A QUESTAO DO EMPREGO DA ESCRITA A LUZ DA TRADICAO TEXTUAL DA iNDIA ANTIGA ABSTRACT: This paper, focusing the relation between orality and literacy in Ancient India, has the aim of analysing some of the postulates defended by the contemporary linguistics concerning to the written language. It proposes that it is not correct to establish a rigid correlation among literacy/reasoning and orality/unreasoning and that is necessary to consider the question of the function of literacy on ideologically neutralized basis of theoretical comprehension. Um dos aspectos re1evantes do estudo da presen98 e da fun~ao da escrita na india Antiga reside na possibilidade que e1e permite de, senao negar, pe10 menos prob1ematizar alguns dos postulados defendidos pela lingiiistica contemporanea, no que respeita a fun~o da 1inguagem escrita. A riqueza potencial de tal estudo deriva do fato de que, nessa civi1iza~0, se desenvo1veu uma imensa prod~ao liteniria, de tematica diversa - e isto a margem da escrita, niio obstante fosse esta ja conhecida e mesmo empregada, em certos contextos. 0 presente texto tem por objetivo analisar alguns aspectos da re1a~0 oralidade/escrita no ambito da tradi~o textual da india Antiga. E ja consensual, entre lingiiistas e psicopedagogos (cf. Ong [1982: 31-58]; Stubbs [1989: 97-115]; Olson [1995: 163-178]), a afirma~ao de que a 1inguagem escrita tem, em compara~o com a linguagem oral, uma serie de vantagens qualitativas, que derivam das caracteristicas estruturais da tecmca de escrever. Entre estas vantagens estiio: primeiro, 0 poder de permanencia da palavra quando e ela imobilizada, por assim dizer, por algum processo de grafismo - 0 que se opOe a caracteristica de finitude e evanescencia. em termos acUsticos,da linguagem oral; segundo, a possibilidade de, na linguagem escrita, atenuar-se a rigidez da linearidade da cadeia signica. porquanto e possivel, na leitura, percorrer 0 fluxo de palavras seguindo-se mUltiplas ~s e com tempos diversos de avan~ e de recuo recurso que, na audi~o de urn texto proferido por urn falante, e fortemente 1imitado; terceiro, a possibilidade de tomar 0 texto independente de seu autor ou de seu emissor, 0 que permite ao texto grafado uma sobre-existencia virtualmente infinita, podendo ele conservar-se ao longo de secuIos e mesmo milenios - propriedade que a linguagem oral so pode desfrutar na medida em que possa contar com 0 recurso da memoria ou da transmissao inter-hurnana na linha do tempo; quarto, a possibilidade de a linguagem escrita assumir configura90es formais diversas, como, para citar apenas as duas principais, a poesia ou a prosa, em fun~o de necessidades igualmente diversas de expressao, estando a linguagem oral, ao contnirio, devido as coen;Oes da memoria, coagida a servir-se de recursos mnemonicos limitadores, como os padrOes metricos, as rimas, ou as formulas estereotipadas, que redundam na rigidez dos mecanismos de referencializa9ao. Ademais, por pressupor a linguagem escrita a leitura, esta implica uma r~o preponderantemente reflexiva e intelectualizada, ao passo que a linguagem oral, por estar obrigatoriamente em situa~o - quer dizer, pressupondo urn vinculo entre falante e ouvinte -, implica uma r~o fortemente relacional. Noutras palavras, na linguagem escrita, 0 conteWlo textual se recria em ausencia, podendo repetir-se ao infinito, pois que a linguagem incorpora, em si mesma, a fun~o do emissor; na linguagem oral, 0 conteudo se recria em presen~ e tern severas limita9Qespara reproduzir-se; e quinto - e aqui entramos em considera90es cognitivas (v., a prop6sito, Goody [1977: passim] -, a propriedade de ser a linguagem escrita 0 mecanismo fundamental para 0 pensamento abstrato, visto que apenas ela, na medida em que liberta 0 pensamento da memoria, e capaz de propiciar os meios para as Opera90es de classifica~o, seria~o e dedu9ao, entre outras, que estabelecem proj~Oes te6ricas sobre o mundo das coisas. Alem disso, sendo a cogni~o do mundo urn processo sempre complexo, torna-se necessario e obrigatorio, para 0 sujeito cognoscente, recorrer a recursividade da escrita para organizar em cadeia os raciocinios construidos. Nesta perspectiva, toda cultura oral e agrafa e julgada deficiente quanta as bases necessarias para 0 pensamento cientifico. Sua logica e antes uma pre-16gica, ou, quando muito, uma logica pragmatica e situacional. Noutros termos, nas sociedades agrafas, a media~o entre 0 sujeito cognoscente e 0 objeto cognitivo nao e nunca satisfatoria, dado que nao se pode nelas dispor de urn instrumento neutralizado, que so a escrita fomece - do que resulta, por urn lado, a impossibilidade de proj~s 16gicas e abstratas sobre 0 objeto, e, por outro, a assun~o da linguagem como urn instrumento de for~, mais poderoso do que 0 sujeito, vaIido em si mesmo, muito diferente do mecanismo transparente e neutro de cogni9ao que 0 pensamento cientifico exige. Estes postulados, aqui drasticamente resumidos, silo, e certo, corretos e consistentes - ou, melhor, parecem corretos e consistentes, na perspectiva da cultura gramato16gica em que rem sido pensados, na medida em que fazem sentido para os usuanos da linguagem escrita, os quais, por empregarem a escrita e por pensarem por meio dela, nao julgam possivel 0 pensamento construir-se fora do ambito da escrita. A civiliza~o da india Antiga e extremamente relevante, nesta perspectiva, porque permite problematizar as bases do pensamento gramato16gico. Ela induz a estabelecer que 0 valor da escrita - ou, antes, que 0 criterio com que a valorizamos e cultural mente determinado, e que cumpre, por essa razao, relativizar tal valor, no sentido de conferirIhe validade parcial e de recusar-lhe 0 estatuto de universalidade. Os documentos materiais mais antigos que atestam 0 emprego da escrita na india (cf. Renou et Filliozat [1947: 156-169]) datam do secuIo III a.C., 0 que e urna data bastante tardia, em face das evidencias indiretas do conhecimento da escrita conhecimento que se pode rastrear ja a partir do Rg-Veda (= RV), 0 texto nuclear do vedismo, 0 mais antigo da civiliza~ao indo-europeia/arla, datcivel provavelmente do secuIo XII a.C., e que e 0 ponto de partida para urn conjunto fabuloso de textos de tematica variada que amplificam, em varlas dire~Oes especulativas, as bases do pensamento ritualistico nele contido. 0 RV, na forma que a tradi~ao vedica e indiana conseguiu legar ao presente, conta com 1028 textos ritualisticos, tendo cada qual, em media, sete estrofes, compostas, tambem em media, de dois versos - 0 que soma 0 total de 14392 fraseslversos. A esse texto, agregam-se outras tres coletfuteas - 0 Yajur-Veda, o Sarna-Veda eo Atharva-Veda, que somam mais 2400 textos. Esse conjunto de textos - que a tradi~o indiana considera revelada - gerou diversas obras exegeticas e tecnicas - das quais as principais sao as coletfuteas denominadas Briilunanas, que contam quatro obras de dimensOes gigantescas. Ha tambem, entre os textos de desdobramento especulativo, as Upanisadas (que somam 104 obras) e os Axanyakas (que somam cinco textos). E, no Vedanga - os textos auxiliares dos Vedas -, enfeixamse seis ramos tecnicos, a saber, a metrica, a semantica, a fonetica, a gramatica, a cerimonialistica e a astronomia, cada qual contendo urn nUmero expressivo de textos de dimensao 113:0 diminuta. Por exemplo, a Astadhyayi - a famosa "Gramcitica", de Panini - que se vincula ao ramo gramaticaI, conta com 0 total de 3996 enunciados. Pois bem, essa gigantesca massa textual - de que aqui se mencionam apenas os textos mais importantes -, e que se formou no arco de tempo que vai do secuIo XII ao seculo V, foi, na totalidade, concebida e transmitida oralmente, tendo sido grafada provavelmente apenas no inicio da era crista. Na optica das teorias da escrita, a mera existencia da literatura vedicobramanica seria praticamente inadmissivel, na medida em que ela, para se transmitir ao longo do tempo, teria exigido urn esfor~ descomunal - quase sobre-humano - de, pelo menos 33 gera~ - 0 que e impensavel para os nossos padrOes de demanda a memoria. Pode-se argumentar que 0 esfo~ de memoriza~o dessa literatura - levada a cabo por gera~Oesde familias de brfunanes ritualistas - deriva do caniter de revela~o de que ela se reveste - e que tal caniter confere aos textos urn poder que induz a sua permanencia. Mas isto e correto apenas em parte, porquanto apenas 0 nucleo dos quatro Vedas detinha 0 estatuto de textos de poder, constituindo 0 restante dos textos, que perfazem urn corpo substancialmente mais extenso, obras de cunho especulativo e tecnico. Outro postulado te6rico que a literatura indiana permite contestar e aquele que afirma que a oralidade obriga ao recurso de formas mnemonicas, 0 que confere aos textos assim construidos urn cunho poetico - quer dizer, autocentrado enquanto nomina~ao -, improprio para a especula~o abstrata. Se isto e correto no que respeita aos textos dos quatro Vedas, que de fato contem recursos mnemonicos e que apresentam forte enfase na fun~ao poetica, 0 mesmo 113:0 ocorre em rela~ao aos demais textos vedico-bramanicos, que, quanto a isto, exibem varlas formas de expressao, incluindo a prosa narrativa, a prosa dissertativa, a prosa tecnica e urn derivado desta, 0 texto em sutras, quer dizer, em enunciados extremamente concisos, contendo apenas os termos essenciais para a formulacao dum dado pensamento. Deve-se enfatizar que a varia~o formal dos textos nao e arbitrciria, mas motivacla pelas coer¢es de conteudo. Ora, essa adequa~o entre os pIanos do conteudo e 0 plano cia expressao - que pressupOe flexibilidade de con~o Iingilistica - nao se coaduna com a rigidez cia linguagem oral, pressuposta pelas teorias ciaescrita. Mas 0 postulado mais problematico, e que a literatura indiana infirma, e aquele que estahelece uma correla~o necessaria entre escrita e pensamento 16gicoabstrato e oralidade e pensamento pre-I6gico situaeional, no pressuposto de que apenas a Iinguagem escrita e capaz de estabelecer uma rela~o de neutraliclade entre sujeito e objeto. Os textos teenicos do Vedanga constituem urn forte desmentido a essas correla~s. Os textos do ramo fonetico - os mais antigos - foram capazes, ja no secu10 X a.C., de descrever os sons cia lingua sanscnta em termos fono-articu1at6rios precisos, definindo de forma meticu10sa conceitos operativos basicos como fonema, traco de pertinencia, ponto de arti~o, entre outros. E a "Gramatica" de Panini, que e do secuIo V a.c., constitui simplesmente urn dos textos cientificos mais nomveis jamais concebidos. 0 objetivo desta obra e descrever 0 sistema morfo-sinmtico cia lingua sanscrita (v. Ferreira [1977]). Para faze-Io, recorre aos criterios cia exaustiviclade (pelo qual a descri~o do objeto torna-se urn simulacro deste, em termos te6ricos), cia autoreferencia (que determina que todo e qualquer termo empregado na obra seja entendido no ambito de referencia ciapr6pria obra - 0 que obriga a hierarquiza~o dos conceitos em categorias tipoI6gicas distintas, abrangendo termos metate6ricos, termos descritivos e termos operacionais), e cia imanencia (no sentido de que se procura descrever 0 objeto no que seria a sua pr6pria instAncia, evitando-se pressupostos metafisicos ou religiosos). Em conjunto, estes criterios satisfazem as exigencias cia 16gica cientifica e pressupOem a capaciclade de empregar-se a linguagem oral como instrumento neutralizado, submetido ao controle metalingiiistico do sujeito e apto para a emula~o conceitual do objeto. Fez-se, antes, referencia a situa~ de recusa cia escrita, presente na India Antiga. Tal recusa deriva, em parte, de caracteristicas que nao sao primariamente arias, mas indo-europeias, e que dizem respeito ao valor que, nessa macrocultura, se atribuiu, de inicio, a linguagem e, especificamente, a palavra enquanto som - enquanto vibra~o orat6ria -, como proj~o ciavibra~o cia ordem no espa~o vazio do caos. Na india Antiga, a con~o cia linguagem nestes termos foi sustentacla de modo recorrente - conforme se pode constam-Io analisando-se nao apenas os textos, ja no RV, que conferem a linguagem-som a categoria de divinclade suprema (como em X, 125), mas tamoom os textos que teorizam sobre a fun~o dos mantras - as f6rmulas silabicas que supostamente sintetizam e manipulam 0 cosmo -, e aincla toda a literatura de cunho poetico, que exacerba a enfase nas caraeteristicas sonoras cia Iinguagem. 0 culto ao som nao explica, porem, por si s6, a recusa a escrita. Pode-se mais hem rastrea-Ia recorrendo aos dados do RV, que, por suas caraeteristicas de conteudo, se pode propriamente denominar de "informante metalingilistico" com rela~o a varios aspectos da civiliza~ao aria. A raiz verbal que denomina, em sanscrito, 0 ato de escrever e LIKH. 0 sentido prinuirio cia raiz e "riscar", "sulcar", "esgaravatar", "fazer uma marca sobre uma superficie", designando, neste sentido, mormente, 0 sulco que a charrua faz na superficie da terra. Este sentido prinuirio e a base para 0 valor, conotado, da aceP9ao de LIKH como 0 ate de escrever - na medida em que este implica a ideia de sulcar uma superficie (a pedra, a argila, uma folha de palmeira), e nela imprimir uma marca. Ra, no RV, diversas passagens em que 0 sentido da raiz LIKH se del por pressuposto. Sao recorrentes os passos do texto em que se fala das "pegadas" impressas, no solo, por uma vaca, por um passaro ou por um lavrador - mas, no contexto em que tais passagens ocorrem, MO se trata, certamente, de uma vaca, de um passaro ou de um lavrador, e sim de metaforas para, respectivamente, a linguagem (a vaca), 0 pensamento (0 passaro), ou 0 poeta-ritualista (0 lavrador). Em VIII, 100, 10, por exemplo, a identifica9ao vacalpalavra e bastante evidente, visto que, alem dos atributos especificos do animal e que a linguagem parece tambem desfrutar (assim, ela e "nutriz" e "dadivosa"), tambem Ihe sao referidas caraeteristicas proprias da linguagem (ela e "articulada", sua condi~o e 0 "fluxo continuo" e, "quando bem ordenhada", produz um "belo cantico"). Em X, 114, 5, 0 pensamento e assimilado ao passaro, por sua mobilidade - e 0 canto do rito, por se construir como somatoria de pensamentos, e uma "revoada de passaros". E em V, 3, 3, 0 lavrador e 0 poetasacerdote que, na terra fertil (quer dizer, na sua mente), por meio do arado (sua eloqtiencia oratoria), tra~ a rota da semeadura (seu canto). Todas estas atividades que sao, portanto, atividades lingiiisticas - deixam marcas materiais - os sons e os pensamentos "escrevem-se" materialmente numa superficie. Tais sao as evidencias, vazadas em metaforas, que atestam, no RV, 0 conhecimento da tecnica da escrita. Resta agora rastrear a forma pela qual a escrita e aferida nestas passagens. Em resumo, pode-se dizer que a escrita e ai entendida sempre como um "indicio" de algo ela "representa" um outro - e MO a si mesma. Ela MO estci por si - ela e sempre vicciria.Tal representa~o, porem - e aqui estci 0 ponto central da argumenta~o do RV quanto a escrita -, e incompleta e deficitciria - ela e incapaz de representar, no todo, 0 ser que nela se inscreve. 0 passe de V, 3, 3 0 diz claramente: os pilda - os "passos" da vacallinguagem que se imprimem no solo dao indicio apenas parcial do ser - eles 0 representam em apenas uma quarta parte -, sendo impossivel fixar as tres quartas partes restantes, que sao as mais importantes. Esta mesma ideia consta nas passagens ja referidas. As pegadas do passaro nao Ihe representam a caraeteristica mais essencial - 0 voo. E as marcas dos pes do lavrador atestam apenas a existencia da parte menos importante do corpo. Assim e, pois, entendida a fun~o da escrita - e, pode-se deduzi-lo, a razao de sua recusa. A escrita e um instrumento insuficiente para dar conta da totalidade da linguagem - sendo 0 tra90 mais deficiente dela a ausencia do som vibratorio que as palavras projetam no espa90. E essa Proje900da ordem no caos - como se disse antes que constitui 0 ceme do poder da linguagem - e tal poder estci no centro da rela~o eletiva que 0 ritualista mantem com seu instrumento de a~o, que e a palavra. Entre a escrita, que fixa mas e incompleta, e a memoria, que e cirdua mas presentifica, por meio da voz, 0 som - a elei9ao do ritualista recai sobre a segunda. A titulo de conclusao. aqui vao alguns pontos que a civiliza~o da india Antiga permite postular: e Primeiro, 0 emprego da escrita urn dado de cultura, que cleve ser relativizado em fun~o do contexto no quaI figura e 113:0 al~do categoria de instrumento absoluto, acima das injun~s ideol6gicas. Segundo, 113:0 licito estabelecer uma correla~o rigida entre escrita e razao e oralidade e desrazao. E possivel pensar 0 mundo - em bases 16gicas e razoaveis - sem o concurso da linguagem grafada. Terceiro, constitui pressuposto evolucionista a i<ieia de que a escrita representa urn estcigio mais avan~o do que a oralidade - ou de que a escrita, uma vez conquistada, se torna instrumento indispensavel. (Na India Antiga, tal percurso se fez no sentido exatamente oposto.) E, finalmente, quarto, preciso anaIisar a questao do emprego da escrita em bases mais flexiveis de compreensao te6rica. a e e RESUMO: 0 presente texto, enfocando a rela~lio entre oralidade e escrita na india Antiga, tem por objetivo analisar alguns dos postulados defendidos pela lingiiistica contemporiinea, no que respeita afun~lio da linguagem escrita. Postula ele que nlio e correto estabelecer uma correla~lio rigida entre escrita e razlio e oralidade e desrazlio e que e necessario considerar a questlio da fun~lio da escrita em bases ideologicamente neutralizadas de compreenslio teorica. FERREIRA, M. 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