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A TRAJETÓRIA CONCILIAR
DA “LUMEN GENTIUM”,
CRITÉRIO DECISIVO PARA SUA
INTERPRETAÇÃO
Dr. Antonio José de Almeida *
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RESUMO: O texto se propõe a historiar a gênese do essencial da Lumen Gentium, destacando a
continuidade e a descontinuidade no esforço da renovação da ecleseologia. Entre tantas do início,
convém assinalar as decisivas contribuições do cardeal de Bruxelas, Suenens e Montini, arcebispo
de Mião. O primeiro propôs uma metodologia que tivesse em conta a vida interna da Igreja (ad
intra) e a vida da Igreja nas suas relações com outras realidades (ad extra). O segundo propôs que
o Concílio se ocupasse de um único tema: a Igreja. O tema “Igreja” deveria ser discutido sob três
aspectos: o mistério da Igreja; a missão da Igreja; as relações da Igreja com outros grupos.
O concilio queria superar a eclesiologia societária, típica do II milênio. E nisso foi grande a discussão
do esquema “De Ecclesia”, com muitos pontos definitivamente abandonados, sepultandose a eclesiologia pós-tridentina. Outras finalidades do Concílio seriam a renovação da Igreja, a
promoção da unidade entre os cristãos e a posição da Igreja no mundo contemporâneo.
Os ensinamentos da Lumen gentium só podem ser adequadamente identificados comparandoos com a doutrina eclesiológica católica pré-conciliar. São três transições fundamentais na
construção da nova autocompreensão eclesial: de “sociedade” para “mistério”; de “sociedade
desigual” para “povo de Deus”; de “sociedade perfeita” para “sacramento universal de salvação”. A
partir dessas três transições básicas, é possível alargar o espaço para outras e compreender todas
as demais matérias aí abordadas.
PALAVRAS CHAVE: Concilio, Lumen Gentium, esquema preparatório, igreja, povo de Deus,
episcopado.
ABSTRACT: The text proposes to retell the genesis of essential of Lumen Gentium, emphasizing
the continuity and discontinuity in the effort of renewal of ecclesiology. Among many of the
beginning, it should be noted the crucial contributions of cardinal of Brussels, Suenens and
* Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), professor adjunto na Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (Curitiba), professor visitante do Instituto Teológico-Pastoral do CELAM (Bogotá,
Colômbia) e da Universidade Pontifícia do México (Ciudad de México).
Montini, archbishop of Miao. The first proposed a methodology that takes into account the
internal life of the Church (ad intra) and the life of the Church in its relations with other realities (ad
extra) The second proposed that the Council to deal with a single theme: the Church. The theme
“Church” should be discussed under three aspects: the mystery of the Church; the mission of the
Church; the Church’s relations with other groups.
The second wanted to overcome the corporate ecclesiology, typical of the II millennium. And it
was great the discussion of the diagram “Ecclesia”, with many points finally abandoned, burying
the ecclesiology post-tridentine. Other purposes of the second would be the renewal of the
Church, the promotion of Christian unity and the position of the Church in the modern world.
The teaching of Lumen gentium can only be properly identified by comparing them with the
Catholic ecclesiological doctrine pre-conciliar. There are three fundamental transitions in the
construction of the new ecclesial understanding: “society” to “mystery”; of “unequal society” for
“people of God”; of “perfect society” to “universal sacrament of salvation”. From these three basic
transitions, is it possible to extend the space for other and understand all the other matters raised
in it.
KEYWORDS: Second, Lumen Gentium, preparatory regimen, church, God’s people, bishops
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Neste ano em que se comemoram os 50 anos da inauguração, pelo papa
João XXIII, do Concílio Vaticano II (1962), o evento e os textos conciliares estão
sendo analisados sob os mais diversos pontos de vista, o que, certamente, nos
ajudará a compreender melhor seu espírito, seu ensinamento e seu alcance.
Neste modesto trabalho sobre a Constituição Dogmática “Lumen gentium”,
escolhemos o caminho da abordagem histórica.
A gênese de um texto, sobretudo se produzido coletivamente, é
extremamente útil para sua compreensão e para se estabelecer o alcance de
suas afirmações. “Distingue tempora et concordabis jura”, dizia um antigo aforismo,
que tomamos a liberdade de transpor do terreno da jurisprudência para o da
hermenêutica conciliar.
A reconstrução genética é imprescindível no caso dos documentos
do Vaticano II, que, segundo o papa que o convocou – e nisto foi claramente
acompanhado pela maioria dos Padres conciliares – deveria permitir à Igreja dar
“um salto à frente”, “como a nossa época exige”,1 graças a uma mais profunda e
renovada compreensão de si e em vista de uma nova relação com a sociedade e
com a história contemporâneas.
Restringimo-nos ao essencial da gênese da “Lumen gentium”, que
acreditamos, porém, seja suficiente para se perceber sua profunda continuidade
com a grande tradição bíblica, patrística, teológica e magisterial, mas, não menos,
sua inegável descontinuidade com certas tendências, que foram se afirmando,
sobretudo a partir da separação do Oriente e depois da crise berengariana, e
1
Cf. JOÃO XXIII, Discorso di Papa Giovanni XXIII nella solene apertura del Concilio, em: EV, 55*.
que conquistaram indevido direito à cidadania em largos e importantes estratos
eclesiais no segundo milênio.
O esforço que a renovação da eclesiologia fez, desde o início do século
XIX, mas que só pode impor-se à consciência eclesial na segunda metade do
século XX, articula fundamentalmente dois movimentos. O primeiro recebeu o
nome de “refontalização” (“ressourcement”): voltar às fontes bíblicas e patrísticas
para resgatar a consciência que a Igreja tinha de si nos documentos fundadores.
O segundo recebeu o nome de “atualização” (o termo italiano “aggiornamento”
usado por João XXIII, na verdade, diz muito mais): ressignificar, na teoria e na
prática, aquela autocompreensão da Igreja e de sua missão para os próprios fiéis,
em primeiro lugar, e, depois, para os homens e as mulheres contemporâneos. A
grande tarefa do Concílio consistiu justamente em voltar ao Novo Testamento e
aos Santos Padres para permitir que a Igreja, afastando-se de uma tradição mais
recente, que, “grosso modo”, corresponde à evolução do segundo milênio, se
apresentasse acessível, compreensível e significativa ao mundo moderno e aos
homens e mulheres de hoje.
Ampla consulta e esquemas preparatórios
A partir das sugestões vindas, com toda a liberdade,2 dos mais diversos
ambientes eclesiais, ascomissões preparatóriasdo ConcílioVaticano II, organizadas
praticamente a partir das sagradas congregações romanas, elaboraram 72
esquemas para serem submetidos ao concílio.
Durante a primeira sessão, que se estendeu de 11 de outubro de 1962
a 8 de dezembro de 1962, a congregação geral se reuniu 36 vezes, houve 640
intervenções e 33 votações.
Cinco esquemas que vieram da fase preparatória – liturgia, revelação,
meios de comunicação, Igrejas orientais, Igreja – foram discutidos em plenário e,
um após outro, com exceção do de liturgia, rejeitados.
O Concílio sofria de alguns handicaps graves. Compreensíveis, se
olharmos as coisas do ponto de vista do Papa, que queria que os bispos
construíssem o concilio; incompreensíveis, se considerarmos a responsabilidade
dos órgãos imediatamente encarregados do andamento da assembleia: falta de
planejamento; nenhum cronograma segundo o qual os esquemas devessem
2 João XXIII mandou que se realizasse ampla pesquisa em vista do Concílio, ouvindo – além de
inúmeras instituições – bispos, teólogos, religiosos, presbíteros, leigos, não a partir de um questionário, mas deixando total liberdade, para que cada um expressasse espontaneamente tudo o
que desejava que o Concílio tratasse.
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ser debatidos, revistos ou promulgados; nenhuma visão de conjunto para o
andamento do Concílio. Benignamente, atribuía-se essa situação à fase de
aquecimento do Concílio; na verdade, o Concílio vivia sua primeira e fundamental
crise, que colocava em risco sua própria concepção e tarefa. Além do mais, a Cúria
– e o próprio Papa – acreditava num concílio breve; os bispos vindos de fora da
Itália, porém, sabiam, desde o inicio, que o Concílio seria longo e difícil. 3
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Entre esses bispos, estava o cardeal Suenens, que, na quaresma de 1962,
havia escrito uma carta pastoral (sobre o Concílio), à sua diocese, sobre “como
pode a Igreja responder às perguntas do nosso tempo”, que o Papa veio a conhecer.
Mostrando-se de pleno acordo com as perspectivas apontadas pelo arcebispo
de Malines-Bruxelas, João XXIII lhe pediu um memorando com suas propostas a
respeito do andamento, organização e finalidades do Concílio. Na primeira parte
de sua resposta, Suenens colocou o que o Concílio não devia ser (idem nolle); na
segunda, o que devia ser e o que devia fazer (idem velle). 4 João XXIII apoiou-se
nesse texto para a célebre rádio mensagem de 11 de setembro de 1962 e para o
próprio Discurso inaugural. A ideia central de Suenens é que o Concílio deveria
organizar o seu trabalho em torno a dois polos em tensão: a vida interna da Igreja
(ad intra) e a vida da Igreja nas suas relações com outras realidades (ad extra).
Decisiva também foi a participação do arcebispo de Milão, Giovanni
Battista Montini, futuro Paulo VI. Uma semana depois da abertura do Concílio,
Montini escreveu a João XXIII, dizendo-se preocupado com o ulterior andamento
do Concílio, e propondo que o Concílio se ocupasse de um único tema: a Igreja.
O tema “Igreja” deveria ser discutido, segundo o arcebispo de Milão, sob três
aspectos: o mistério da Igreja; a missão da Igreja; as relações da Igreja com outros
grupos. A arquitetura do Concílio – distribuída, depois, nas 16 constituições,
decretos e declarações – está, com efeito, toda aqui, nas propostas desses dois
grandes cardeais.
Em novembro do mesmo ano, o Papa pediu-lhes que apresentassem
suas propostas ao Concílio. No dia 4, o cardeal belga – no contexto da discussão
do esquema “De Ecclesia”, elaborado pela comissão preparatória De doctrina
fidei et morum, precursora da sucessiva Comissão Teológica do Concílio e
hierarquicamente dependente do Santo Ofício – propôs que o Concílio,
procurando caminhos para a atuação da Igreja no mundo de hoje, assumisse o
tema da Igreja “lumen gentium”, como tema central e ordenador de todos os seus
trabalhos. O primeiro passo deveria ser a busca da consciência que a Igreja tem do
3
4
“Apareceram assim duas imagens diversas do Concílio. De um lado, um concílio rápido (algumas
semanas) para a rápida aprovação dos 72 esquemas preparatórios, e do outro, um concílio com
responsabilidade própria, um “novo pentecostes”, que o episcopado deveria construir dia após
dia na liberdade e na pesquisa” (cf. G. ALBERIGO, O Vaticano II e sua história, Op. cit., p. 15).
Cf. SALÚSTIO, A conjuração de Catilina XX, 4.
seu mistério, respondendo à pergunta que o mundo lhe faz: “Igreja, o que dizes
de ti mesma?”; a partir daí, abrir o diálogo com o mundo sobre os seus graves e
urgentes problemas.
No dia seguinte, Montini sugere que todas as questões se articulem «em
tomo de dois pontos: o que é (quid est) e o que faz (quid agis) a Igreja? Além disso,
insiste em que, na apresentação do mistério da Igreja, se dê maior ênfase a Cristo,
uma vez que sem Ele ela nada pode, dado que é uma sociedade fundada por
Cristo, a continuação de Cristo e o instrumento através do qual Ele age e salva
hoje o mundo. 5 Na verdade, é a primeira vez que Montini, o futuro papa, fala
à Congregação geral. Os bispos ouvem-no em religioso silêncio: “Até a pouco
tempo atrás, o tema da Igreja parecia restrito ao poder do Papa; atualmente, ele se
estende ao episcopado, aos religiosos, ao inteiro corpo da Igreja. Antes, falava-se,
sobretudo, dos direitos da Igreja como que transpondo à definição da sociedade
perfeita os elementos constitutivos da sociedade civil; hoje, se descobrem na Igreja
outras realidades (os carismas de graça e santidade, por exemplo) que as noções
puramente jurídicas não são capazes de definir. Antes, nós nos interessávamos
particularmente da história externa da Igreja; hoje, nós nos detemos igualmente
na realidade interior engendrada pela presença escondida do Cristo neIa”. 6
Essas duas intervenções tiveram um peso decisivo na história do Vaticano
II. Balizaram não só a discussão sobre a constituição“De Ecclesia”, mas a arquitetura
de toda a obra conciliar. Como já acenamos, todos os documentos do Concílio,
com efeito, giram em tomo desses dois eixos – Igreja “ad intra” e Igreja “ad extra”
– cujos símbolos maiores são Lumen gentium e Gaudium e spes, respectivamente.
Ao redor do primeiro eixo, giram Lumen gentium, Dei Verbum, Sacrosanctum
Concilium (constituições), Orientalium Ecclesiarum, Unitatis redintegratio, Christus
Dominus, Presbyterorum ordinis, Optatam totius, Apostolicam actuositatem e
Perfectae caritatis (decretos). Em tomo do segundo eixo, giram Gaudium et
spes (constituição), Gravissimum educationis, Dignitatis humanae, Nostra aetate
(declarações), Ad gentes e Inter mirifica (decretos).
No que interessa especificamente à Lumen gentium, essas novas
perspectivas começaram a delinear-se num texto que, mais adiante, viria a ser
conhecido como “esquema Philips”. Esse documento, inicialmente intitulado “Ce
que nous attendons et espérons de la constitution dogmatique sur l’église”, redigido
a pedido de vários Padres, foi entregue (em francês e em latim) à secretaria da
Comissão Central no dia 12 de novembro e feito circular entre os Padres antes
que começasse a discussão do esquema preparatório, que, por sua desordem
5
6
Cf. A. ACERBI, Due ecclesiologie, Op. cit., p. 153.
L’Osservatore Romano, 10 dicembre 1962, p. 6.
45
temática e sua concepção prevalentemente jurídica e institucional, foi – como,
aliás, todos os outros esquemas – recusado pelo Concílio. 7
A civilizada rejeição do Esquema “De Ecclesia”
46
Ainda na fase preparatória dos trabalhos conciliares, levantaram-se várias
críticas à visão unilateralmente jurídica do esquema preparatório “De Ecclesia”
ou se sugeria uma nova perspectiva, ou ambas as coisas. Na Comissão Central,
alguns não só criticavam a identificação unívoca entre Igreja católica e Corpo
místico, 8 crítica que não foi acolhida pela Comissão Teológica 9, mas sugeriam um
alargamento do discurso, pedindo que o capítulo I abraçasse todos os estádios
da existência da Igreja. Chegou-se mesmo a pedir que a consideração da Igreja
partisse não do aspecto pelo qual ela é uma “sociedade”, mas daquele pelo qual
ela é uma “comunhão” de graça em Cristo’ 10. O pedido foi recusado pela Comissão
Teológica, afirmando que o próprio da Igreja não é constituído pela comunhão
de graça, mas a união de graça com Cristo “in organismo heterogeneo juridico
sociali” 11. Ou seja, a concepção era ainda aquela da Mystici corporis (1943), que,
a seu modo - era um esclarecimento de Tromp, o principal redator da encíclica “reintroduzia o aspecto de graça e carismas na própria realidade do corpo social.
Mas o fazia satisfazendo a uma solicitação do Pe. Przywara: não definir a Igreja
em termos de corpo místico, mas o corpo místico em termos de Igreja, isto é,
de sociedade...” 12. Em seu artigo para a Zeitschrift für Aszese und Mystik (Revista
de Ascética e Mística), Przywara taxava a literatura teológica alemã anterior à
Mystici corporis (29.6.l943) de anti-intelectualista, antijurídica, mística, organicista,
biológica, feminina, usw.
No Concílio, a discussão – brilhantemente elevada e, ao mesmo tempo,
severamente critica, como anotou a própria mídia – do esquema De Ecclesia,
redigido pelo secretário da supramencionada comissão preparatória, o Pe.
Sebastião Tromp, SJ – antigo professor na Gregoriana, que fora, à época de Pio
7
Cf. IBIDEM; F. GEREMIA, I primi due capitoli della “Lumen gentium”. Genesi ed elaborazione del
testo conciliare, Edizioni “Marianum”, Roma, 1971, pp. 50ss.
8 Assim, A. Liénart (cf. Acta praeparatoria, Op. cit., pp. 997-998), P. E. Léger (cf. IBIDEM, pp. 10021003), B. Yago (cf. IBIDEM, p. 1022) e Th. Cooray (cf. IBIDEM, p.1035) - o que não foi aceito pela
Comissão teológica.
9 Cf. F. GEREMIA, l primi due capitoli della “Lumen gentium”. Genesi ed elaborazione del testo conciliare, Edizioni “Marianum”, Roma, 1971, p. 29.
10 Nessa linha, pronunciaram-se P. E. Léger (Acta praeparatoria, Op. cit., pp. 1002-1003), F. König
(pp. 1004-1006), J. Döpfner (pp. 1007-1008), A. Bea (pp. 1012-1013), D. Hurley (pp. 1018-1020).
11 Cf. F. GEREMIA, I primi due capitoli della “Lumen gentium”, Op. cit., p. 29.
12 Y. M.-J. CONGAR, Le Concile du Vatican II, Op. cit., p. 10; cf. E. PRZYWARA, Corpus Christi mysticum. Eine Bilanz, em: “Zetschrift für Aszese und Mystik”, 15 (1940), 197-215.
XII, como já referimos, o principal redator da Mystici corporis (1943) – não deixou
dúvidas: o Concílio queria superar a eclesiologia societária, típica do II milênio.
A matéria do esquema “De Ecclesia” distribuía-se por doze capítulos, com
os seguintes títulos: 1) A natureza da Igreja militante; 2) Os membros da Igreja e a
necessidade salvífica da Igreja; 3) O episcopado como sumo grau do sacramento
da ordem e o sacerdócio; 4) Os bispos residenciais; 5) Os estados de perfeição
evangélica; 6) Os leigos; 7) O magistério da Igreja; 8) Autoridade e obediência
na Igreja; 9) As relações entre Igreja e Estado; 10) A necessidade de anunciar o
Evangelho a todos os povos e em todo o mundo; 11) O ecumenismo; 12) A Virgem
Maria, mãe de Deus e mãe dos homens (apêndice).
O Esquema – na verdade, um texto mal articulado que se estendia por
123 longas páginas – parecia mais um alargamento do Vaticano I (algo, em suma,
meramente continuativo e quantitativo), ou seja, o homogêneo complemento
do projeto eclesiológico que, por causa da Guerra franco-alemã e da tomada de
Roma pelos italianos (1870), o “Concílio do papa” não conseguira concluir. Não
correspondia nem de longe à intenção de“aggiornamento” pretendido pelo papa
que convocara o Concílio Vaticano “II”, justamente para deixar claro que este não
seria uma continuação do Vaticano I.
A discussão do Esquema – todos o reconhecem – foi das mais sérias, não
tendo o Vaticano II atingido jamais o mesmo nível de profundidade teológica.
Choveram críticas de todos os lados. Passemo-las rapidamente em revista para
podermos apreender, assim, as concepções eclesiológicas em jogo e a concepção
de Igreja que se perfilava no horizonte conciliar e que acabaria sendo assumida
pelos Padres.
O esquema – diziam seus críticos – insiste no lado institucional da Igreja em
prejuízo de seu lado místico: o mistério da Igreja não pode ser esvaziado mediante
fórmulas redutivas (Liénart, Máximos IV Saigh, Lercaro, Ritter, Suenens, Hengsbach,
Frings, Marty, Montini, König, Kozlowiecki). É preciso propor uma síntese em que
apareça que a Igreja é o mistério e o sacramento de Cristo glorificado, que rege e
vivifica a Igreja mediante os carismas e os ministérios (Charue, Schick, Tatsuo Doi
e outros). Deve ficar claro que, na Igreja, o aparato institucional está subordinado
ao anúncio do Evangelho e à comunhão de vida em Cristo (Barrachina Estevan,
Ancel, Lercaro). Para tanto, é necessário acolher as riquezas do pensamento dos
Padres, também os orientais, além da Escritura e, ao mesmo tempo, abrir-se às
novas perspectivas eclesiológicas (Ghattas). O esquema identifica a Igreja com
a Igreja visível e esta com os membros que lhe são canonicamente submetidos,
com o resultado que não se fala senão da Igreja católica romana (Ghattas). Nesta
linha, a forma (bellarminiana) de apresentar a doutrina do corpo místico é criticada
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por ser muito jurídica (Boillon, Frings, Ghattas) e por identificar o corpo místico
com a Igreja católica e solucionar de forma equivocada a questão dos membros
(Döpfner, Garrone, Liénart, Reetz, Cooray, Seper, Marty, Tatsuo Doi, Martin). É
necessário mostrar as relações da Igreja com a Trindade (Guano), especialmente
com o Espírito Santo (Palacios, Daem, Veniat, König, Kozlowiecki, Florit, Petit, Beck).
Não se pode transcurar a dimensão escatológica da Igreja (Alfrink, Tenhumberg,
Döpfner, Richaud).
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O esquema – continuavam – trata quase que tão somente da hierarquia.
Mas é preciso dar espaço à noção de “povo de Deus”, que, em sua totalidade,
exercita a maternidade espiritual, e em cujo seio a hierarquia encontra a sua razão
de ser, como serviço. Toda a Igreja é povo de Deus, tema que deve ser tratado
antes da hierarquia (Döpfner, Richaud, König, Schoiswohl, Seper). Todo o povo
fiel é ativo na conservação e na inteligência da fé (König, Ritter). A Igreja é mãe
não enquanto se distingue dos fiéis, mas, na verdade, “mãe são todos os fiéis
enquanto, com a sua colaboração (ação e paixão), contribuem à vida sobrenatural
dos outros” (Seper).
O episcopado é tratado de maneira mais jurídica que teológica, alertavam
esses Padres. A matéria devia partir do colégio episcopal (Montini, Tatsuo
Doi, Charue). O episcopado precisa ser relacionado também com a Igreja local
(Toutoungy, Rusch). Não se pode dissociar poder de ordem e poder de jurisdição.
O primado só é inteligível na perspectiva da colegialidade. Reagindo às críticas,
Tromp argumentou que alguns Padres conciliares exprimiram a opinião de que
o regime da Igreja não é monárquico, mas colegial 13. Alguns, de fato, disseram
que o colégio, com e sob o papa, rege a Igreja em modo ordinário e não só
extraordinário.
Não faltou também quem viesse em defesa do Esquema, o que, porém, foi
feito só com argumentos de autoridade. O cardeal Ruffini, por exemplo, chegou
a propor um roteiro (claro, seguro, enxuto) para a reelaboração do esquema: 1) a
natureza e o fim da Igreja; 2) os membros da Igreja; 3) o poder de ordem; 4) o poder
de jurisdição; 5) o magistério; 6) a obediência na Igreja; 7) a Igreja e a sociedade
civil. Para isso, porém, não era necessário convocar Tromp, muito menos, um
concílio; Billot já desenvolvera esses temas com maior brilho e competência nas
décadas que se seguiram ao Vaticano I 14! O eminente arcebispo de Palermo não
se dava conta de que o defeito fundamental do “schema” não era este ou aquele
13 Cf. S. TROMP, Relatio de observationibus factis a patribus concilii circa primum schema constitutionis de ecclesia, C II 3, p. 18.
14 L. BILLOT, De Ecclesia Christi sive continuatio theologiae de Verbo lncarnato. Tomus I. De credibililate Ecclesiae intima et eius constitutione, PUG. Roma, 19275; IDEM, De Ecclesia Christi sive continuatio theologiae de Verbo Incarnato. Tomus II. De habitudine Ecclesiae ad civilem societatem.
l9222. Só tenho a honra de ter o primeiro.
conteúdo, ou a ordenação dos temas, mas o fato de não corresponder à finalidade
que o papa João fixara para o Concílio, com a qual a maioria dos Padres conciliares
estava se mostrando vistosamente de acordo.
Não obstante as reações cautelosas de Ottaviani e as patéticas ameaças
de Biagio Musto, bispo de Aquino, nada salvou o Esquema, que não obteve o
consenso suficiente para servir de base para a ulterior discussão e, por isso, foi
enviado de volta, sem nenhuma decisão formal, para se evitar mais uma clamorosa
derrota da prestigiosa Comissão Teológica. Era o sepultamento, com direito a
exéquias – de primeira classe – e tudo o mais, da eclesiologia pós-tridentina!
A afirmação de uma nova eclesiologia
No segundo período conciliar, de 29 de setembro a 4 de dezembro de 1963,
já sob o pontificado de Paulo VI, o tema da Igreja foi imediatamente retomado. No
discurso de abertura, o Papa declarou que a Constituição sobre a Igreja deveria
constituir o foco daquele período, e que outras finalidades do Concílio seriam a
renovação da Igreja, a promoção da unidade entre os cristãos e a posição da Igreja
no mundo contemporâneo. O Papa insistiu particularmente na doutrina sobre o
episcopado e sobre a relação episcopado-primado, exigida pela incompleteza do
Vaticano I15.
Os Padres passaram a trabalhar sobre um esquema totalmente novo – o
chamado“esquema Philips”, também conhecido como“esquema belga”, assumido
pela Comissão Teológica – que tinha apenas quatro capítulos: l) o mistério da
Igreja; 2) a estrutura hierárquica da Igreja e, em particular, o episcopado; 3) o povo
de Deus e, especialmente, os leigos; 4) a vocação à santidade na Igreja.
Não muito tempo depois, os cardeais Frings e Suenens propuseram uma
alteração no esquema, que se revelou, na verdade, uma‘virada copernicana’: tudo
o que, no capítulo III, se referia a todos os membros do povo de Deus, deveria
ser deslocado para depois do capítulo I e antes do capítulo II, dando origem, na
verdade, a um novo capítulo II só sobre o “povo de Deus”.
De acordo com essa proposta, fala-se, primeiro, do mistério da Igreja e,
depois, de sua manifestação histórica e social, para, só mais adiante, considerar
os vários grupos dentro da Igreja: bispos, presbíteros, diáconos; leigos; religiosos
(nesta ordem). Antes de serem grupos distintos da Igreja, são todos membros do
povo de Deus. O capítulo próprio dos religiosos será feito preceder, ao longo dos
debates, por um capítulo sobre a “vocação universal à santidade”, e o todo será
15 Cf. PAULO VI, Discurso de Abertura da Terceira Sessão, em: AAS 56 (1964), pp. 805-816.
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concluído por um capítulo novo sobre o“caráter escatológico da Igreja peregrina”,
mostrando que tudo e todos estão a caminho e, só na união definitiva de todos
os santos com Deus e em Deus, este caminho encontrará o seu fim. Depois de
muitas discussões, também um pequeno, mas extremamente bem articulado
tratado sobre Maria, cuidadosamente preparado para ser um documento à parte,
encontrará o seu lugar, não sem algumas modificações, no último capítulo da
Constituição sobre a Igreja.
Apesar dos sucessivos acalorados debates em torno de algumas questões
(o episcopado, a posição dos religiosos e a seção mariológica), o delineamento
de fundo do Esquema nunca mais foi colocado seriamente em discussão. As
inserções, porém, de novos tópicos elevaram de quatro para oito os seus capítulos.
Por essas e outras razões, não foi possível aprovar e promulgar a matéria no
segundo período. A“Lumen gentium” só foi aprovada no terceiro período conciliar,
que foi de 14 de setembro a 21 de novembro de 1964, junto com os decretos –
essencialmente eclesiológicos – sobre o ecumenismo e sobre as Igrejas orientais.
50
Depois das dificuldades em tomo do esquema preparatório (primeiro
período), elegantemente rejeitado pelos Padres conciliares, o terceiro período foi
o mais crítico do Concílio, mesmo quando tudo funcionava como uma máquina
bem azeitada. Foi quando a minoria conciliar, vendo que não conseguiria afirmarse nem com a apresentação de esquemas nem com emendas nem com manobras
procedurais, se posicionou atrás do papa, o que era correto em temos de direito
canônico, mas questionável, sobretudo diante das prerrogativas do episcopado,
que o Concílio vinha resgatando. Os resultados foram choques pontuais entre o
papa e o Concílio, cujas cicatrizes estão expostas nos próprios textos conciliares16.
Interessa-nos especialmente a questão da ‘Nota explicativa prévia’, a
primeira interpretação‘autêntica’ do Vaticano II. O III capítulo (sobre a constituição
hierárquica da Igreja), o mais discutido, fora subdividido em 39 parágrafos, que
deviam ser voltados individualmente («sim» ou «não»). O foco das tensões era a
16 “Para Dossetti - por um breve, mas decisivo momento, secretário dos moderadores - a recusa
de Paulo VI de acolher o pedido de beatificar por aclamação da assembleia o predecessor constitui uma ferida incurável para o Concílio. Vice-versa, para a minoria conciliar a aprovação dos
cinco quesitos orientadores que definem a sacramentalidade do episcopado e a colegialidade
como principio ordenador da eclesiologia é temida como o fim da fé latina. Para muitos padres
conciliares - e sem dúvida para quase todos os jornalistas e diplomatas presentes em Roma - a
“semana negra” de I964, na qual se breca a liberdade religiosa, se desfalca o De Oecumenismo, se
introduz à revelia do concilio a quase-definição de Maria como mãe da Igreja e se proclama, com
a Nota explicativa praevia, uma interpretação limitativa da constituição sobre a Igreja, esse conjunto de decisões representa um enfarte irreversível do Vaticano II, e não é por acaso que o mais
brilhante consultor do cardeal Frings pense em gestos extremos (como a rejeição da Lumen
gentium em sinal de protesto contra Paulo VI) para marcar uma passagem terrível” (A. MELLONI,
O que foi o Vaticano II? Breve guia para os juízos sobre o concílio, em: Concilium 312 (2005/4), p.
36). O brilhante assessor do cardeal Frings era o jovem teólogo J. Ratzinger, atual Bento XVI.
doutrina sobre o colégio episcopal e a sua corresponsabilidade em relação à Igreja
universal. A minoria temia pelo primado do papa. Nas votações, os «nãos» subiram
a cerca de 300 votos, o que mostrava a extrema contrariedade da minoria. Esta,
porém, ao invés de aceitar os resultados, apelou ao Papa. No dia 16 de novembro
de 1964 – apenas 3 dias antes da votação e aprovação final da Lumen gentium –
foi entregue aos Padres um volumoso caderno com propostas de mudanças nos
capítulos III-VIII. Este volume iniciava estranhamente com uma ‘Nota explicativa
prévia’, que tortuosamente excluía qualquer redução do primado papal por parte
da doutrina do colégio episcopal tratada no capítulo III da futura “Lumen gentium”.
O secretário geral do Concílio, Pericle Felici, explicou que a ‘Nota’ fora submetida
à Comissão Teológica, mas que vinha de uma “autoridade superior”, que só podia
ser o Papa. Por duas vezes, Felici explicou que a‘Nota’não fazia parte do texto, mas
que o texto devia ser interpretado de acordo com a Nota. Comenta um estudioso
do Vaticano II:“Do ponto de vista do conteúdo, não há nenhuma contradição entre
as afirmações da constituição e as da Nota; essa, de fato, significa, de qualquer
maneira, no interior daquela relação difícil de equilibrar entre os bispos e o papa,
uma clara acentuação quando o papa quiser tirar proveito. Mas o Papa o queria
de verdade?”17.
A votação global da Lumen gentium deu-se, finalmente, na 126ª
Congregação Geral, no dia 19 de novembro de 1964, estando presentes 2.145
Padres conciliares. O texto foi aprovado por 2.134 placet, tendo havido 10 non
placet e um voto nulo. No dia 21 de novembro, Paulo VI o promulgou: “todo o
conjunto e cada um dos pontos que foram enunciados nesta Constituição
dogmática pareceram bem aos Padres do Sacrossanto Concílio. E Nós, pelo Poder
Apostólico por Cristo a Nós confiado, juntamente com os Veneráveis Padres, no
Espírito Santo a aprovamos, decretamos e estatuímos. Ainda ordenamos que o
que foi assim determinado em Concílio seja promulgado para a glória de Deus.”
Conclusão
“Aideia do Concílio não é o fruto de longasconsiderações, mas urna espécie
de flor espontânea de uma inesperada primavera”! A decisão‘carismática’ de João
XXIII materializou-se: do solo fértil da Igreja, pela força do alto, desabrochou a
flor do Concílio como de imprevista primavera. Na verdade, porém, o Concílio
veio também ‘de baixo’ e foi longamente preparado por todo um processo longo
e sofrido de volta às fontes e de busca de renovação: movimentos ecumênico,
bíblico, litúrgico, patrístico, do apostolado leigo, comunitário, missionário, etc.
17 O. H. PESCH, II Concilio Vaticano Secondo, Op. cit., p. 93. À época, o jovem teólogo Ratzinger,
assessor do cardeal Frings, de Colônia, redigiu um primoroso texto, no qual aponta pelos menos
três impropriedades da Nota (cf. J. RATZINGER, A colegialidade do bispos. Desenvolvimento teológico, em: G. BARAÚNA (ed.), A Igreja do Vaticano II, Vozes, Petrópolis, 1965, pp. 780ss.).
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João XXIII não pôde ver a flor que prenunciava a primavera. Apenas,
como Moisés sobre o Nebo, contemplou-a ao longe, envolta em névoa (cf.
Dt 34). Acostumado, porém, a viver como se visse o invisível (cf. Hb 11,27), ele
a vislumbrou e, no leito de morte, pode dizer, como que em testamento: “O
Evangelho não mudou, nós é que começamos a entendê-lo melhor”.
O Concílio foi isso: a busca do Evangelho, para ouvi-lo sempre de novo,
para ouvi-lo com ouvidos novos, para vivê-lo novo e melhor. Toda vez que a
Igreja se debruça sobre si própria, a finalidade é a mesma: ouvir de novo o que o
Evangelho fala da Igreja e, sobretudo, o que, nos“sinais dos tempos”, o Evangelho
fala à Igreja.
O Vaticano II foi um «concílio da Igreja sobre a Igreja», Igreja finalmente
“mundial” (Rahner). Dispôs-se a responder fundamentalmente a duas perguntas:
«Igreja, o quê és?» e «Igreja, o quê fazes?». E, em torno desses dois pilares, dispôs
toda a obra conciliar.
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Sempre foi importante conhecer o itinerário da elaboração de um
documento eclesial: pré-história, história, história dos efeitos. No caso da Lumen
gentium – esperamos tê-lo deixado claro – isso é essencial. O abandono do
esquema De Ecclesia vindo da fase preparatória, a entrada do “Esquema belga”,
a criação de uma seção própria sobre o Povo de Deus, o deslocamento da seção
sobre o Povo de Deus para imediatamente depois do capítulo sobre o mistério
da Igreja, a adição de novos capítulos até se chegar à estrutura atual da Lumen
gentium, incorporando e veiculando novos conceitos, tendências e perspectivas,
tudo isso tem que ser levado em conta na leitura da Lumen gentium.
Há um antes – a eclesiologia societária, visibilista, dicotômica, juridicista
– e um depois – uma eclesiologia mistérico-comunional, uma eclesiologia de
totalidade, uma eclesiologia que vê a Igreja como sacramento de salvação e
de comunhão, imersa no mundo, mas transcendente a ele, a serviço do Reino
na história enquanto o espera na glória, a exemplo e no seguimento do seu
Senhor, que percorria “as aldeias e cidades, ensinando nas sinagogas dos judeus,
anunciando o reino de Deus e curando todo tipo de doença e enfermidade do
povo” (Mt 4,23).
Os ensinamentos da Lumen gentium só podem ser adequadamente
identificados comparando-os com a doutrina eclesiológica católica pré-conciliar.
A atenção a esta última é absolutamente indispensável para enuclear aqueles
desenvolvimentos eclesiológicos que desembocaram no Concílio, seja que
tenham sido aprovados, seja que tenham sido rejeitados, seja que, por causa dos
compromissos, à primeira vista (mas só à primeira vista!), não se sabe o que os
Padres conciliares efetivamente queriam.
É claro que é possível ler e entender e tirar algum proveito da Lumen
gentium sem usar este procedimento, mas não é possível lê-la e entendê-la
adequada, formal e cabalmente sem estabelecer esta relação dialética com a
eclesiologia que a precedeu.
Este movimento transicional é perceptível quer nas discussões nas
comissões quer nas intervenções nas congregações gerais, tanto nas votações
nas comissões quanto nas votações em plenário, e, depois da votação final e da
promulgação, está como que fixado no texto da Lumen gentium. Por isso, o sentido
da Constituição como um todo e o grau de vinculação de cada afirmação nela
expressa podem-se inferir unicamente olhando para a sua pré-história e para o
processo de discussão conciliar, com todos os seus ingredientes, procedimentos e
compromissos (sobretudo a “justaposição de teses”), que deixaram marcas claras
no texto atual.
Se fôssemos analisar os conteúdos, iríamos perceber que Lumen gentium
– como demonstrou Congar em brilhante artigo 18 – operou três transições
fundamentais na construção da nova autocompreensão eclesial: de “sociedade”
para “mistério”; de “sociedade desigual” para “povo de Deus”; de “sociedade
perfeita” para “sacramento universal de salvação”. A partir dessas três transições
básicas, é possível alargar o espaço para outras e compreender todas as demais
matérias aí abordadas 19.
Claroqueissonãoétudo. A Lumengentium teminúmerosoutrosconteúdos,
coerentes com os grandes horizontes do Concílio e com essas três transições
fundamentais. Um dos primeiros grandes exegetas da Constituição dogmática
sobre a Igreja, por exemplo, assinalava os seguintes: 1) a reintegração do mistério
da Igreja no contexto geral da história da salvação; 2) a restituição à comunidade
enquanto tal dos privilégios e da missão que uma visão exclusivamente
hierárquica da Igreja reservava a alguns; 3) a devolução da dimensão sacramental
à Igreja como seu caráter primordial; 4) a redescoberta da catolicidade da Igreja,
especialmente a noção de diversidade na unidade; 5) a tomada de consciência
da missão temporal no mundo como condição da salvação total e da unidade
do gênero humano. 20 Com isso, porém, já estamos adentrando o conteúdo do
Concílio e nos propusemos a não ir além do seu limiar.
18 Cf. Y. CONGAR, Le Concile de Vatican II. Op. cit., pp. 7ss.
19 Cf. A. J. DE ALMEIDA, Lumen gentium. A transição necessária, Paulus, São Paulo, 2000.
20 Cf. G. DEJAIFVE, L’ecclesiologia del Concilio Vaticano II, em: Facoltà Teologica Interregionale
Milano, La Scuola, Brescia, 1973, pp. 89-94.
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