O problema dos referenciais sobre qualidade do ensino público

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O PROBLEMA DOS REFERENCIAIS SOBRE QUALIDADE DO ENSINO
PÚBLICO: COMENTÁRIO CRÍTICO SOBRE O EIXO IV DOCUMENTOREFERÊNCIA DA II CONAE (2014) 1
José Carlos Libâneo
Os dilemas na área da educação sobre objetivos e formas de funcionamento da
escola pública são sempre reincidentes na história da educação, no mínimo, em razão
de que as práticas educativas em uma sociedade estão diretamente relacionadas com a
dinâmica social, com os interesses de grupos e disputas de poder em âmbito
internacional e nacional, bem como com os embates teóricos no campo das ciências
humanas e da educação que orientam opções e estratégias de funcionamento da escola
em relação aos seus objetivos, formas de organização e gestão, formas de condução do
processo de ensino-aprendizagem. Em texto recente (LIBÂNEO, 2011), tratei do
dissenso no campo da educação acerca dos objetivos e funções da escola decorrente,
em boa parte, da existência de significados muito difusos de “qualidade de ensino” no
meio institucional e no meio acadêmico, incluindo posições no campo progressista. Eu
escrevia:
Os educadores “críticos”, embora assumindo em bloco a crítica à concepção técnicocientífica ou neoliberal de educação, têm divergido substantivamente quanto ao
significado de uma visão sociocrítica para a escola, tanto teórica como praticamente.
A título de exemplo, podem ser encontrados na produção intelectual ensaios e
pesquisas apontando, ao menos, quatro funções distintas para a escola: instância de
reprodução social, lugar de compartilhamento social e vivências socioculturais,
vivência de relações democráticas, lugar de formação cultural e cientifica. Não é
difícil ao pesquisador atento identificar as consequências dessas diferentes visões na
definição de objetivos, na organização curricular, nas formas de organização e gestão
e nas práticas pedagógico-didáticas (Ib., p. 178).
O Documento-referência da II Conae (2014) fornece um exemplo do debate em
torno dos objetivos e funções da escola. Embora represente um esforço de grande
significado por parte da sociedade política e da sociedade civil para o enfrentamento
dos problemas do ensino público em nosso país, verifico que o conteúdo do eixo IV
referente à qualidade de ensino apresenta, a meu ver, sérias lacunas, principalmente no
que se refere a um posicionamento em relação a um perfil de escola que possa
responder às demandas por educação e ensino dos vários segmentos sociais. O
documento aponta, logo de início, uma visão ampliada de educação “compreendida
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Texto-base para a reportagem: CONAE 2014, Revista Presença Pedagógica v. 20, n. 115, jan/fev 2014.
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como espaço múltiplo em que diferentes atores, ambientes e dinâmicas formativas se
inter-relacionam e se efetivam por processos sistemáticos e assistemáticos”. Em
seguida, acentua que os parâmetros de qualidade da educação decorrem do projeto
social que orienta a política nacional o qual, por sua vez, depende do sistema de
valores da sociedade e do “modo como se processam as relações sociais, produto dos
confrontos e acordos dos grupos e classes que dão concretude ao sentido social em
cada realidade”. Desse modo, a educação de qualidade “visa à emancipação dos
sujeitos sociais (...), é aquela que contribui com a formação dos estudantes nos
aspectos culturais, antropológicos, econômicos e políticos, para o desempenho de seu
papel de cidadão no mundo, tornando-se, assim, uma qualidade referenciada no
social”. O documento aponta, ainda, como direito social a defesa da educação pública,
gratuita, laica, democrática, inclusiva e de qualidade social para todos, assegurando-se
a universalização do acesso, a ampliação da jornada escolar e a garantia da
permanência bem sucedida, em todas as etapas e modalidades. “Esse direito se realiza
no contexto desafiador de superação das desigualdades sociais e do reconhecimento e
respeito à diversidade”. Aponta ainda que as políticas de acesso e permanência devem
garantir que os segmentos menos favorecidos possam “realizar e concluir a formação
com êxito e com alto padrão de qualidade”, de modo que essa formação seja “fator
efetivo e decisivo no exercício da cidadania, na inserção no mundo do trabalho e na
melhoria da qualidade de vida e ampliação da renda”.
Como se pode constatar, as definições de educação e de qualidade social e as
declarações sobre o direito à educação são genéricas e difusas, sem explicitação de uma
proposta acerca dos objetivos e formas de funcionamento pedagógico da escola pública.
Embora se declare que as instituições educativas sejam o lugar específico da educação,
não há nenhuma menção às funções sociais e pedagógicas da escola e, por
consequência, são ignorados ou postos em segundo plano aspectos intraescolares
ligados às atividades de ensino e questões propriamente pedagógicas no âmbito da
escola e da sala de aula. Sem um projeto de escola, qual é o sentido de ampliação da
jornada escolar ou a superação das desigualdades sociais? Que significa no documento
“alto padrão de qualidade” numa visão difusa de educação? No empenho em sustentar
uma visão de educação ampliada em que se integram “diferentes atores, ambientes e
dinâmicas de formação”, a escola fica reduzida a adereço das políticas sociais, ou seja, o
sentido de qualidade social dilui-se na educação para superação das desigualdades e do
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reconhecimento e respeito à diversidade, dentro de um projeto social de combate à
pobreza muito mais próximo de razões econômicas do que sociais e pedagógicas.
Nesse sentido, tal como transparece em vários documentos do MEC, a escola é
vista muito mais como um espaço de integração social, de vivências socioculturais, do
que de assegurar às novas gerações de crianças e jovens pobres a apropriação
consistente e efetiva de conhecimentos que lhes possibilitem meios de desenvolvimento
da reflexividade e da atividade social cidadã. Não é por outro motivo que vários
sistemas de ensino do país têm se contentado com a adoção para as escolas públicas do
currículo instrumental de resultados imediatos, baseado no fornecimento de
competências e habilidades mínimas medidas por testes. Com isso, ignora-se que a
especificidade da educação escolar consiste em ser uma prática social que só se
concretiza pelo provimento das condições efetivas de formação e desenvolvimento
científico, cultural, ético-político e afetivo das crianças e jovens, principalmente as que
mais necessitam dela, a população pobre. Para esse objetivo, haveria de se considerar
as condições socioculturais e institucionais concretas da escola, implicando em uma
atividade escolar afinada com este objetivo, para cujo alcance fossem asseguradas todas
as ações, condições e procedimentos necessários, tendo em vista resultados que não se
resumem nem à socialização e nem a competências meramente pragmáticas.
Como se vê, no debate sobre educação de qualidade, as posições do
documento-referência reforçam a percepção de que setores ligados à pesquisa em
educação, à formulação de políticas, à gestão do sistema, às associações e sindicatos,
não conseguem associar qualidade de ensino ao que acontece dentro das escolas e
salas de aula, preferindo apoiar políticas baseadas em ações de proteção social,
obrigação de resultados, insumos, procedimentos de avaliação e controle, e não com
finalidades verdadeiramente democráticas e de justiça social. Com isso, pouco se vê
no documento acerca de aspectos fundamentalmente necessários como, por exemplo,
a orientação clara sobre os objetivos da escola e do processo de ensino-aprendizagem
na sala de aula.
Mantém-se, assim, no documento uma ideia já presente em documentos de
organismos internacionais e do MEC, caso, por exemplo, do Programa Mais
Educação. Está claro nesses documentos a diluição da centralidade da escola em favor
de uma visão de educação ampliada, ou seja, a escola é responsabilizada por uma
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multiplicidade de funções, incluindo a de prover serviços sociais (“escola
transbordante” no dizer de Antonio Nóvoa), convertendo-se num lugar indiferenciado,
sem identidade. A escola é desfigurada enquanto lugar de escolarização e de
desenvolvimento cognitivo , afetivo e moral. É verdade que não se educa apenas na
escola, não há como negar a existência de múltiplas práticas educativas na sociedade.
Mas, nas condições sociais do país, deixar a escola na periferia do sistema escolar
pode levar à ampliação da exclusão social. Considerar a escola apenas como lugar de
proteção social, de vivências socioculturais e de atendimento às diferenças e à
diversidade social e cultural, a reduz meramente a uma referência física para colocar
em prática projetos sociais do governo, ações socioeducativas e compensatórias
voltadas para a população de baixa renda. Com isso, fica diluido seu papel de
promover por meio do ensino-aprendizagem o domínio de conhecimentos, habilidades
e atitudes e, com base nesse domínio, o desenvolvimento mental, afetivo e moral dos
alunos. É inútil falar em ampliação da jornada escolar ou em superação das
desigualdades sociais e do reconhecimento e respeito à diversidade fora de uma visão
de escola voltada para o conhecimento, a aprendizagem e ao desenvolvimento das
capacidades intelectuais, o que implica a atenção à sala de aula, pois é ai que se pode
verificar, verdadeiramente, a qualidade da educação, ou seja, o que os alunos
aprendem, como aprendem e o que podem fazer com o que aprendem. É a partir dai
que se pensa o projeto pedagógico, a seleção de conteúdos, os procedimentos de
ensino, o modelo de formação de professores, as práticas de avaliação, etc.
Tenho, assim, a convicção que escola com qualidade educativa deve ser aquela
que assegura as condições para que todos os alunos se apropriem dos saberes
produzidos historicamente e, através deles, possam desenvolver-se cognitivamente,
afetivamente, moralmente. Desse modo, a escola promove a justiça social cumprindo
sua tarefa básica de planejar e orientar a atividade de aprendizagem dos alunos,
tornando-se, com isso, uma das mais importantes instâncias de democratização social e
de promoção da inclusão social. E aprendizagem não pode se resumir à oferta de um
“kit” de habilidades sem conteúdo significativo, ela requer relações pedagógicas
visando a conquista do conhecimento e do desenvolvimento das capacidades
intelectuais e formação da personalidade. A qualidade social da escola começa, no
mínimo, com o empenho pela igualdade social ao reduzir a diferença de níveis de
escolarização e educação entre os grupos sociais já que a superação das desigualdades
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sociais guarda estreita relação com o acesso ao conhecimento e à aprendizagem escolar.
Esta concepção de escola não dispensa que em seu interior sejam valorizadas as práticas
socioculturais, mas estas devem ser conectadas ao processo de ensino-aprendizagem dos
conteúdos escolares. A razão para isso é muito clara e óbvia, menos para os que não
querem enxergá-la: sem apropriar-se dos conteúdos escolares as crianças e jovens que
possibilitam o fortalecimento das capacidades intelectuais, mesmo estando na escola e
em tempo integral, não terão assegurado o seu direito a desenvolverem-se, a formarem
novas capacidades de pensamento, a estabelecerem relações entre os conceitos
científicos trabalhados pela escola e os cotidianos vividos no âmbito comunitário e
local. Em resumo, escola de qualidade é a que, antes de tudo, através dos conhecimentos
teóricos e práticos, propicia as condições do desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral
dos alunos consideradas as suas características individuais, sociais e culturais e as
práticas socioculturais de que vivenciam e participam. Para que se cumpra esta função
social são necessárias ações pedagógico-didáticas consistentes, ancoradas no
planejamento didático baseado num currículo comum e na atuação intencional e
competente dos professores, em uma organização escolar sólida.
Desse modo, não há como definir políticas educacionais sem uma política clara
para os objetivos da escola, do ensino, sem identificação clara das condições do ensino e
aprendizagem e sem a atenção voltada para a realidade concreta do funcionamento do
ensino-aprendizagem das escolas e das salas de aula. Uma proposta de funcionamento
da escola que põe muito mais ênfase na função da proteção social e nas ações
socioeducativas do que nos conteúdos escolares e no desenvolvimento da capacidade de
pensar dos alunos, deixa muito pouco espaço à pedagogia e ao aprimoramento do
processo ensino-aprendizagem necessário à qualidade de ensino. No entanto, é na ponta
do sistema de ensino, ou seja, nas escolas, no trabalho docente dos professores, que se
verifica a qualidade social do ensino. Retirar a centralidade da escola a pretexto de uma
visão ampliada de educação e como parece ocorrer nas políticas educacionais atuais,
significa deixar em segundo plano o acesso ao patrimônio histórico imaterial da
humanidade, consubstanciado nos conhecimentos, conteúdos, conceitos, que compõem
uma base comum e universal de chaves de leitura do mundo real. Significa ainda o risco
de antecipar a exclusão social das crianças e jovens pobres, na própria escola, antes
mesmo de serem excluídas na sociedade. Acredito, assim, que as escolas existem para
que os alunos aprendam conceitos, teorias; desenvolvam capacidades e habilidades de
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pensamento; formem atitudes e valores e se realizem como profissionais-cidadãos.
Qualidade de ensino é, basicamente, qualidade cognitiva e operativa das aprendizagens
escolares, condição para inserção ativa e crítica no mundo do trabalho, da cultura, da
política, enfim, para o exercício da cidadania. É para isso que devem ser formuladas as
políticas, os projetos pedagógicos, os planos de ensino, os currículos, os processos de
avaliação.
O documento-referência, que supostamente expressa anseios da sociedade
civil, fica devendo respostas a perguntas como: para serve a escola, principalmente
aquela dirigida às camadas populares? Que objetivos melhor contribuem para a
eliminação das desigualdades sociais? É uma escola que visa verdadeiramente ampliar
o desenvolvimento cognitivo, afetivo, moral dos alunos ou ser lugar meramente de
acolhimento e integração social dos pobres? Assim, a par das demandas legítimas por
um sistema nacional de educação pública, pela elevação dos índices de financiamento
público da educação, pela adoção efetiva de medidas propiciadoras de salário digno,
carreira profissional, condições de trabalho dos professores, teria sido relevante que o
documento contemplasse mais concretamente os objetivos e as formas de
funcionamento pedagógico das escolas que, ao lado de outras questões intra-escolares,
são os reais propiciadores de qualidade de ensino.
Goiânia, novembro de 2013
Referência
LIBÂNEO, José C. O declínio da escola pública brasileira: apontamentos para um estudo crítico. In:
LOMBARDI, José C. e SAVIANI, Dermeval (orgs.). História, educação e transformação: tendências e
perspectivas para a educação pública no Brasil. Campinas (SP): Autores Associados, 2011.
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