissional). Mas, ao mesmo tempo, defronta-se com o modo
como essa singularidade fundamental é objeto de uma gestão sócio-econômica por
parte da empresa, na gestão dos recursos humanos, nas políticas sociais e na
organização do trabalho (Guérin, 2001: 17).
Assim, como proposta para avaliar o trabalho, a análise ergonômica das atividades
passou a incluir a linguagem e a comunicação, das quais considerava tanto a palavra
prescrita, como a imprevista ou até mesmo a “inconsciente” (Vieira, 2002: 101), uma vez
que em todas as atividades observadas, as operações são de extrema variedade e o trabalho
realizado é sempre diferente daquele que foi pensado, projetado ou prescrito, não se
sucedendo segundo a ordem pré-estabelecida, mas com as atividades se engrenando umas
nas outras e, às vezes, com algumas sendo abandonadas momentaneamente em benefício
de outras, mais urgentes. O resultado da atividade de um trabalhador é sempre singular, e
o trabalho humano nele investido traz o traço pessoal, mesmo ínfimo, daquele que o
realizou: é uma “obra” (´ergon´) (Guérin, 2001: 18), como uma impressão digital dele.
No gênero de atividade do dentista, sujeito à heterogeneidade dos mundos sociais
(da empresa, do paciente, do próprio profissional), ao confronto de normas, e às várias
prescrições (institucionais, hierárquicas, éticas, leis específicas, autoprescrições), a
atividade de trabalho da primeira consulta odontológica raramente será realizada como
planejada ou projetada, mesmo que o profissional tente seguir uma ordem prescrita ou préestabelecida, porque ocorrem interrupções e imprevistos acontecem, e a gestão dessa tensão
entre subjetividade e atividade sempre tem conseqüências para a saúde do dentista. Isso se
71
reflete, se refrata e se expressa por sua palavra prescrita, imprevista ou “inconsciente” na
interação linguageira com o paciente: porque o dentista não é apenas aquele da atividade
realizada, mas é também o sujeito que não a realiza do modo como gostaria, ou que a
realiza de forma diferente daquela que dele esperavam (o real da atividade), por estar
necessariamente envolvido por todo aquele universo de fundo.
3.2. A ergologia e a renormalização das situações de trabalho
“... o trabalho sofre um ´subdimensionamento´ profundo, assimilado a uma atividade de simples ´execução´,
despojado de suas habilidades, de seus ajustes. A situação do trabalho deixa de ser um lugar de exigência
social, individual, um espaço de valores em jogo que se refere permanentemente aos julgamentos e escolhas
de seus protagonistas.”. (Schwartz, 1996: 115)
Na década de oitenta, começou a se definir um grupo, na Universidade de Provence,
na França, constituído por um lingüista, Daniel Faïta, um sociólogo, Bernard Vouillon, e
um filósofo, Yves Schwartz. A proposta deles era a análise pluridisciplinar da situação de
trabalho. Referendado na ergonomia, o grupo Analyse Pluridisciplinaire des Situations de
Travail (APST) apresentou uma série de concepções sobre a atividade de trabalho,
interessando-se
particularmente pelos estudos e reflexões que associam linguagem como prática
linguageira e o trabalho como atividade socialmente situada e remunerada,
compartilhando uma visão de mundo em que a apreensão e compreensão do real
passa necessariamente por processos inter-relacionais, inseridos em uma esfera da
atividade social, assumindo a impossibilidade de pensar o trabalho sem considerar
o discurso do seu protagonista direto: o trabalhador nas relações construídas com o
outro (Vieira, 2002: 103).
No final da década de noventa, o movimento APST se desdobrou em outros dois
grupos: um, de vertente filosófica, a ergologia (Schwartz), e outro, filiado à psicologia do
trabalho, a Clínica da Atividade (Clot). Ambas as disciplinas têm como propedêutica a
ergonomia; analisam a atividade humana em situação de trabalho; e conferem importância
fundamental à linguagem usada em tal situação, o que tem implicações teóricas e influencia
os caminhos metodológicos de construção dos instrumentos e das formas de analisar as
relações entre atividade e discurso.
A disciplina ergológica reflete sobre como se entrelaçam o corpo, o psiquismo e as
normas, como se articulam o privado e o púbico, o valor de mercado e os valores que não
72
têm escala de medida, o ético, o histórico e o político (Schwartz, 1997: 1), tudo isso
mostrando que o trabalho não é jamais uma realidade simples: ele questiona da mesma
maneira os que tentam produzir sua análise e os seus protagonistas diretos. Embora as
condições sejam sempre singulares, aquelas variáveis constituem jogos de reciprocidades
entre o dizer e o fazer, o tempo todo renormalizados. A atividade de trabalho implica
sempre uma gestão complexa, dispendiosa em energia, e que exige arbitragens de valores e
microdecisões, na dialética do que é antecipado pelos saberes e de como as normas
antecedentes são re-singularizadas, isto é, como ocorrem as renormalizações dos prescritos,
de acordo com as circunstâncias pessoais do trabalhador, ser vivo enigmático e complexo.
Devido a sua variabilidade, suas histórias e suas regulações, o trabalho é lugar de
debate e um espaço de possíveis sempre a negociar, onde existe uso do trabalhador,
convocado em todo o seu ser industrioso52.
O trabalho sempre envolve uso de si por si – já que os trabalhadores renormalizam
prescrições e criam estratégias singulares para enfrentar os desafios do seu meio.
Isso causa uma tensão contraditória, com demanda específica e incontornável feita
a um sujeito que dispõe de um capital pessoal único. E há uso de si pelos outros por ser o trabalho, em parte, heterodeterminado por meio de normas, prescrições e
valores constituídos historicamente. (Schwartz, 2000: 34).
As micro-escolhas, no interior das coerções materiais e sociais do trabalho, fazem
aparecer de qual ponto o “si” é convocado: o trabalho é sempre um dramático uso de si
mesmo.
A ergologia leva em conta que, na atividade de trabalho sempre há, por parte do
trabalhador, uma dupla antecipação: a primeira, em função de normas, regras e prescrições
das disciplinas profissionais (Medicina, Enfermagem, Administração Hospitalar, etc.), e a
segunda, em função das renormalizações e do uso de si que médicos, enfermeiras e
administradores fazem, para exercer sua atividade de trabalho. Nessa situação, a linguagem
é “atividade na atividade”, enraizada na complexidade ergonômica e nas relações sociais, e
convoca um “dispositivo de três pólos” (Schwartz, 2004):
52
O vivente, em sendo vivo, está sendo industrioso. São capacidades e recursos infinitamente mais vastos do
que aqueles que são explicitados, que a tarefa cotidiana requer (Schwartz, 1996).
73
1º) pólo dos saberes instituídos (ou saberes acadêmicos, ou saberes da
organização), que se refere a prescrições e normas antecedentes, ao saber
descontextualizado, anterior à atividade de trabalho: primeira antecipação;
2º) pólo dos saberes investidos na atividade, que são as forças de convocação, os
“saberes anônimos da experiência”, a prática renormalizadora individual: segunda
antecipação;
3º) pólo ético (ou filosófico, ou epistemológico), que é lugar de exigências e de
humildade (Schwartz, 1997: 31), onde estão os valores individuais, que não podem ser
graduados.
Para que a atividade profissional do dentista (pólo do saber instituído) se exerça
satisfatoriamente, sem que haja desrespeito ao paciente, ou desatenção aos seus problemas
de saúde e aos seus sentimentos (pólo ético), e sem que haja desperdício de energia,
estresse, descontentamento e desgaste do dentista, há “uso” de si não somente por si mesmo
(com capacidades singularmente adquiridas e tendência a usar de si para recompor, de
modo infinitesimal, um mundo que lhe seja mais conveniente – pólo do saber investido na
atividade), como também há uso de si pelos outros (explicitado nos confrontos, conflitos e
antagonismos de relações e interações sociais), o que influencia a sua atividade de trabalho
individual. Levando em conta ainda o pólo econômico e o político-social, o equilíbrio
dinâmico entre tantos pólos contraditórios é vivido em todos os graus entre o formal e o
informal (Schwartz, 2000: 42), considerando-se a não-homogeneidade fundamental que
caracteriza a execução de práticas idênticas, a variabilidade das reações fisiológicas e
psicológicas durante o desenvolvimento de um procedimento clínico, as interrupções, etc.
Tudo isso vai se refletir e refratar na interação linguageira dentista-paciente.
3.3. A clínica da atividade e a confrontação dos sujeitos
A análise ergonômica da atividade foi propedêutica tanto para a ergologia, como
também para a “clínica da atividade”, metodologia de análise do trabalho que assume a
forma de uma atividade reflexiva do coletivo de trabalho sobre seu próprio trabalho, para
compreender a dinâmica da ação dos trabalhadores. O objetivo da clínica da atividade não é
74
que o pesquisador faça a observação do que o ator social faz, no seu trabalho, mas o
desenvolvimento, pelo trabalhador, da observação de sua própria atividade:
há uma troca de protagonistas da observação, e é por esse deslocamento que a
experiência vivida pode se tornar um meio de viver outras experiências. Uma
observação viva, feita a partir do ponto de vista do pesquisador, sempre está
impregnada de significação e de valor próprios. No entanto, a parcialidade e a
limitação do ponto de vista do observador serão retificadas, completadas,
transformadas, inventariadas, com a ajuda dessa mesma observação feita do ponto
de vista diferente do trabalhador (Clot, 2001: 10).
A clínica da atividade propõe uma conceituação nova de atividade: a atividade não
se limita apenas àquilo que se faz. A atividade realizada não é toda a atividade e o real da
atividade é também aquilo que não se faz; aquilo que se procura fazer sem conseguir – o
drama dos fracassos; aquilo que se pensa que se poderia fazer de outro modo; aquilo que se
faz para não fazer o que deveria ser feito; as atividades suspensas, contrariadas, ou
impedidas; a atividade retirada, ocultada ou recolhida. A gestão da tensão existente entre o
possível e o impossível, entre o trabalho prescrito e todas essas variantes forma, com a
atividade realizada, uma unidade desarmônica, e eventualmente causa sofrimento ao
trabalhador (Clot et al., 2001: 24).
A atividade linguageira é indissociável da compreensão da atividade, sempre mais
global do que apenas a ação: não é suficiente focalizar apenas a ação de realizar uma tarefa,
é necessário levar em conta que a atividade se compõe também de seu entorno não
evidente, de implícitos, de maneiras de pensar e de agir sedimentadas no meio de trabalho e
forjadas por ele, que se sobrepõem a normas e regras prescritivas (Faïta, 2001: 282). A
atividade é uma prova subjetiva, na qual o trabalhador mede a si mesmo e aos outros,
contrapondo-se ao real para ter chance de realizar o que deve ser feito, sendo que o trabalho
realizado implica muitas micro-escolhas.
A metodologia da clínica da atividade se apóia na análise das práticas de
linguagem usadas no fluxo da atividade em contextos específicos, identificadas por
enunciações singulares e que produzem sentido no interior desses contextos (Souza-eSilva, 1997: 30). A especificidade dessa abordagem é não poder ser baseada na simples
aplicação de ferramentas pré-construídas, mas é ser uma estratégia particularizada na
observação de regulações e interações que perpassam a fala no trabalho, e interpretadas
pela abordagem discursiva dos enunciados (considerando a linguagem como atividade), no
sentido de dar conta da inscrição do discurso e da atividade em múltiplas temporalidades,
75
da heterogeneidade dos estratos simbólicos e da diversidade dos indivíduos implicados e
dos seus respectivos status (simultaneamente sujeitos, atores, locutores) (Souza-e-Silva,
2001: 139).
Trabalhar, hoje em dia, é freqüentemente fazer face a uma injunção: assumir
responsabilidades sem ter responsabilidade efetiva na definição do trabalho. Isto é,
assumir responsabilidades sem responsabilidade: eis uma das dissociações maiores do
trabalho atual (Clot, 2001: 11).
A clínica da atividade foi a metodologia escolhida para observar e analisar o
trabalho da dentista no consultório de Triagem da EAP, enquanto essa atividade se
desenvolve. Nesse contexto, a responsabilidade da profissional se limita à consulta de
triagem, sem que ela tenha responsabilidade pelo prosseguimento (indicado por ela) do
tratamento do paciente. O método da autoconfrontação, indissociável da clínica da
atividade, ajuda na reconstrução de sentidos da atividade, para o sujeito. Daí, a opção de
solicitar a expressão do ator social, para a reflexão conjunta do analista-pesquisador e do
trabalhador-protagonista sobre o sentido das escolhas do que ele faz e do que ele diz, no
trabalho.
3.4. O método da autoconfrontação simples
Na segunda metade dos anos 90, inserido no movimento de análise do trabalho pela
revalorização da compreensão da atividade, desenvolvido pela análise pluridisciplinar das
situações de trabalho (APST), Faïta propôs o método da autoconfrontação, no sentido de
desenvolver um procedimento de pesquisa e análise que avançasse na compreensão da
complexidade do encontro entre atividade e discurso (Vieira, 2003: 261).
A autoconfrontação é um registro audiovisual de seqüências da atividade do ator
social, seguido da filmagem dos comentários desse sujeito de pesquisa a respeito de sua
própria atividade, para que o trabalhador se (auto)confronte com os traços materiais /
observáveis de seu comportamento e produza elementos de validação do material coletado
pelo pesquisador (Alvarez, 2003: 233), aquele respondendo à atividade deste. Esse método
76
permite que o pesquisador se certifique sobre sua compreensão do que foi observado e,
além disso, estabelece um contrato técnico e ético entre pesquisador e pesquisado.
O desenvolvimento do diálogo, na autoconfrontação, testemunha um conflito de
valores que sustenta as contradições entre os estilos dos diferentes agentes de um gênero de
atividade, além de colocar em evidência os esforços dos atores para, pelo menos pela
explicação, justificar seu estilo singular (que pode, ou não, estar em conformidade com a
prática generalizada daquele gênero profissional). Nesse sentido, o processo parece ser
facilitado quando pesquisador e trabalhador partilham conhecimentos e saberes necessários
à execução da atividade, uma vez que o pesquisador estaria mais bem qualificado para
compreender tanto a justificativa das preferências e das opções, como as razões das
escolhas, com menor desigualdade de status entre os interlocutores e menor disparidade,
entre um e outro, dos elementos constitutivos da experiência, dos modos de formalização e
de representação de saberes operatórios (Faïta, 2001: 265).
Ao promover o diálogo ação-explicação, a autoconfrontação cria um espaço-tempo
diferente daquele da situação de trabalho, e faz da atividade passada do ator social o objeto
especial de sua atividade presente, provisoriamente independente do encadeamento açãorepresentação. Assim, a autoconfrontação organiza o diálogo entre duas atividades
pertencentes a esferas (ou planos) diferentes: entre o sujeito que age consigo mesmo; entre
o sujeito que age e o pesquisador; entre o sujeito que age e o alter ego (o outro), e a
percepção intuitiva que o trabalhador tem de sua atividade vai se transformar em percepção
reflexiva e vários procedimentos que ele fazia de modo “automático” vão se tornar
conscientes, de modo que o trabalho real fica em foco e pode ser analisado, por meio da
materialidade da linguagem.
(Convém observar que, no caso deste estudo, as gravações da consulta e da
autoconfrontação simples foram feitas apenas em áudio.)
77
Capítulo 4
Teorias da linguagem
“O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto.”
(Bakhtin/Volochinov, 2004: 106)
Os estudos que correlacionam situações de trabalho e linguagem são relativamente
recentes - da década de 90 no Brasil (Souza-e-Silva, 2002), e apontam para a diversidade de
enfoques (segundo a formação profissional, o setor de serviço, etc.) e de campos de
intervenção (lingüístico, ergonômico, ergológico, psicológico, educacional, sociológico,
etc.), sempre de natureza inter, trans e/ou multidisciplinar.
Tornando-se parte ativa da situação de trabalho, a linguagem implica mudança da
problemática e da metodologia, já que não se trata apenas de suscitar palavras sobre o
trabalho, mas observar as que são ditas ou produzidas naturalmente - todas as que, no
trabalho, não são tarefa propriamente dita, mas estão ligadas à atividade linguageira, a
dimensões como memorização, confrontação de objetivos e de valores, e ao conhecimento
do outro como ser humano, conforme Lacoste (1995:23).
Uma das características de articular práticas de linguagem e situações de trabalho é
o entendimento de que há indissociabilidade entre as formas lingüísticas e seu
funcionamento nas interações socialmente situadas (Souza-e-Silva, 2001: 137).
Para proceder à análise lingüística dos dados desta pesquisa e avaliar como a
movimentação discursiva da profissional, na atividade de trabalho da consulta inicial no
contexto da Triagem, começa (ou não) a estabelecer o efeito de sentido “atendimento
humanizado”, vai-se recorrer ao princípio do dialogismo, aos embreantes lingüísticos (as
pessoas do discurso, e os dêiticos espaciais e temporais), à modalidade, à noção de
interdiscurso, como são compreendidas pela Análise do Discurso enunciativo-discursiva, e
a algumas noções sobre a co-construção de sentidos na interação durante a atividade, do
grupo “Linguagem e Trabalho”.
78
4.1. O princípio do dialogismo
“Dialogismo e polifonia são alicerces necessariamente calcados num conceito de “outro” discursivo,
ideológico e interacional.”
(Brait, 2001: 7)
O tornar inteligível a sua fala é o momento abstrato do projeto concreto de discurso
do falante. Isso subentende alguns enunciados antecedentes, próprios e alheios, os quais o
enunciado atual do falante simplesmente pressupõe, confirma, rejeita ou completa; com os
quais entra em relação, polemiza; nos quais se baseia e aos quais responde.
Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros
enunciados, e é pleno de ecos e ressonâncias deles: as outras vozes do discurso. O
enunciado é pleno de tonalidades dialógicas (Bakhtin, 2003: 297), e o direcionamento a
alguém é seu traço constitutivo essencial. O dialogismo, a relação com o Outro, é o
fundamento generalizado de toda discursividade. O ouvinte, ao perceber e compreender o
significado lingüístico do discurso, passa a ocupar uma posição responsiva ativa, em
relação a ele, concordando, discordando, obedecendo, ou até mesmo silenciando.
As relações entre enunciações sempre pressupõem um “outro” discursivo, e nesse
sentido, são sempre dialógicas. É impossível alguém definir sua posição sem correlacionála com outras posições, e cada enunciado contém atitudes responsivas a outros enunciados
de uma dada esfera da comunicação discursiva, e determinados pela situação social mais
imediata. A palavra procede de alguém e se dirige a alguém, é produto da interação de
interlocutores, e serve de expressão a um em relação ao outro. A situação dá forma à
enunciação, impondo-lhe um determinado efeito de sentido em vez de outro: exigência,
ordem, solicitação, afirmação de direitos, segurança, etc. A verdadeira substância da língua
é constituída pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação
ou das enunciações (Bakhtin/Volochinov, 2004: 123), modeladas pela tensão entre a
palavra do locutor, o meio extraverbal e a palavra do outro: a compreensão é uma forma de
diálogo e compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra.
Além disso, toda palavra (oral ou escrita) usada na interação é impregnada de tema
(sentido definido, individual e não reiterável da enunciação completa), de significação
79
(estágio inferior da capacidade de significar (ibid.: 131)), e também de um acento de valor
apreciativo.
Quando exprimimos nossos sentimentos, damos a uma palavra que veio à mente
por acaso uma entoação expressiva e profunda. Freqüentemente, uma interjeição ou
uma locução vazias de sentido têm carga semântica muito grande e resolvem, de
forma puramente entoativa, situações ou crises da vida cotidiana, servindo de
válvulas de segurança entoativa: “pois é...pois é”, “sei...sei”. Pode-se pronunciar a
mesma palavrinha com uma infinidade de entoações diferentes, conforme as
diferentes situações ou disposições que podem ocorrer na vida. (...) Os acentos
apreciativos dessa ordem e as entoações correspondentes não podem ultrapassar os
limites estreitos da situação imediata. Eles podem ser qualificados como auxiliares
marginais das significações lingüísticas, (...) embora a entonação não traduza
adequadamente o valor apreciativo. (ibid.:134).
A significação objetiva é perceptível na superfície do discurso e evidencia o caráter
social do signo e da enunciação. Ela traduz a apreciação entre os interlocutores, e reflete
reavaliação ou ressignificação.
No consultório odontológico, uma grande quantidade de vozes está em
concorrência, e os discursos em circulação, ali, assumem significações e valores
apreciativos diferentes, conforme o ponto de vista do ator social enfocado.
(Torna-se necessário, aqui e dentro dos limites deste trabalho, esclarecer que a
simplificação feita, ao se tomar como semelhantes os termos texto, discurso, enunciado e
enunciação, foi feita devido à falta de melhor conhecimento, por parte da pesquisadora,
para usar com mais propriedade, um ou outro.)
Os termos enunciado/enunciação têm seu lugar garantido em diferentes teorias
lingüísticas, enunciativas e discursivas, assumindo, necessariamente, dimensões
teóricas diferentes, justamente porque partem de perspectivas epistemológicas
diferentes. Mesmo dentro do pensamento bakhtiniano as possibilidades de leitura
dos termos enunciado, enunciado concreto e enunciação só têm sentido na
articulação com outros termos, outras categorias, outras noções, outros conceitos
que, mais do que a constitutiva proximidade, lhes conferem sentido específico,
diferenciado de qualquer outra perspectiva teórica. (Brait, 2005: 62)
80
4.2. A Análise do Discurso enunciativo-discursiva
“Estamos condenados a pensar uma mistura inextricável entre o mesmo e o outro, uma rede de relações
constantemente aberta.”
(Maingueneau)
A “escola francesa de análise do discurso” surgiu em meados dos anos 60, mas o
momento-chave de seu desenvolvimento foi em 1969, quando a revista Langages publicou
um número, “L´Analyse du discours”, elaborado no departamento de Lingüística de
Nanterre, e Michel Pêcheux publicou um livro, “Analyse automatique du discours”, editado
pela Dunot, de Paris. Esses dois textos marcaram o ato de nascimento oficial de uma
corrente, para a qual convergem uma certa tradição de pesquisa, uma prática escolar e
uma conjuntura intelectual (Maingueneau, 1991: 18). O pensamento de Louis Althusser
serviu de catalisador a esse novo projeto, e a psicanálise de Jacques Lacan de modelo, no
sentido em que, como o psicanalista, para aceder ao impensado, o praticante da escola
francesa de análise do discurso buscava decompor as continuidades verbais (ibid.: 18).
Com a publicação dos livros “A arqueologia do saber”, de 1969, e “A ordem do discurso”,
de 1971, a influência de Michel Foucault passou a ser considerável, no desenvolvimento
dos trabalhos sobre a enunciação lingüística e sobre a coerência textual, embora Foucault
não se preocupasse em estabelecer instrumentos metodológicos para o estudo dos textos.
Na Europa, a corrente original de reflexões sobre a linguagem é representada por C.
Bally, E. Benveniste, R. Jakobson, A. Culioli. A “escola francesa”, no sentido mais
restrito, pertence hoje à história das idéias, tendo sido marginalizada pelo desenvolvimento
de uma nova maneira de praticar a análise do discurso, de “tendência francesa”, com uma
concepção diferente da discursividade enunciativa, e com quatro traços particularmente
significativos, de acordo com Maingueneau (ibid.: 24):
•
o interesse por um corpus relativamente “restrito”;
•
a preocupação pela materialidade lingüística;
•
a relação privilegiada com as problemáticas da enunciação lingüística,
inseparável de uma reflexão sobre o Sujeito; e
•
a afirmação da primazia do interdiscurso sobre o discurso.
81
O corpus
O corpus “restrito” não é um corpus menos “livre”: não se trata necessariamente de
enunciados escritos, mas de enunciados associados a um contexto institucional definido e
controlado por seus protagonistas; que sempre pressupõem a inter-relação entre formas
prescritas e formas e menos rígidas da palavra; e que, freqüentemente, têm uma relação
com a memória. Com a possibilidade do registro sonoro e audiovisual, tais enunciados são
conservados, repetidos, comentados e transformados, o que modificou profundamente a
relação com a memória e com a noção de “escrito” (hoje em dia, um enunciado oral
registrado pela mídia radiofônica ou televisiva pode comprometer seu autor tanto quanto
um depoimento escrito).
O discurso é prática construída na história e tem relação constitutiva com a memória
discursiva, constituída de formulações que repetem, recusam e transformam outras
formulações, com o aumento progressivo dos saberes compartilhados pelos interlocutores
no decorrer de uma troca em contexto (concebido não como algo exterior, mas como uma
realidade cognitiva: contexto lingüístico, situação extralingüística e conhecimentos gerais
anteriores). Além disso, o discurso também é dominado pela memória de outros discursos
historicamente situados. Assim, toda formulação estaria na intersecção de dois eixos: o
“vertical”, do pré-construído, do domínio da memória, e o “horizontal”, da linearidade do
discurso, que oculta o primeiro eixo. O “domínio da memória” representa um
interdiscurso transverso (Maingueneau, 1997: 115).
Fala-se, aqui, não da memória psicológica, presumida pelo enunciado enquanto
inscrito na história (memória psicológica que é entendida por médicos e psiquiatras
segundo outros parâmetros).
O poder da memória é o poder da própria vida: a memória é a morada do
significado. Assim, quem perdeu a memória, como na amnésia ou na doença de
Alzheimer, perdeu a si mesmo e à sua unicidade, pois sem história não há
identidade, não há passado, nem futuro. Para que a vida tenha significado, é preciso
ter preservada a capacidade de nos lembrarmos das coisas, senão perde-se a
orientação do comportamento rumo a alvos e propósitos, já que estes são resultados
de uma memória funcionante e ativa (Marino Jr., 2005: 94).
82
A materialidade lingüística
O lingüista leva em consideração as propriedades formais dos enunciados a analisar,
interessando-se por suas formas e não somente por sua função social: a morfologia, a
sintaxe, o léxico, os fenômenos enunciativos, um "a gente” em vez de um “eu”, uma
construção passiva, uma designação, tudo isso é suscetível de chamar a atenção do analista
do discurso.
Todo enunciado, antes de ser esse fragmento da língua natural que o lingüista
procura analisar, é o produto de um acontecimento único, sua enunciação, que supõe um
enunciador, um co-enunciador, um momento e um lugar particulares: portanto, todo
discurso é um fenômeno de comunicação sócio-histórico-cultural, define sua identidade em
relação ao outro e é constitutivamente heterogêneo. Esse acontecimento enunciativo deixa
marcas lingüísticas observáveis, como os embreantes, cuja função consiste em articular o
enunciado à situação de enunciação: as pessoas do discurso (eu x você) e os dêiticos
espaciais e temporais, os quais carregam uma significação nova a cada enunciação
(Souza-e-Silva, 2001: 134). Esse conjunto de referências (eu x você – aqui – agora)
constitui a dêixis lingüística e define as coordenadas espaço-temporais implicadas em um
ato de enunciação. A dêixis discursiva tem a mesma função, mas manifesta-se em outro
nível: o do universo de sentido que uma formação discursiva constrói por meio de sua
enunciação (Maingueneau, 1997: 41).
O sentido de elementos como eu, mim, me, não permanece imutável de uma
enunciação a outra: eu, a primeira pessoa do discurso, sendo sempre o locutor, se reveste de
uma significação nova a cada enunciação, da mesma maneira que você (o interlocutor, a
segunda pessoa do discurso), e os dêiticos espaciais (aqui, em cima da bancada, lá naquele
endereço) e temporais (hoje, naquele ano, daqui a algum tempo). Eu e você remetem a
papéis, indissociáveis e reversíveis, em que todo eu é um você em potencial, e todo você é
um eu, na troca lingüística.
No entanto, há enunciados que, a despeito de sua natureza individual, escapam à
condição de pessoa, isto é, não remetem a eles mesmos mas a uma situação “objetiva”: é o
domínio da “terceira pessoa”.
A “terceira pessoa” representa o membro não marcado da correlação da pessoa : a
“não-pessoa” - o único modo de enunciação possível para as instâncias do discurso
que não devem remeter a elas mesma, mas que predicam o processo de não
importa quem ou não importa o que. (...) É uma função de “representação”
83
sintática, que se estende a termos tomados às diferentes “partes do discurso”, e que
corresponde a uma necessidade de economia, substituindo um segmento do
enunciado e até um enunciado inteiro, por um substituto mais maleável. Assim, não
há nada de comum entre a função desses substitutos e a dos indicadores de pessoa
(Benveniste, 2005: 282).
É de se notar que a expressão “a gente” é uma forma de não-pessoa, invariável em
gênero e número, sempre sujeito da frase, sempre designando um ser humano, e associado
a um verbo em terceira pessoa do singular.
A enunciação
Na perspectiva dos lingüistas da escola de tendência francesa, a atividade
enunciativa dos participantes da comunicação verbal desempenha papel privilegiado, e toda
enunciação se inscreve no enunciado por meio de múltiplos traços: marcas de pessoas, de
tempo, de lugar, mas também de determinação ou de modalidade. Ao privilegiar a inscrição
do enunciador (locutor) e de seu co-enunciador (interlocutor) no enunciado, o analista do
discurso considera que a subjetividade, que implica o discurso, frustra toda exterioridade
simples entre um Sujeito lingüístico (discursivo) e um Sujeito psíquico e social (empírico)
que se coloca independentemente da língua.
O sujeito enunciador é ao mesmo tempo ponto de referência (eu indica que o sujeito
do enunciado é idêntico ao enunciador) e de modalizações. A modalidade é definida como
a forma lingüística de um julgamento intelectual, de um julgamento afetivo ou de uma
vontade que o sujeito enuncia a propósito de uma percepção ou de uma representação de
seu espírito (Bally, 1965 apud Maingueneau, 1991:114). A modalidade pode ser assertiva,
quando coloca um enunciado como verdadeiro ou falso, ou apreciativa, quando emite um
julgamento de valor. Neste sentido, um estatuto privilegiado é dado às “designações”, na
maioria das vezes depreciativas, associadas a uma apreciação do enunciador e
intrinsecamente ligadas ao ato mesmo de enunciação.
A primazia do interdiscurso
Admitir a primazia da interdiscursividade é recusar toda aproximação que faria de
uma identidade discursiva uma pura referência a si mesmo. A interdiscursividade não é a
comparação ou o simples contraste entre discursos considerados independentemente um do
outro. A identidade de um discurso não é um dado, é um processo que não se completa
84
senão com a emergência e a preservação de uma certa configuração enunciativa. O
intradiscursivo e o interdiscursivo estão ligados, a relação com o “outro” é uma modalidade
de relação consigo mesmo, que não se fecha em si mesmo. A enunciação não se desenvolve
a partir de uma intenção firmada, ela sempre é atravessada por múltiplas formas de
convocação de palavras reais ou virtuais, pela ameaça de escorregadelas naquilo que não
deve jamais ser dito, aquilo cuja presença invasiva e invisível dobra constantemente a
enunciação (Maingueneau 1991: 26).
Sendo assim, como todo discurso tem a propriedade de estar em relação multiforme
com outros discursos, anteriores a ele e independentes dele, isso determina que o sentido
de uma enunciação não seja a projeção de um “querer dizer”, mas antes, que o sentido seria
fruto de uma “negociação”, num espaço fundamentalmente conflituoso, de estabilidade
jamais assegurada, e sob a dupla coerção do já-dito e do dizível.
Em sentido restritivo, o interdiscurso é também um espaço discursivo, um conjunto
de discursos (de um mesmo campo discursivo ou de campos distintos) que mantém relações
de delimitação recíproca uns com os outros. Em sentido mais amplo, o interdiscurso é o
conjunto das unidades discursivas (que pertencem a discursos anteriores) com os quais um
discurso particular entra em relação implícita ou explícita. Assim, a unidade de análise
pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos
convenientemente escolhidos (id., 1984: 11).
No caso deste estudo, em que se procura caracterizar o gênero de atividade do
dentista, isso é feito levando em consideração o interdiscurso Medicina/Odontologia, isto é,
a sempre presente relação de delimitação recíproca com o gênero de atividade do médico,
embora haja diferenças na estrutura e no funcionamento deles, que se refletem nas posições
enunciativas dos locutores, dentistas ou médicos. A unidade de análise não seria, então, o
discurso do dentista, mas o espaço de trocas entre os dois discursos (sujeitos a prescrições,
regras e normas semelhantes, determinadas para o atendimento na área da saúde, mas que
expressam concorrência, competição e antagonismo profissionais).
85
4.3. A co-construção de sentido na atividade
“Todo diálogo verdadeiro contém silêncios. Ora, um silêncio não deixa traços semióticos. Como, então,
interpretá-lo, que significa ele?”
(Boutet, 1997: X)
Em qualquer situação linguageira, a atividade de linguagem se desenvolve no seio
de contextos sociais e a maneira como as palavras são colocadas no discurso não têm o
mesmo significado para enunciador e interlocutor, porque os indivíduos não se confrontam
com uma palavra já elaborada anteriormente; porque o sujeito do discurso é
constitutivamente heterogêneo, múltiplo, clivado; porque o discurso é lugar privilegiado
para manifestação de uma ideologia, além de o texto ser um efeito discursivo. Isso tanto
pode gerar aproximação, como ambigüidade, variação semântica, conflito lingüístico
(Boutet,1997: VII). A heterogeneidade social é constitutiva da construção de sentido pelos
participantes da troca verbal e a situação de pertinência de um locutor a uma determinada
classe social, assim como a posição que ele ocupa na relação de forças, tudo isso se
manifesta no seu discurso. Esta maneira de teorizar a situação coloca os limites da
competência do lingüista: ele não tem como objeto situações concretas mas apenas as suas
representações simbólicas (ibid.: 55) e deve levar em conta, na análise das interações
verbais, um “já-dito” que as precede e que as caracteriza parcialmente. Por outro lado, há
sempre opacidade no sentido, uma vez que ele é construído embasado num processo que,
além de sócio-cultural, também é ideológico, marcado pelo modo de ser e pela visão de
mundo de cada um e, portanto, está inscrito em múltiplas temporalidades, na
heterogeneidade dos estratos simbólicos, na diversidade dos indivíduos implicados e seu
respectivo status (Souza-e-Silva, 2001:139).
A interpretação e a análise dos dados de pesquisa são atividades que o pesquisador
faz em um tempo diferente do da ação: ele toma como objeto de análise uma interação já
construída. A interpretação do lingüista constitui uma atividade metalingüística e não
lingüística, segundo Boutet (1997: 27), e resulta de dois deslocamentos: um, entre a
interpretação que um enunciador constrói de seus enunciados e a interpretação construída
na interação pelo co-enunciador; e outro, o deslocamento feito pelo pesquisador lingüista,
confrontado com esses enunciados e construindo interpretações sobre eles, de fora da
86
situação empírica em que eles aconteceram, baseando-se em regularidades formais e
observáveis dos dados a serem analisados.
Nessa análise, leva-se em conta que há uma dependência entre as propriedades
organizadoras dos gêneros de atividade - ligadas ao contexto da ação -, e algumas formas
lingüísticas recorrentes: as interações profissionais estão submetidas a um princípio muito
generalizado e comum: a máxima de polidez de Grice, que se aplica particularmente às
profissões de prestação de serviços (Boutet, 2005b: 11). Sendo a comunicação verbal
também uma relação social, ela se submete a regras de polidez:
transgredir uma lei do discurso (falar fora do assunto, ser hermético, não dar as
informações solicitadas, etc.), o fato de dirigir a palavra a alguém ou monopolizar a
atenção do interlocutor, já é uma intrusão no seu espaço, um ato potencialmente
agressivo. Esses fenômenos de polidez estão integrados na teoria “das faces”,
desenvolvida desde o final dos anos setenta, principalmente por P. Brown e S.
Levinson, que se inspiraram no sociólogo americano E. Goffman (Maingueneau,
2002: 38).
No gênero de atividade do dentista, que também é uma relação de serviço, isso se
aplica especialmente, já que a interação que se estabelece entre os atores sociais é
assimétrica tanto no sentido de conhecimento científico, como no de nível sócio-cultural,
colocando em evidência as relações de forças e de dominação de um locutor sobre o outro.
Visto que uma mesma fala pode ameaçar a face positiva de um, com o intuito de preservar
a do outro, os interlocutores são constantemente levados a buscar um acordo, a negociar, a
gerir conflitos, com o dentista procurando um meio de preservar a própria face sem
ameaçar a face negativa do paciente. Nessa situação, os discursos exigem, do profissional,
competências desenvolvidas em quatro registros: competências técnicas e regulamentares
(procedimentos técnicos, letramento para textos escritos e orais referentes ao gênero
profissional), competências contratuais (colocar-se de acordo com a instituição e com o
paciente), competências sociais (gerir a interação face a face). Os dois últimos conjuntos de
competências remetem a competências de natureza comunicativa (Boutet, 2005b: 11), em
que os discursos nunca acedem à univocidade, e traduzem a desigualdade entre os
interlocutores, cada qual com uma maneira própria de interpretar seu Outro.
As noções de assimetria dos interlocutores nos diálogos se inscrevem numa história
de idéias lingüísticas e filosóficas que parecem evoluir a partir de problemáticas de
poder e dominação. Elas estão no fundamento da constituição de disciplinas como
a sócio-lingüística e a análise do discurso, e colocaram em discussão noções como
as de relação de forças, de hierarquia, de autoridade, de desigualdade: dominação
de um grupo social sobre outro, ou de um locutor sobre outro em situações sociais
como as consultas nos consultórios médicos, por exemplo (Boutet, 2005a).
87
No consultório odontológico, a relação de serviço poderia ser definida como a
posição de um “eu-dentista” que sabe, oposta a um “você-paciente” que não sabe, posição
na qual o profissional-agente é reconhecido por uma competência que o paciente-cliente
não possui, o que autoriza o profissional a questionar, prometer, avaliar, dar as ordens
(Grosjean, 1993: 37).
Além disso, na interação face a face que acontece no consultório odontológico,
definida pela co-presença dos participantes, está implicada, também, uma prática na qual
ocorrem manifestações semióticas não verbais (olhar, mímicas, gestos, entonação),
próprias à oralidade e estreitamente imbricadas à atividade de trabalho que ela
acompanha ou realiza (Grosjean, 2001: 143).
Na atividade do dentista, como em toda enunciação situada, a palavra está sujeita a
escolhas e à variação, e permite marcar as relações de intersubjetividade pelo jogo dos
tempos, dos modos, das pessoas, pelas escolhas lexicais, pelos acentos de valor apreciativo,
etc.: a palavra da ação nunca é puramente funcional, ela carrega também um acento
sociolingüístico (Lacoste, 1995: 25).
O trabalho do profissional de Odontologia coloca em evidência as heterogeneidades
sociais, o confronto de normas implicadas na vida no trabalho, as trocas simbólicas que
acontecem entre as pessoas direta ou indiretamente envolvidas nesse trabalho, a coconstrução dos sentidos que os atores sociais vão desenvolvendo, no decorrer da interação
linguageira dentista-paciente.
A construção de sentido na atividade de pesquisa, pela escolha dos dados para a
pretensa análise da atividade de trabalho do dentista, por sua vez, coloca o pesquisador
frente a múltiplos desafios: a interpretação dos discursos do dentista pelo paciente e viceversa, e a interpretação que o pesquisador faz dos discursos de cada um, por exemplo, na
seleção do que lhe pareça mais ou menos importante, mais ou menos recorrente, mais ou
menos significativo para o propósito do seu estudo.
88
Terceira parte
Metodologia
Capítulo 5
A construção dos dados de pesquisa
Valendo-se de suas relações pessoais e profissionais com a coordenadora da Escola
de Aperfeiçoamento Profissional e com a dentista responsável pela triagem de pacientes
para os cursos ministrados nas clínicas da EAP, a pesquisadora teve um encontro com
ambas, na sala da Coordenadoria, no 4º andar da EAP, em agosto de 2004. Foi feita uma
entrevista para que um espaço dialógico pudesse ser co-construído e, desse modo, se
transformasse a atividade de trabalho dos atores sociais no núcleo do desenvolvimento de
uma situação de pesquisa.
5.1. A entrevista inicial para autorização e consentimento
Tal entrevista foi usada como dispositivo de produção de textos a partir de uma
ótica discursiva sócio-culturalmente situada, que produz um "material excedente” com
menção a fatos que não foram perguntados e com digressões, e que permite
retomar/condensar várias situações de enunciação ocorridas em momentos anteriores
(Rocha, 2004: 12). Nesse sentido, a entrevista promoveu a interlocução de vários já-ditos, e
representou uma opção política da pesquisadora, ao se levar em conta a alteridade e a voz
do “outro”, na análise dos dados, embora priorizando determinados fragmentos da
entrevista em detrimento de outros, que não pareceram relevantes à pesquisa, evitando
confundir a ótica da pesquisa e a ótica do sujeito pesquisado, isto é, impedindo que
viessem a coincidir lugares que são essencialmente distintos (ibid.: 15) - como quando a
dentista disse não atender os pacientes da EAP do mesmo modo que atende clientes no seu
consultório particular, por não dispor do mesmo tempo e da mesma autonomia de ação, já
que na Triagem ela está sujeita aos prescritos hierárquicos e institucionais da EAP.
89
Essa primeira entrevista foi, na realidade, uma conversa informal, não gravada, em
que o objetivo da pesquisa foi explicado: ao caracterizar o gênero profissional do dentista
como uma atividade de trabalho / relação de serviço (admitindo a hipótese de que o
atendimento durante a consulta inicial talvez possa começar a construir o efeito de sentido
“atendimento humanizado”), analisar a relação texto/contexto e refletir sobre a integração
entre linguagem e situação de trabalho da dentista na Triagem. O fato de o corpus de
pesquisa ser constituído no contexto do consultório da Triagem se justificou por este ser o
setor pelo qual todos os pacientes a serem tratados na EAP devem passar, antes de serem
encaminhados para qualquer uma das clínicas de especialidades. Nesse encontro, também
foram mencionados os métodos a serem usados: gravação em áudio da consulta e
autoconfrontação do ator social, em uma data posterior, após a transcrição dos diálogos em
situação.
Na primeira entrevista, atendendo ao prescrito pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
PUCSP, foram assinados o Protocolo de Ação junto à Coordenadoria Clínica da Escola de
Aperfeiçoamento Profissional (pela coordenadora), o Consentimento Livre e Esclarecido e
a Declaração de Concordância do Participante (pela dentista).
Ficou, assim, estabelecida a gravação da consulta do primeiro paciente do período
noturno, a ser feita nesse mesmo dia, 31 agosto de 2004.
5.2. O diário de campo
Tanto os dados coletados na conversa com a dentista como as observações feitas
durante a gravação da consulta foram anotados em diário de campo (um caderno de notas).
A organização do atendimento na Triagem visa a, em uma única consulta, detectar
os principais problemas orais; fazer a avaliação da boca como um todo, com preenchimento
do prontuário geral do paciente; elaborar um plano de tratamento, sugerindo-lhe uma
seqüência; e encaminhar o paciente para o curso de especialização ou atualização indicado,
no qual o paciente receberá o tratamento preconizado na ficha de Triagem (turno 40 da
autoconfrontação, Anexo 10):
40. D: a Triagem começou aqui em 2003 antes ela tinha se estabelecido de uma
forma muito ... pouco eficiente .. quer dizer levantava todos os problemas de uma
90
boca mas não direcionava não fazia uma seqüência ... por exemplo esse paciente
tem o perfil de prótese .. não orientava em nenhum momento aquele paciente ...
então hoje em dia você pega um paciente que tem ... a história final dele é prótese
... mas você tem que ver se dá para gente viabilizar ...
Isso porque, em virtude do grande número de pacientes examinados, a consultatriagem de um paciente não garante o seu imediato atendimento nas clínicas dos cursos da
EAP, podendo ou haver uma longa espera, ou nem haver o agendamento para tratamento.
O horário de funcionamento da Triagem, prescrito e estabelecido pela própria
dentista D. foi assim determinado: às segundas e terças-feiras, das 18h às 20h30min; às
quartas-feiras, das 14h às 18h30min; às sextas-feiras, das 9h às 11h. Em princípio,
conforme o período (noturno, vespertino ou matutino), de quatro a oito pacientes deveriam
ser atendidos: um a cada meia-hora, em média. No entanto, o tempo gasto com cada
paciente, bem como alguns outros determinantes ecológicos do gênero profissional
(Boutet, 2005b: 4), como atrasos ou faltas dos pacientes, interrupções dos procedimentos
pela auxiliar, eventuais atendimentos não agendados, ou conversas que se prolongam com o
paciente em consulta, modificam o esquema de horário, sempre alterado e invariavelmente
dilatado.
5.3. A observação direta na Triagem
A observação da consulta não foi participante, embora a pesquisadora tivesse
vestido avental branco, para poder ficar no ambiente do consultório. O paciente J. entrou,
acompanhado da auxiliar C., que trazia a pasta contendo a toda a documentação dele. A
dentista. D. recebeu e cumprimentou o paciente, estendendo-lhe a mão; explicou a presença
da pesquisadora e lhe pediu que, se estivesse de acordo que sua consulta fosse gravada em
áudio, com finalidade de estudo, assinasse a Declaração de Concordância do Participante.
Após essa introdução, feita pela dentista, a pesquisadora ficou sentada no mocho do
primeiro consultório da Triagem, fazendo anotações no diário de campo sem opinar nem se
manifestar de qualquer maneira. Nesse dia, a secretária C. ficou no consultório durante
algum tempo, e interferiu no diálogo dentista-paciente quando solicitada pela dentista,
91
como ela mesma explica, no turno 6 da autoconfrontação (Anexo 10): eu chamo a C. ou a
C. aparece né?
5.4. A gravação em áudio da consulta inicial
A consulta odontológica se organiza em três fases distintas como instâncias de
interação dialógica, em que os mecanismos lingüísticos utilizados ressaltam variados
aspectos da importância da assimetria para a realização da interação (Vieira, 2002: 57):
a) a entrevista - com anamnese53, preenchimento de prontuário e ficha de Triagem-,
durante a qual o paciente fala sobre suas queixas físicas e a dentista as investiga, levando
em conta o histórico médico-odontológico dele, para determinar quais os atuais problemas
estomatológicos apresentados e em que seqüência eles deveriam ser tratados,
b) o exame físico - visual, apenas com utilização de espelho bucal e explorador, e
c) o fechamento - com o agendamento do paciente para tratamento em algum curso
ministrado nas clínicas da EAP, ou o encaminhamento dele para a lista de espera, na
eventualidade de seu caso clínico não ser de interesse didático para os cursos em
andamento.
Enquanto faz a consulta, as deixas, o riso, as oscilações sonoras da voz da dentista,
as interrupções, etc. podem denotar a possibilidade de acolhimento ou rejeição de
intromissões no seu discurso, ou ainda, de abertura para negociar significados (ibid.: 57),
tendo em vista a assimetria de lugares sociais na interação dentista-paciente.
No dia em que foi feita a gravação, o paciente J. era o primeiro do período e havia
sido agendado para passar pela Triagem pela primeira vez, embora ele fosse um paciente
antigo da EAP, em tratamento desde que a antiga clínica de atendimento funcionava em
outro endereço. O tratamento dele ainda não havia sido terminado, ou porque os alunos
responsáveis por seu caso não conseguiram finalizar os procedimentos clínicos necessários
antes da conclusão do curso que freqüentavam, ou porque imprevistos surgiram entre um
atendimento e outro (como falta ou atraso dos alunos), ou porque o próprio paciente J. teve
problemas médicos que interferiram no agendamento de seu tratamento odontológico. Isso
53
Anamnese: histórico que vai desde os sintomas iniciais até o momento da observação clínica, realizado com
base nas lembranças do paciente.
92
leva o paciente a se justificar, repetidamente, para requerer o direito de ser atendido sem ir
para a lista de espera, pela tripla razão de ser paciente antigo da EAP, de não ter condições
de pagar um tratamento odontológico em consultório particular e por ter pressa de terminar
o tratamento odontológico para começar o médico (Anexo nove):
7. D: qual que é o problema?
8. J: ...sou aposentado (por invalidez, não é?) e tenho esse processo de ... de... tenho
essa declaração aqui do médico ... ehn ... neurologista né e então agora apareceu
também um câncer ehn prostático né?
9. D: (da próstata)
10. J: e agora vou ter que fazer tratamento e vou ter que fazer também mais
(radioterapia) eu sou funcionário público aposentado por invalidez
A consulta durou 26 minutos, e durante o preenchimento do prontuário, ao verificar
que o tratamento prescrito, começado há longo tempo, ainda não fora completado, a
dentista se dirigiu à auxiliar C., funcionária antiga da EAP, para obter informação a respeito
disso. A auxiliar, por sua vez, recorre ao paciente, para se lembrar do que teria acontecido.
31. D: ... ((dirigindo-se à auxiliar)) você pode só me dizer qual ... um pouquinho do
histórico dele? ele tratou na ((Rua)) Humaitááá ...
32. Auxiliar: seu J. aQUI ... eu lembro mais do tratamento dele AQUI ... o senhor fez
os canais aqui né seu J.?
33. D: o senhor fez um canal aqui?
34. J: não dona () ... foi lá na ...
35. D: na Humaitá ainda?
No endereço anterior onde se localizava a EAP, os pacientes eram atendidos
diretamente na clínica, sem passar por triagem, já que este setor de atendimento ainda não
existia. Esse foi o caso do paciente J.
51. D: humhum... isso aqui é de 97 99 ... essas aqui já são de ...
52. J: é ... foi do ano passado ...
53. D: do ano passado?
54. J: aqui já ...
55. D: é já tava tratando aqui então
No turno 6 da autoconfrontação, a dentista faz comentário a respeito dessa situação,
ressaltando a importância dos dados escritos na documentação antiga do paciente J.:
6. D: eu tô perguntando porque eu tô com uma ficha de canal na mão ...
daqui da EAP... e ... alguma coisa me instigou ... deve ser algum tipo de
papel para que eu possa fazer isso... porque eu apoio ali ((na mureta entre os
boxes)) porque os arquivos ficam aqui em cima ((na bancada)) né? ... eu
93
nunca sei se é na Humaitá que foi feito ou se foi feito aqui neste prédio
então a ficha dele deve ter uma série de coisas como os exames médicos
dele ... o histórico particular ... mas já foi feito canal na época de 97... 98 ...
99 ... porque até 2002 era feito na Humaitá ... ele provavelmente estava
estacionado ... ele é um paciente que tavam com a ficha dele ... há muito
tempo e parou () ... em função da doença dele ... agora no momento em que
parou:: () ... 2004 o ano passado ... já passou por aqui ... mas ele não tem
uma seqüência de tratamento ... ele já passou por tanta gente que eles não
sabem o que fazer com ele ...
Durante a consulta, o gravador ficou apoiado sobre a mureta de separação entre os
consultórios, tendo sido desligado por alguns minutos (entre os turnos 214 e 215), a pedido
da dentista, quando houve uma interrupção no procedimento da consulta para que ela
resolvesse o problema de uma paciente não agendada. Embora haja a prescrição de que
apenas pacientes já avaliados pela assistente social sejam atendidos na Triagem (sem
exceção para funcionários da EAP, parentes de alunos ou pessoas indicadas por
professores), muitas vezes isso é desconsiderado. Foi o que aconteceu no próprio dia da
gravação: a auxiliar interrompeu os procedimentos da dentista e lhe comunicou haver uma
paciente não agendada que precisava ser atendida, por solicitação (indevida) de um
professor. Essa paciente não passara pela avaliação da assistente social, não tinha
radiografias, não fora agendada pela secretaria da Triagem e, segundo ela mesma, só dera
uma “passadinha”, no horário em que o professor “mandara”, pra Triagem dar uma
“olhadinha” nela. Isto é, o professor queria, para seu curso em andamento, o “caso clínico”
dessa paciente específica, e precisava (por força de prescrição para os professores
ministradores de cursos na EAP) da ficha de Triagem da paciente. A exigência discursiva
do professor revela diferentes esferas de influências (a da instituição, a da Coordenadoria,
a de desigualdade social no status e na relação de poder entre professor de curso e dentista
funcionária da EAP, a de compromissos assumidos com os pacientes agendados), além de
competição e antagonismo profissionais que, em última análise, vão influenciar o
atendimento e a interação dentista-paciente. Para resolver a nova situação, a dentista tomou
a microdecisão de “renormalizar” a prescrição, fazendo “uso de si” e criando uma
estratégia singular para enfrentar aquele desafio (Schwartz, 2000: 34): ela agendou, fora
do esquema previsto e entre consultas já marcadas, uma outra, para atender a um colega de
profissão com o qual ela não tem obrigação contratual ou vínculo empregatício, permitindo,
assim, o uso de si pelos outros (ibid.: 42).
94
A reação da dentista só foi testemunhada pela pesquisadora, transformada em
interlocutora empírica quando D. lhe chamou a atenção, na situação de pesquisa (mas
dirigindo-se, na realidade, a outros interlocutores discursivos) para o absurdo do pedido e
para a dificuldade de resolvê-lo, contra todas as prescrições estabelecidas.
“Você viu? E agora, o que é que eu faço? Você estava lá, você ouviu as ordens da
coordenadora”.
Os determinantes ecológicos do gênero profissional (Boutet, 2005b: 4) da dentista
(como a interrupção dos procedimentos pela auxiliar e o atendimento não agendado, nesse
caso) influenciam no desenvolvimento da atividade de trabalho na Triagem. Na
autoconfrontação (Anexo dez), a dentista D. responde à pergunta da pesquisadora P. sobre
como lidar com esse tipo de “interferência”, que pode surgir na atividade de marcação de
consulta:
36. P: aí você encaixa ela entre os dois pacientes? porque você não tem tempo ... tá
tudo marcado
37. D: é ((suspiro)) ... faz parte do atendimento aqui da Triagem ... a gente tem
que dar uma direção pro paciente né? ... favorece (o serviço) ... esta atividade
aQUI tá montada pra agilizar o gerenciamento clínico pra não deixar o paciente
estacionado ... pra conseguir fornecer o material humano-didático pro professor
5.5. A autoconfrontação simples
Depois de transcritos os diálogos ocorridos na consulta (Anexo nove), foi marcado
um novo horário para o encontro entre pesquisadora e ator social, para proceder à
autoconfrontação, que aconteceu no dia 16 de maio de 2005, no consultório da Triagem,
antes que começasse o atendimento dos pacientes agendados nessa data e sem que houvesse
nenhuma interferência pela presença de outras pessoas.
A dentista D. lia a transcrição escrita levada pela pesquisadora, enquanto ouvia a
gravação. Não fez nenhum comentário, não parou a fita, não levantou os olhos do chão, a
atenção toda absorta na escuta. Sorria e balançava a cabeça, constantemente. Após o turno
103 da consulta inicial do paciente J., o gravador foi parado pela pesquisadora, que fez a
primeira pergunta à dentista:
1. P: Quer dizer que esse paciente veio já com um MONte de coisa na ficha
clínica dele ... ainda assim ele teve de passar pela assistente social e daí
95
pela Triagem pra ver o que vai precisar ser feito Aqui ... o que foi feito lá na
Humaitá ... ele não PAssa automaticamente da Humaitá pra cá pra ser
atendido ...
2. D: Não ... acho que esse paciente tava perdido
3. P: Ele não tinha passado pela assistente social?
4. D: Não ... ele já passou ... já passou pela assistente social mas como ele
tem o prontuário ...
Para explicar a variação de humor e a menor paciência em relação aos pacientes que
atenderia, em virtude de cansaço físico e mental, a dentista se refere à primeira paciente
agendada nesse dia da autoconfrontação, uma jovem mulher que deverá passar por uma
cirurgia médica:
a. D: mas dá vontade de falá bom então que troço que ... pára ... por isso que
eu digo tem que ter uma paciência né? porque ... no caso a pessoa ... hoje
por exemplo eu tô com menos paciência do que eu tava nesse dia ... eu
acho que tem dia que a paciência ... porque influencia né?
b. P: claro
c. D: cê vê hoje eu tive um ... acordei cedo fui dormir tarde tive que entregar
papéis fui testada o dia inteiro então hoje eu não tô com paciência pra...
d. P: mas vai atender do mesmo jeito os pacientes marcados né?
e. D: é ... por exemplo aqui tá escrito que ela tá desempregada né? ela tá com
problema de endometRIOSE ... ela SOFRE muito porque hemorragias e ...
não consegue nem trabalhar e ... SOFRE muito...
96
Quarta parte
Análise dos dados da pesquisa
“Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona.”
(Clarice Lispector - A hora da estrela)
Neste estudo, enfoca-se o tema “humanização no atendimento ao paciente”,
entendendo-se tema como
o sentido da enunciação completa. O tema deve ser único, ou não haveria base para
definir a enunciação. O tema da enunciação é individual, não reiterável, expressão
de uma situação histórica concreta que originou a enunciação e é determinado pelas
formas lingüísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas
ou sintáticas, os sons, as entonações, mas igualmente por elementos não verbais da
situação). (...) O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, tanto quanto o
instante histórico ao qual ele pertence (Bakhtin/Volochinov, 2004: 129).
O tema não é localizado no aparato técnico do significado, mas é abordado à luz
da noção de objeto de sentido, no nível da movimentação discursiva, dos acabamentos e da
história da atividade em desenvolvimento, recuperados a partir da dinâmica da interação
em situação de trabalho (França, 2002: 126). O tema implica também elementos
extraverbais, como olhar, gestos, mímicas e entonação - manifestações próprias da
oralidade, que integram a situação de produção, recepção e circulação dos discursos, nas
interações de trabalho que eles acompanham ou realizam. No discurso, uma entonação
particular, um efeito de voz, um gesto que o acompanha podem ter como conseqüência
tornar avaliadores termos que, a priori, não o são (Cervoni, 1989: 77). Tais manifestações
semióticas não-verbais podem ser consideradas como parte integrante da interação
dialógica que se estabelece na primeira consulta, e, em tese, colaboram com o aspecto
lingüístico-discursivo na construção do efeito de sentido de uma atitude humanizada no
atendimento ao paciente. Assim, o fato de a dentista manter contato de olhos,
[A questão do olhar é fundamental na problemática da alteridade. Em Levinas, por
exemplo, o olhar é aquilo que convoca a dimensão ética na relação com o outro,
lugar de reconhecimento na diferença (Amorim, 1996: 106).]
fazer os gestos de cumprimentar o paciente estendendo-lhe a mão, de não lhe dar as costas
enquanto faz anotações na ficha de Triagem, de colocar luvas de borracha e máscara facial
só depois dos primeiros procedimentos da entrevista-anamnese e do preenchimento do
97
prontuário e apenas antes de realizar o exame clínico propriamente dito (que implica ações
físicas, com instrumentos), além de manter o tom de voz baixo e atencioso, tudo (nesse
nível dos aspectos intersemióticos da atividade) contribui para atribuir um acento
apreciativo positivo para essa situação, na qual mesmo locuções vazias de sentido têm
carga semântica muito grande e podem ser qualificadas como auxiliares marginais das
significações lingüísticas (Bakhtin/Volochinov, 2004: 134). Na consulta gravada, a dentista
D. dá um valor afirmativo de concordância e respeito aos “hãhã” que vai entoando,
enquanto presta atenção (auditiva) ao que o paciente lhe diz, mesmo sem que haja contato
de olhos, preservando, assim, a face positiva do paciente (turnos de 122 a 125 e de 163 a
165, da consulta):
122.J: foi ... eu ... vinha fazendo um acompanhamento ... é:: com o urologista o Dr. C.
lá do hospital ... o PSA todos os anos fazia né? e:: do ano passado pra cá começou a
... a dar uma certa diferença ... () um aumento ... do PS ... PSA né?
123. D: hãhã
124. J: então é:: foi ele passou uns medicamentos pra mim eu tomei
125. D: hãhã
163. D: a boca fica seca também? ... ou saliva bem?
164. J: não ... saliva ... saliva bem ... agora:: a síndrome do olho seco ... é desde 91
também que eu faço o acompanhamento ... agora passou ã::: do do oftalmologista
pra neuroftalmo ...
165. D: hãhã::
Enquanto a dentista está verificando a documentação ou fazendo alguma anotação
na ficha de anamnese, o paciente J. vai falando, ininterruptamente, sobre seu problema, mas
sem dar os subsídios necessários à profissional. Ela, no entanto, quase não o interrompe
(turnos 6 e 13 a 19, da autoconfrontação) e, ao criar condições de J. expressar a própria voz,
ela o valoriza:
6. D: daí enquanto ele tá falando eu estou organizando o prontuário e às vezes eu
pergunto ... eu estou vendo uma radiografia ...
13. D: ... então nesse momento eu percebo que eu tenho NECEssidade de ter mais
informação ... ele não tá me dando (subsídio)
14. P: ele tava falando muito ... muito ...
15. D: ele TÁ falando ... mas ele ... lógico ele vai percebendo que né? ... dá vontade da
gente interrompê-lo
16. P: mas você não faz isso ... deixa ele ir falando ...
17. D: algumas vezes eu interrompi ...
19. D: mas dá vontade de falar bom então que troço que ... pára ...
98
A atitude da dentista D. visa a uma compreensão responsiva ativa por parte do
paciente:
222.D: acho que a gente deve botar a sua ficha em suspenso ... um pouquinho ... tá?
223. J: pois não
224. D: e ... a hora que o senhor passar pela Semiologia ... que é o pessoal que vai
avaliar esse essa relação do tratamento radioterápico com o dente ... tá?
225. J: certo
226. D: dependendo da ... do ... do que eles forem falar pra gente ...
227. J: pois não
228. D: aí sim a gente... conversa de novo ... já começa a fazer a ... a ... sua ficha ...
mesmo que seja durante seu processo de tratamento
229. J: perfeitamente
230. D: tá bom?
231. J: tá bom
232. D: e ... porque eu receio que ... a gente não possa:: atuar enquanto o senhor esteja
fazendo isso ...
233. J: certo
Capítulo 6
Categorias de análise lingüística
“As análises lingüísticas permitem exibir e testar as habilidades lingüísticas, as competências
comunicacionais mobilizadas pelos agentes nas interações e servem para descrever e compreender a
atividade de trabalho pesquisada.”
(Boutet, 2005c)
A situação “consulta inicial na Triagem” é atividade que deixa transparecer uma
movimentação dialógica entre aquilo que se deve fazer, aquilo que se pode fazer, aquilo
que não se costuma fazer (“uso de si”) e aquilo que se faz com sofrimento (atividade
contrariada). Tudo isso se reflete em marcas lingüísticas que organizam as relações
espaciais e temporais em torno do ator social e evidenciam a relação deste sujeito com o
seu dizer e, por meio dele, com o mundo. Nos enunciados da dentista D. ressoam ecos de
outros discursos circulantes no próprio coletivo de trabalho, na instituição, e na sociedade,
que influenciam nas representações que o paciente possa ter a respeito da Odontologia,
além de se refletirem na interação dentista-paciente durante a consulta.
99
Para tentar demonstrar a hipótese deste trabalho, de que humanização é uma atitude
humana transformada em um texto que pode ser compreendido (como atitude e não como
ação física) no contexto dialógico da própria época (Bakhtin, 2003: 312), na análise dos
dados do corpus de pesquisa, vão ser considerados os embreantes (as pessoas do discurso,
os dêiticos temporais e espaciais), e a modalização do próprio discurso. Além disso, vão ser
levados em conta, na análise da situação de trabalho do dentista, as vozes dos interlocutores
e o interdiscurso Medicina/Odontologia..
6.1. As pessoas do discurso (e os dêiticos temporais e espaciais)
Um enunciado não se assenta no absoluto, ele é situado em relação ao próprio ato
enunciativo do qual é produto, sendo que as características que definem a situação de
enunciação lingüística são: enunciador, co-enunciador, momento (expresso pelo tempo
verbal ou por advérbios) e lugar (contexto sócio-histórico, neste caso, a Triagem):
(Transcrito da autoconfrontação) – 21. D: você ((co-enunciador discursivo)) vê hoje
((embreante temporal, advérbio)) eu ((enunciador empírico e discursivo)) tive ((embreante
temporal, tempo verbal)) um ... acordei ((embreante temporal, tempo verbal)) cedo fui
dormir ((embreante temporal, tempo verbal)) tarde tive ((embreante temporal, tempo
verbal)) que entregar papéis fui testada ((embreante temporal, tempo verbal)) o dia inteiro
então hoje ((embreante temporal, advérbio)) eu ((enunciador empírico e discursivo)) não tô
com paciência para ...
(Transcrito da consulta) – 39. D: seu J. tá mas enfim aQUI ((embreante espacial)) o senhor
foi atendido? o senhor veio um/ muitas vezes aqui ((embreante espacial)) já
(Transcrito da autoconfrontação) – 6. D: porque eu ((enunciador empírico e discursivo))
apoio ali ((embreante espacial, mureta de separação dos boxes)) porque os arquivos ficam
aqui em cima ((embreante espacial, bancada)) eu nunca sei se é na Humaitá ((embreante
espacial, endereço)) que foi feito ou se foi feito aqui neste prédio ((embreante espacial))
Ao lado das “pessoas” propriamente ditas, enunciador e co-enunciador, há também
o “a gente”, forma de não-pessoa, com grande polivalência, e cuja referência varia
conforme o modo como é mobilizado no interior de um processo discursivo particular.
Pode ser interpretado como se referindo ao enunciador, ao co-enunciador, à dupla
enunciador + co-enunciador, a um grupo ou a um conjunto indefinido de pessoas:
181.D: pra que a gente ((dentista/enunciador + conjunto indefinido dos outros dentistas
especialistas)) possa ter um controle maior do da situação não é?
100
218. D: a radioterapia ... ela é super delicada ... eu não sei o nível de envolvimento que
isso pode estar tendo ... deixa eu ver se o senhor tem algum foco sério aqui ... a gente
((a Semiologia)) tem que ver isso antes de o senhor fazer a radioterapia ...
222. D: acho que a gente ((dentista D. - enunciador empírico)) deve botar sua ficha em
suspenso
261. D: a gente ((Triagem)) vai cuidar ... o senhor de qualquer forma volta aqui
273. D: porque dependendo do que eles falarem a gente ((curso da EAP)) pode optar
por um caminho ... ou por outro
Algumas vezes, a segunda pessoa discursiva “você” é usada com o sentido de “eu enunciador empírico”:
13. D: quando ele fala de Rivotril ... você não tem idéia ... ele toma 2 mg ... Tylex sim
que é um analgésico próprio ...mas o Rivotril você associa a ... e se não me engano
é 0,5 mg que você toma quando você fica ...
Outras vezes, o “você” é usado com o sentido de “a gente - enunciador genérico”,
um paciente, ou os doentes em geral, aos quais os médicos não dão atenção:
36. D: ... aí ele falou “então você ((paciente, co-enunciador do médico)) quer ter
FILHO?” ... “você ((paciente, co-enunciador do médico)) não quer mais ter filhos?” mas se
você ((enunciador genérico)) pergunta pra qualquer um ... até pra mim (dentista D. enunciador empírico) que não sou casada tenho 42 se falarem pra mim (dentista D. enunciador empírico) você ((dentista D. - enunciador empírico)) não quer mais ter filhos ...
eu sou capaz até de dizer não
6.2. A modalização do próprio enunciado
É por meio das situações e das relações sociais que a palavra toma a “cor” que a
situa em diferentes domínios (ideológico, estético, profissional, etc.). A comunicação
verbal é inseparável de outras formas de comunicação e implica conflitos, relações de
dominação e resistência, adaptação à hierarquia e à tensão entre valores sociais
contraditórios.
Em virtude do desconforto da situação de atendimento odontológico e da relação de
assimetria social entre dentista e paciente, a profissional lança mão de atitudes
(procedimentos lingüístico-discursivos) que servem, no trato com o paciente, como
101
estratégias de polidez: os atenuadores de um ato ameaçador, a prova mesma de que o ato
ameaçador não pode ser evitado e que não resta senão atenuar sua realização (Souza-eSilva, 1998). Assim, na análise de dados desta pesquisa, serão consideradas algumas
posições enunciativas da dentista, nos diálogos da interação na atividade, de modo a
verificar se elas poderiam caracterizar atitudes humanizadas no atendimento ao paciente.
O acolhimento
Nos enunciados preliminares próprios do gênero da atividade de consulta, ao passar
do tratamento de “senhor” para “você”, a dentista D. realiza uma mudança de espaço
enunciativo, sem dizê-lo explicitamente: ela sai das normas sociais ao mesmo tempo em
que sai das normas de linguagem (Maingueneau, 2001: 22). Assim, o paciente que ela trata
de “você” fica menos distante, há efeito de sentido de acolhimento e diminui a assimetria
entre suas posições sociais (embora continue a existir o respeito às convenções):
11. D: transtorno do que? ... do disco lombar ... o senhor machucou as costas?
39. D: seu J. tá mas enfim o senhor foi atendido? o senhor veio muitas vezes aqui já
105. D: é::: dá pra ver ... o senhor tá com alguma dor?
Há transformação da relativa em franca proximidade, no decorrer do procedimento:
17. D: como é que chama o que você ... o que você tinha?
59. D: esse é o último ... esse é o último que ... você ...
169. D: ã::: a sua radioterapia ... ou quimioterapia que você começa ou as duas?
151. D: e você toma alguns remédios?
277. D: não você passa ... vem na 3ª-feira às duas da tarde
278. J: na 3ª ou na 5ª?
279. D: espera ... eu vou anotar aqui procê não esquecer
Entretanto, num primeiro momento, o paciente trata a profissional de um modo
diferente (menos qualificado) daquele que ele usa, quando se refere a outros dentistas que
o trataram (turnos 33 a 36). Mais adiante, na consulta, o tratamento muda, quando ele
percebe o empenho dela em agendar um horário de atendimento para ele (turno 188):
33. D: o senhor fez um canal aqui?
34. J: não dona ... foi lá na
35. D: na Humaitá ainda?
36. J: na Humaitá ... foi até indicado pelo dr. N. () que é esposo da dra I.
188. J: certo ... ã::: doutora ...
102
Durante o atendimento, várias vezes o paciente enfatiza a sua precária condição
financeira (turnos 7 a 10; 38; 194 a 196), visando a justificar a sua necessidade de ser
atendido sem ir para a fila de espera, apesar de estar em tratamento na EAP há muito
tempo. A dentista acolhe esses argumentos, em vista dos motivos apresentados, e procura
agendá-lo (turno 203):
11. D: qual que é o problema?
12. J: ...sou aposentado por invalidez, não é? e tenho esse processo de ... de... tenho
essa declaração aqui do médico ... ehn ... neurologista né e então agora apareceu
também ehn uum um câncer ehn prostático né?[
13. D: (da próstata)
14. J: e agora vou ter que fazer tratamento e vou ter que fazer também mais ehn
(radioterapia) eu sou funcionário público aposentado por invalidez
38. J: que ele trabalha lá no no Hospital do Servidor Público ... aí ele peDIU até na
época foi foi o ... o... despesa ... as despesas foram ... ehn ... ele pediu pra ... pra ...
dada a situação da da ...
194. J: foi até encaminhado por uma dentista certo? ela ... que mora ... ela tem
consultório logo ...
195. D: tá
196. J: como eu não podia pagar ... então ela me encaminhou pra cá ((EAP))
203. D: é:: então tá mais do que na hora de começar a tratar ((na EAP))
O único “nós” que aparece no decorrer da consulta é ambíguo, e não permite saber
se a dentista está adotando uma atitude de acolhimento, solidária ao problema do paciente,
ou se está sendo paternalista. Ou se o “nós” se refere a ela, enunciadora empírica, junto
com o paciente. No entanto, certamente esse não é um “nós” coletivo:
29. D: tá ... então nós vamos ter um tratamento radioteRÁpico ...
A reformulação do enunciado
Para “traduzir” um termo “técnico” que o paciente não compreende, a dentista o
reformula:
75. D: o senhor fez cirurgia periodontal?
76. J: ...
77. D: cortaram sua gengiva?
78. J: cortaram ... lá na Humaitá ... aqui ((apontando com o dedo indicador e a língua))
79. D: huuum ... ((examinando o local apontado)) fizeram um enxertozinho aí
103
80. J: foi ... é:: o freio que fala né?
81. D: é o freio tava atrapalhando o dente né?
As designações (modalidade apreciativa)
Todo enunciado possui marcas de modalidade, que indicam a relação que o
enunciador estabelece com o co-enunciador, por meio do seu ato de enunciação. A
modalidade apreciativa é a forma lingüística associada a um julgamento de valor do
enunciador, e está intrinsecamente ligada ao ato mesmo de enunciação. Nesse sentido, um
estatuto privilegiado é dado às “designações”, na maioria das vezes depreciativas (turnos da
autoconfrontação):
6. D: (...) o homem ((o paciente J.)) só veio pra cá em 2002
25. D: esse rapaz ((o paciente J.)) que tem um problema de próstata
40. D: são muitos caras ((pacientes)) que os cursos não pegam porque não é o ideal
As “falsas designações”
Para não nomear, ou para atenuar a gravidade da doença do paciente, a dentista usa
eufemismos, “falsas designações” (turnos 113 e 183, da consulta):
113. D: o senhor tá tratando desse problema ((em vez de câncer)) que o senhor tem né?
183. D: a correlação entre esse negócio desse tumor e o tratamento dentário
Os elementos minimizadores (desculpas, diminutivos)
As desculpas e as palavras no diminutivo são procedimentos lingüísticos que tentam
minimizar um problema, e demonstram atenção às normas de polidez da interação face a
face (respeito à face positiva do outro):
25. D: tem um monte de papel seu aqui particular né ((risos)) ... desculpe
30. D: ((silêncio, enquanto examina o prontuário do paciente)) dá licença um
pouquinho ... ((dirigindo-se à auxiliar)) você pode só me dizer um pouquinho do
histórico dele? ele tratou na Humaitááá ...
Os diminutivos poderiam ter várias interpretações, na situação considerada aqui: um
modo de atenuação do problema odontológico de J., face ao seu problema médico (câncer
de próstata),turno 79; uma infantilização do diálogo, turnos 85 e 203; e/ou uma atitude de
paternalismo e condescendência, turno 265:
104
79. D: hu:::m ((examinando o local apontado)) fizeram um enxertozinho aí
85. D: foi só esse dentinho que o senhor tratou?
203. D: é:: então tá mais do que na hora de começar a tratar ... () só que ele vai fazer
radioterapia ... ... pode tirar sua mãozinha ((pedindo que o paciente retire a mão da
boca)) que eu só vou olhar ... tá bom?
265. D: e agora o senhor espera pra C. dá uma orientação pro senhor ... se tiver
oportunidade de passar ... bom a gente aí já dá uma geralzinha aí na gengiva...
As ambigüidades
A escolha de recursos discursivos que têm por efeito atenuar os fatos, potencialmente
ameaçadores, de o paciente não ser encaminhado de imediato para tratamento clínico, de o
paciente ter de ir para uma longa lista de espera, ou de o paciente não ser um caso
interessante para os cursos da EAP, disfarça a ambigüidade dessa situação e sugere que a
própria dentista poderá fazer o procedimento de raspagem nos dentes do paciente (turno
261), caso ele não seja atendido na clínica, por aluno de algum curso, no próprio dia da
consulta (3ª-feira), ou caso ele não consiga ser atendido como paciente extra, na 5ª-feira:
247. D. ((para auxiliar)): pergunta ... pergunta pro professor S. ... ou pra B. se existe
algum professor ... algum aluno ... que tá sem fazer nada ... né? ... se ((o aluno)) tem
raspadores pra poder ... explica que ele ((paciente J.)) vai fazer a radioterapia ... se ele
((aluno)) não podia fazer uma raspagem ... só pra dar um apoio ((ao paciente J.))
248. Auxiliar: eu vou fazer isso que a doutora tá pedindo ... tá mandando ... senão ... se
não tiver ninguém pra raspar ... se o senhor puder vir como paciente extra ...
249. D: extra
250. Auxiliar: 5ª-feira ... eu converso com ele ((professor S.)) pra ver ... mas paciente
extra
251. J: 5ª-feira?
252. Auxiliar: é ... às vezes tem um paciente marcado que falta ... aí a aluna fica sem
paciente ... ela raspa
253. D: eu gostaria muito que o senhor fizesse isso
254. Auxiliar: sabe por que? é de 5ª-feira ... tem que esperar e é como paciente extra ...
pode ser que não falte ninguém e eu não consiga encaixar o senhor
255. J: agora ... é depois de amanhã?
256. Auxiliar: isso
257. D: se já tiver hoje ótimo ...senão o senhor vem hoje e vem na 5ª também ... se der
pra passar hoje passa hoje ... aí vem na 5ª como extra também
258. J: tá bom
(...)
261.D: a gente vai cuidar ... o senhor de qualquer forma vai voltar aqui
105
No entanto, como a dentista havia dito que o paciente precisaria ser examinado também
pela Semiologia (turnos 224, 226-7), cujo dia de atendimento seria na próxima 3ª-feira, e o
encaixe a ser feito na clínica, para o procedimento de raspagem, é na 5ª-feira, o paciente
fica confuso (turnos 278-280):
224. D: e ... a hora que o senhor passar pela Semiologia ... que é o pessoal que vai
avaliar esse essa relação do tratamento radioterápico com o dente ... tá?
(...)
276.J: tudo bem ... agora tem ... ã:: um:: pra passar com eles eu tenho que marcar ...
277. D: não não você ... você passa ... vem na 3ª-feira às duas da tarde
278. J: na 3ª ou na 5ª?
279. D: espera ... eu vou anotar aqui procê não esquecer ... que é muita informação não
é? ((riso)) tá bom?
280. J: tá bom ... por favor
Há ambigüidade também quando a dentista dá a entender que J. será atendido na
clínica de algum curso, quando não é ela quem decide sobre a necessidade de um caso
clínico como o dele, nem sobre o agendamento de pacientes para os cursos. A recusa de
resposta negativa ao que o paciente solicita (a dentista não diz ao paciente que ele não
será atendido imediatamente) é, aqui, exemplo vivo do trabalho como “uso de si”, no
sentido em que a execução da tarefa de fazer a consulta na Triagem requer uma
implicação social do sujeito muito mais complexa do que a simples execução dos
prescritos. Essa produção linguageira na interação dentista-paciente poderia começar a
estabelecer um efeito de sentido de atendimento mais “humanizado”.
215.J: eu ... queria muito recuperar esse dente ...
216. D: é lógico
217. J: e... vê o que ... o que ... se podia fazer a respeito desse aqui
218. D: tudo bem ...
6.3. As vozes dos interlocutores
Os diálogos que ocorrem durante a atividade de preenchimento do prontuário do paciente
se inserem em práticas profissionais e sociais, são componentes constitutivos do contexto de
enunciação integrantes do enunciado (França, 2002: 125). Isso possibilita que a articulação
entre a prática discursiva, a prática profissional e a prática social vinculem a linguagem à
106
situação avaliada na pesquisa, explicitando as “vozes” de “outros” discursos, provenientes
de locutores social e ideologicamente diferentes .
Nas interações face a face, nos setores de serviço, os saberes e as relações de poder
são assimétricos, e essas forças em tensão se materializam discursivamente. A linguagem
usada na Triagem tem uma descontinuidade temática, já que há ali dois tipos de ações: um
trabalho físico (único e diferente para cada paciente examinado) e um trabalho de
linguagem, com interrupções permanentes, com silêncios, com imbricações entre dizer e
fazer, entre oral (interação linguageira), leitura (da ficha cadastral da assistente social, das
radiografias do paciente, dos tratamentos clínicos anteriores), e escrita (dos dados de
anamnese, do encaminhamento para tratamento numa seqüência indicada, de um eventual
pedido de atendimento em outro serviço). Sendo a única responsável pela Triagem, tanto
pelo atendimento clínico, como pelos trabalhos de organização e gerenciamento dos
pacientes, a profissional se engaja na situação de atendimento dentro dos limites fixados
tanto pelos prescritos da EAP (da qual ela é a porta-voz) e pelo tempo estabelecido de
consulta (determinante ecológico), como também por autoprescrições (limites do próprio
conhecimento específico, cansaço, horário de atendimento matutino, vespertino ou noturno,
etc.). Assim, na voz da dentista D., locutora empírica, recuperam-se diferentes vozes, que
expressam lógicas e ideologias diferentes: a da instituição EAP, a da Semiologia, a do
paciente, a dos médicos e dentistas que atenderam o paciente J., a dos professores e alunos
dos cursos, a da auxiliar e a da própria dentista.
A voz da EAP aparece refletida no comentário que a dentista faz, ao atender uma
paciente não agendada, no dia da gravação da consulta do paciente J.:
•
você ((pesquisadora)) ouviu o que ela ((coordenadora)) disse;
ou refratada no que ela diz, na primeira entrevista na sala da Coordenação:
• a filosofia pedagógica da Coordenação da EAP estimula
interdisciplinaridade entre os vários serviços;
• em casos complicados, eu recorro aos especialistas da Semiologia.
Há uma relação profissional de compromisso assumido e de colaboração entre os
vários setores da EAP, vozes em diálogo da Assistência Social, da Radiologia, da
secretaria, da Semiologia, etc.:
107
177.D: mas .. e ... acho que seu primeiro encaminhamento vai ser pra Semiologia ...
porque eu acho que não sei se é muito compatível você tratar o seu dente ... e
passar por esse tratamento ((radioterápico)) que por si só já é uma coisa pesada
178. J: sei::
179. D: então eu acho que uma avaliação com o pessoal da Semio ... é importante
180. J: perfeitamente
181. D: pra que a gente possa ter um controle maior da situação não é? pra ver como é
que ... porque eu desconheço ... eu não entendo muito bem ...
182. J: sei
183. D: a correlação entre esse negócio desse tumor ... e o tratamento dentário ... e a
terapia ... e ... esse pessoal ((da Semiologia)) é o:: que manja disso
222.D: então eu acho que uma avaliação com o pessoal da Semio ... é importante
224. D: e ... a hora que o senhor passar pela Semiologia ... que é o pessoal que vai
avaliar esse essa relação do tratamento radioterápico com o dente ... tá?
225. J: certo
226. D: dependendo do que eles forem falar pra gente ...
271. D: aí ... aí:: temos uma:: possibilidade de ... até ... vai depender do que aquela
turma que entende de radioterapia disser ... entendeu?
273. D. porque dependendo do que eles falarem a gente pode optar por um caminho ...
ou por outro compreendeu?
Embora o paciente J. esteja preocupado com seu tratamento odontológico, uma vez
que o radioterápico já está agendado e garantido, a dentista D. insiste em respeitar a
avaliação (a voz) da Semiologia:
268. J: eu queria ... há possibilidade de ... de recuperar esse ((dente)) aqui ... né?
269. D: ... ã:: há ... lógico que dá ... dá::
270. J: e aqui seria:: ã::: seria:: é::
271. D: aí ... aí:: temos uma:: possibilidade de ... até ... vai depender do que aquela
turma que entende de radioterapia dizer ... entendeu?
272. J: ah sim
273. D. porque dependendo do que eles falarem a gente pode optar por um caminho
... ou por outro compreendeu?
274. J: pois não ... compreendi
275. D: é:: é:: a avaliação deles é muito importante
A voz do paciente está subentendida na queixa, na necessidade e na expectativa que
ele tem, em relação ao atendimento na clínica da EAP:
188. J: a minha preocupação é porque quando eu vim aqui ... esse dente aqui era inteiro
189. D: é:::
190. J: eu tinha um dente aqui
191. D: sei ... quebrou né?
108
192. J: eu tinha um dente aqui ... era ... ã::: ã:: ele era muito sensível ...
193. D: ãhã:::
194. J: né? foi até encaminhado por uma dentista ... que mora ... ela tem consultório ...
195. D: tá
196. J: como eu não podia pagar ... então ela me encaminhou pra cá ... ()
197. D: aí você fez o canal desse ...
198. J: eu vim aí ... acharam por bem fazer o canal ...
199. D: uhum ...
200. J: e eu perdi o dente ...
201. D: é ... porque faz tempo ... o senhor fez o canal foi em novem... foi o ano passado
202. J: foi o ano passado ... foi em outubro ...
203.D: é:: então tá mais do que na hora de começar a tratar ... () só que você vai fazer
radioterapia ...
215. J: eu queria muito recuperar esse dente...
A voz a dos médicos (turnos 43, 151, 169 e 233), que indicaram o tratamento do
problema oncológico, e a de diferentes especialistas, que fizeram (turno 64) ou vão fazer
(turno 243) tratamentos odontológicos no paciente J., são recuperadas na da locutora
empírica:
43. D: é essa parte eu vou ver ... primeiro estava vendo a parte médica ...
151. D: você toma alguns remédios?
169. D: a sua radioterapia ... ou quimioterapia ((indicação do médico oncologista));
232. D: a gente não pode atuar enquanto o senhor estiver fazendo isso ... ((tratamento
oncológico))
64. D: fez canal ... fez a extração desse aqui; fez cirurgia periodontal; restauração
no curso do Dr. P.
243. D: pois é:: ... mais importante até que coroa ((tratamento protético)) aqui seria
raspar ((tratamento periodontal)) porque a influência da radioterapia ((tratamento
oncológico)) tá na cicatrização ((gengival))
A voz dos professores e dos alunos dos cursos está expressa no turno 40 da
autoconfrontação:
40. D: são muitos caras ((pacientes)) que os cursos ((EAP)) não pegam porque
não é o ideal ((para os cursos)) é muito complexo ... uma das funções aqui
((Triagem)) é tentar fazer com que aquela pessoa ((paciente)) CHEGUE a um
curso ((EAP)) ... o professor RECEBA o que ele ((professor)) deseja ... o aluno
APRENDA o que ele ((aluno)) tá se propondo a aprender não é?
109
A voz da auxiliar é recuperada na instrução da dentista ao paciente:
265. D: o senhor espera pra C. dar uma orientação pro senhor
Não somente os interlocutores da dentista são numerosos, como as funções
preenchidas por ela nas suas diversas atividades são muito variadas e ela se ocupa de cada
uma dessas atividades de maneira diferenciada. A dentista, como todo indivíduo em
situação de trabalho, dispõe de diversas “vozes”, modos de interação materializados em
marcas lingüísticas, pelos quais ela exprime sua implicação na situação e as posições
enunciativas que assume, em relação ao seu interlocutor. Assim, as “vozes” da dentista D.
se recuperam todas as vezes em que ela é a própria locutora discursiva, primeira pessoa do
diálogo (turnos 6 e 21 da autoconfrontação, entre outros):
6. D: eu tô organizando o prontuário...às vezes eu pergunto...quando eu constato;
21. D: eu tô com menos paciência do que eu estava nesse dia,
ou quando explicitam a tensão, o embate e as relações de força entre todas essas diferentes
vozes, como nos turnos 7, 15, 29 e 40, da autoconfrontação:
7. D: precisa ter paciência ((a própria dentista, enunciadora empírica e discursiva))
15. D: ele ((o paciente, co-enunciador)) TÁ falando ... ele vai percebendo que né? ... dá
vontade da gente ((a própria dentista, enunciadora empírica)) interrompê-lo ((o
paciente, co-enunciador)) porque::
19. D: mas dá vontade ((a própria dentista, enunciadora empírica)) de falar ((para o
paciente J.)) bom então que troço... pára ((o paciente, co-enunciador))... por isso que eu
digo ((a própria dentista, enunciadora empírica e discursiva)) tem que ter uma paciência
né? porque ... no caso a pessoa ((a própria dentista))... hoje por exemplo eu ((a própria
dentista, enunciadora empírica e discursiva)) tô com menos paciência do que eu tava
21. D: você ((a pesquisadora, interlocutora empírica)) vê hoje eu ((a própria dentista,
enunciadora empírica e discursiva)) tive um ... acordei cedo fui dormir tarde tive
que entregar papéis fui testada o dia inteiro então hoje eu não estou com paciência
40. D: a Triagem começou em 2003 então ela ((a Triagem)) tinha se estabelecido de
uma forma muito ... pouco eficiente .. quer dizer ((a Triagem)) levantava todos os
problemas de uma boca ((o paciente)) não direcionava não fazia uma seqüência ... por
exemplo esse paciente tem o perfil de prótese ((curso da EAP))... não orientava em nenhum
momento aquele paciente ... então hoje em dia você ((a Triagem)) pega um paciente que...
a história final dele é prótese ... mas você tem que ver se dá para gente ((a Triagem))
viabilizar ... no caso pode ser que a coroa dele seja ótima ... se a raspagem dele é algo
assim básico ... MAS se de repente todo o processo sistêmico dele ((problema médico do
paciente)) interFEre no tratamento então ele não é o paciente pra mim ((cursos da EAP))...
eu ((a própria dentista D.)) tenho que detectar isso ... senão ninguém ((o paciente)) nunca
110
sai do sistema ((EAP)) porque ((os pacientes)) acabam perdidos ... uma vez que ((os
pacientes)) não têm o perfil da EAP e nenhum curso acaba aceitando eles ((os pacientes))...
que é o que tava acontecendo com ele ((o paciente J.))... com a maioria ... são muitos caras
((pacientes)) que os cursos não pegam porque não é o ideal ((para o curso)) é muito
complexo ... uma das funções aqui ((Triagem)) é tentar fazer com que aquela pessoa ((o
paciente)) CHEGUE a um curso ... o professor RECEBA o que ele deseja ... o aluno
APRENDA o que ele tá se propondo a aprender não é?... o gerenciamento ((a Triagem))
precisa direcionar esse indivíduo ((paciente))
6.4. O interdiscurso: Medicina / Odontologia
A comunicação verbal, nas interações em atividades de trabalho, possibilita conhecer desde
a heterogeneidade de normas sociais e institucionais, até os conflitos de fundo
organizacional; da adaptação ou resistência à hierarquia, às relações de dominação e poder
ou às ideologias em tensão. Na interação, fica evidente o pluripertencer do sujeito a vários
universos (cognitivo, afetivo, fisiológico, social), ligados a um centro humano de
singularização. Aqueles que trabalham são necessariamente envolvidos por esses
universos de fundo (França, 2002: 75), em que um processo dialético se desenvolve nas e
pelas práticas discursivas, ao longo das suas atividades de trabalho.
Desde tempos imemoriais, a interdiscursividade e o contraste entre os discursos de
Medicina e Odontologia sugerem uma tensão sempre atravessada por múltiplas formas de
convocação de palavras reais ou virtuais (Maingueneau 1991: 26), e refletem a ideologia
de que a primeira é esfera de atividade socialmente mais valorizada e tem predominância
em relação à segunda.
Essa relação de delimitação recíproca de uma com a outra, o efeito de sentido de
menor importância do tratamento odontológico em relação ao médico, está sempre,
implícita ou explicitamente, presente no interdiscurso entre as duas profissões, e é
detectável tanto na consulta inicial:
8. J:... tenho essa declaração do médico neurologista né e então agora apareceu
também um câncer prostático né?
9. D: (da próstata)
10. J: e agora vou ter que fazer tratamento e vou ter que fazer também mais
(radioterapia) eu sou funcionário público aposentado por invalidez [
11. D: transtorno do disco lombar ... o senhor machucou as costas?
111
como na interação dentista-pesquisadora (turnos 9, 14, 23, 25 e 40, da autoconfrontação).
Os médicos não dão informação aos dentistas sobre os problemas de saúde geral dos
pacientes, sobre os efeitos ou as possíveis reações cruzadas dos medicamentos utilizados
nos tratamentos médicos, etc. Quando precisam de tratamento odontológico, os pacientes
não sabem como proceder, quanto à prevalência de um tratamento sobre o outro. Se a
dentista não sabe como a radioterapia poderá agir sobre os tecidos bucais, o médico
oncologista também não alertou o paciente J. para a necessidade de fazer o eventual
tratamento dentário antes das sessões de radioterapia:.
9. D: eu ((a dentista)) quero saber se ele ((o paciente)) pode se tratar ((os dentes))
mesmo agora ou não ... ele diz que vai se submeter à radioterapia ... a
radioterapia é o fato que tava me incomodando mais ... entendeu? é o que tava me
incomodando mais ... mas digamos que ele pudesse passar pelo tratamento
((dentário)) uma vez executada a radioterapia quer dizer isso é uma anamnese
normal ... quais são os remédios que ele toma ... e aí ... é complicado isso ... eu
vou tentar explicar isso eu tô tentando discernir qual são os dois problemas ...
qual é o remédio você toma ... é pra isso que você toma?
197.D: é terrível ... aqui quando ele ((o paciente)) fala de Rivotril ((medicamento
anticonvulsivante)) ... ele toma 2 mg ... ele tá falando de um remédio que ... Tylex
((medicamento analgésico)) sim que é um analgésico próprio ...mas o Rivotril você
associa a ... e 20 mg ... 2 mg ... geralmente se não me engano é 0,5 mg que você
toma quando você fica: ... não que alguém ((o médico)) tenha me ensinado isso
... são coisas que eu observo
A dúvida, sobre se de fato a atividade de trabalho Medicina é uma profissão mais
nobre e mais humana que a Odontologia, está implícita no comentário sobre o descaso dos
médicos em relação ao problema ginecológico de uma paciente da Triagem, agendada para
ser atendida, em seguida ao compromisso da dentista com a pesquisadora, no dia em que
foi feita a autoconfrontação.
23. D: é mas toda vez que eu encontro alguém ((um paciente)) que tenha muitos
problemas sei lá ... eu SINto que eles ((pacientes)) não têm condições de serem objetivos ...
eu tenho pena deles coitados né? então por exemplo aqui tá escrito que ela ((a paciente))
tá desempregada né? ela ((a paciente)) tá com problema de endometRIOSE sei lá o que é
... um problema de miOMA e ela ((a paciente)) SOFRE muito porque hemorragias e ... ((a
paciente)) não consegue nem trabalhar e ... SOFRE muito... ((a paciente)) já passou por
diversos médicos ... uns ((médicos)) falam que tem de tirar o útero ... tirar o útero () ... aí
finalmente ela ((a paciente)) chegou à cirurgia ((tratamento médico)) que ela não sabia
nem o que era que ((os médicos)) iam fazer ... se era por laparoscopia ((tratamento
médico)) se era tirar o útero ... aí ele ((o médico)) falou “então você ((a paciente)) quer ter
112
FILHO?” ... “você ((a paciente)) não quer mais ter filhos?” ela ((a paciente)) tem o que? 19
anos 20 anos ela já tinha TRÊS filhos ... lógico que ela não vai querer ... mas se você
((médico)) pergunta pra qualquer um ((paciente))... até pra mim ((a dentista)) que não sou
casada tenho 42 se ((os médicos)) falarem pra mim ((a dentista)) você ((paciente)) não
quer mais ter filhos ... eu ((a dentista)) sou capaz até de dizer não mas sei lá se eu ((a
paciente)) sou muito nova ((sorriso)) eu ((a paciente)) vou dizer peraí ...
25. D: é difícil entende? ... ((os médicos)) não prepararam ela ((a paciente)) pra
ver as conseqüências as vantagens as desvantagens
Sempre dialogando com o interdiscurso Medicina/Odontologia, a dentista D.
reconhece o perigo de fazer alguns procedimentos odontológicos, quando o paciente tem
determinadas doenças ou condições patológicas específicas da área médica:
39. D: configurar ali um quadro ou uma síndrome mais complexa que precisa de um
atendimento hospitalar ou ... um outro nível de atendimento ((médico))... já peguei
aqui um hemangioma ... você vê aquela mancha vermelha ... assim ... enorme ...
então não é pra ser ((clínico-odontológico)) ... é hospitaLAR ... imagina ... a gente
((dentista da EAP)) atende aqui ... perfura ... dá uma hemorraGIa:: é graVÍssimo ...
é pra cirurgião vascuLA::R ((médico))
113
Quinta parte
Discussão e considerações finais
“Minha tese é que, na passagem da situação de campo para a situação da escrita, não há apenas transcrição
de resultados, mas também descoberta e invenção. A escrita configura uma nova cena enunciativa, onde o
que muda fundamentalmente é a relação com o outro, ou melhor, com todos os outros que atravessam o
caminho de um pesquisador em Ciências Humanas e Sociais.”
(Amorim, 2003b)
A pesquisa em Ciências Humanas deve sugerir uma necessidade pessoal do
pesquisador mas também deve ter um interesse social. Assim, ela precisa articular, sempre,
os sentidos ético e estético do trabalho, qualquer que seja a área do conhecimento em que
esteja sendo desenvolvida, já que o objeto de pesquisa é sempre um sujeito, um “tu/você”,
um “outro”, com voz própria. O “eu” pesquisador ouve e interpreta essa voz - alteridade
expressa em discursos e textos, numa determinada situação e num dado contexto sóciohistórico-cultural, do qual o pesquisador participa apenas como observador. Depois, na
elaboração e na produção da pesquisa (a teoria e a estética somente se tornam éticas
quando viram ato), sua própria voz (todo discurso produz-se como ato num contexto
singular e irrepetível), sua singularidade e a marca de seu lugar enunciativo vão expressar
a diversidade, os embates e o confronto de valores (Amorim, 1996) ali implicados, uma
vez que o pesquisador se dirige a eventuais leitores, fala de determinados atores sociais e
revela a sua ideologia.
O conhecimento filosófico e científico, assim como a criação estética, são modos
de objetivação e, como tais, constituem apenas um momento da cognição do
mundo. É preciso ter como eixo de toda reflexão a questão da alteridade, o que
significa estar instalado, por princípio, em um lugar de tensão e instabilidade
(Amorim, 2003a).
Para estudar a atividade de linguagem socialmente situada, o corpus é constituído
não por dados construídos pelo pesquisador, mas por dados atestados, em que não há
homogeneidade, representatividade ou fechamento razoável (Boutet, 2005b), porque a
linguagem quase sempre está imbricada na atividade linguageira do trabalho: é dirigida ora
para um interlocutor, ora para fazer alguma coisa, numa cadeia de ações cuja finalidade vai
sendo desenvolvida ao longo de um intervalo de tempo.
114
Nas interações durante a prestação de um serviço, na maioria das vezes, é por meio
da linguagem que se constroem ou delineiam as ações e que se delimitam as relações
sociais duráveis ou provisórias, que lhes são intrínsecas. No momento em que falam, os
agentes sociais devem significar ao outro em que contexto eles se situam, que ações eles
executam, qual relação eles têm com a instituição, quais são seus objetivos e suas
expectativas (Lacoste, 1992: 99).
Nas relações face a face entre um “usuário-cliente” e um agente representando uma
instituição, o diálogo ata-se a normas, regulamentos e procedimentos codificados, o
que evidencia como é delicada essa negociação que, na hora, deve operar
ajustamentos felizes entre o singular – a pessoa e seu pedido - e essas definições
regulamentadas de casos. (...) Os cuidados médicos ilustram de modo
paradigmático esse ingrediente de competência: a equipe de profissionais da saúde
deve, ao mesmo tempo, dominar a nosologia, a tecnicidade e as terapêuticas, bem
como ficar frente a frente com doentes singulares, cujos aspectos clínicos e cujas
capacidades de suportar o tratamento, o ambiente social e humano – condição de
prosseguimento mais ou menos feliz do tratamento – deverão ser apreciadas em
virtude de uma experiência tanto individual como coletiva (Schwartz, 1998: 120).
Entretanto, a evolução de uma atividade de trabalho no setor de serviços, até mesmo
na área de saúde, parece prestes a se industrializar ou a se mecanizar sugerindo a
emergência de um “neo-taylorismo” (Boutet, 2005a: 11), com padronização dos serviços,
com modo de organização industrial, com modelos acabados de formulários e até mesmo
de prontuários médicos e odontológicos, tudo isso feito com rigoroso controle do tempo de
atendimento. Nestas situações, talvez fosse melhor assumir uma posição “intermediária”
mais complexa, mas também mais pertinente: a parte do atendimento em que são feitos os
procedimentos técnicos poderia ser parcialmente “padronizada”, embora, em se tratando do
corpo humano, haja variações individuais e, na mesma pessoa, variações ao longo do
tempo, que impossibilitam qualquer intervenção clínico-cirúrgica de ser uniformizada. No
entanto, na parte da interação pessoal, há uma demanda social por “humanização”.
É difícil, quase impossível, aplicar um modelo “neo-taylorista” a profissões em que
a dimensão da interação pessoal face a face é forte e influencia o comprometimento éticosocial ao longo do processo de atendimento, como é o caso da relação de serviço
profissional da área de saúde/paciente, por exemplo.
No caso deste estudo, a atividade de trabalho da dentista se caracteriza por uma
tensão entre um modelo “semi-industrial” (com prescrições de leis específicas e do Código
de Ética Odontológica; com coerções, estandardização e normas de procedimento do
trabalho na Triagem da clínica odontológica da EAP, como duração do tempo de cada
115
consulta; etc.) e um modelo quase “artesanal”, particularizado pela subjetividade e pelo
investimento do uso de si da dentista, com adaptação e ajustamento dela ao caso e ao tempo
próprio de cada paciente, e com personalização do diálogo e da comunicação intersubjetiva.
No momento em que fala, o ator social (a dentista) induziria o outro (o paciente) a
significar que, como eles se situam no contexto de uma triagem (cuja cena enunciativa
empírica subentende direcionamento e imediata indicação de atendimento do paciente em
determinado curso: Prótese, Dentística, Cirurgia etc.), o agendamento para tratamento
clínico terá o rápido encaminhamento esperado, o que não é o caso, na maioria das vezes.
Para conseguir efetuar isso, no entanto, durante todo o procedimento a dentista toma
microdecisões e, fazendo uso de si por si mesma, executa ações que, mesmo tendo relação
com os prescritos da instituição EAP e com o cronograma dos cursos, de certa forma são
adotadas à revelia deles, à custa de renormalizações de procedimentos. Quando ela
considera
os objetivos, as expectativas e as necessidades do paciente (e expressa isso
discursivamente): “porque aí sim nesse caso é um ... um atendimento humanizado ...
porque nesse momento aí eu ((a dentista)) tô vendo só ele ((o paciente))”, não o colocando
na fila de espera de 2.000 pacientes, por seu caso clínico não ter maior interesse para os
cursos em andamento na clínica profissionalizante; quando ela o direciona para um pronto
atendimento na Semiologia, ou se disponibiliza para fazer um tratamento mais simples
como a profilaxia (raspagem), preocupada com o histórico médico da doença oncológica e
com o longo tempo em que ele é paciente da EAP, sem que seu caso clínico tenha sido
resolvido ou terminado, ela está valorizando, particularizando e criando condições de o
paciente J. exprimir a própria voz, ao mesmo tempo em que ela dialoga com as outras
várias vozes em circulação na situação de trabalho na Triagem (turno 42, da
autoconfrontação, Anexo dez,): a dos médicos oncologistas, a sua própria voz de
responsável pela Triagem, a de professores e alunos dos cursos, a dos prescritos
institucionais escritos e orais da EAP, a da auxiliar, a dos dentistas especialistas em outras
áreas:
42. D: como ele ((o paciente)) ia sofrer a tal da radioterapia ((tratamento médico)) eu
((a dentista)) achava importante que ele fizesse a raspagem ((tratamento
odontológico))... então na 5ª-feira ele foi fazer a ... independente ((do prescrito dos
cursos; do prescrito da Triagem de apenas triar e direcionar o paciente, sem
marcação de tratamento; da fila de espera de muitos outros pacientes, alguns talvez
mais interessantes, como caso clínico, para os diferentes cursos))... porque aí sim
116
nesse caso é um ... um atendimento humanizado ... porque nesse momento aí eu
((a dentista)) tô vendo só ele ((o paciente))... eu solicitei pra C. ((a auxiliar,
funcionária da EAP)) colocar ele ((o paciente)) num curso de férias ((da EAP))
porque eu queria que ele desinflamasse ((problema odontológico)) pra ele poder
fazer a radioterapia e durante o período de internação ((tratamento médico)) dele
((o paciente)) ou o tratamento ((médico))... não ter tanto problema
((odontológico))... porque aGOra eu sei que não tem tanto problema porque há
distância né? mas naquele momento eu temi que pudesse influenciar a
cicatrização ((gengival - tratamento odontológico))... que pudesse ter um abscesso
((problema odontológico)) daí num pode mexer porque pode dar rádio-osteoporose
((problema médico decorrente da radioterapia))... coisa assim ... sabe? ... aprendi
((com os especialistas da Semiologia)) que ...
Como, na relação de serviço do gênero de atividade do dentista, o “produto” a ser
entregue é a saúde, um bem imaterial, a apresentação discursiva do profissional, na consulta
inicial, pode determinar interação e comunicação efetivas e produtivas (ou não) com o
paciente, que tem condições de avaliar a atitude do dentista, por sua palavra viva (Boutet,
1997: 49), mas não a competência, a qualidade dos serviços clínicos, ou o cumprimento de
objetivos terapêuticos propostos pelo profissional.
A relação paciente-profissional, da maneira como tem sido praticada, pode ser
entendida como um instrumento para manter o poder do profissional da saúde sobre o
paciente (Fernandes, 1993: 21). No entanto, talvez uma transformação ocorresse se, no
processo dialético desenvolvido ao longo da atividade de trabalho da primeira consulta, e
respeitando os princípios éticos da profissão, o dentista adotasse a atitude de considerar
alteridade, valores e história do paciente, e levasse em conta o efeito de sentido que este
constrói, ou a compreensão que ele possa ter, do que lhe está sendo explicado ou sugerido
como tratamento. Além disso, a atitude profissional transformada em texto (Bakhtin, 2003:
312), por meio da expressividade discursiva da interação linguageira no contexto dialógico
do consultório odontológico, talvez evitasse eventuais processos éticos e/ou judiciais
causados por mal-entendidos.
Hoje em dia, as necessidades de jugular as despesas com a saúde, o problema da
falta de assistência pública odontológica e as (ainda vigentes) representações sociais sobre a
Odontologia transformam a atividade de trabalho do dentista num assunto de interesse para
a pesquisa qualitativa em Ciências Humanas. Desse modo, esse gênero profissional foi o
foco de preocupação deste estudo, para sugerir uma reflexão que considere o ponto de
encontro entre saberes científicos e saberes vindos da experiência profissional, com a
117
linguagem usada nessa interação, em que vão pesar desafios - éticos, econômicos e de
qualidade-, ligados a coerções organizacionais e à necessidade de eficácia no trabalho.
Procurou-se caracterizar a atividade da primeira consulta odontológica (que, de
modo geral, é prévia aos procedimentos clínico-terapêuticos propriamente ditos) como o
espaço organizador do processo de trabalho / atividade do dentista nas consultas
subseqüentes de tratamento. E procurou-se demonstrar que a linguagem usada naquela
interação inicial traduziria uma atitude que sugere um efeito de sentido de “humanização no
atendimento ao paciente”, já que a linguagem funcional, ou linguagem do ofício (Boutet,
2005b: 6) - “Pode cuspir”, “Abra mais a boca”, “Está doendo?” - está mais relacionada a
ações físicas específicas do fazer profissional e não propriamente à comunicação
interpessoal. Entretanto, vale salientar que a atividade da dentista D. durante a consulta na
Triagem foi única, tendo sido descontínua no tempo (com interrupção por paciente não
agendada), na temática (comentário da interrupção com a pesquisadora) e na ação
(entrevista com o paciente, leitura da documentação dele, esclarecimentos solicitados à
auxiliar, explicações dadas ao paciente etc.). Além disso, por se haver analisado apenas um
único ator social, essa situação, não repetível e sempre passível de renormalizações, não é
representativa de todas as primeiras consultas odontológicas, nem é generalizável para
outros atendimentos, quer na própria Triagem, quer em consultório particular, quer em
clínica odontológica.
Na passagem da situação de campo, singular e única, para a nova cena enunciativa
que é a situação de escritura da pesquisa, descobri que é impossível apreender, mesmo em
parte, a quantidade imensa de “outros” que atravessam o caminho da “invenção” do tecido
da dissertação. O “outro” são todos: os atores sociais, a situação de trabalho na Triagem, eu
como pesquisadora, eu como dentista, eu como escritora de um texto acadêmico. E a
pesquisa é um processo constante de fazer, desfazer, refazer, que implica escolhas e
descartes, que é “escrita com sangue”, que é nunca acabada, e que, a partir de um ponto de
partida escolhido e determinado, oferece um imenso leque de possibilidades para mais
descobertas e outras invenções: novas pesquisas cujos pontos de chegada estarão, sempre,
no horizonte.
Passarinho que se debruça – o vôo já está pronto!, escreveu Rosa (1965: 13).
Elaborar este trabalho na área de Lingüística Aplicada me deu asas, me fez querer voar!
118
Sexta parte
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125
Apêndice
Normas para transcrição extraídas de
CASTILHO, A.T. e PRETI, D. (1986). A linguagem falada culta na cidade de São Paulo.
São Paulo: T.A. Queiroz / EDUSP, p.9-10.
OCORRÊNCIAS
Incompreensão de palavras
ou segmentos
Hipótese do que se ouviu
Truncamento (havendo
homografia, usa-se acento
indicativo da tônica e/ou
timbre)
Entoação enfática
Alongamento de vogal ou
consoante (como s, r)
Silabação
Interrogação
Qualquer pausa
Comentários descritos do
transcritor
Comentários que quebram a
seqüência temática da
exposição; desvio temático
Superposição,
simultaneidade de vozes
Indicação de que a fala foi
tomada ou interrompida em
determinado ponto. Não no
seu início, por exemplo.
Citações literais, reproduções
de discurso direto ou leituras
de textos, durante a gravação
SINAIS
()
(hipótese)
/
Maiúsculas
: : podendo aumentar para
: : : ou mais
?
...
((minúsculas))
--
Ligando as
[
linhas
(...)
“ ”
EXEMPLIFICAÇÃO
do nível de renda...( ) nível
de renda nominal...
(estou) meio preocupado
(com o gravador)
e comé/e reinicia
porque as pessoas reTÊM
moeda
ao emprestarem os... éh: : : ...
o dinheiro
por motivo tran-sa-ção
e o Banco... Central... certo?
são três motivos... ou três
razões...que fazem com que
se retenha moeda... existe
uma...retenção
((tossiu))
...a demanda de moeda - vamos dar essa notação - demanda de moeda por
motivo
A. na casa da sua irmã
[
B. sexta-feira?
A. fizeram lá...
[
B.
cozinharam lá?
(...) nós vimos que existem...
Pedro Lima... ah escreve na
ocasião... “O cinema falado
em língua estrangeira não
precisa de nenhuma
baRReira entre nós”...
126
a. Anexo um: press release do Ministério da Saúde (divulgação 17 set. 2004)
I Seminário HumanizaSUS
Ações que contribuem para melhorar atendimento a
pacientes do SUS serão compartilhadas em Brasília
17.09.04
Reduzir filas e diminuir o tempo que os pacientes esperam por atendimento
é só um dos desafios que os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS)
enfrentam. Mas o problema pode ser resolvido, a partir de ações simples, práticas
e criativas. Uma delas é a implantação de equipes responsáveis por fazer
“acolhimento com classificação de risco”, medida já adotada com sucesso por
diversas unidades de saúde do país.
Partilhar experiências que contribuíram para a redução de filas é uma das
atividades previstas no I Seminário HumanizaSUS, que acontece em Brasília,
entre 20 e 22 de setembro, que servirá para o compartilhamento de experiências
bem-sucedidas em humanização na gestão da saúde.
Representantes de secretarias municipais e instituições que adotaram o
acolhimento foram convidados para falar sobre a experiência, que incentiva a
implantação de iniciativas que promovam o direito dos pacientes de serem
atendidos com respeito, eficiência, rapidez, informação e segurança.
O Ministério da Saúde irá distribuir cartilhas que explicam os fundamentos
dessas experiências e de outras ações que promovem a humanização do Sistema
Único de Saúde como: a gestão participativa e co-gestão; a clínica ampliada, que
sugere uma versão abrangente do paciente, que não se reduz apenas à doença; a
mudança de atitude do corpo de funcionários das unidades de saúde; a formação
dos Grupos de Trabalho de Humanização; entre outros.
Mais informações
Assessoria de Imprensa do Ministério da Saúde
Fones: (61) 315-2351 / 2005
Fax: (61) 225-7338
E-mail: [email protected]
127
b.
Anexo dois: notícia do jornal O Estado de São Paulo (19 ago. 2004)
128
c.
Anexo três: notícia do jornal O Estado de São Paulo (9 abr. 2004)
129
e. Anexo quatro: Planta do 2º andar da EAP
130
d. Anexo cinco:
Decreto n° 9311, de 25 de outubro de 1884,
dá novos Estatutos às Faculdades de Medicina
U
sando da autorização concedida pelo art. 2 § 7º da Lei nº 3. 141 de
30 de outubro de 1882: Hei por bem que nas Faculdades de
Medicina do Imperio se observem os novos Estatutos que com
este baixam, assinados por Filippe Franco de Sá, do Meu Conselho,
Senador do Imperio, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do
Imperio, que assim o tenha entendido e faça executar.
Palacio do Rio Janeiro em 25 de outubro de 1884,
63º da Independência e do Imperio
Com a rubrica de Sua Majestade, o Imperador
Felipe Franco de Sá
ESTATUTOS DAS FACULDADES DE MEDICINA,
A QUE SE REFERE O DECRETO N° 9311 DESTA DATA
Art. 1º - Cada uma das faculdades de Medicina do Imperio se
designará pelo nome da cidade em que tiver assento; será regida por um
Director e pela Congregação dos Lentes, e se comporá de um curso de
sciencias medicas e cirurgicas e de tres cursos anexos: o de pharmacia, o
de obstetricia e gynecologia e o de odontologia.
131
d. Anexo seis: LIVRETO CÓDIGO DE ÉTICA ODONTOLÓGICA
CAPÍTULO V : DO RELACIONAMENTO
SEÇÃO I : COM O PACIENTE
Art. 7°. Constitui infração ética:
I - discriminar o ser humano de qualquer forma ou sob qualquer pretexto;
II - aproveitar-se de situações decorrentes da relação profissional/paciente para obter
vantagens físicas, emocionais, financeiras ou política;
III - exagerar em diagnóstico, prognóstico ou terapêutica;
IV - deixar de esclarecer adequadamente os propósitos, riscos, custos e alternativas do
tratamento; I
V - executar ou propor tratamento desnecessário ou para o qual não esteja capacitado;
VI - abandonar paciente, salvo por motivo justificável, circunstância em que serão
conciliados os honorários e indicado substituto;
VII - deixar de atender paciente que procure cuidados profissionais em caso de urgência,
quando não haja outro cirurgião-dentista em condições de fazê-lo;
VIII - iniciar tratamento de menores sem a autorização de seus responsáveis ou
representantes legais, exceto em casos de urgência ou emergência;
IX - desrespeitar ou permitir que seja desrespeitado o paciente;
X - adotar novas técnicas ou materiais que não tenham efetiva comprovação científica;
XI - fornecer atestado que não corresponda à veracidade dos fatos ou dos quais não tenha
participado;
XII - iniciar qualquer procedimento ou tratamento odontológico sem o consentimento
prévio do paciente ou do seu responsável legal, exceto em casos de urgência ou
emergência.
SEÇÃO II: COM A EQUIPE DE SAÚDE
Art. 8°. No relacionamento entre os membros da equipe de saúde serão mantidos o
respeito, a lealdade e a colaboração técnico- científica.
Art. 9°. Constitui infração ética:
I - desviar paciente de colega;
II - assumir emprego ou função sucedendo o profissional demitido ou afastado em
represália por atitude de defesa de movimento legítimo da categoria ou da aplicação deste
Código;
III - praticar ou permitir que se pratique concorrência desleal;
IV - ser conivente em erros técnicos ou infrações éticas, ou com o exercício irregular ou
ilegal da Odontologia;
V - negar, injustificadamente, colaboração técnica de emergência ou serviços profissionais
a colega;
VI - criticar erro técnico-científico de colega ausente, salvo por meio de representação ao
Conselho Regional;
VII - explorar colega nas relações de emprego ou quando compartilhar honorários;
VIII - ceder consultório ou laboratório, sem a observância da legislação pertinente.
132
e. Anexo sete: Ficha de Triagem (EAP)
133
f. Anexo oito: Diálogo entre dentista e pesquisadora, em entrevista
Transcrição de entrevista feita no Setor de Estomatologia do Hospital do Câncer, no dia 10
de agosto de 2004
Pesquisadora (P): Maria Inês Otranto
Entrevistado (F): Prof. Dr. F.
1. Pesquisadora: como é feito ... como é o procedimento da primeira consulta do paciente?
2. Dentista F: é:: sempre tem a participação de um residente e de um titular...ã:::...na
primeira consulta E TAMBÉM nas outras consultas.
3. P: essa primeira consulta, é feito o prontuário...
4. F: sim
5. P: como ele é conduzido? Simplesmente se FAZ a pergunta e o paciente responde ou
existe uma conVE::rsa, existe mais algum envolvimento mais pessoal, mais personalizado...
com o paciente?
6. F: e:: a primeira consulta normalmente o paciente já chega ao departamento com uma
queixa ... e frente a essa queixa é feita todas as ... as perguntas ã:: com relação a tempo de
evolução da doença a: a queixa se dói não dói o MOTIVO que ele chegou ao
departamento... quando ele já passou por outros departamentos, a entrevista:: se restringe
aPEnas aos cuidados da boca. ... quando ele:: ... chega PRIMEIRO no departamento de
Estomatologia é:: são feitas perguntas de ordem geral, pra saber sobre a saúde do paciente
... as doenças prévias ...
7. P: prontuário fixo estabelecido já?
8. F: sim... o prontuário daqui é fixo né? ... é o mesmo prontuário que se este paciente
passar por OUTRO departamento... ele vai tá tendo a minha entrevista... o prontuário é
fixo, né?
9. P: sei mas por exemplo o paciente não sabe termos médicos, não sabe termos
odontológicos...
10. F: unhum::
11. P: ... o dentista se esforça por falar de uma maneira que o paciente entenda, quer dizer,
tenta ser mais SIMples... mais...
12.F: é a linguagem a gente vai fazendo de acordo com o:: nível de entendimento do
paciente, né? ã:: exemplo se tem uma doença cardíaca ... pergunta se tem problemas do
coração uma coisa nesse sentido ... problemas de pressão alta pressão baixa não se é
hipertenso ou hipotenso ...
13. P: por exemplo um paciente doente do coração ele ENTENDE porque que ele está
vindo ou porque ele precisa passar por um departamento de Estomatologia? ele faz essa
relação ou VOCÊS que têm de explicar?
14. F: sim: a::: normalmente os pacientes DO hospiTAL são pacientes oncológicos...
pacientes que têm câncer ... então ele pode ter um problema de coração né? ... por exemplo
cardíaco e ter o câncer então o problema cardíaco aí na verdade ele vai só: atrapalhar o
tratamento do câncer não é ... por isso a gente às vezes tem de fazer essas perguntas para
explicar pro paciente:: no que interfere esse problema...
15. P: quer dizer que os problemas bucais TAMBÉM interferem tanto na doença cardíaca
como no câncer
16. F: si::m
134
17. P: os pacientes que por exemplo NÃO precisarem de tratamento odontológico mas ã::
devido às conseqüências da quimioterapia da radioterapia preCIsam por causa de todos os:
efeitos colaterais vêm ... eles são atendidos ... respondem ao mesmo tipo de prontuário ... é
sempre a mesma coisa? ou não daí o profissional dentista já sabe que é só uma
conseqüência ... que ele não vai intervir ã:: na parte odontológica propriamente dita mas nas
conseqüências ...
18. F: As perguntas ... a anamnese ela é feita PREviamente ao exame intra-oral ou extraoral né?... a anamnese ela SEMPRE é feita ... ã:: então todas essas perguntas de ordem geral
sistêmica pela saúde sistêmica do paciente são feitas independente das condições bucais
19. P: a parte de ética ã:: que é essencial em toda profissão ...
20. F: unhum...
21. P: ... como ela é ... não encarada ã:: ... mas valorizada ... como ela é apliCADA num
caso tão especial como é o do paciente oncológico?
22. F: unhum... aqui no Hospital do Câncer além de ser um hospital DE tratamento é um
hospital:: que faz pesquisas ... né?... e um dos principais hospitais na América Latina na
pesquisa do câncer então tem um comitê de ... de ética em pesquisa onde todos os trabalhos
científicos é:: previamente passa por essa análise do comitê e só então há o prosseguimento
das pesquisas... mas há necessidade de aprovação do comitê ...
23. P: claro...
135
g. Anexo nove: Diálogo entre dentista e paciente em consulta inicial (EAP)
Transcrição de consulta inicial realizada na Triagem da EAP, no dia 31 de agosto de 2004
(Tempo de duração: 26 minutos)
Dentista (D): Dra D.
Paciente (J): J.
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
D: () ... e dois ... sete vírgula trinta e dois
J: é
D: e esta pasta aqui contém aqui a sua parte médica?
J: é ...
D: qual que [
J:
] ... o tratamento médico que eu faço porque...
D: qual que é o problema?
J: ...sou aposentado (por invalidez, não é?) e tenho esse processo de ... de... tenho
essa declaração aqui do médico ... ehn ... neurologista né e então agora apareceu
também ehn uum um câncer ehn prostático né? [
9. D:
] (da próstata)
10. J: e agora vou ter que fazer tratamento e vou ter que fazer também mais ehn
(radioterapia) eu sou funcionário público aposentado por invalidez [
11. D:
] transtorno do
que? ... do disco lombar ... o senhor machucou as costas?
12. J: é ... disco lombar ... não não ehn ... [
13. D:
] o que aconteceu?
14. J: isso aqui foi uma ... uma ... ehn ... foi de doença mesmo né? [
15. D:
] aaah
16. J: fiz uma tomografia computadorizada mielomiografia () fui internado em 91 pra ...
(internação) imediata para cirurgia fiquei quinze dias aí depois acharam por bem
não fazer a cirurgia e sim o tratamento né o acompanhamento ...
17. D: como é que chama o que você/ o que você tinha?
18. J: ehn então eessa ... essa parte do ... ehn disco é um problema da da coluna [
19. D:
] ahnhan
20. J: ehn ... ehn ... é ... bastante complicado
21. D: é porque o ... o ...
22. J: tanto é que com quinze dias a internação foi pedida imediata e ... [
23. D:
] ahnhan
24. J: com quinze dias eu não não ... eu não ... ehn ...foi a época assim () não consegui a
cirurgia ... na época ... então foi pedido afastamento né foi pedido afastamento e ...
25. D: tem um monte de papel seu aqui particular né ((risos)) ... desculpe achar ...
26. J: esse é o ... o [
27. D:
] o remédio
28. J: o medicamento que eu comecei a tomar.. a..agora .. antes da da da radioterapia
que vai começar iniciar agora dia 14 de setembro aí na ... ()
29. D: tá ... então nós vamos ter um um tratamento radioteRÁpico ...
30. J: certo ... é esse aí é só... né? ()
31. D: ((silêncio)) dá licença um pouquinho ... ((dirigindo-se à auxiliar)) você pode só
me dizer qual ... um pouquinho do histórico dele? ele tratou na Humaitááá ...
136
32. Auxiliar: seu J. aQUI ... eu lembro mais do tratamento dele AQUI ... o senhor fez os
canais aqui né seu J.? o senhor andou fazendo alguns canais...
33. D: o senhor fez um canal aqui?
34. J: não dona () ... foi lá na ...[
35. D:
] na Humaitá ainda?
36. J: na Humaitá ... foi até indicado pelo dr. N. () que é esposo da dra I.
37. D: ah eu não lembro...
38. J: que ele trabalha lá no no Hospital do Servidor Público ... aí ele peDIU até na
época foi foi o ... o... despesa ... as despesas foram ... ehn ... ele pediu pra ... pra ...
dado a a situação da da ...
39. D: seu J. tá mas enfim aQUI que o senhor foi atendido? o senhor veio um/MUItas
vezes aqui já
40. J: aqui eu vim pra ... pra...[
41. D:
] pra prótese?
42. é fazer ... não ... pra fazer um pequeno ... pequeno tratamento nesse dente aqui e foi
feito conforme tá marcando aí
43. D: é essa parte eu vou ver ... primeiro tava vendo a parte médica aqui pra ver o que
tá acontecendo ...
44. J: foi tirado ... foi tirado o o ... foi feito o canal ... mas depois ehn demorou um
pouco e aí quando eu voltei o dente lascou ehn [
45. D:
] e quebrou?
46. J: ... no meio ... aí foi feito curativo ... foi feito a limpeza ... né? o curativo ...
47. D: 97... 99...
48. J: certo
49. D: isso aqui tem a ver com a gente?
50. J: não isso aí é ... do... () ... anotações ...
51. D: humhum... isso aqui é de 97 99 ... essas aqui já são de ...
52. J: é ... foi do ano passado ...
53. D: do ano passado?
54. J: aqui já ...
55. D: é já tava tratando aqui então
56. J: perfeitamente
57. D: ah tá... ... tá ...
58. J: é...
59. D: esse é o último ... esse é o último que ... você ... ()
60. J: então ... aí o dente tava inteiro né? esse dente aqui ói ...
61. D: aí ... entendi ...
62. J: tava inteiro aí quebrou aí continuou quebrando
63. D: o senhor fez o canal né ... foi ... foi ()
64. J: fez canal ... continuou quebrando né? ...depois foi ... esse ano aqui foi a extração
desse aqui ó ...
65. D: ahnuhn ... () ((para a auxiliar)) isso significa que ele passou?
66. Auxiliar: passou ... passou ...
67. D: cirurgia oral ... é... e ele fez aqui né? seu J. ... precisou tirar ... cirurgia
periodontal ... tava condenado ...
68. J: foi ... foi ...
69. D: esse aqui ... () ...
137
70. Auxiliar: restauração ...
71. D: isso aqui também restauração no curso do Dr. P.?
72. J: não
73. D: mas tem várias vezes né? não fizeram nada?
74. J: nada
75. D: o senhor fez cirurgia periodontal?
76. J: ...
77. D: cortaram sua gengiva?
78. J: cortaram ... lá na Humaitá ... aqui
79. D: huuum ... () fizeram um enxertozinho aí
80. J: foi ... é:: o freio que fala né?
81. D: é o freio tava atrapalhando o dente né?
82. J: é
83. D: tá deixe eu ver essa anamnese aqui
84. Auxiliar: o senhor fez essa cirurgia oral ... foi o último tratamento que o senhor fez
aqui né seu J.?
85. D: foi só esse dentinho que o senhor tratou? Só esse aí?
86. J: foi
87. D: cirurgia oral tá aqui ... que mais? ... endodontia ... tratamento abertura preparo
canal ... endometria ... instrumentação e obturação dente 46 ... então 46 esse aqui é
... isso aqui é de Pério
88. Auxiliar: isso aqui é a parte periodontal
89. D: 2003 ... 97 ... 01 ...
90. J: eu eu eu passei né ... lá no 3º andar na Pério não é? aí foi feito::
91. D: é ... raspagem ... foi isso aqui a última vez raspagem na Periodontia em 11 do 3
92. Auxiliar: 11 do 5 ... 11 do 3
93. D: isso ... e 11 do 12 ... polimento ... () radicular ... término do curso tá ... então
vamo dá:: ... tem mais alguma coisa?
94. Auxiliar: esse aqui ... peraí ... isso aqui ainda é antigo isso aqui é lá da Humaitá ...
isso aqui é de 2001
95. D: 2001 interessa [
96. Auxiliar:
] exame clínico
97. D:
] porque a pério foi feita em 2003 né? ... 2003 ... o canal foi feito
em ... 2003 também
98. J: 2003 é:: ... eu fui ()
99. D: hãhã ... tá marcado
100.
J: tá
101.
D: () essas radiografias aqui são ()
102.
J: são
103.
D: o senhor já tava com aquele dentinho lá né?
104.
J: é:: aquele tava sol... é:: ... a... tava ligava nesse outro aqui né ... por baixo
tava ... é:: sem raiz já
105.
D: é::: dá pra ver ... o senhor tá com alguma dor?
106.
J: é::: ... na boca?
107.
D: é ... nos dentes
108.
J: () é ... eu eu sinto assim ã:: esse aqui ... e aqui
109.
D: você sente sensibilidade
138
110.
J: é ... muito forte ... uma sensibilidade muito forte
111.
D: sente ela ... ela quando você ... quando você sente?
112.
J: até com o próprio ar assim muitas vezes é:: o próprio ar e e:: é:: ... coisa
muito quente ()
113.
D: o senhor tá tratando desse ... desse problema que o senhor tem né?
114.
J: certo
115.
D: o senhor já fez algum tipo de radioterapia antes?
116.
J: não
117.
D: algum tipo de quimioterapia?
118.
J: não ... foi ... vou começá agora
119.
D: o quadro se instalou quando ... quando é que cê descobriu que cê tinha
isso?
120.
J: foi ... eu ... vinha fazendo um acompanhamento ... é:: com o urologista o
Dr. C. lá do hospital ... o PSA todos os ano fazia né? e:: do ano passado pra cá
começou a ... a dar uma certa diferença ... () um aumento ... do PS ... PSA né?
121.
D: hãhã
122.
J: então é:: foi ele passou uns medicamentos pra mim eu tomei
123.
D: hãhã
124.
J: não é? mas insistiu ... foi aumentando [
125.
D:
] isso?
126.
J: ... melhora pouca ... no ano passado
127.
D: é::: no ano passado ... é ... final do ano passado? meio?
128.
J: não ... meio do ano
129.
D: meio do ano?
130.
J: é ... ((tosse)) ... e agora esse ano ã:: continuou ... aí aumentou ... eu fiz uma
uma ultra-sonografia da próstata ...aí deu um aumento que eu ...
131.
D: sensível ... ((para a auxiliar:obrigada C))
132.
J: aí fiz a biópsia e ()
133.
D: e quanto ao teu problema das costas ... quando que ele apareceu?
134.
J: esse é ... em ... 91 ...
135.
D: 91 e ...
136.
J: a internação que eu tive fiquei paralisado da cintura pra baixo () ... aquele
tranco né ...
137.
D: hãhã
138.
J: muitas vezes até no no assim no plano né? num lugar ... ou no chão ... ()
139.
D: sem cê estar fazendo exercício nem nada
140.
J: é aquele tranco que eu sentia () não conseguia
141.
D: hãhã ... não conseguia nem se mexer
142.
J: não ... tanto é que na época foi preciso:: foi preciso ... me aconselharam ()
143.
D: entendi ... mas dava de repente não era toda hora
144.
J: não ... de repente e ...
145.
D: aí você fez esse tratamento né?
146.
J: foi
147.
D: e ã::: e aí melhorou pra caramba ... chegou a sarar ou ainda tem algum
problema?
148.
J: não ... tem uns problema ... mais controlado ... porque aqui eu tenho ...
149.
D: ã::: mais controlado
139
150.
J: é:: tem veiz que eu tenho até quatro retorno né? ... faço acompanhamento
na neurologia ...
151.
D: e você toma alguns remédios?
152.
J: tomo ...
153.
D: pra isso?
154.
J: tomo
155.
D: quais são esses remédios?
156.
J: olha quando quando eu tenho retorno eu tomo:: quando a crise é muito
forte é:: o Tilex 30
157.
D: tá ... analgésicos ...
158.
J: é Tilex 30 ... e de uso contínuo desde que eu fui internado na neurocirurgia
eu tomo ã:: uhm:: Rivotril 2mg ... e ... mais ou menos ... de 95 pra cá eu tomo o ()
25mg ... ... de vez em quando é preciso também ...
159.
D: quantas gramas?
160.
J: 25mg ... de vez em quando é preciso também o ... o ... () 5.000U ... ... isso
fora colírio que ... eu tenho síndrome do olho seco também né? isso foi foi junto o
acompanhamento desde 91 também junto com esse problema
161.
D: e aparece mais alguma coisa no corpo que acompanha isso? secura no
olho na boca também?
162.
J: é:::
163.
D: a boca fica seca também? ... ou saliva bem?
164.
J: não ... saliva ... saliva bem ... agora:: a síndrome do olho seco ... é desde
91 também que eu faço o acompanhamento ... agora passou ã::: do do
oftalmologista pra neuroftalmo ...
165.
D: ãhã::
166.
J: neuroftalmo ... então amanhã inclusive eu tenho que fazê:: tenho um
retorno amanhã às às 8 e 30 né pra ... pra reavaliação ... porque eu passo colírios né?
uso contínuo e ... a bolsa lacrimal secou ...
167.
D: uso contínuo né?
168.
J: é ... uso contínuo ... ... ...
169.
D: ã::: a sua a sua radioterapia ... ou quimioterapia que você começa ou as
duas?
170.
J: é: radioterapia
171.
D: primeiro?
172.
J: é ... mas eu ...
173.
D: começa dia 14 ... agora
174.
J: dia 14 ... de setembro ... eu ... é::: comecei dia 9 a tomar esse medicamento
() tomá treiz veiz esse medicamento e agora dia 14 de setembro vou começar o ... a
minha terapia ... 39 radioterapia ... de 2ª a 6ª ... seguido ... somente menos sábado
domingo e feriado
175.
D: tá ... eu vou marcar também as coisas que eu vou ver nas usa boca ... tá?
176.
J: pois não
177.
D: mas .. e ... acho que seu primeiro encaminhamento vai ser pra Semiologia
... porque eu acho que ... uhn::: uhn:: não sei se é muito compatível você tratá o seu
dente ... e passá por esse ... por esse tratamento que por si só já é uma coisa pesada
... né?
178.
J: sei::
140
179.
D: então eu acho que uma avaliação com o pessoal da Semio ... é importante
180.
J: perfeitamente
181.
D: pra que a gente possa ter um um controle maior do da situação não é? pra
ver como é que ... como é que ... porque eu desconheço ... eu não ... eu não entendo
muito bem ...
182.
J: sei
183.
D: a correlação entre ... entre pesquisa ... esse negócio desse tumor e ... e o
tratamento dentário ... e a terapia ... e ... esse pessoal é o:: que manja disso
184.
J: perfeitamente
185.
D: tá bom?
186.
J: tá bom
187.
D: mas eu vou anotá o que eu tô percebendo aqui
188.
J: certo ... ã::: doutora ... a minha preocupação é porque quando eu vim aqui
... esse dente aqui era inteiro ...
189.
D: é:::
190.
J: eu tinha um dente aqui
191.
D: sei ... quebrou né?
192.
J: eu tinha um dente aqui ... era ... ã::: ã:: ele era muito sensível ... era pra
fazê uma uma correção em cima que tava ... o canto do dente tava ... desgastado ...
193.
D: ãhã:::
194.
J: né? foi até encaminhado por uma ... uma ... uma dentista certo? ela ... que
mora ... ela tem consultório logo () ...
195.
D: tá
196.
J: como eu não podia ã:: ã:: pagá ... então ela me encaminhou pra cá ... ()
197.
D: aí cê fez o canal desse ...
198.
J: eu vim aí ... acharam por bem fazer o canal ...
199.
D: uhum ...
200.
J: e eu perdi o dente ... e agora tá olha ...
201.
D: é ... porque faz tempo ... o senhor fez o canal foi em noven... foi o ano
passado ...
202.
J: foi o ano passado ... foi em outubro ...
203.
D: é:: então tá mais do que na hora de começá a tratá ... () só que ele vai fazê
radioterapia ... ... pode tirá sua mãozinha que eu só vou olhá ... tá bom?
204.
J: tá ...
205.
D: ((para auxiliar)) : ... ele vai tê que passá pela Pério ()
206.
Auxiliar: ele já passou por vários cursos () inclusive recentemente pelo curso
de Dentística ...
207.
D: peraí que eu não ...
208.
Auxiliar: () não é isso seu J.? ()
209.
J: foi... foi ...
210.
Auxiliar: ()
211.
D: eu vou anotá ...
212.
J: sei
213.
D: ((para auxiliar)) : ... ... isso já foi feito?
214.
Auxiliar: () já ... já ...
141
((interrupção da gravação a pedido da dentista, para que ela resolvesse um problema de
atendimento de paciente não agendada que queria ser atendida, por solicitação –
indevida – de professor do curso profissionalizante))
215.
J: eu ... queria muito recuperar esse dente ...
216.
D: é lógico
217.
J: e... vê o que ... o que ... se podia fazê a respeito desse aqui
218.
D: tudo bem ... .... mas::: veja bem ... a radioterapia ... ela é s::uper ... s::uper
delicada então ela () ela é mu:ito ... mu:ito delicada a radioterapia ... então ã::: eu
não ... eu não sei o nível de envolvimento que isso pode ... pode estar tendo ... deixa
eu ver se o senhor tem algum foco sério aqui ... a gente tem que ver isso antes de o
senhor fazer a radioterapia ... fora a sua sensibilidade o senhor não tem dor
219.
J: não ... ... só que a sensibilidade é muito forte e a dor ()
220.
D: dia 14 que tá marcado
221.
J: dia 14
222.
D: é::: eu acho o seguinte ... eu acho que a gente deve botar a sua ficha em
suspenso ... um pouquinho ... tá?
223.
J: pois não
224.
D: e ... a hora que o senhor passá pela Semiologia ... que é o pessoal que vai
avaliar esse essa relação do tratamento radioterápico com o dente ... tá?
225.
J: certo
226.
D: dependendo da ... do ... do que eles forem falá pra gente ...
227.
J: pois não
228.
D: aí a gente sim ... conversa de novo ... já começa a fazê a ... a ... sua ficha
... mesmo que seja durante seu processo de tratamento
229.
J: perfeitamente
230.
D: tá bom?
231.
J: tá bom
232.
D: e ... porque eu receio que ... a gente não possa:: atuar enquanto o senhor
esteja fazendo isso ...
233.
J: certo ... eu vou fazê ... essa ... essa ... esse ... total de sessão de radioterapia
234.
D: 39
235.
J: como eu falei ... é::: direto
236.
D: na seqüência
237.
J: na seqüência ...
238.
D: dia 14 cai quando hein?
239.
J: amanhã é dia 1º ...
240.
D: daqui a duas semanas ... o senhor tem que vir na 3ª-feira
241.
J: pois não
242.
Auxiliar: Dra D. dá pra fazê essa coroa antes da rádio dele ... se a gente
conseguir uma vaga?
243.
D: pois é:: ... mais importante até que coroa aqui seria raspá ... porque a
influência do do da ... da radioterapia tá na cicatrização ... entendeu? seria ... mais
importante () ... seria mais importante do que ... qualquer coisa ...
244.
Auxiliar: ()
245.
D: pode ... pode sê () ... tem algum pac... tem algum aluno sem fazê nada
hoje aí?
142
246.
Auxiliar: preciso vê () hoje tem muita cirurgia ...
247.
D. ((para auxiliar)): pergunta ... pergunta pro professor S. ... ou pra B. se
existe algum professor ... algum aluno ... que tá sem fazê nada ... né? ... se tem
raspadores pra podê ... explica que ele vai fazê a radioterapia ... se ele não podia
fazê uma raspagem ... sabe ... geral assim ... só pra dá um ... apoio ... pra ... pra isso
248.
Auxiliar: senão seu J. ... eu vou fazê isso que a doutora tá pedindo ... tá
mandando ... senão ... se não tiver ninguém pra raspá ... se o senhor puder vir como
paciente extra ...
249.
D: extra
250.
Auxiliar: 5ª-feira () eu converso com ele pra vê ... mas paciente extra
251.
J: 5ª-feira?
252.
Auxiliar: é ... às vezes tem um paciente marcado ele falta ... aí a aluna fica
sem paciente ... ela raspa
253.
D: eu gostaria muito que o senhor fizesse isso ...
254.
Auxiliar: sabe por que? é de 5ª-feira ... tem que esperá e é como paciente
extra ... pode ser que não falta ninguém e eu não consigo encaixá o senhor ...
255.
J: agora ... é depois de amanhã?
256.
Auxiliar: isso
257.
D: vamos tentá vê hoje ... se já tivé hoje ótimo ...senão o senhor vem hoje e
vem na 5ª também ... se dé pra passá hoje passa hoje ... aí vem na 5ª como extra
também ... que é pra dá uma recauchutada
258.
J: tá bom
259.
D: pra dá ... por que é ... é ... ainda tem um pouquinho ... não é muito mas
tem pouquinho ... precisa dá uma garibada aí
260.
J: tá bom
261.
D: tá? e aí eu vou marcá umas coisinhas a mais aqui ... na realidade ... o
senhor até que ... ... tem uma boca boa ... a gente vai cuidá ... ...() ... o senhor de
qualquer forma vai voltá aqui ... ok?
262.
J: ok
263.
D: então ã::: ... eu vô deixá sua ficha em pendência ... tá bom?
264.
J: ok tá bom
265.
D: e agora o senhor espera pra C. dá uma orientação pro senhor ... se tiver
oportunidade de passar ... bom a gente aí já dá uma uma geralzinha aí na gengiva...
266.
J: pois não
267.
D: tá bom?
268.
J: tá bom ... ago:ra ... eu queria ... há há possibilidade de ... de recuperar esse
aqui ... né?
269.
D: ... ã:: há ... lógico que dá ... dá::
270.
J: e aqui seria:: ã::: seria:: é::
271.
D: aí ... aí:: temos uma:: possibilidade de ... até ... vai depender do que
aquela turma que entende de radioterapia dizê ... entendeu?
272.
J: ah sim
273.
D. porque dependendo do que eles falarem a gente pode optá por um
caminho ... ou por outro compreendeu?
274.
J: pois não ... compreendi
275.
D: é:: é:: a avaliação deles é muito importante
143
276.
J: tudo bem ... agora tem ... ã:: um:: pra passar com eles tenho que marcá ...
eu tenho que marcá ...
277.
D: não não você você você passa ... vem na 3ª-feira às duas da tarde
278.
J: na 3ª ou na 5ª?
279.
D: espera ... eu vou anotá aqui procê não esquecê ... que é muita muita
informação não é? (riso) tá bom?
280.
J: tá bom ... por favor
281.
D: ok vamo lá ... deix´eu pegá aqui um receituário aqui ...
144
h. Anexo dez: Diálogo entre dentista e pesquisadora – autoconfrontação simples
Entrevista realizada no Serviço de Triagem da EAP, no dia 16 de maio de 2005
Pesquisadora (P): Maria Inês Otranto
Dentista (D): Dra D.
103 ...
((Até este ponto, a dentista D. só ouvia a gravação, seguindo a transcrição escrita. Não
fez nenhum comentário, não parou a fita, não levantou os olhos do chão, a atenção toda
absorta na escuta. Sorria e balançava a cabeça, constantemente. O gravador foi parado
pela pesquisadora, que fez a primeira pergunta à dentista.))
1. P: quer dizer que esse paciente veio já com um MONte de coisa na
ficha:: na ficha clínica dele ... ainda assim ele teve de passar pela
assistente social e daí pela Triagem pra ver o que vai precisar ser feito
Aqui ... o que foi feito lá na Humaitá ... num ... num ... ele não PAssa
automaticamente da Humaitá pra cá pra ser atendido ...
2. D: não ... acho que esse paciente tava perdido
3. P: ele não tinha passado cê acha pela assistente social?
4. D: não ... não ... ele já passou ... já passou pela assistente social mas
como ele tem o prontuário
5. P: sim mas ele tem um prontuário antigo ... no mínimo de 2000 ... antes
de pegar o prontuário você pergunta se ele tem alguma queixa daí ele
começa a contar toda a história dele
6. D: daí enquanto ele tá falando eu tô organizando o prontuário e às vezes
eu pergunto ... quando eu constato ... eu perguntei pra ele aqui ... se o
senhor fez canal aqui... eu que tô perguntando porque eu tô com uma
ficha de canal na mão ... daqui da EAP... e ... ou eu tô vendo uma
radiografia ou algo me indica pra perguntar ... alguma coisa me instigou
... deve ser algum tipo de papel para que eu possa fazer isso ... porque eu
apoio ali porque os arquivos ficam aqui em cima né geralmente né ... eu
nunca sei se é na Humaitá que foi feito ou se foi feito aqui neste prédio
... eu preciso acrescentar essa ... aí ... como:: eu chamo a C. ou a C.
aparece né ... então a ficha dele deve ter uma série de coisas assim como
os exames médicos dele ... o histórico particular ... mas já foi feito canal
na época de 97... 98 ... 99 ... então faz ... tem muito exame ... o homem
só veio pra cá em 2002 ... porque até 2002 era feito na Humaitá ... ahn:::
ele provavelmente estava estacionado ... ele é um paciente que tavam
com a ficha dele ... há muito tempo e parou () ... em função da doença
dele entendeu ... enfim de alguma:: de tá perdido mesmo ... o fato de não
tarem levantando a ficha dele ... agora no momento em que parou:: () ...
2004 o ano passado ... já passou por aqui ... mas ele não tem uma
seqüência de tratamento ... ele já passou por tanta gente que elas não
sabem o que fazer com ele ... é um tipo de paciente ...
157 ...
7. D: precisa ter paciência né?
145
8. P: por que você faz tantas perguntas a respeito do quadro clínico ... você pode
de alguma maneira interferir ou isso é só pra você ter um contato maior com o ...
9. D: não não eu quero saber se ele pode se tratar mesmo agora ou não ... ele diz
que vai se submeter à radioterapia ... a radioterapia é o fato que tava me
incomodando mais ... entendeu? é o que tava me incomodando mais ... mas
digamos que ele pudesse passar pelo tratamento uma vez executada a radioterapia
quer dizer isso é uma anamnese normal ... quais são os remédios que você toma ...
e aí ... é complicado isso eu ... eu vou tentar explicar isso eu tô tentando discernir
qual são os dois problemas ... qual é o remédio você toma ... é pra isso que você
toma?
10. P: sei ... ele é muito indeciso né? ele hum ... ele ãhn ... ele esquece de dados
palavras ... ele quer chegar até o nível do médico e do dentista né? ... ele não quer
falar assim ...
11. D: é ... ele tá há muito tempo
12. P: já adquiriu o vocabulário ... da profissão né?
13. D: é terrível ... aqui quando ele fala de Rivotril ... você não tem idéia como ()
ele toma 2 mg ... ele tá falando de um remédio que ... () Tylex sim que é um
analgésico próprio ...mas o Rivotril você associa a ... e 20 mg 2 mg ... geralmente
se não me engano é é 0,5 mg que você toma quando você fica: ... não que alguém
tenha me ensinado isso ... são coisas que eu observo ... assim 2 é bastante ... por
isso ... então nesse momento eu percebo que eu tenho NECEssidade de ter mais
informação que ele não tá me dando (subsídio?)
14. P: ele tava falando mu::ito muito ...
15. D: não ele TÁ falando ... mas ele ... ele ... lógico ele vai percebendo que né? ...
dá vontade da gente interrompê-lo porque::
16. P: mas você não faz isso ... deixa ele ir falando ...
17. D: algumas vezes eu interrompi ...
18. P: muito poucas ... é ...
19. D: mas dá vontade de falá bom então que troço que ... pára ... por isso que eu
digo tem que ter uma paciência né? porque ... no caso a pessoa ... hoje por
exemplo eu tô com menos paciência do que eu tava nesse dia ... eu acho que tem
dia que a paciência ... porque influencia né?
20. P: claro
21. D: cê vê hoje eu tive um ... acordei cedo fui dormir tarde tive que entregar
papéis fui testada o dia inteiro então hoje eu não tô com paciência pra pra ...
22. P: mas vai atender do mesmo jeito os pacientes marcados né?
23. D: é mas toda vez que eu encontro alguém que tenha muitos ...muitos
problemas sei lá ... eu SINto que eles não têm condições de serem objetivos ... eu
tenho pena deles coitados né? então por exemplo aqui tá escrito que ela tá
desempregada né? ela tá com problema de endometRIOSE sei lá o que que é um
problema de miOMA e ela SOFRE muito porque hemorragias e ... não consegue
nem trabalhar e ... SOFRE muito ... já passou por diversos médicos uns falam que
tem de tirar o útero ... tirar o útero () ... aí finalmente ela chegou a a à cirurgia que
ela não sabia nem o que que era que iam fazer ... se era por laparoscopia se era
tirar o útero ... aí ele falou “então você quer ter FILHO?” ... “você não quer mais
ter filhos?” ela tem o que? 19 anos 20 anos ela já tinha TRÊS filhos ... lógico que
ela não vai querer ... mas se você pergunta pra qualquer um ... até pra mim que
146
não sou casada tenho 42 se falarem pra mim você não quer mais ter filhos ... eu
sou capaz até de dizer não mas sei lá se eu sou muito nova (sorrisos) eu vou dizer
peraí ... porque que eu tenho que parar ...
24. P: é acabar com tudo de uma vez é bem diferente
25. D: é difícil entende? ... não prepararam ela pra ver as conseqüências as
vantagens as desvantagens () sabe? () pronto acabou () esse rapaz por exemplo
que tem um problema de próstata então imagine você... eu não sei ... ele tem
algum problema mental ele falou que tem alguma coisa assim?
26. P: não
27. D: eu tô tentando entender o fichário dele também provavelmente veio
totalmente sem cronologia e ele é um paciente antigo ... desde 98 certo? e você
tem que tentar achar o que que ele fez porque tem que prosseguir o tratamento
mas ele é muito pouco ... objetivo né?
160...
28. D: ele devia tá tentando me explicar a síndrome que ele tem certo? quer
dizer ele tem muito problema olhaí tá vendo? ele não tem água no olho
... pode ser () sei lá ... mas tem algumas síndromes essas ()
174...
29. D: ... tudo bem ...
214...
30. P: quando você passa pro pessoal da Semio eles ... atendem? em seguida?
31. D: atendem ... ()
32. P: independente de ter horário de algum tipo de ()
257...
33. D: ele conseguiu ... senão fica muito distante né? ... a gente ()
261...
34. P: então se ele quisesse voltar e você precisasse fazer alguma coisa ... isso não
é sua obrigação ... você estaria fazendo em atenção a esse paciente ...
35. D: não na verdade não é uma obrigação da Triagem mas ... um serviço que
você sente que ... um atendimento pode ser até gentil pro paciente mas a gente
também visa a esclarecer o rendimento do cliente ... então se ele for pra Semio e a
Semio disser que o paciente pode tratar e esse paciente já sair das mãos da C.
(auxiliar) eu não preciso passar ... ele não precisa passar por mim ... mas ãhn:: se
por acaso ele passou por () e não deram ... mandaram um papel PRA mim ...
entendeu? né?
36. P: aí você encaixa ele entre os dois pacientes? porque você não tem tempo ... tá
tudo marcado
37. D: é (suspiro) ... faz parte do do atendimento aqui da Triagem ... a gente tem
que dar uma direção pro paciente né? ... é gentil com o paciente mas também
favorece (o serviço) ... esta atividade aQUI tá montada pra agilizar o
gerenciamento clínico pra não deixar o paciente estacionado pra conseguir fornecer
o material humano-didático pro professor
38. P: isso começou a funcionar assim na Triagem só quando você entrou aqui?
39. D: quando a atual coordenação me contratou com esta proposta ... proposta
dela ... né?
39. P: quer dizer antes ficava essa bagunça ...
147
40. D: a Triagem começou aqui em 2003 antes ela tinha se estabelecido de uma
forma muito ... pouco eficiente .. quer dizer levantava todos os problemas de uma
boca mas não direcionava não fazia uma seqüência ... por exemplo esse paciente
tem o perfil de prótese .. não orientava em nenhum momento aquele paciente ...
então hoje em dia você pega um paciente que tem um ... vai ... a história final dele
é prótese ... mas você tem que ver se a partir de ... se dá para gente viabilizar no
caso pode ser que a coroa dele seja ótima ... se a raspagem dele é algo assim
básico ... MAS se de repente todo o processo sistêmico dele interFEre no
tratamento então ele não é o paciente pra mim ... eu tenho que detectar isso ... não
deixar ele ah pode entrar... vem coração de mãe né? vem vem vem ... e ninguém
nunca sai do sistema porque acabam ... perdidos ... uma vez que não têm o perfil
da EAP e nenhum curso acaba aceitando eles ... que é o que tava acontecendo com
ele ... com a maioria ... são muitos caras que os cursos não pegam porque não é o
ideal é muito complexo ... uma das funções aqui é tentar fazer com que aquela
pessoa CHEGUE a um curso ... o professor RECEBA o que ele deseja ... o aluno
APRENDA o que ele tá se propondo a aprender não é?... o gerenciamento precisa
direcionar esse indivíduo ... esse ir e voltar ... é que cê pegou um azar de um
paciente cheio de pepinos né? pacientes assim com essa complexidade de
tratamento ... a Cirurgia não pega porque ãhn:: tem outros casos na frente dele ... e
eles ficam estacionados no sistema e não andam né? então a Triagem precisa
tentar possivelmente ... () configurar ali um quadro ou uma síndrome mais
complexa que precisa de um atendimento ou hospitalar ou ... um outro nível de
atendimento ... já peguei aqui um hemangioma ... você vê aquela mancha vermelha
... assim ... enorme ... então não é pra ser ... é hospitaLAR ... imagina ... a gente
atende aqui ... perfura ... dá uma hemorraGIa:: é graVÍssimo ... é pra cirurgião
vascuLA::R ()
281...
41.P: quer dizer ele foi encaminhado ... () ou ele fica esperando que algum curso
queira um paciente do tipo dele?
42. D: não no caso dele em particular ã::: como ele ia sofrer a tal da radioterapia eu
eu achava importante que ele fizesse a raspagem ... então na 5ª-feira ele foi fazer a
... independente ... porque aí sim nesse caso é um ... um atendimento humanizado ...
porque nesse momento aí eu tô vendo só ele ... eu solicitei pra C. colocar ele num
curso de férias porque eu queria que ele desinflamasse pra ele poder fazer a
radioterapia e durante o período de internação dele ou tratamento ... não ter tanto
problema ... porque aGOra eu sei que não tem tanto problema porque há distância
né? mas naquele momento eu eu temi que pudesse influenciar a cicatrização ... que
pudesse ter um abscesso daí num pode mexer porque pode dá rádio-osteoporose ...
coisa assim ... sabe? ... aprendi que ... com esse caso mesmo ... que num ...
43. P: muito obrigada
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