Enéas Arrais -e O· EDUCAÇÃO EM DEBATE A teoria da regulação e o novo estado social de Alain Lipietz - é possível manter o parco espaço de humanização sob o capitalismo global? Resumo Este artigo analisa criticamente a obra de A1ain Lipietz (1993): Towards a new economic order, um trabalho de profundidade que busca a compreensão da natureza da presente crise social que se desenrola ao longo dos últimos trinta anos no mundo. O texto valoriza a contribuição de Lipietz para o estudo da natureza das transformações sociais, observando suas raizes no mundo da produção, sob a forma de crise do Modo de Reguiação Social (MRS) Fordista, e apresentando suas sugestões sempre com uma conotação bastante crítica e acurada. A "piece de force" de sua análise se situa na sólida estruturação econômica de seu pensamento e na grande complexidade dos cenários sociais com os quais lida. Considera-se que Lipietz, situa-se entre as maiores contribuições para o campo do materialismo histórico. Por outro lado, o texto tece a crítica às limitações patentes de seu pensamento, pela falta de consideração das categorias da totalidade e da contradição, pelo eurocentrismo arraigado em sua consideração da validade do MRS Fordista, e pela perspectiva vo1untarista como sugere a estruturação de um novo pacto social-democrata para o Estado. O texto, por fim, tece considerações sobre o papel da educação na constituição dos movimentos sociais transformadores. Palavras-Chave: fordismo, modo de regulação social, globalização capitalista, materialismo histórico, processo educativo. Abstract The regulation theory and Alan Lipietz's new social state. Is it possible to maintain the exiguous space for humanization in the global capitalism? This paper develops a critique of A1ain Lipietz work upon his book "Towards a new Economic Order ", Ris ideas are understood as a deep and comprehensive study about the social crisis of the late thirty years. The contribution of Lipietz is shown in its importance for the analysis of the embedness of the social and po1itica1 crisis in its 1inks with the economic structure, organized under Regu1ation Pacts (MSR). Lipietz is considered a major social scientist in the area of historica1 materia1ism. On the other hand, the artic1e exposes some considerations on the 1imits of Lipietz's work, main1y his misuse of the categories ot totality and contradiction, the Eurocentric character of his thought, and the vo1untary manner of the suggestion of the new social-democratic State. Finally,the paper considers the ho1e of educatioti in the constitution of social revo1utionary movements. Key words: fordism, mode ot social regu1ation, globa1ization, capita1ism, historica1 ma teria1ism , education. 1 Doutor em Educação pela UFC Professor do Departamento LABOR (Labora ono de Es udos do Trabalho e Qualificação 40 SD'JCAÇÁO E/.l de Estudos Proüssional DEP.ATE, Especializados da Faculdade da FACED-UFC. An'J u7 V I - 11'-'"49/50 - '-;005 de Educação da UFC; Coordenador do o livro de Alain Lipietz (1993): Towards a new economic order, é um trabalho que avança com profundidade na análise das mudanças de paradigmas sociais e na compreensão da natureza da presente crise social que se desenrola ao ongo dos últimos vinte a trinta anos no mundo. :'lpietz analisa as raízes e a natureza das trans-: rmações globais observando suas raízes no :::undo da produção, sob a forma de crise do _:odo de Regulação Social (MRS)Fordista, contemplando as soluções econômicas e políticas presentadas sob a perspectiva do neoliberalis_o e tecendo suas sugestões sempre com uma conctaçáo bastante crítica e acurada. A "piece de force" de sua análise se situa na sólida estruturação econômica exposta em -eu texto e na grande complexidade dos cenános sociais com os quais lida. Indubitavelmente, :=: a despeito da evidente importância teórica, . litica e social das propostas de vários autores europeus que atualmente são referência nos estudos sociais e econômicos (GORZ,SCHAFF, FFE, KURZ,JESSOP, LANE, De MASI, BONE?ELD, HOLLOWAY,entre outros), a análise de • pietz, situa-se entre as de maior contribuição para o campo do materialismo histórico, considerando a complexidade de forças e instituições enolvidas nos processos históricos, mesmo que a case de sua análise seja centrada na perspectiva o regulacionismo nacional. Reconhecer os elementos de limitação de ua análise, não significa desconhecer o bom embasamento teórico-analítico de Lipietz. Sua leitura econômica, que é sua perspectiva assumida e trabalho, se faz no campo da Teoria Regulaionista, surgida como tentativa de compreensão do enraizamento social do capitalismo, desenvolVIda a partir da análise do estabelecimento do .ordismo como Modo de Regulação Social (MRS) prevalecente nas economias capitalistas centrais da Europa e Estados Unidos. A raiz marxista esta teoria é bastante visível em seu compromisso com a idéia de progresso social, mais do que com a produtividade do capital. Esta raiz se apresenta, em Lipietz, já bastante diluída pela necessidade de concessões políticas a grupos não marxistas e anti-marxistas da "nova esquerda" francesa. A fragilidade da análise, centrada numa crítica do neoliberalismo se situa no fato de que, contraditoriamente, aceita a manutenção das reações capitalistas de produção como centro do processo social. De fato, mistura uma socioeconômica com propostas SOClaIS, e econômicas que tentam solucionar as .:l-Tadições da produção capitalista e suas cnses pe ~ recurso à boa-vontade e ao humanitarismo social, deixando intocado o cerne das relações que estabelecem o capital como centro gravitacional da dinâmica social. O aspecto mais importante do trabalho de Lipietz é sua análise socioeconômica da crise que, nos últimos trinta anos, põe em xeque o MRS Fordista. Iniciando com a descrição do "compromisso" fordista, o autor enfatiza a batalha entre os diversos paradigmas regulacionistas que competiram pela hegemonia nas sociedades ocidentais: o estalinismo, o fascismo e o fordismo. A primazia do último é considerada por Lipietz como derivada de uma conjunção de fatores sociais e históricos e da luta de classes, numa espécie de "acaso histórico". Esta perspectiva se demonstra mais complexa que os enfoques lineares que entendem um modo de produção como o desenvolvimento direto e necessário de tendências estruturais econômicas sem considerar a atuação política e as pressões sociais de grupos e classes em conflito. Um exemplo da complexidade assumida por sua análise pode ser encontrado na compreensão do caráter unificado da produção capitalista na sociedade. Lipietz desconsidera a distinção do senso-comum entre empresas privadas e estatais, focando para além disso no processo comum de reprodução do capital sob uma determinada forma de organização de trabalho: "Além do mais, nacionalização no sentido legal não implica numa mudança das relações sociais. Os trabalhadores da Renault perceberam isto desde o começo: tanto sob empregador público como privado, o Taylorismo prevaleceu" (LIPIETZ,1993, p. 7). Considera-se, em sua análise, a complexidade do paradigma societário: "Paradigma, desta forma, traz consigo a idéia de um 'núcleo comum' que aceita variações, mas dentro de determinados limites" (ídem: p. 11), ao lado da ênfase sobre a constituição conflituosa das situações históricas: "Outro grande engano é pensar que a rede de elementos regulacionistas foi instituída com a intenção de fazer o fordismo funcionar, apesar de que numa visão à posteriori, eu tenha apresentado como se assim fosse. Entretanto, os acordos coletivos e a seguridade s cial não foram conseguidos pelo fordismo. - pelos trabalhadores, conquistado pelo derrame de sangue em Adalen na Suécia, as batalhas da nova confederação sindical CI02 sob Roosevelt, o sangue de lutadores da resistência francesa e italiana, ou a tenacidade da classe trabalhadora britânica sob a Blitz" (Idem: p. 7-8).Por fim,queda identificada, pelo autor, a base "enxuta" do MRS Fordista que se torna hegemônico desde a Segunda Guerra Mundial: • Organização da produção fica melhor restrita aos grupos dominantes (empregadores, tecnocratas), pela extensão do modelo industrial Taylorista, que nega aos meros "operativos" qualquer envolvimento intelectual no processo de trabalho; • Assalariados e, em verdade, toda a população, no curso normal das coisas, terão o retorno dos ganhos de produtividade através de um conjunto de formas de regulação legislativa ou contratual, de tal forma que, com o crescimento do poder de compra pela maior produtividade, o pleno emprego fica virtualmente assegurado; • As pessoas deverão receber isto diretamento através dos salários ou através do estado de serviços e seguridade públicos (welfarestate); mas em qualquer caso na forma de dinheiro, dando acesso a bens e produtos comercializados; • Pleno emprego e o avanço no consumo de massa são os objetivos do progresso técnico e do crescimento econômico, e o papel do estado é assegurar que estes pontos sejam atingidos" (idem: p. 11). A crise do MRSFordista é percebida como vinda "de todos os lados ao mesmo tempo", com expressão tanto no plano "menor" de conflitos e revolta contra a impessoalidade e insatisfação com o trabalho, que levaram à produtividade decrescente nas economias centrais do mundo capitalista, quanto no âmbito da internacionalização de mercados e da produção, que desmantelaram o modelo regulacionista estabelecido a partir de "pactos" nacionais. O terceiro lado da crise, na análise de Lipietz,se constituiu-se na ruptura da estrutura estatal de seguridade social,a falência do Estado do bem-estar social, para o que o autor aponta a resistência contra" a onipotência da hierarquia" e "reservas acerca da solidariedade 'administrativa'"comoa motivaçãodas mudanças. Este último ponto, diferentemente dos anteriores, que derivam de uma sólida análise eco2 CIO - Congress for Industrial 42 Orgamzation é uma das centrais síndtcais nômica e social, demonstra o equívoco em que se incorre ao desconsiderar os interesses da classe capitalista na privatização dos setores públicos e estatais. A incorporação destes espaços da produção social pela dinâmica do capital privado, sob a forma de novos nichos de lucratividade e expansão, é determinante para todo o esforço de constituição de uma cultura hegemônica privatista, anti-estatizante e contrária aos serviços e instituições públicas. A parte mais provocativa e interessante de seu livro, no entanto, é a exposição de suas sugestões sobre como lidar com a crise, iniciando com uma profunda crença na constituição política e amplitude social de qualquer solução eficaz, ao lado de seu caráter radical: "A questão de soluções para a crise é fundamentalmente uma questão política, como o foi nos anos 30. Entretanto, já não é mais uma questão de escolher a política econômica correta alinhada com regras básicas existentes, mas é uma questão de estabelecimento de novas regras - novos princípios para o processo de trabalho, novas normas e novas formas de regulação. Nós precisamos concordar em torno de novas propostas e novos projetos; precisamos inventar um novo 'grande compromisso" (1993, p. 24). Karl Marx considerava que um modo de produção social alternativo (socialismo, em seu caso) deveria ser desenvolvido nos países dominantes, para que conseguisse ter sucesso e estabelecer uma base que lhe permitisse se expandir globalmente. Seguindo a mesma compreensão, Lipietz defende a idéia de que, para ser eficiente dentro do mercado mundial e da natureza internacionalizada da produção, o novo modo de regulação social deverá ser desenvolvido: "(...) sob a influência de um ou mais países dominantes. Esta hegemonia precisará estar 'revestida' de coerção (para usar o termo grarnsciano), de forma que a potência líder do mundo também aja como polícia mundial" , ou "através de um acordo unânime, e desta forma, negociado, da maioria dos países" (ídem: p. 27); e firma-se na segunda opção, reconhecendo entretanto a enorme complexidade daquele encaminhamento. Lipietz critica o liberal-produtivismo, analisando algumas das implicações sociais das políticas liberais de desmantelamento da solidariedade societária, levando à ampliação da dicotomia dos EUA EDUCAÇAO EM DEBATE. Ano 27, V I - N"" 49·SC - XOS social da distribuição de renda entre as classes, e à exclusão social pura e simples. Neste aspecto particular, desenvolve urna crítica com grande autoridade, recorrendo a dados empíricos e indo além da mera aparência dos fatos e da superfície dos processos, corno na descrição de corno a alta tecnologia foi utilizada pelo capital visando a recuperar o controle sobre o processo de trabalho: "Por que a tecnologia da informação foi utilizada desta maneira em vez de outras? Basicamente por razões políticas - a política da linha de produção e do escritório. (...) O objetivo era restabelecer a autoridade gerencial" (id. ibid: p. 38). Ele se mostra capaz, no entanto, de perceber as possibilidades contraditórias de re-incorporação do trabalho manual e intelectual, se algumas tendências específicas da organização do trabalho e do enraizamento social dos novos processos forem escolhidos e promovidos: "Em outras palavras, há sinais nos dias e na época presente, de que podemos revolver a antiga tendência do capitalismo, levada à culminância pelo Taylorismo. de separar os aspectos manuais do trabalho de seus aspectos intelectuais" (ídem: p. 39). Da mesma forma, são percebidas contradições dentro dos modelos mais avançados de organização do trabalho, corno toyotismo, kalmarianismo, e o modelo de organização centrado em pequenas firmas e terceirização. O autor distingue entre o que é socialmente progressista e realmente democrático dentro destes modelos gerenciais e organizacionais, e há elementos importantes que trazem melhorias para as condições de trabalho e produção, ao lado de estabelecer a crítica da manutenção do fordismo, quando este aparece em variados graus de conjunção com aqueles procedimentos organizacionais inovadores. De maneira mais geral, Lipietz critica õ paradigma do que ficou conhecido corno especialização flexível, denunciando-o corno aprofundamento da perspectiva capitalista da exploração do trabalho pela combinação e articulação de formas diversas de organização da produção visando o incremento da produtividade. A análise da organização da produção, desenvolvida por Lipietz, aceita implicitamente a centralidade do trabalho humano na esfera da produção e na sociedade corno um todo, estabelecendo, ao mesmo tempo, a pedra angular de suas propostas e sugestões para políticas econômicas e sociais. Estas propostas estão centradas na idéia de democracia e autonomia no local de EDUCAÇÃO EM DEBATE, trabalho, expandindo-se gradativameme ~ a sociedade corno um todo. Fica igualmente determinado, desta vez de forma explícita, o limite era que se aproxima e a fronteira que o separa da idéia de revoluções sociais: "Entretanto, corno um 'novo modelo' apresentado corno avanço, o compromisso social alternativo é herdeiro do liberalismo do século dezoito e do radicalismo, socialismo e comunismo do século dezenove. (...) E neste sentido ( o sentido histórico), o compromisso alternativo é urna 'nova esquerda'. Devido a isto ele enfrenta problemas equivalentes àqueles enfrentados pelo socialismo e pelo comunismo durante a Terceira República Francesa". E continuando a explicar o caráter progressista e progressivode sua solução,o autor acrescenta: "Claramente, qualquer aspecto novo, se ele emergir, será meramente um novo compromisso com a tendência inerente do sistema para evitar as armadilhas do liberal-produtivismo. A alternativa real no início do século vinte e um será meramente um reflexo, mas um reflexo real, dos sonhos, dos sonhos que a humanidade precisa conhecer antes de poder sonhá-tos plenamente" (Idem: p. 62-63). O desenvolvimento das contradições do capitalismo, para que um novo modo de produção surja "por dentro" das relações engendradas pelo capital, tem sido um aspecto negligenciado pela esquerda tradicional ortodoxa, tanto na academia quanto nos partidos políticos. A idéia de que a "revolução" construiria um mundo completamente novo, com relações sociais absolutamente inovadoras (que não necessitaría se desenvolver a partir de formas prefiguradas), prevaleceu de maneira quase que completa, sem deixar espaço para a compreensão que se baseia na idéia de transformações proçressivas e sucessivas, aceita como possível por arx. De fato, o novo sis ema social sugerído por Lipietz, desenvolvendo-se a partir das contradições do sistema anterior, pode ser considerado uma idéia plenamente marxista e dialética. Mais dialética, por exemplo, do que a compreensão de que as transformações econômicas e sociais possam ser engendradas a partir de idéias transplantadas de fora da realidade social, a partir, por exemplo, da ação de partidos vanguardistas. Sua idéia do efeito educativo da autonomia, democracia e participação no ambiente de trabalho sobre os trabalhadores, na prática da liderança social, é inegavelmente sensata. Ano 27 V I - N°s. 49/50 - 2005 43 o equívoco de Lipietz encontra-se claramente exposto aqui e ali, dentro do texto: "Entretanto, será apenas um passo, e somente um compromisso. Seria totalmente errado falar de auto gestão , poder dos trabalhadores ou democracia operária. Por décadas, talvez séculos, ainda por vir (Gorz diz" para sempre", mas eu penso que isto é ir longe demais I), o processo de trabalho social tornará a forma de relações de mercadorias entre firmas cuia administração (mesmo aquelas no setor estatal, ou aquelas dirigidas por trabalhadores) tornará decisões na base de mercados e previsão de lucro (...) Neste sentido, os trabalhadores estarão duplamente alienados de sua atividade - eles produzirão para o mercado, sob a direção da gerência. A associação livre das comunidades, sistematicamente discutindo o que é necessário produzir para elas próprias e precisamente corno, permanecerá para sempre um sonho utópico" (idem: p. 68). A sugestão de mudar a sociedade enquanto se mantém o núcleo das relações do capital, isto é, alienação e reificação dos trabalhadores e mercantilização das relações globais da sociedade (tanto faz se sob a forma de direção privada ou estatal), com a proeminência do trabalho abstrato sobre o trabalho concreto, é a falha fundamental de sua teoria. A manutenção destas relações onde o valor de troca é preponderante sobre o valor de uso somente faz sentido para a reprodução do capital e para a manutenção de seu controle sobre a produção social, e significa que o dinheiro, a forma fetichizada do capital, continuará a regular todas as transações, relações sociais e valores humanos. Este equívoco básico se reflete sobre toda a proposta e compromete a análise de Lipietz. Não obstante, declarar-se que é impossível fazer avançar reformas sociais sem atacar a base de seus problemas é diferente de dizer que é impossível tentar e, temporariamente, atingir urna espécie de "coexistência". A Teoria da Regulação é urna tentativa de compreender estes" acordos" sociais temporários, ou "arranjos" sociais que foram bem-sucedidos em conferir urna sobrevida ao sistema capitalista. A sobrevivência de um modo de regulação social, entretanto, é sempre temporária, por causa de sua precariedade intrínseca, pela forma como intenta "abafar" as contradições essendo sistema capitalista e sua conseqüente .S:; íêr ela permanente para a crise. Além dessa constatação derivada da análise da reprodução ampliada do capital, que leva ao permanente aprofundamento da exploração do capital sobre o trabalho, os processos históricos têm ensinado que qualquer tentativa de transformar a sociedade, estabelecendo novas relações de produção, deve construir mecanismos e práticas de controle social autônomo e democrático sobre a produção visando clara e objetivamente à destruição das relações de produção capitalistas, ou têm visto seus encaminhamentos e resoluções serem paulatinamente devorados pelo" deus" capital e seu sacerdote "mercado" corno sentido maior e definitivo da produção social, corno aconteceu no Leste Europeu. De fato, no embate de dois modelos de organização social dialeticamente opostos, aquele que se apresentar corno dominante ou hegemônico é o que prevalece. A tarefa de transformar a sociedade deverá perseguir claramente e desde o início o desenvolvimento de práticas antícapitalistas, estabelecendo urna oposição determinada contra a regra do capital, tanto reforçando as práticas de resistência quanto elaborando novas práticas e processos produtivos e sociais, em geral, centrados na produção de valor de uso, autonomia e autogestão dos coletivos de produção. É claro que tal dinâmica necessita de um permanente componente de força de vontade social, vontade política - subjetividade, sob a forma de solidariedade social, que se imponha à objetividade do caráter primitivo e bestial da cornpetitividade individual que também existe no ser humano. Esta permanente tensão dialética demandará novas formas de compromisso social, mais altos níveis de educação para a solidariedade que estejam ancorados em práticas sociais diferenciadas, reforçando-as e criando novas respostas para as novas necessidades e problemas sociais. Para dar suporte a este projeto societário novo, algumas das sugestões de Lipietz são de grande utilidade, desde que rearticuladas dentro de um quadro de ação política e social radicais. Na perspectiva de Lipietz, o crescimento do tempo livre é o primeiro passo para a multiplicação de postos de trabalho pela partilha ampliada do quantitativo social de trabalho necessário. É notável, ao longo de sua exposição, sua preocupação com o desemprego, entendendo corretamente que somente a redução das jornadas individuais de trabalho poderá minimizar a exclusão social pelo desemprego, causada pelo ~~ .. I - t1 495C - 2005 desenvolvimento tecnológico sob a lógica capitalista de extração de sobretrabalho. Num outro aspecto de suas propostas, vinculado ao anterior, o autor defende a necessidade de amplo e sólido processo educativo que prepare as pessoas de forma permanente para o trabalho. Acrescente-se, sob este aspecto, que Lipietz, contrariamente aos que defendem a Educação centrada na alta qualificação profissional como o caminho para a solução da crise social e do desemprego, distingue o papel real da educação e da qualificação profissional numa sociedade capitalista: "É criminoso, entretanto, prometer aos jovens que mais educação e treinamento vai lhes conseguir um emprego. Para cada nível dado de educação e treinamento, quanto mais a pessoa adquire conhecimentos, maior a chance de conseguir um emprego; mas se o nível se eleva, isto não significa que mais empregos estão disponíveis" (1993, p. 82). A idéia de aumento do tempo livre, e seu excelente complemento sob a forma de um "salário social", uma espécie de salário universal que permitiria a manutenção de um nível mínimo e decente de vida para todos, são propostas sociais positivas baseadas em argumentos humanistas: "Ele (o salário social) é a afirmação de que os seres humanos têm direito à vida, precisamente por serem seres humanos e não porque sejam velhos, ou mães de família, ou porque contribuíram com Impostos; porque a humanidade e a sociedade reconhecem que seus membros têm o direito específico à vida, a uma vida como a de todos os outros. É um ato de reconhecimento, não de caridade" (ídem: p. 96). O reconhecimento das contradições estabelecidas por este "salário social" num mundo regido pelas relações do capital é exposto por Lipietz num ensaio acerca da emergência do "terceiro setor". Este espaço, constituído por organizações devotadas ao serviço social, diferentemente do setor privado, por não ter o lucro como objetivo, e paralelo ao setor estatal, por servir a sociedade sob organização e controle .ndependentes do Estado, seria um dos elementos de inovação social que apontaria saídas para a questão do desempreço'. A contradição, segundo Lipietz, se manifestaria diretamente na impossibilidade de sustentar esta estrutura paralela, com seus custos conseqüentes, sob um quadro de competição internacional baseada em "dumping social": bai- xos salários e desmantelamento da segundade social. A questão, entretanto, pode ser enfocada sob outro aspecto: o que significa realmente este tal "terceiro setor", supostamente, nem público nem privado? Numa análise mais concreta, que inclua tanto o momento conjunturaIdo atual bloco histórico, sob hegemonia neoliberal e a imposição generalizada de sua lógica organizacional, como também as lutas e a resistência social e popular, a idéia do terceiro setor assume uma transparência elevada que merece uma análise própria e consistente. Lipietz conclui com a idéia de um novo pacto internacional que ordene a produção mundializada. O grande papel deste pacto, além da regulação interna de produção, consumo e seguridade social, seria conter as distorções extremas entre os diversos locus produtivos, compensando o "dumping social" com impostos sobre consumo. Com isto fecha-se o círculo que leva, sob a lógica expositiva do autor, ao novo modo de regulação social, desta vez estabelecido no plano mundial. O aspecto central de questionamento das idéias de Lipietz é a manutenção das relações de produção e reprodução de capital ao lado da mudança de eixo e foco para a questão da sobrevivência social com elevação da qualidade de vida para todos, o que implicaria a superação da sociedade de classes antagônicas engendrada pelo capital. Ao lado disto, também se põe a possibilidade de construção da vontade política que teria sucesso em impor, além do salário social, o acordo internacional que levaria ao modo de regulação social internacional, com todos os aspectos de estruturação econômica, social e política que englobassem um largo espectro de culturas em diferentes momentos e condições históricas. Reflexões conclusivas - a possibilidade de um novo MRS É necessário observar as contradições da forma atual da reprod ção do capital. procurando compreender as diversas possIbilidades de desenvolvimento abertas a ação social-coletiva que possa encammhar as transformações num sentido progressista. Por um lado, a internacionalização da produção e dos mercados, a liberdade do capital produtivo e financeiro de moverem-se sem fronteiras, a condição mundializada de ex- : A este tespeito. conient também Leonardo Boff (1994) 45 pioração da força de trabalho e de matérias-primas, a hegemonia do capital financeiro sobre os setores produtivos, são fatos concretos e objetivos que definem a presente forma da reprodução do capital em sua nova fronteira mundial. No entanto, a escolha sobre qual caminho seguir entre os vários possíveis, inclusive o refluxo do processo de globalização, é opção que envolve escolhas políticas marca das pela subjetividade que, mesmo não se impondo como definitiva, redirecionará a objetividade daquela dinâmica histórica. O desenvolvimento das propostas econômicas, sociais e políticas liberais, submetendo as sociedades à regra geral da lucratividade, mercantilização de todas as relações e competição social, é resultado também de políticas deliberadas de governos no embate com a resistência explícita ou velada dos setores subalternos. O argumento da objetividade da globalização, dos caminhos que esta tem seguido e da lógica do capital que lhe subjaz, com seus aspectos centrais da mercantilização generalizada da sociedade, da competição excludente, do individualismo exacerbado, da destruição da estrutura de serviços públicos, entre outros aspectos, é verdadeiro, mas parcial. Sua apresentação como caminho único a seguir, como direcionamento natural-histórico, determinação contra a qual resistir é não somente absurda, mas contraproducente, é um discurso ideológico no sentido estrito do termo: reflete uma intenção política classista de estabelecer como hegemônicas idéias que interessam somente a determinados setores e grupos sociais. De fato, a objetividade é elemento determinante dos encaminhamentos históricos, mas o que define a fronteira da sociedade humana, separando-a do mundo animal, é a possibilidade de superação da mera objetividade dos fatos e processos naturais e sociais. A subjetividade, levando à emergência social dos valores humanos (humanistas), tem poder de intervenção, modifica o curso objetivo dos acontecimentos pela ação social, sendo este o caráter distintivo da sociedade humana. O resultado da dinâmica histórica será sempre uma unidade complexa e dialética entre a subjetividade humana e a objetividade estrutural (das "leis" naturais e sociais). A submissão completa das intenções humanizadoras à política do capital é o 3 resultado, também, de projetos políticos e ação social de seus representantes. Esta ação, socialmente parcial, classista ou grupal, foi bem-sucedida em estabelecer uma visão de senso comum que inclui também as idéias de inevitabilidade e irreversibilidade da globalização capitalista. Estes dois pontos são o centro gravitacional em torno do qual giram a compreensão e as propostas de Lipietz: a objetividade do momento atual da reprodução do capital, e a questão do papel possível para o Estado neste novo quadro estrutural. Sobre eles teceremos algumas considerações críticas. Em primeiro lugar, é necessário refletir sobre o papel historicamente desempenhado pelo Estado, como representante da esfera pública, sendo o organizador e promotor dos serviços públicos. A existência de valores e práticas de solidariedade social entre as classes subalternas, ao lado da existência de instituições sociais públicas voltadas para o "cuidado" dos mais pobres, é um fato histórico já reportado por Engels, em sua obra clássica A Condição da classe trabalhadora na Inglaterra. Refletindo as condições de exploração dos trabalhadores no século XIX,e as correlações de força daquele momento, segundo os testemunhos arrolados, o montante desta solidariedade autônoma e informal excedia aquele da "caridade oficial" burguesa institucional. Ora, com o avanço das lutas, organização e mobilízação social, o Estado foi assumindo mais e mais o espaço de provedor de serviços sociais que garantissem um padrão mínimo de dignidade à massa dos assalariados, prevenindo o aguçamento extremo da miséria e suas conseqüências, sob a forma de inquietação social e política. Ao longo do século XX, após décadas de expansão dos serviços e instituições públicas voltados para o estabelecimento do Estado do bemestar social, o (neo) liberalismo retomou como ideologia hegemônica das classes dominantes, premidas pela crise do Modo de Regulação Social Fordista. Com o liberalismo de volta, os setores dominantes encetam um grandioso esforço de propaganda para justificar o real ataque ao espaço de riqueza representado pelo setor público, ataque .que assumiu e ainda assume as formas mais variadas, mas que, por qualquer delas, seja através da privatização díreta", seja pela via da E aqui esta mos considerando o processo de forma genérica, sem nos atermos às constantes fraudes que marcaram a venda das estatais no Brasil 46 EDUCAÇAo EM DEBATE. Ano 27 V I - N°s 49/50 - 2005 quidação de instituições e órgãos governamentaís, tem sempre a mesma finalidade: aumentar a lucratividade social do capital. Na verdade, ambos os procedimentos implementados têm este fim comum: no primeiro, pela redução de custos "sociais" com os setores subalternos cria-se, além da cultura geral de desproteção e desregulamentação" dos trabaadores e das relações de trabalho, a possibihade de redirecionamento dos anteriores gastos sociais para os setores comercial, industrial e financeíro do capital; pela privatização direta se ~ ansfere abertamente patrimônio público para lsos particulares, num processo perverso que emandaria, por si, uma exposição completa que aão é a intenção deste trabalho. Ora, num quadro assim, a nova cultura heemônica define uma opinião de senso comum contrária à instituição pública, ao passo em que se mantém, de forma agravada, a situação que engendra a miséria e a exclusão sociais crescentes. _eforça-se, desta forma, a necessidade premente o assistencialismo e do provimento de serviços básicos à população mais pobre, que vai encon~ ar no serviço autônomo e na auto-organização ocial, comunitária, grupal, etc., seus caminhos e realização. Estas novas formas disfarçadas do serviço público apenas traem a permanência da necessidade da intervenção do Estado no proviento das necessidades básicas das classes trabalhadoras, expostas à ganância do capital, ao mesmo tempo em que determinam uma forma . erenciada em sua gestão: o trabalhador não adquire os direitos de servidor público que, meso apresentando aspectos positivos e negativos, epresentam em nossos dias uma cota razoável da produção social que é apropriada por um segmento da classe trabalhadora em detrimento dos capítalistas. É também importante observar que toda grande obra gerada pela necessidade social, ao longo da história, foi sempre tarefa coletiva e, assim sendo, pública, pela impotência individual no provimento destes serviços. Instalação de infraestrutura social de água, esgotos, eletricidade e gás, por exemplo, é sempre fruto de um trabalho coletivo, mesmo quando exercido sob controle e apropriação privados. Já alguns outros serviços continuam coletivos na execução, mas não se configuram como campo de apropriação privada de lucros, sendo assim desinteressantes para o capital. Eis como se dá a definição capitalista do . EDUCAÇÃO EM DEBATE, que, na estrutura do Estado, deve ser pnvanza ou extinto. Por outro lado, ao romper com o imo lismo, lentidão e burocratização do serviço público conforme estruturado e organizado pela política burguesa ao longo do século XX, a gestão descentralizada, mais ágil e menos hierárquica do chamado "terceiro setor", aponta para a necessidade de que se refaça o serviço público sob outras formas de organização menos hierarquizadas, mais democráticas em seu funcionamento interno, e sujeitas ao permanente controle popular. Este novo "modelo" permitiria superar os problemas inerentes à estrutura pública anterior, que tende ao corporativismo pela incorporação das contradições do sistema social capitalista. Esta forma democratizada, ao mesmo tempo, não se configuraria como "tampão" de contradições sociais, mas como espaço de aprendizado de cidadania política e consciência de classe. Fica claro, sob este enfoque, que o espaço dos serviços públicos é necessário e inevitável em qualquer sociedade, apenas ampliando-se pelo provimento de necessidades decorrentes da exclusão social determinada pelo capitalismo. O trabalho necessário aos serviços sociais será sempre social-coletivo, e assim, sob uma organização mercantil-monetária das relações sociais, como é o caso das sociedades do capital, será pago pela sociedade. A questão de que estas tarefas sejam exercidas por instituições públicas, ou por organizações do "terceiro setor" , é a de decidirmos se a este montante ou valor necessário, queremos acrescentar outro montante destinado a saciar a voracidade lucrativa do capital privado. Quanto aos outros aspectos levantados por Lipietz, referentes à questão da instauração de um novo MRS ou novo pacto social que reinstalaria o controle social (púb ico) s e ocesso de produção e reprod çã de ca __- as do aspecto de prole o poa CD co po to que é ecessán es ecer e r: s fundamen s es Odese v contra- ege . ca en o de salário so al para odos os membros da SOCIedade,encammhe a redução da jornada de trabalho e a ampliação do tempo livre, estabeleça as bases de um novo pacto internacional para o desenvolvimento social em todos os países, nações e culturas do mundo, bem como estabeleça solidamente uma série de outras práticas sociais Ano 27, V. I - N°s. 49/50 - 2005 47 anticapitalistas, será uma tarefa hercúlea somente possível com o concurso de pessoas, grupos e classes comprometidos com a superação do capitalismo. Esta construção coletiva deverá, além disto, estar enraizada de forma prefigurada ou embrionária na práxis de resistência dos setores subalternos de hoje, desenvolvendo-se a partir delas e reforçando-as no sentido do estabelecimento de processos de desenvolvimento social anticapital. A dificuldade concreta é que ninguém sabe de antemão, ou exatamente, como e quais serão estes processos, nem como instaurá-los ou deflaçrá-Ios. Estas práticas serão engendradas pela dinâmica dos processos de luta e organização anticapitalista dos próprios setores subalternos. Esta é a grande dificuldade e, ao mesmo tempo, a riqueza histórica da nova sociedade ainda utópica, mas enraizada nas contradições da realidade atual. Desta forma, deverá ser descoberta, construída, desenvolvida, por dentro e contra a atual ordem estabelecida e o senso comum que a coteja. Deverá estar articulada e engrenada com suas contradições. Esta tarefa somente se tornará possível com a construção de uma nova perspectiva política e social que inclua o papel central para a educação política. As contradições do sistema capitalista, por si mesmas, levando permanentemente à crise em níveis cada vez mais globais e aprofundados, contribuirão com o cenário em que novos paradigmas societários se farão necessários para motivar a ação dos grupos, classes e indivíduos. Contradições, no entanto, e seu produto direto, as crises, apontam para o esgotamento de um determinado modo de produção, não para a nova forma social-produtiva que deverá sucedê-lo. E este ponto foi mal compreendido pelos movimentos políticos marxistas por demasiado tempo. O novo modo de produção ou, num nível mais acanhado, o novo modo de regulação social, deverá ser engendrado pela práxis dialética cotidiana de uma maioria politicamente educada da sociedade. Esta educação deverá se basear num enfoque humanista radical que inclua a compreensão crítica do atual modo de produção sob controle do capital e das formas e caminhos de sua superação. O processo educacional e político necessário a que se atinja este patamar de consciência social deverá levar para além do sindicalismo burocrático e pragmático vigente atualmente e, •Ç1 ente irá além do modelo educativo atual centrado na escola. Vinculando escola e movimentos sociais, trabalho e educação, estudando os processos sociais e aprendendo em suas práticas, a Educação se tornará uma prática social efetivamente articulada com a produção e reprodução da vida social, desenvolvendo o que Gramsci chamava de "Teoria da Práxís". Referências Bibliográficas ARRAIS NETO, Enéas. Mudanças tecnológicas e a educação das classes trabalhadoras. Revista Idéias,(Ano XX): 11-23. Fortaleza: Ed. 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