escravidão e alforria em debate - Justiça, Administração e Luta Social

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ESCRAVIDÃO E ALFORRIA EM DEBATE: UM EXAME DE CARTAS
ENVIADAS PELA POPULAÇÃO “DE COR” AO CONSELHO
ULTRAMARINO (MINAS GERAIS, 1750-1808)
Daniel Precioso1
Universidade Federal Fluminense
RESUMO:
O objetivo dessa comunicação consiste em analisar uma série de cartas enviadas por crioulos
e pardos da Capitania de Minas Gerais ao Conselho Ultramarino, nas quais foram debatidas
questões referentes a pratica da alforria e a legitimidade do cativeiro na América portuguesa
após a promulgação de leis que aboliram paulatinamente a escravidão em Portugal. Não
obstante as missivas analisadas se insiram num contexto mais amplo de discussão, que
abarcava, por exemplo, as demandas sociais e políticas dos libertos e a revogação dos
chamados “estatutos de pureza de sangue”, analisaremos apenas o tema da escravidão e da
alforria, pautas privilegiadas nessas discussões. Assim, procuraremos demonstrar que, apesar
da escravidão não ter sido revogada na América portuguesa durante a segunda metade do
século XVIII, as transformações no modo de governar os povos, geridas durante o ministério
pombalino, ressoaram nos trópicos. Neste sentido, as petições e os requerimentos analisados
são fortes indícios de que escravos e libertos, subsidiados por advogados e irmandades,
passaram a vociferar as suas aspirações, debatendo a possibilidade da extensão de leis
promulgadas durante os anos de 1750 e 1777 à América portuguesa.
PALAVRAS-CHAVE: alforria, escravidão, Minas Gerais.
No período pombalino, o modelo de centralização monárquica que remontava ao
governo geral foi revogado.2 A nova política de ordem regalista diminuiu o poder de
negociação dos súditos, mas conferiu-lhes em troca um novo status na ordem política. O
governo de D. José I marca, pois, uma transformação na prática de dominação dos povos do
ultramar e o advento de uma política de integração social de indivíduos antes marginalizados,
que visava torná-los vassalos úteis.3 Nesse contexto, os mecanismos de identificação entre os
1
Graduado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), mestre em História e Cultura Social
pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-Franca) e doutorando em História Moderna pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]
2
O modelo de centralização monárquica, adotado a partir do governo geral, amparava-se na axiomática
legitimação do poder régio através de um pacto com os soberanos. Esse modelo serviu de base à reprodução da
autoridade monárquica em âmbito imperial, tendo vigorado ainda na primeira metade do século XVIII. Cf.
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de Mineiros: de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo
dourado - 1693 a 1737. São Paulo: Tese (Doutorado em História) - FFLCH/USP, 2002, p. 23.
3
Concomitante a essa política, na Capitania de Minas Gerais, ao longo da segunda metade do século XVIII,
consolidou-se uma política de integração controlada de mulatos e negros, forros ou livres. Cf. PRECIOSO,
Daniel. Legítimos vassalos: pardos livres e forros na Vila Rica colonial (1750-1803). Franca, SP: Dissertação
(Mestrado em História) - FHDSS/UNESP, 2010, p. 70-82; SILVEIRA, Marco Antonio. Acumulando forças: luta
pela alforria e demandas políticas na Capitania de Minas Gerais (1750-1808). Revista de História. São Paulo:
USP, 158 (1º semestre de 2008), p. 131-156; SILVEIRA, Marco Antonio. Soberania e luta social: negros e
súditos e os soberanos foram redimensionados, na medida em que os agentes régios
reformaram a política relativa aos indígenas através da criação do Diretório e buscaram tornar
útil a multidão de negros e mulatos presentes nos centros urbanos da América portuguesa.4 A
escravidão, porém, foi mantida no ultramar, não obstante a lei de 1773, que libertava os filhos
e os netos de escravos nascidos em Portugal, e o direito concedido à Irmandade do Rosário de
Lisboa de alforriar seus irmãos cativos.5 Embora estas leis não tenham sido extensivas à
América portuguesa, a sua população “de cor” passou a enviar missivas ao Conselho
Ultramarino, debatendo a aplicabilidade dessas medidas em terras brasílicas. Diante disso, a
comunicação pretende apresentar o teor de cartas enviadas por crioulos e pardos – escravos,
forros ou livres – da Capitania das Minas Gerais, as quais se encontram na Coleção de
Documentos Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU/MG).6
Escravidão, alforria e as leis “abolicionistas” promulgadas em Portugal
A partir do período pombalino, a política discriminatória adotada pela Coroa
portuguesa em seus domínios territoriais foi parcialmente revogada. Diversas leis foram
promulgadas no sentido de incorporar categorias de pessoas não brancas de diversas partes do
império à condição de vassalos da monarquia portuguesa. Assim, uma série de decretos reais
foi decretada por Pombal entre 1775 e 1777, regulando a secularização das aldeias indígenas e
mestiços libertos na Capitania de Minas Gerais (1709-1763). In: CHAVES, Cláudia Maria das Graças,
SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.). Território, Conflito e Identidade. Belo Horizonte: Argvmentvum, 2007, p.
25-47.
4
Sobre a política pombalina que incentivou os casamentos entre índios e vassalos da América, as leis referentes
à liberdade dos índios do Pará, Maranhão e Brasil e a incorporação de populações nativas da América portuguesa
antes estigmatizadas através de categorias como “gentios”, “negros da terra” ou “carijós”, cf. MAXWELL,
Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo (trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 72 e
BOXER, Charles R. Relações Raciais no Império Colonial Português, 1415-1825 (trad.). Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1967, p. 107. Sobre a revogação da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, cf. BOXER,
1967, p. 107. Sobre a facilitação de concessão de direitos de nobreza aos comerciantes, cf. AZEVEDO, Lúcio
de. O marquês de Pombal e a sua época, 2.ª ed. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil; Lisboa: Seara Nova, 1922,
p. 125-6.
5
Entre os autores que advertiram que a abolição ditatorial de Pombal da barreira de cor contra os índios
brasileiros e vassalos asiáticos cristãos da Coroa portuguesa não foram extensivas aos de sangue negro, vide
FALCON, Francisco José Calasans. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo:
Ática, 1982, p. 398 e BOXER, 1967, p. 134.
6
É válido ressaltar que essa pesquisa encontra-se em andamento, sendo apresentados nessa comunicação os
resultados parciais obtidos.
a entrega destas aos seus habitantes,7 a concessão de direitos de nobreza a comerciantes8 e a
abolição da antiga distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos.9
A política imperial pombalina, tanto na Índia quanto na América portuguesa, mirou o
aproveitamento das riquezas dos territórios ultramarinos através da racionalização e da
padronização da administração portuguesa nos seus domínios. A organização militar e o
treinamento educacional também passaram a ser incentivados pela Coroa, visando à defesa
das conquistas e a prática do bom governo. Neste sentido, “[...] as diferenças de raça e de
etnia não seriam barreiras para se manter um cargo ou uma promoção, e a participação no
governo local era encorajada”.10 No caso da América portuguesa, em cujo território a língua
oficial rivalizava com a “língua geral” – mescla de tupi-guarani com o português –, a reforma
educacional tinha por objetivo a utilização da língua portuguesa como uma forma de agregar,
no plano social, as populações nativas.
Em relação ao princípio de liberdade adotado no reformismo ilustrado de Pombal, e à
progressiva abolição, na letra da lei, dos critérios de “pureza de sangue”, “[...] verificamos sua
aplicação a propósito de duas situações distintas: os índios no Brasil e os negros em
Portugal”.11 No segundo caso, a lei de 1773 libertou filhos e netos de escravos em Portugal.12
Porém, em relação à América portuguesa, “[...] essa incorporação não incluiu, certamente, os
negros e os mulatos”,13 provavelmente porque, aqui, a escravidão presidia a ordem social e
era maciçamente africana.
É preciso ressaltar que a sociedade brasileira, entre o século XVI e o XIX, era
estruturada pelo regime escravista. Como observou Rafael de Bivar Marquese, a longevidade
do sistema escravista residiu na articulação de dois fatores fundamentais: a importação
massiva de africanos e a incorporação paulatina de seus descendentes à sociedade colonial.14
7
BOXER, op. cit., p. 133.
Citado por AZEVEDO, 1922, p. 125-6.
9
BOXER, op. cit., p. 107.
10
MAXWELL, 1996, p. 139.
11
FALCON, 1982, p. 398. Essa proposição é, em parte, relativizada por Larissa Viana, para quem a legislação
aprovada no período pombalino “[...] serve ao propósito de evidenciar a mudança na forma como o mulato se faz
presente no pensamento legal da Coroa entre o final do século XVII e meados do XVIII”. VIANA, Larissa
Moreira. O Idioma da Mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas (SP): Ed.
UNICAMP, 2007, p. 80.
12
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 268.
13
Ibid., p. 268-9. No mesmo sentido, Charles Boxer advertiu que “[...] a abolição ditatorial de Pombal da
barreira de cor contra os índios brasileiros e vassalos asiáticos cristãos da Coroa portuguesa e a concessão de
direitos civis totais que lhe foi simultaneamente outorgada não foram extensivos aos de sangue negro.” BOXER,
1967, p. 134.
14
MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência escrava, tráfico negreiro e
alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos. CEBRAP. São Paulo, v. 4, 2006, p. 118.
8
Sob essa óptica, a alforria desempenhava um papel central, pois tornava a escravidão legítima
perante os próprios escravos, posto que lhes abrisse um horizonte de expectativa de liberdade.
Na visão de Marquese, o “enigma” da não existência de outros Palmares na história do Brasil
pode ser explicado justamente pelo funcionamento do mecanismo da alforria.15 A
manumissão de descendentes de cativos funcionaria, pois, como uma forma de amortecer as
tensões advindas de uma sociedade que fincou as suas bases econômicas em um regime
escravista. Em perspectiva análoga à de Marquese, Sheila Faria assinalou que o ataque ao
tráfico atlântico de africanos, ocorrido em 1831 e, sobretudo, em 1850, fez ruir um sistema de
sucesso, qual seja, o da articulação entre a importação de africanos e a incorporação
progressiva de seus descendentes por meio da alforria.16
Diante disso, é possível atribuir a não extensão das leis pombalinas que aboliram
paulatinamente a escravidão em Portugal ao Brasil precisamente ao caráter estrutural que a
escravidão desempenhava entre nós e ao sucesso de um mecanismo costumeiro e secular que
garantia a continuidade da exploração da mão-de-obra africana: a alforria. Essa lógica,
certamente, servia às elites econômicas e governativas do império colonial português, mas
não aos escravos e aos seus descendentes. Assim, a promulgação de leis que libertavam filhos
de escravos e que garantiram à Irmandade do Rosário de Lisboa o direito de alforriar seus
irmãos mediante pagamento, sensibilizou as populações “de cor” na outra margem do
Atlântico. Escravos e libertos passaram a questionar por que essas medidas não foram
dilatadas em contexto ultramarino, já que as causas que estiveram na base de suas
promulgações para o Reino também estavam presentes nas conquistas. Embora o mecanismo
da alforria permanecesse em pleno funcionamento durante a segunda metade do Dezoito,
garantindo, assim, a continuidade do sistema de exploração da mão-de-obra escrava africana,
crioulos e pardos, sobretudo, aliados a advogados influenciados pelas teses do Direito
Natural, passaram a questionar a escravidão e a exercer pressão política para que a alforria
pudesse ser adquirida mediante pagamente, independentemente da vontade senhorial.17
15
Idem.
FARIA, Sheila de Castro. A riqueza dos libertos: os alforriados no Brasil escravista. In: CHAVES, Cláudia
Maria das Graças, SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.). Território, Conflito e Identidade. Belo Horizonte:
Argvmentvum, 2007, p. 22.
17
A prerrogativa de alforriar sempre partia do senhor, que detinha o domínio sobre o escravo, sua propriedade.
Como observou Manuela Carneiro da Cunha, não havia leis que obrigassem os senhores a alforriar seus
escravos, sendo a concessão da liberdade a um cativo de alçada particular. Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da.
Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In:
Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense/EDUSP, 1987, p. 123-44. No entanto,
em alguns casos, que não preponderaram numericamente, a alforria poderia ser atingida à revelia da vontade
senhorial, mediante ações de liberdades perpetradas por escravos em diferentes instâncias de justiça. Cf.
16
Doravante, passaremos a analisar o teor de cartas endereçadas por crioulos e pardos,
escravos, forros e livres, ao Conselho Ultramarino, questionando a escravidão e peticionando
o direito de suas irmandades alforriarem seus confrades escravos.
As missivas dos homens crioulos e pardos ao Conselho Ultramarino
O preconceito “racial” que recaía sobre os negros e mulatos permaneceu ativo nas
décadas finais do Setecentos.18 Porém, os crioulos e os pardos, cientes de sua expressividade
numérica e do poder de barganha de que gozavam para pressionar as autoridades, passaram a
encaminhar os temas da abolição das restrições “raciais” para a ocupação de assentos nos
Conselhos Municipais e nas Ordens Terceiras, da valorização dos vassalos “nacionais do
domínio” (isto é, nascidos na América) e da não extensão das medidas relativas à liberdade de
cativos no Reino para a Conquista.19 Em sua defesa, os segmentos sociais aludidos usavam as
tópicas da utilidade de seu trabalho à Coroa e ao bem comum assinalando que combatiam os
quilombos e os índios hostis, assim como realizavam achados de metais preciosos.20
A partir da década de 1760, sobretudo, crioulos e pardos, de condição legal escrava,
forra e livre, identificando-se individualmente ou coletivamente, passaram a vociferar suas
aspirações aos conselheiros reais. Justamente no período em que a sociedade mineira parecia
estar se consolidando e se tornando um pouco mais estável, constituiu-se uma ampla camada
de crioulos e de pardos21 comprometidos com a construção de sua identidade e mais
conscientes das formas de angariar forças na luta cotidiana que empreendiam em torno da
GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade. As ações de Liberdade da Corte de Apelação do Rio de
Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. Os estudos de Maria Beatriz Nizza da Silva e de
John Russell-Wood demonstraram que governadores e ouvidores poderiam concorrer, pressionando os senhores,
para a liberdade de escravos, bem como que o forro partido poderia ser atingido por meio de pedidos
extrajudiciais que os escravos enviavam diretamente ao monarca, o que reforçava o caráter contratual do mando
no império colonial português. Cf., respectivamente, SILVA, Maria Beatriz Nizza da Silva. A Luta pela Alforria.
In: ______ (org.). Brasil. Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000, p. 298-307 e
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Vassalo e Soberano: apelos extrajudiciais de africanos e de indivíduos de origem
africana na América portuguesa. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Cultura Portuguesa na Terra de
Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 215-33.
18
No entanto, a turbulência política ocorrida nas Américas – com a rebelião dos escravos nas Antilhas e com a
conspiração baiana (1798) –, aliou-se a aspectos exógenos, como as idéias ilustradas, o antiescravismo e a
independência da América inglesa, sem falar nas mudanças ocorridas na legislação portuguesa a partir do
ministério pombalino, fatores que adicionaram novos ingredientes para o debate da velha questão de como
acomodar negros e mulatos forros.
19
SILVEIRA, 2008, p. 137.
20
Idem.
21
A despeito do discurso desabonador dos mistos de branco e preto, bastante ativo ainda na segunda metade do
século XVIII, a “[...] freqüência com que o termo pardo começou a despontar nas fontes oficiais sugere que a
conotação pejorativa sintetizada na palavra mulato vinha sendo posta à prova”. SILVEIRA, 2008, p. 136;
PRECIOSO, 2010.
estratificação social. Como já observamos, o reformismo ilustrado de Pombal, que libertou os
filhos e os netos de cativos em Portugal, em relação à América, encarou a escravidão como
uma instituição maléfica, porém necessária. Não referendados pela lei de 16 de janeiro de
1773, pulularam os argumentos de escravos pertencentes às irmandades que os reuniam entre
seus confrades, os quais insinuavam que as mesmas razões pela liberdade no Reino
aplicavam-se à América portuguesa. Pressionavam, ainda, as autoridades para que fosse
concedido às suas corporações religiosas o direito de libertar seus irmãos mediante pagamente
de preço justo aos senhores deles, sem prejuízo de terceiros, cujo direito havia sido concedido
à Irmandade do Rosário dos pretos de Lisboa.
Na década de 1790, os homens crioulos e pardos passaram a defender o fim de formas
arraigadas de segregação mais deliberadamente e com melhor fundamentação, inclusive com
atenção às contradições existentes em leis sobre as “gentes de cor”. Teriam eles contado com
a ajuda de bacharéis, pois, ainda que não tenha sido verificada qualquer referência a doutores,
o uso de teses jurídicas nas petições sugere a sua participação. Crioulos e pardos
corporificados em tropas e irmandades puderam, assim, disponibilizar parcela de seus parcos
recursos financeiros para o pagamento de advogados e para a tramitação de suas missivas.
Portanto, a “mudança do tom” do discurso relativo às “gentes de cor” em fins do século XVIII
resultou do “[...] acúmulo de forças no debate político das décadas anteriores [...]”.22
As cartas que a população “de cor” da América portuguesa enviou ao Conselho
Ultramarino podem ser divididas em, pelo menos, dois tipos: as petições e os requerimentos.
As primeiras eram geralmente apelos extrajudiciais de escravos em torno da causa da
liberdade; e os últimos consistiram em pedidos individuais de confirmação de privilégios
obtidos na América ou em solicitações coletivas de direitos em benefício de associados em
irmandades leigas.
Em relação ao primeiro tipo de missiva, deparamo-nos com uma modalidade particular
de tentativa de aquisição da alforria, praticamente desconhecida até pouco tempo atrás: os
apelos extrajudiciais. No rol de apelos judiciais conduzidos pelos escravos para atingir o forro
partido e garantir certos direitos adquiridos pelos costumes,23 a liberdade adquirida pelos
22
Ibid., p. 149.
Cf. LARA, Sílvia Hunold. Campos de violência; escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro - 17501808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas
décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; GRINBERG, 1994; DAMÁSIO,
Adauto. Alforrias e ações de liberdade em Campinas na primeira metade do século XIX. Campinas, SP:
Dissertação (Mestrado em História) - IFCH/UNICAMP, 1995; RUSSELL-WOOD, 1995; SILVA, 2000;
PAIVA, Eduardo França. Revandications de droits coutumiers et actions en justice des esclaves dans les Minas
Gerais du XVIIIe siècle. Cahiers du Brésil Contemporain. Paris, 2004.
23
apelos extrajudiciais foi individualizada e parcamente difundida. Como demonstrou RussellWood, poucas eram as chances dos escravos obterem sentença favorável na justiça local, o
que impeliam alguns deles a suplicar a liberdade diretamente ao soberano.24 Não obstante os
alertas dos administradores do Brasil acerca dos perigos de abrir precedentes, “[...] a Coroa
mostrou ser extraordinariamente sensível aos apelos pessoais à graça régia”.25 Mas, se a
concessão desses apelos poderia minar a autoridade dos membros da magistratura e das
autoridades, e mesmo a própria letra da lei, a “compaixão” do rei em relação aos apelos
extrajudiciais jamais transpunha o âmbito individual, isto é, não abarcava apelos de caráter
coletivo ou corporativo.26 Aliás, mesmo nos apelos individuais, a benevolência régia nem
sempre ocorria, ou era obstruída por pareceres desfavoráveis emitidos de antemão pelos seus
conselheiros. Nesses casos, podemos supor que os apelos nem mesmo chegavam ao
conhecimento do soberano.
No governo de Bernardo José Maria Lorena e Silveira (1797-1804), por exemplo,
Francisco Cipriano, homem pardo, escravo de António Caetano de Almeida Vilas Boas,
vigário colado da Igreja de Nossa Senhora do Pilar da Vila de São João del Rey, enviou um
pedido ao Conselho Ultramarino para que desse a conta ao ouvidor daquela Comarca das
sevícias praticadas pelo seu senhor, e interpusesse a sua informação a fim de recorrer na causa
da liberdade. No requerimento, Francisco contestou a legitimidade do seu cativeiro,
argumentando que
[...] apezar de ter cervido com obediência e fidelidade a mais de vinte annos
ao d.o seu Snr., este antépondo a satisfação do seu genio cruel, e violento
[...] trata ao Sup.e, e aos mais escravos com estranha tirania, praticando
severos, e dezumanos Castigos de sorte q.’ repetidas, e Serquentez vezes
tem comservado ao Sup.e pello longo tempo de Seis mezes em Cárceres,
carregado de ferro, precedendo, e acomollando autas crueldades,
Sanguinários asSautos, e outros tromentos, humas vezes executados por si e
outras por peSsoas da sua amozade e comfidencia [...].27
24
Segundo Russell-Wood, africanos e indivíduos de origem africana acreditavam na existência de um “contrato
social” entre o soberano e os vassalos, ou seja, percebiam o monarca como um “árbitro imparcial na justiça”.
Neste sentido, alguns indivíduos pertencentes a esses segmentos sociais teriam recorrido diretamente ao monarca
diante da dificuldade de serem ouvidos na periferia do império. Cf. RUSSELL-WOOD, 1995, p. 216.
25
Idem, p. 218.
26
Id., p. 232-3.
27
Requerimento de Francisco Cipriano, homem pardo, escravo do reverendo António Caetano de Almeida Vilas
Boas, vigário colado da Igreja de Nossa Senhora do Pilar da Vila de São João Del Rei, pedindo para que o
ouvidor daquela Comarca conheça com imparcialidade as sevícias praticadas com ele e interponha a sua
informação, a fim de recorrer na causa da liberdade (09.04.1802). AHU/MG, Cx. 162, Doc. 37.
É interessante notar que Francisco embasou sua fala em leis, mostrando que havia
recebido alguma instrução ou ajuda efetiva de um bacharel em direito. Segundo o pardo
cativo, o procedimento de seu senhor não ofendia apenas “[...] as Saudáveis masimas do
Christianismo e deveres de brandura, e Caridade [...]”, mas também “[...] as Sabias, e
providentes Leys desta Monarquia as quaes, tollerando Cativeiro nos dominios Ultramarinos
quartao’ os efeitos do poder dominical proibindo aos Snr.es com severas penas o uso de
Cárcere privado [...].” Francisco delatava que, sob o pretexto de instruírem seus escravos nos
preceitos da Igreja, religiosos cometiam “delitos graves”, cuja “[...] ponição dos quaes deve
ser regulada pella autilidade publica, afim de se evitar a Injustiça e abuzos de Direito [...],”
concluindo que, nos termos das referidas leis, “[...] o facto de Cervicias induz
neceSsariamente a perda do domínio da parte dos Snr.es, e constitue hum dos legítimos
modos, por q.’ os escravos adequirem a sua liberdade [...]”. Quer em razão da sua pobreza,
“tão inherante a sua imfiliz condição de Cativo” e que o impossibilitava de “lutar com tanta
desproporção de forças com o d.o Vigário”, quer pela falta de um bom protetor, seu
requerimento foi negado em primeira instância e, possivelmente pela falta de recursos
financeiros para dar continuidade ao trâmite jurídico, ficou inconcluso.28 Assim, embora tenha
apelado diretamente ao Rei, Francisco não obteve a mercê suplicada, talvez por negligência
dos conselheiros, que emitiram parecer negativo, sem a consulta do soberano.
Os requerimentos enviados ao Conselho Ultramarinos, assinados por corporações ou
por indivíduos que intercederam em causas coletivas, apresentam informações mais relevantes
para a reflexão que propomos nesse estudo, pois apresentam referências às “leis
abolicionistas” que o ministério pombalino aprovou para o Reino. Passemos, então, ao exame
do teor de algumas dessas cartas.
Em 22 de agosto de 1786, a Irmandade de São Gonçalo Garcia de São João Del Rey
enviou um requerimento ao Conselho Ultramarino, solicitando o direito de libertar seus
irmãos escravos, que constituíam uma “grande parte” das “mulheres, e homens pardos” que a
corporação integrava. Os peticionários colocaram na “real presença” que “[...] querendo dar
muitos Escravos o Seu valor, teiao’ (sic) sem redempçao’ em duro cativeiro, ao mesmo tempo
que grande parte destes deviao’ ser comprehendidos na Ley de desaseis de Janeiro de 1773,
por serem escravos já desde o terceiro, quarto e quinto Avo’, nao’ lhe sahindo o indulto da
mesma Ley, por Ser nestas infelicissimas Capitanias interpretada por homens cheyos de
ambiçao’, ricos, poderosos, com occupao’ os cargos públicos e da Justiça, os quaes querem, e
28
Idem.
decidem, que so para os Algarves publicou a referida Ley, como se a razao’ della nao’ fosse
identica nas Provincias de Portugal, e nas Capitanias da América.” A resolução dos
conselheiros reais foi desfavorável, pois concluíram que a concessão da “faculdade” de
libertar confrades cativos à irmandades poderia incorrer em “inquietações, e prejuizoes”.29
Assim, embora as demandas dos cativos tivessem maiores chances de ser acolhidas pela
Justiça régia caso fossem enviadas coletivamente e por membros de uma irmandade, como
afirmaram Marcos Magalhães de Aguiar e Larissa Moreira Viana,30 essa premissa não era
observada independentemente das causas pleiteadas. Em se tratando da alforria, a hipótese de
Russell-Wood parece ser mais plausível, já que os apelos extrajudiciais em torno da causa da
liberdade eram mais atendidos quando pleiteados por indivíduos e não por corporações. A
concessão de um direito dessa natureza aos irmãos de S. Gonçalo Garcia poderia abrir
precedentes para que outras corporações religiosas requeressem o mesmo, o que colocaria em
xeque o direito costumeiro da “dádiva” da alforria, prerrogativa senhorial, não obstante o
escravo pudesse obtê-la através de ações de liberdades e apelos extrajudiciais.
Em alguns casos, demandas de escravos e libertos foram suplicadas em uma só carta.
Como já observamos, na década final do século XVIII, pardos e crioulos passaram a combater
mais acirradamente os impedimentos de sangue para ocupação dos principais cargos da
República e para o ingresso nas Misericórdias e nas Ordens Terceiras. Nesse contexto, a
escravidão não ficou incólume. Em 1796, Miguel Ferreira de Souza enviou uma carta à D.
Maria I em nome dos “homens pardos e pretos libertos” da Capitania de Minas.31 Afirmava
ele que, os pardos e pretos libertos “[...] Com todo o zelo e promptidao’ em tudo q.’ he do
29
Representação da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila de São João
Del Rei, solicitando a D. Maria I a mercê de conceder a referida Irmandade o poder de libertar os seus irmãos e
irmãs que fossem escravos, pagando uma indenização a seus donos (22.08.1786). AHU/MG, Cx. 125, Doc. 20.
Uma cópia do “alvará com força de lei” de 16 de janeiro de 1773 que libertou os netos de escravos em Portugal
encontra-se anexo à Carta de Miguel Ferreira de Sousa, morador na cidade de Mariana, expondo a D. Maria I a
situação dos homens pardos e pretos libertos que estão sujeitos a todos os serviços e perigos, pedindo para eles
justiça (19.06.1796). AHU/MG, Cx. 142, Doc. 23. Em 1761, o crioulo alfabetizado José Inácio Marçal Coutinho
enviou um requerimento ao Conselho Ultramarino no qual peticionou, em nome das Irmandades de Nossa
Senhora das Mercês da Redenção dos Cativos sediadas em Vila Rica, Sabará, São José e São João del Rey, que a
elas fosse concedidos os mesmos privilégios gozados pelos pretos de Nossa Senhora do Rosário em Lisboa, que
podiam libertar seus irmãos escravos sem prejuízos de terceiros. Cf. Requerimento dos crioulos pretos e mestiços
forros, moradores em Minas, pedindo a D. José I a concessão de privilégios vários, dentre eles o de poderem ser
arregimentados e gozarem do tratamento e honra de que gozam os homens pretos de Pernambuco, Bahia e São
Tomé. AHU, Cx. 69, Doc. 5 (01.07.1756).
30
AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil colonial.
São Paulo: Tese (Doutorado em História) - FFLCH/USP, 1999; VIANA, 2007, p. 158.
31
Esse requerimento sintetiza os principais tópicos das petições e dos requerimentos enviados pelos crioulos e
pardos durante a segunda metade do século XVIII. Cf. PRECIOSO, 2010, p. 82-94. Dois requerimentos do
crioulo alfabetizado José Inácio Marçal Coutinho resumem, igualmente, as demandas dos “pretos, crioulos,
libertos e mestiços” durante o período mencionado. Cf. SILVEIRA, 2007, p. 42-4.
Real ServiSso de V.a Mag.e,” percorriam os “Sertoens dos Mattos”, à “[...] Correr e prender
aos Postos Escravos, q.’ Costumao andar fugidos a Seus Snr.es fazendo desturbios, Roubos e
Mortes pelas Estradas,” bem como indo “[...] aos mesmos Mattos Comquistar os Indios
brabos, q.’ Sem pied.e Costumao’ inçultar os povos e excluilos das Suas fazendas” e “[...]
desCubrirem o precioso Oiro e todas as mais Riquezas das Minnas Com Risco das Suas
Vidas”. O peticionário argumentava que, no “Regim.to de Cavallaria paga p.r V. Mag.e e pelos
Governadores e Ministros” da Capitania, “[...] os homens pardos Libertos Serviao’ Com mais
promptidao’ Com menos despezas”, bem como na “[...] Com.a de Pedestes Pardos de pê
emCostado ao mesmo Regim.to de Cavallaria”, tudo “[...] para milhor fazerem, as ditas
delig.cas do Real ServiSso Com Soldo mais Limitado, q.’ os Soldados de Cavallo”. Aludia,
ainda, a formação de “[...] Varios Regim.tos e terços de Homens Pardos e Pretos auxiliares e de
Ordenanças p.r Ordem do Snr.’ Rey Dom Jozê de Vinte Ceis de Março de 1766”, cuja função
era defender
[...] as Povoaçoins de q.l.q.r desturbios, q.’ Costumao’ haver, e indo os
mesmos Com Suas Comp.as ao Rio de Janr.o S. Paulo e mais Praças do Sul, e
Matto groço paragens, tao’ distantes humas a seis mezes, outras a mais e
outras a menos de viagem nas ocazioens das Guerras Com os Espanhol,
Sendo estes fardados e Armados a Suas Custas, e os prêmios, q. dao’ aos
ditos he Serem desprezados Sem os quererem admitir em Outras e
oCupação alguma Honroza da Republica, nem Concedem no Tribunal da
Junta da Real Faz.da; nem [emCambros] ou Outro q.l.q.r Offiçio publico de
ServiSso de V.a Mag.e onde os ditos poSsam ter honras e prêmios p.a Se
Sustentarem Sem atenderem, q.’ na Classe dos Homens Pardos, e Pretos
nunca ouvirao’ Rebelioens em Couza algua, e ainda, p.r leve imaginaçao’
em Cauzas de desobediências em Confidençia Respeito as Leis de V.a Mag.e
antes em todos m.to Respeito e obediência a todas as Superiores alem de m.to
amor, e vontade Com q.’ Se empregao’ no ServiSso de V.a Mag.e, e
despezas dos Seus próprios bens.32
O peticionário reclamava “[...] q.’ nem Se pagao’ Sallarios aos ditos dos Seus
trabalhos” e que, apesar de cumprirem “as Ordens de V. Mag.e”, seus merecimentos não eram
reconhecidos, sendo antes desprezados “[...] e por iSso a maior parte delles virem pobres e
mizeraveis”. Queixava-se, ainda, que, mesmo realizando todos os serviços mencionados,
quando requerem “[...] q.’ Se lhe concedao’ terras de plantas e Mineraes, p.a Cultivarem,
32
Carta de Miguel Ferreira de Sousa, morador na cidade de Mariana, expondo a D. Maria I a situação dos
homens pardos e pretos libertos que estão sujeitos a todos os serviços e perigos, pedindo para eles justiça
(19.06.1796). AHU/MG, Cx. 142, Doc. 23.
trabalharem estas Se lhes negam, p.r q.’ querem, q.’ primr.o prefirao’ nellas os Homens
Brancos”.33
O debate em torno das leis publicadas durante a segunda metade do século XVIII
também esteve presente no requerimento. Manuel Ferreira de Souza juntou à sua carta a lei
promulgada por D. José que previa admitir os pardos e pretos libertos do Reino “Como
VaSsalos Leais de V.a Mag.e em todos os empregos”, a qual não era cumprida nas Minas em
virtude deles “[...] nao’ Serem admitidos nos empregos na forma da Ley Chegando a tal
mizeria a Sua desgraça [que] nem Sequer os admitem nas Ordens 3.a e Irmandades de Saírem
a Outros p.r modo de desprezo e mal premitem a q.’ os ditos tenhão alguma Irm.de Separado”,
pois muitos homens brancos, com o pretexto de as regerem e administrarem, guardavam o
dinheiro delas com ingerência das contas, ficando “as Irmandades perdendo”.34 Para sanar o
problema da ignorância e inobservância da lei pedia a sua publicação “[...] p.a q.’ Chegue a
notiçia de todos” e de “q.’ todos os Tribunaes Respectivos, Certifiquem a V.a Mag.e [...] q.’ Se
deu Comprim.to a tudo”. O documento também apresenta um perfil sócio-profissional dos
pardos libertos:
Hé notorio q.’ na Claçe destes Leaes Vaçalos São os que Exercitam as Artes
da Muzica alem do Mais estes São os q.’ nos festejos das aClamaçoens dos
Senhores Reyzes e Senhoras Rainhas, e Naçim.tos dos Senhores Príncipes
Infantes, todos q.’fazem as Muzicas nas Igrejas, e folguedos públicos com
aquele aSeyo e alegria, q.’ permitem as ditas funçoens.35
Após encaminhar os pedidos em nome do grupo de pretos e pardos forros, o redator da
missiva, o capitão Manuel Ferreira de Souza, apresentou-se como o oficial “mais velho do
33
Idem.
Idem. Já em 1755, os “homens crioulos, pretos, e mestiços” moradores em Sabará, Vila Rica, São José del
Rey, São João del Rey e na Comarca do Serro Frio requereram – contra o “dolo e a calúnia” cometidos pelos
brancos em negociações os envolvendo – que “[...] naquelas v.as e continentes Onde há justiças Se dê aos Sup.es
hum homem ágil, pratico e judicial, / de q. ha m.tos crioulos e pardos, que vivem em muitos auditórios e com boa
notticia de m.tos daqueles termos / q’ lhes Sirva de Seo agente, e procurador dos forros, p.a na pessoa do tal,
Serem Cittados, e Requeridos Sivelm.te, e aSestir lhes a seos aSinados termos judiciais e extrajudiciais, ao qual
se dê o juram.to p.a bem Servir a d.a ocupaçao’ Requerendo pellos Sup.es toda a Sua justiça com o advogado q o d.o
aprovar, pois deferindo lhes V. Mag.e a esta Suplica faz Serv.co a D.s, aos Sup.es honra e esmola, por Ser certo e
infalível os m.tos maos e ambiciozos desaSertos q’ cometem naquele Império Contra os pobres Sup.es [...]
esperao’ da benigna pied.e de V. Mag.e, lhes defira com a justiça q’ costuma a Seos pobres prettos, crioulos, e
mestiSsos de hum e outro ceSso por merse do Seo Real decreto, ou Alvará, no qual confiados, esperao’.
Requerimento dos crioulos pretos das minas de Vila Real do Sabará, Vila Rica, Serro do Frio, São José e São
João do Rio das Mortes, pedindo que se lhes nomeie um procurador para os defender das violências de que são
vítimas (14.10.1755). AHU/MG, Cx. 68, Doc. 66.
35
Carta de Miguel Ferreira de Sousa, morador na cidade de Mariana, expondo a D. Maria I a situação dos
homens pardos e pretos libertos que estão sujeitos a todos os serviços e perigos, pedindo para eles justiça
(19.06.1796). AHU/MG, Cx. 142, Doc. 23.
34
terço Auxiliar de q.’ hé Mestre de Campo, Luis Conc.a Ex.a [...] na Cid.e de Mariana”. Relatou
também, que, anteriormente, foi “Soldado pago na Praça da Cid.e do R.o de Janr.o”, porém, “p.r
Cauza de moléstia” adquirida na mesma praça, teve de deixar outro homem em seu posto. Era
“filho do Cap.m Vicente Ferr.a de Sâ da Ordenança do termo desta Çidade aq.’ Sérvio de
Veriador na mesma”, demonstrando que possuía ascendência paterna “nobre”. Por fim,
suplicava à Rainha que mandasse que o general da Capitania das Minas o provesse no cargo
pago de sargento-mor das tropas auxiliares de pardos e pretos “[...] p.a deçeplinar os d.os terços
e Regim.tos atendendo os Serviços q. tenho feito e ter eu Saído das tropas pagas”.36
O Conselho Ultramarino não apresentou, contudo, uma resolução sobre o pedido do
capitão do Regimento dos Pardos. Descontente com o ocorrido, Manuel Ferreira de Souza
passou a disseminar discórdias em Mariana divulgando, em 1798, a falsa notícia de que o
governador da capitania havia recebido uma ordem régia “para que os pardos cativos [fossem]
forros e igualmente tudo o mais, até os próprios negros depois de haverem servido dez
anos”.37 Proclamou, ainda, que “brevemente os pardos haviam de servir nas Câmaras e nas
Irmandades do Sacramento, e Ordens Terceiras”.38 As autoridades locais, temerosas com as
perturbações que tais calúnias poderiam gerar entre os homens de cor, abriram uma devassa
para averiguar o ocorrido e garantir o “sossego dos vassalos”. O processo sugere que Manuel,
“homem pacífico mas falador”, não tendo o seu requerimento atendido, falseou uma resolução
favorável para suas súplicas, prometendo tratar da liberdade de negros e mulatos em troca de
ouro, algodão ou “até mesmo galinhas”. As pregações de Manuel, aclamado “Redentor” dos
mulatos e negros, caíram nas graças dos escravos, que se dirigiram à Mariana a fim de assistir
a um ato público que outorgasse seus anseios de “liberdade”.39
Observa-se, portanto, que Manuel, vendo esgotados os caminhos legítimos de
negociação com a Coroa – já que o seu apelo extrajudicial foi ignorado –, passou a incitar
uma comoção entre os vassalos. Assim, a estratégia do capitão para pressionar as autoridades
locais foi engenhosa, pois ao dar vazão ao desejo de liberdade alimentado pelos cativos da
região, terminou por lançá-los contra o governador.
Considerações finais
36
Idem.
APM, SG, Cx. 40, Doc. 52. Apud. SOUZA, Laura de Mello e. Coartação – Problemática e episódios referentes
a Minas Gerais no século XVIII. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil. Colonização e escravidão.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 279.
38
Ibid., p. 279.
39
Idem.
37
A comunicação pretendeu empreender uma discussão acerca do estatuto da escravidão
no ultramar durante a segunda metade do século XVIII. Vislumbrou, ainda, um debate acerca
das relações entre leis e dinâmica social. Queremos demonstrar que, embora as leis que
libertaram filhos e netos de escravos em Portugal e que concederam direito à Irmandade do
Rosário de Lisboa libertar seus irmãos cativos não tenham sido extensivas à América
portuguesa, os seus habitantes “de cor” passaram a questionar a aplicabilidade delas no
contexto ultramarino. Essa pressão se deu através de petições assinadas por irmandades,
apelos extrajudiciais e ações de liberdade encaminhadas ao Conselho Ultramarino – e
também, certamente, nas instâncias da justiça local, pois embora não tenhamos rastreado
esses documentos, sabemos da existência de ações de liberdade para o século XVIII.
Queremos chamar a atenção, precisamente, para o fato de que a legitimidade da escravidão já
vinha sendo colocada em questão em fins do século XVIII, e que os próprios pardos e
crioulos – categorias sociais mais beneficiadas, entre os indivíduos com ascendência africana,
através de uma política de integração social de vassalos, sobretudo através da (re)criação das
tropas auxiliares em 1766 –, ao lado de bacharéis e doutores em Direito que advogavam em
torno do “direito natural da liberdade” – foram os agentes dessa pressão política.
Em se tratando das petições e dos requerimentos analisados, constatamos que a
condição jurídica dos peticionários era um fator determinante no posicionamento favorável ou
contrário dos conselheiros reais. Entre as cartas examinadas, todas foram reprovadas. No
entanto, os pedidos de pardos libertos arregimentados em tropas – examinados em outro
estudo –,40 demonstram que ser provido com patente militar, pertencer a irmandades leigas,
ter bons protetores e, sobretudo, ser de condição forra ou livre perfaziam as melhores
características para se obter mais estima perante os conselheiros e, conseqüentemente, obter a
mercê suplicada.41 Acreditamos que, em vista do teor das cartas analisadas, que combatiam de
modo mais aguerrido os privilégios instaurados naquela sociedade e a própria escravidão, os
pedidos e os requerimentos não foram atendidos. Portanto, foram “escusadas” não pela
40
Cf, a guisa de exemplo, a Carta (2ª via) de Bernardo José de Lorena, governador das Minas, para D. Rodrigo
de Sousa Coutinho, sobre a apresentação do capitão Isidoro de Amorim Pereira, o “Pardo”, com um precioso
diamante e anúncio de ricas descobertas (15.07.1799). AHU/MG, Cx. 149, Doc. 5; Requerimento dos homens
pardos da Confraria de São José de Vila Rica das Minas, solicitando o direito de usar espadim à cinta
(06.03.1758). AHU, Cx. 73, Doc. 20. Apud. RAPM. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, Ano XXVI, 1975, p. 2234; Consulta do Conselho Ultramarino sobre a petição dos homens pardos da Confraria do Senhor São José de
Vila Rica das Minas Gerais, para poderem usar espadim (13.03.1758). AHU, Cx. 73, Doc. 27.
41
Cf. PRECIOSO, 2010.
condição dos requerentes e peticionários, mas antes pela mercê que suplicavam. O embargo
residia, assim, no conteúdo das cartas.
Por fim, é interessante notar que, apesar de pretos, crioulos e pardos, escravos, forros e
livres, nutrirem tensões e antagonismos entre eles, não raro, assinavam conjuntamente
missivas endereçadas às autoridades governativas. Essa constatação nos leva a repensar a
questão da formação de identidades para além do filtro “étnico”. Cabe ressaltar que a
combinação da qualidade com a condição jurídica, em um mesmo indivíduo, sobrepunha
estratificações baseadas em critérios díspares. Assim, quando o objetivo era denunciar os
abusos cometidos pelos brancos contra os escravos e os libertos, por exemplo, as diferenças
étnicas se dissolviam. Nesse caso, negros e pardos assinavam como consortes uma mesma
petição ou requerimento, havendo, portanto, um espaço de homogeneização entre grupos
étnicos diversos, cuja tendência aglutinadora fora criada por certa demanda por soluções de
problemas sociais que os assolavam igualmente.42 Portanto, apesar das cizânias existentes
entre os vários grupos de procedência, étnicos e jurídicos mencionados, nas petições que
enviaram ao Conselho Ultramarino, “[...] de um lado, as identidades forra e escrava apareciam
acima das diferenças de qualidade e, de outro, a identidade devocional era colocada acima das
próprias diferenças de condição”.43 Provavelmente, isto se deve ao fato de que as irmandades,
única forma de vida comunal legalmente permitida aos grupos mencionados no período
colonial,44 não atuavam apenas como meios de proteção e caridade mútua aos seus filiados e
como redutos de gestação de uma identidade étnica contrastiva,45 mas também como
42
Em 1755, os “homens crioulos, pretos, e mestiços” moradores em Sabará, Vila Rica, São José del Rey, São
João del Rey e na Comarca do Serro Frio enviaram um requerimento ao Conselho Ultramarino pedindo à Corte
que ordenasse às justiças das localidades citadas e ao governador da Capitania que fizessem cessar os abusos que
os brancos lhes cometiam em “[...] todo o gênero de negócios, tratos, contratos de compra e venda.” Os
peticionários reclamavam que os brancos realizavam “graves prejuízos” às suas “fazendas, honras e Cazas”,
fazendo-os assinar “creditos, escriptos, escripturas, termos, e mais aSignados” contendo cláusulas não
estipuladas “na ocaz.am do trato”. Segundo eles, o fato de “[...] m.tos dos sup.es nao’ Saberem ler nem escrever, e
menos de Dir.to, e termos judiciais, e ainda extrajudiciais” abria margem para que os juros fossem aumentados e
o tempo de pagamento diminuído, resultando em “gravíssimos prejuízos”. E o que é pior: “[...] Sendo falçam.te
citados, hús pelo q.’ devem, e m.tos pelo q.’ nao’, emfim chegao’ a Ser executados, e por ultimo, vao’ para as
cadeyas, Onde por Cauza dos Referidos emganos, padecem infinitas mizerias.” Além dos referidos abusos, do
“[...] dolo e Calunia com que os Lavrao’ aqueles comerciantes brancos,” queixavam-se ainda do costume dos
senhores brancos de “desonestar” as escravas e a omissão da justiça aos libertos pobres, muitas vezes vítimas de
penas de açoites no pelourinho. Requerimento dos crioulos pretos das minas de Vila Real do Sabará, Vila Rica,
Serro do Frio, São José e São João do Rio das Mortes, pedindo que se lhes nomeie um procurador para os
defender das violências de que são vítimas (14.10.1755). AHU/MG, Cx. 68, Doc. 66.
43
SILVEIRA, 2008, p. 146.
44
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Black and Mulatto Brotherhoods in Colonial Brazil: A Study in Collective
Behavior. HAHR, vol. 54, n. 4, nov/1971, p. 597-8.
45
Segundo Roberto Cardoso de Oliveira, “o conceito de identidade pessoal e social possui um conteúdo
marcadamente reflexivo ou comunicativo, posto que supõe relações sociais tanto quanto um código de categorias
destinado a orientar o desenvolvimento dessas relações. No âmbito das relações interétnicas este código tende a
instrumentos eficientes de pressão política e de luta social. Para o escravo elas poderiam ser
instrumentais afiançando a sua liberdade. Para o liberto elas dispuseram um maior grau de
proteção, permitindo a criação de uma rede social com vista à aquisição e manutenção de
privilégios.
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conceito, nem a explorou teoricamente.” OLIVEIRA, Roberto Cardoso de Oliveira. Identidade étnica,
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