A teoria da regulação e o novo estado social de Alain Lipietz

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Enéas Arrais -e O·
EDUCAÇÃO
EM DEBATE
A teoria da regulação e o novo
estado social de Alain Lipietz
- é possível manter o parco
espaço de humanização sob o
capitalismo global?
Resumo
Este artigo analisa criticamente a obra de A1ain Lipietz (1993): Towards a new economic order,
um trabalho de profundidade que busca a compreensão da natureza da presente crise social que se desenrola ao longo dos últimos trinta anos no mundo. O texto valoriza a contribuição de Lipietz para o estudo da
natureza das transformações sociais, observando suas raizes no mundo da produção, sob a forma de crise
do Modo de Reguiação Social (MRS) Fordista, e apresentando suas sugestões sempre com uma conotação
bastante crítica e acurada. A "piece de force" de sua análise se situa na sólida estruturação econômica de
seu pensamento e na grande complexidade dos cenários sociais com os quais lida. Considera-se que Lipietz,
situa-se entre as maiores contribuições para o campo do materialismo histórico. Por outro lado, o texto tece
a crítica às limitações patentes de seu pensamento, pela falta de consideração das categorias da totalidade
e da contradição, pelo eurocentrismo arraigado em sua consideração da validade do MRS Fordista, e pela
perspectiva vo1untarista como sugere a estruturação de um novo pacto social-democrata para o Estado. O
texto, por fim, tece considerações sobre o papel da educação na constituição dos movimentos sociais transformadores.
Palavras-Chave: fordismo, modo de regulação social, globalização capitalista, materialismo histórico, processo educativo.
Abstract
The regulation theory and Alan Lipietz's new social state. Is it possible to maintain the
exiguous space for humanization in the global capitalism?
This paper develops a critique of A1ain Lipietz work upon his book "Towards a new Economic
Order ", Ris ideas are understood as a deep and comprehensive study about the social crisis of the late
thirty years. The contribution of Lipietz is shown in its importance for the analysis of the embedness of
the social and po1itica1 crisis in its 1inks with the economic structure, organized under Regu1ation Pacts
(MSR). Lipietz is considered a major social scientist in the area of historica1 materia1ism. On the other
hand, the artic1e exposes some considerations on the 1imits of Lipietz's work, main1y his misuse of the
categories ot totality and contradiction, the Eurocentric character of his thought, and the vo1untary manner of the suggestion of the new social-democratic State. Finally,the paper considers the ho1e of educatioti in the constitution of social revo1utionary movements.
Key words:
fordism,
mode
ot social regu1ation, globa1ization, capita1ism, historica1 ma teria1ism ,
education.
1
Doutor em Educação pela UFC Professor do Departamento
LABOR (Labora ono de Es udos do Trabalho e Qualificação
40
SD'JCAÇÁO
E/.l
de Estudos
Proüssional
DEP.ATE,
Especializados
da Faculdade
da FACED-UFC.
An'J u7 V I - 11'-'"49/50 - '-;005
de Educação
da UFC; Coordenador
do
o livro de Alain Lipietz (1993): Towards a
new economic order, é um trabalho que avança
com profundidade na análise das mudanças de
paradigmas sociais e na compreensão da natureza da presente crise social que se desenrola ao
ongo dos últimos vinte a trinta anos no mundo.
:'lpietz analisa as raízes e a natureza das trans-: rmações globais observando suas raízes no
:::undo da produção, sob a forma de crise do
_:odo de Regulação Social (MRS)Fordista, contemplando as soluções econômicas e políticas
presentadas sob a perspectiva do neoliberalis_o e tecendo suas sugestões sempre com uma
conctaçáo bastante crítica e acurada.
A "piece de force" de sua análise se situa
na sólida estruturação econômica exposta em
-eu texto e na grande complexidade dos cenános sociais com os quais lida. Indubitavelmente,
:=: a despeito da evidente importância teórica,
. litica e social das propostas de vários autores europeus que atualmente são referência nos
estudos sociais e econômicos (GORZ,SCHAFF,
FFE, KURZ,JESSOP, LANE, De MASI, BONE?ELD, HOLLOWAY,entre outros), a análise de
• pietz, situa-se entre as de maior contribuição
para o campo do materialismo histórico, considerando a complexidade de forças e instituições enolvidas nos processos históricos, mesmo que a
case de sua análise seja centrada na perspectiva
o regulacionismo nacional.
Reconhecer os elementos de limitação de
ua análise, não significa desconhecer o bom
embasamento teórico-analítico de Lipietz. Sua leitura econômica, que é sua perspectiva assumida
e trabalho, se faz no campo da Teoria Regulaionista, surgida como tentativa de compreensão
do enraizamento social do capitalismo, desenvolVIda a partir da análise do estabelecimento do
.ordismo como Modo de Regulação Social (MRS)
prevalecente nas economias capitalistas centrais
da Europa e Estados Unidos. A raiz marxista
esta teoria é bastante visível em seu compromisso com a idéia de progresso social, mais do
que com a produtividade do capital. Esta raiz se
apresenta, em Lipietz, já bastante diluída pela
necessidade de concessões políticas a grupos
não marxistas e anti-marxistas da "nova esquerda" francesa.
A fragilidade da análise, centrada numa
crítica do neoliberalismo se situa no fato de que,
contraditoriamente, aceita a manutenção das reações capitalistas de produção como centro do
processo social. De fato, mistura uma
socioeconômica com propostas SOClaIS,
e econômicas que tentam solucionar as .:l-Tadições da produção capitalista e suas cnses pe ~
recurso à boa-vontade e ao humanitarismo social, deixando intocado o cerne das relações que
estabelecem o capital como centro gravitacional
da dinâmica social.
O aspecto mais importante do trabalho de
Lipietz é sua análise socioeconômica da crise que,
nos últimos trinta anos, põe em xeque o MRS
Fordista. Iniciando com a descrição do "compromisso" fordista, o autor enfatiza a batalha entre
os diversos paradigmas regulacionistas que competiram pela hegemonia nas sociedades ocidentais: o estalinismo, o fascismo e o fordismo. A primazia do último é considerada por Lipietz como
derivada de uma conjunção de fatores sociais e
históricos e da luta de classes, numa espécie de
"acaso histórico". Esta perspectiva se demonstra mais complexa que os enfoques lineares que
entendem um modo de produção como o desenvolvimento direto e necessário de tendências estruturais econômicas sem considerar a atuação
política e as pressões sociais de grupos e classes
em conflito.
Um exemplo da complexidade assumida
por sua análise pode ser encontrado na compreensão do caráter unificado da produção capitalista na sociedade. Lipietz desconsidera a distinção
do senso-comum entre empresas privadas e estatais, focando para além disso no processo comum
de reprodução do capital sob uma determinada
forma de organização de trabalho: "Além do
mais, nacionalização no sentido legal não implica
numa mudança das relações sociais. Os trabalhadores da Renault perceberam isto desde o começo:
tanto sob empregador público como privado, o
Taylorismo prevaleceu" (LIPIETZ,1993, p. 7).
Considera-se, em sua análise, a complexidade do paradigma societário: "Paradigma,
desta forma, traz consigo a idéia de um 'núcleo
comum' que aceita variações, mas dentro de
determinados limites" (ídem: p. 11), ao lado da
ênfase sobre a constituição conflituosa das situações históricas: "Outro grande engano é pensar que a rede de elementos regulacionistas foi
instituída com a intenção de fazer o fordismo
funcionar, apesar de que numa visão à posteriori,
eu tenha apresentado como se assim fosse. Entretanto, os acordos coletivos e a seguridade s
cial não foram conseguidos pelo fordismo. -
pelos trabalhadores, conquistado pelo derrame
de sangue em Adalen na Suécia, as batalhas da
nova confederação sindical CI02 sob Roosevelt,
o sangue de lutadores da resistência francesa e
italiana, ou a tenacidade da classe trabalhadora
britânica sob a Blitz" (Idem: p. 7-8).Por fim,queda
identificada, pelo autor, a base "enxuta" do MRS
Fordista que se torna hegemônico desde a Segunda Guerra Mundial:
• Organização da produção fica melhor
restrita aos grupos dominantes (empregadores,
tecnocratas), pela extensão do modelo industrial
Taylorista, que nega aos meros "operativos"
qualquer envolvimento intelectual no processo
de trabalho;
• Assalariados e, em verdade, toda a população, no curso normal das coisas, terão o retorno dos ganhos de produtividade através de um
conjunto de formas de regulação legislativa ou
contratual, de tal forma que, com o crescimento
do poder de compra pela maior produtividade, o
pleno emprego fica virtualmente assegurado;
• As pessoas deverão receber isto diretamento através dos salários ou através do estado
de serviços e seguridade públicos (welfarestate);
mas em qualquer caso na forma de dinheiro, dando acesso a bens e produtos comercializados;
• Pleno emprego e o avanço no consumo
de massa são os objetivos do progresso técnico
e do crescimento econômico, e o papel do estado
é assegurar que estes pontos sejam atingidos"
(idem: p. 11).
A crise do MRSFordista é percebida como
vinda "de todos os lados ao mesmo tempo", com
expressão tanto no plano "menor" de conflitos
e revolta contra a impessoalidade e insatisfação
com o trabalho, que levaram à produtividade
decrescente nas economias centrais do mundo
capitalista, quanto no âmbito da internacionalização de mercados e da produção, que desmantelaram o modelo regulacionista estabelecido a
partir de "pactos" nacionais. O terceiro lado da
crise, na análise de Lipietz,se constituiu-se na ruptura da estrutura estatal de seguridade social,a falência do Estado do bem-estar social, para o que o
autor aponta a resistência contra" a onipotência da
hierarquia" e "reservas acerca da solidariedade 'administrativa'"comoa motivaçãodas mudanças.
Este último ponto, diferentemente dos anteriores, que derivam de uma sólida análise eco2
CIO - Congress for Industrial
42
Orgamzation
é uma das centrais síndtcais
nômica e social, demonstra o equívoco em que se
incorre ao desconsiderar os interesses da classe
capitalista na privatização dos setores públicos e
estatais. A incorporação destes espaços da produção social pela dinâmica do capital privado,
sob a forma de novos nichos de lucratividade e
expansão, é determinante para todo o esforço de
constituição de uma cultura hegemônica privatista, anti-estatizante e contrária aos serviços e
instituições públicas.
A parte mais provocativa e interessante de
seu livro, no entanto, é a exposição de suas sugestões sobre como lidar com a crise, iniciando
com uma profunda crença na constituição política e amplitude social de qualquer solução eficaz, ao lado de seu caráter radical: "A questão de
soluções para a crise é fundamentalmente uma
questão política, como o foi nos anos 30. Entretanto, já não é mais uma questão de escolher a
política econômica correta alinhada com regras
básicas existentes, mas é uma questão de estabelecimento de novas regras - novos princípios para o processo de trabalho, novas normas
e novas formas de regulação. Nós precisamos
concordar em torno de novas propostas e novos
projetos; precisamos inventar um novo 'grande
compromisso" (1993, p. 24).
Karl Marx considerava que um modo de
produção social alternativo (socialismo, em seu
caso) deveria ser desenvolvido nos países dominantes, para que conseguisse ter sucesso e estabelecer uma base que lhe permitisse se expandir
globalmente. Seguindo a mesma compreensão,
Lipietz defende a idéia de que, para ser eficiente
dentro do mercado mundial e da natureza internacionalizada da produção, o novo modo de regulação social deverá ser desenvolvido: "(...) sob
a influência de um ou mais países dominantes.
Esta hegemonia precisará estar 'revestida' de
coerção (para usar o termo grarnsciano), de forma que a potência líder do mundo também aja
como polícia mundial" , ou "através de um acordo
unânime, e desta forma, negociado, da maioria
dos países" (ídem: p. 27); e firma-se na segunda
opção, reconhecendo entretanto a enorme complexidade daquele encaminhamento.
Lipietz critica o liberal-produtivismo, analisando algumas das implicações sociais das políticas liberais de desmantelamento da solidariedade societária, levando à ampliação da dicotomia
dos EUA
EDUCAÇAO EM DEBATE. Ano 27, V I - N"" 49·SC - XOS
social da distribuição de renda entre as classes,
e à exclusão social pura e simples. Neste aspecto particular, desenvolve urna crítica com grande
autoridade, recorrendo a dados empíricos e indo
além da mera aparência dos fatos e da superfície
dos processos, corno na descrição de corno a alta
tecnologia foi utilizada pelo capital visando a recuperar o controle sobre o processo de trabalho:
"Por que a tecnologia da informação foi utilizada
desta maneira em vez de outras? Basicamente
por razões políticas - a política da linha de produção e do escritório. (...) O objetivo era restabelecer a autoridade gerencial" (id. ibid: p. 38).
Ele se mostra capaz, no entanto, de perceber as
possibilidades contraditórias de re-incorporação
do trabalho manual e intelectual, se algumas tendências específicas da organização do trabalho
e do enraizamento social dos novos processos
forem escolhidos e promovidos: "Em outras palavras, há sinais nos dias e na época presente, de
que podemos revolver a antiga tendência do capitalismo, levada à culminância pelo Taylorismo.
de separar os aspectos manuais do trabalho de
seus aspectos intelectuais" (ídem: p. 39).
Da mesma forma, são percebidas contradições dentro dos modelos mais avançados de
organização do trabalho, corno toyotismo, kalmarianismo, e o modelo de organização centrado em pequenas firmas e terceirização. O autor
distingue entre o que é socialmente progressista
e realmente democrático dentro destes modelos
gerenciais e organizacionais, e há elementos importantes que trazem melhorias para as condições de trabalho e produção, ao lado de estabelecer a crítica da manutenção do fordismo, quando
este aparece em variados graus de conjunção
com aqueles procedimentos organizacionais inovadores. De maneira mais geral, Lipietz critica õ
paradigma do que ficou conhecido corno especialização flexível, denunciando-o corno aprofundamento da perspectiva capitalista da exploração
do trabalho pela combinação e articulação de formas diversas de organização da produção visando
o incremento da produtividade.
A análise da organização da produção,
desenvolvida por Lipietz, aceita implicitamente
a centralidade do trabalho humano na esfera da
produção e na sociedade corno um todo, estabelecendo, ao mesmo tempo, a pedra angular de
suas propostas e sugestões para políticas econômicas e sociais. Estas propostas estão centradas
na idéia de democracia e autonomia no local de
EDUCAÇÃO
EM DEBATE,
trabalho, expandindo-se gradativameme
~ a
sociedade corno um todo. Fica igualmente determinado, desta vez de forma explícita, o limite era
que se aproxima e a fronteira que o separa da
idéia de revoluções sociais: "Entretanto, corno
um 'novo modelo' apresentado corno avanço, o
compromisso social alternativo é herdeiro do liberalismo do século dezoito e do radicalismo,
socialismo e comunismo do século dezenove.
(...) E neste sentido ( o sentido histórico), o compromisso alternativo é urna 'nova esquerda'. Devido a isto ele enfrenta problemas equivalentes
àqueles enfrentados pelo socialismo e pelo comunismo durante a Terceira República Francesa". E
continuando a explicar o caráter progressista e
progressivode sua solução,o autor acrescenta: "Claramente, qualquer aspecto novo, se ele emergir,
será meramente um novo compromisso com a
tendência inerente do sistema para evitar as armadilhas do liberal-produtivismo. A alternativa
real no início do século vinte e um será meramente um reflexo, mas um reflexo real, dos
sonhos, dos sonhos que a humanidade precisa
conhecer antes de poder sonhá-tos plenamente"
(Idem: p. 62-63).
O desenvolvimento das contradições do
capitalismo, para que um novo modo de produção surja "por dentro" das relações engendradas
pelo capital, tem sido um aspecto negligenciado pela esquerda tradicional ortodoxa, tanto na
academia quanto nos partidos políticos. A idéia
de que a "revolução" construiria um mundo
completamente novo, com relações sociais absolutamente inovadoras (que não necessitaría
se desenvolver a partir de formas prefiguradas),
prevaleceu de maneira quase que completa, sem
deixar espaço para a compreensão que se baseia
na idéia de transformações proçressivas e sucessivas, aceita como possível por arx.
De fato, o novo sis ema social sugerído por
Lipietz, desenvolvendo-se a partir das contradições do sistema anterior, pode ser considerado
uma idéia plenamente marxista e dialética. Mais
dialética, por exemplo, do que a compreensão
de que as transformações econômicas e sociais
possam ser engendradas a partir de idéias transplantadas de fora da realidade social, a partir, por
exemplo, da ação de partidos vanguardistas. Sua
idéia do efeito educativo da autonomia, democracia e participação no ambiente de trabalho sobre
os trabalhadores, na prática da liderança social,
é inegavelmente sensata.
Ano 27 V I - N°s. 49/50 - 2005
43
o equívoco de Lipietz encontra-se claramente exposto aqui e ali, dentro do texto: "Entretanto, será apenas um passo, e somente um
compromisso. Seria totalmente errado falar de
auto gestão , poder dos trabalhadores ou democracia operária. Por décadas, talvez séculos, ainda por vir (Gorz diz" para sempre", mas eu penso
que isto é ir longe demais I), o processo de trabalho social tornará a forma de relações de mercadorias entre firmas cuia administração (mesmo
aquelas no setor estatal, ou aquelas dirigidas por
trabalhadores) tornará decisões na base de mercados e previsão de lucro (...) Neste sentido, os
trabalhadores estarão duplamente alienados de
sua atividade - eles produzirão para o mercado,
sob a direção da gerência. A associação livre das
comunidades, sistematicamente discutindo o
que é necessário produzir para elas próprias e
precisamente corno, permanecerá para sempre
um sonho utópico" (idem: p. 68). A sugestão de
mudar a sociedade enquanto se mantém o núcleo das relações do capital, isto é, alienação e
reificação dos trabalhadores e mercantilização
das relações globais da sociedade (tanto faz
se sob a forma de direção privada ou estatal),
com a proeminência do trabalho abstrato sobre o trabalho concreto, é a falha fundamental
de sua teoria.
A manutenção destas relações onde o valor de troca é preponderante sobre o valor de uso
somente faz sentido para a reprodução do capital
e para a manutenção de seu controle sobre a produção social, e significa que o dinheiro, a forma
fetichizada do capital, continuará a regular todas
as transações, relações sociais e valores humanos. Este equívoco básico se reflete sobre toda
a proposta e compromete a análise de Lipietz.
Não obstante, declarar-se que é impossível fazer
avançar reformas sociais sem atacar a base de
seus problemas é diferente de dizer que é impossível tentar e, temporariamente, atingir urna espécie de "coexistência". A Teoria da Regulação
é urna tentativa de compreender estes" acordos"
sociais temporários, ou "arranjos" sociais que foram bem-sucedidos em conferir urna sobrevida
ao sistema capitalista.
A sobrevivência de um modo de regulação social, entretanto, é sempre temporária, por
causa de sua precariedade intrínseca, pela forma
como intenta "abafar" as contradições essendo sistema capitalista e sua conseqüente
.S:; íêr ela permanente para a crise. Além dessa
constatação derivada da análise da reprodução
ampliada do capital, que leva ao permanente
aprofundamento da exploração do capital sobre
o trabalho, os processos históricos têm ensinado
que qualquer tentativa de transformar a sociedade, estabelecendo novas relações de produção,
deve construir mecanismos e práticas de controle
social autônomo e democrático sobre a produção
visando clara e objetivamente à destruição das
relações de produção capitalistas, ou têm visto
seus encaminhamentos e resoluções serem paulatinamente devorados pelo" deus" capital e seu
sacerdote "mercado" corno sentido maior e definitivo da produção social, corno aconteceu no
Leste Europeu.
De fato, no embate de dois modelos de organização social dialeticamente opostos, aquele
que se apresentar corno dominante ou hegemônico é o que prevalece. A tarefa de transformar a
sociedade deverá perseguir claramente e desde
o início o desenvolvimento de práticas antícapitalistas, estabelecendo urna oposição determinada contra a regra do capital, tanto reforçando
as práticas de resistência quanto elaborando novas práticas e processos produtivos e sociais, em
geral, centrados na produção de valor de uso, autonomia e autogestão dos coletivos de produção.
É claro que tal dinâmica necessita de um
permanente componente de força de vontade social, vontade política - subjetividade, sob a forma
de solidariedade social, que se imponha à objetividade do caráter primitivo e bestial da cornpetitividade individual que também existe no ser
humano. Esta permanente tensão dialética demandará novas formas de compromisso social,
mais altos níveis de educação para a solidariedade que estejam ancorados em práticas sociais
diferenciadas, reforçando-as e criando novas respostas para as novas necessidades e problemas
sociais. Para dar suporte a este projeto societário
novo, algumas das sugestões de Lipietz são de
grande utilidade, desde que rearticuladas dentro
de um quadro de ação política e social radicais.
Na perspectiva de Lipietz, o crescimento
do tempo livre é o primeiro passo para a multiplicação de postos de trabalho pela partilha ampliada do quantitativo social de trabalho necessário. É notável, ao longo de sua exposição, sua
preocupação com o desemprego, entendendo
corretamente que somente a redução das jornadas individuais de trabalho poderá minimizar a
exclusão social pelo desemprego, causada pelo
~~ .. I - t1
495C - 2005
desenvolvimento tecnológico sob a lógica capitalista de extração de sobretrabalho. Num outro
aspecto de suas propostas, vinculado ao anterior,
o autor defende a necessidade de amplo e sólido
processo educativo que prepare as pessoas de forma permanente para o trabalho. Acrescente-se,
sob este aspecto, que Lipietz, contrariamente aos
que defendem a Educação centrada na alta qualificação profissional como o caminho para a solução
da crise social e do desemprego, distingue o papel real da educação e da qualificação profissional
numa sociedade capitalista: "É criminoso, entretanto, prometer aos jovens que mais educação
e treinamento vai lhes conseguir um emprego.
Para cada nível dado de educação e treinamento, quanto mais a pessoa adquire conhecimentos,
maior a chance de conseguir um emprego; mas
se o nível se eleva, isto não significa que mais empregos estão disponíveis" (1993, p. 82).
A idéia de aumento do tempo livre, e seu
excelente complemento sob a forma de um "salário social", uma espécie de salário universal que
permitiria a manutenção de um nível mínimo e
decente de vida para todos, são propostas sociais
positivas baseadas em argumentos humanistas:
"Ele (o salário social) é a afirmação de que os seres humanos têm direito à vida, precisamente por
serem seres humanos e não porque sejam velhos,
ou mães de família, ou porque contribuíram com
Impostos; porque a humanidade e a sociedade
reconhecem que seus membros têm o direito específico à vida, a uma vida como a de todos os
outros. É um ato de reconhecimento, não de caridade" (ídem: p. 96). O reconhecimento das contradições estabelecidas por este "salário social"
num mundo regido pelas relações do capital é
exposto por Lipietz num ensaio acerca da emergência do "terceiro setor". Este espaço, constituído por organizações devotadas ao serviço social,
diferentemente do setor privado, por não ter o
lucro como objetivo, e paralelo ao setor estatal,
por servir a sociedade sob organização e controle
.ndependentes do Estado, seria um dos elementos de inovação social que apontaria saídas para
a questão do desempreço'.
A contradição, segundo Lipietz, se manifestaria diretamente na impossibilidade de sustentar esta estrutura paralela, com seus custos
conseqüentes, sob um quadro de competição internacional baseada em "dumping social": bai-
xos salários e desmantelamento da segundade
social. A questão, entretanto, pode ser enfocada
sob outro aspecto: o que significa realmente este
tal "terceiro setor", supostamente, nem público
nem privado? Numa análise mais concreta, que
inclua tanto o momento conjunturaIdo atual bloco
histórico, sob hegemonia neoliberal e a imposição generalizada de sua lógica organizacional,
como também as lutas e a resistência social e
popular, a idéia do terceiro setor assume uma
transparência elevada que merece uma análise
própria e consistente.
Lipietz conclui com a idéia de um novo
pacto internacional que ordene a produção mundializada. O grande papel deste pacto, além da
regulação interna de produção, consumo e seguridade social, seria conter as distorções extremas
entre os diversos locus produtivos, compensando o
"dumping social" com impostos sobre consumo.
Com isto fecha-se o círculo que leva, sob a lógica
expositiva do autor, ao novo modo de regulação
social, desta vez estabelecido no plano mundial.
O aspecto central de questionamento das
idéias de Lipietz é a manutenção das relações de
produção e reprodução de capital ao lado da mudança de eixo e foco para a questão da sobrevivência social com elevação da qualidade de vida
para todos, o que implicaria a superação da sociedade de classes antagônicas engendrada pelo
capital. Ao lado disto, também se põe a possibilidade de construção da vontade política que teria
sucesso em impor, além do salário social, o acordo internacional que levaria ao modo de regulação social internacional, com todos os aspectos
de estruturação econômica, social e política que
englobassem um largo espectro de culturas em
diferentes momentos e condições históricas.
Reflexões conclusivas - a
possibilidade de um novo MRS
É necessário observar as contradições da
forma atual da reprod ção do capital. procurando
compreender as diversas possIbilidades de desenvolvimento abertas a ação social-coletiva que
possa encammhar as transformações num sentido progressista. Por um lado, a internacionalização da produção e dos mercados, a liberdade
do capital produtivo e financeiro de moverem-se
sem fronteiras, a condição mundializada de ex-
: A este tespeito. conient também Leonardo Boff (1994)
45
pioração da força de trabalho e de matérias-primas, a hegemonia do capital financeiro sobre os
setores produtivos, são fatos concretos e objetivos que definem a presente forma da reprodução
do capital em sua nova fronteira mundial.
No entanto, a escolha sobre qual caminho
seguir entre os vários possíveis, inclusive o refluxo
do processo de globalização, é opção que envolve
escolhas políticas marca das pela subjetividade
que, mesmo não se impondo como definitiva,
redirecionará a objetividade daquela dinâmica
histórica. O desenvolvimento das propostas econômicas, sociais e políticas liberais, submetendo
as sociedades à regra geral da lucratividade, mercantilização de todas as relações e competição social, é resultado também de políticas deliberadas
de governos no embate com a resistência explícita ou velada dos setores subalternos.
O argumento da objetividade da globalização, dos caminhos que esta tem seguido e da
lógica do capital que lhe subjaz, com seus aspectos centrais da mercantilização generalizada da
sociedade, da competição excludente, do individualismo exacerbado, da destruição da estrutura
de serviços públicos, entre outros aspectos, é
verdadeiro, mas parcial. Sua apresentação como
caminho único a seguir, como direcionamento
natural-histórico, determinação contra a qual
resistir é não somente absurda, mas contraproducente, é um discurso ideológico no sentido
estrito do termo: reflete uma intenção política
classista de estabelecer como hegemônicas
idéias que interessam somente a determinados
setores e grupos sociais. De fato, a objetividade
é elemento determinante dos encaminhamentos
históricos, mas o que define a fronteira da sociedade humana, separando-a do mundo animal, é a
possibilidade de superação da mera objetividade
dos fatos e processos naturais e sociais.
A subjetividade, levando à emergência
social dos valores humanos (humanistas), tem
poder de intervenção, modifica o curso objetivo
dos acontecimentos pela ação social, sendo este
o caráter distintivo da sociedade humana. O resultado da dinâmica histórica será sempre uma
unidade complexa e dialética entre a subjetividade humana e a objetividade estrutural (das "leis"
naturais e sociais). A submissão completa das intenções humanizadoras à política do capital é o
3
resultado, também, de projetos políticos e ação
social de seus representantes. Esta ação, socialmente parcial, classista ou grupal, foi bem-sucedida em estabelecer uma visão de senso comum
que inclui também as idéias de inevitabilidade e
irreversibilidade da globalização capitalista.
Estes dois pontos são o centro gravitacional em torno do qual giram a compreensão e as
propostas de Lipietz: a objetividade do momento
atual da reprodução do capital, e a questão do
papel possível para o Estado neste novo quadro
estrutural. Sobre eles teceremos algumas considerações críticas. Em primeiro lugar, é necessário
refletir sobre o papel historicamente desempenhado pelo Estado, como representante da esfera pública, sendo o organizador e promotor dos
serviços públicos.
A existência de valores e práticas de solidariedade social entre as classes subalternas, ao
lado da existência de instituições sociais públicas voltadas para o "cuidado" dos mais pobres,
é um fato histórico já reportado por Engels, em
sua obra clássica A Condição da classe trabalhadora na Inglaterra. Refletindo as condições de
exploração dos trabalhadores no século XIX,e as
correlações de força daquele momento, segundo
os testemunhos arrolados, o montante desta solidariedade autônoma e informal excedia aquele
da "caridade oficial" burguesa institucional. Ora,
com o avanço das lutas, organização e mobilízação social, o Estado foi assumindo mais e mais
o espaço de provedor de serviços sociais que
garantissem um padrão mínimo de dignidade
à massa dos assalariados, prevenindo o aguçamento extremo da miséria e suas conseqüências,
sob a forma de inquietação social e política.
Ao longo do século XX, após décadas de
expansão dos serviços e instituições públicas voltados para o estabelecimento do Estado do bemestar social, o (neo) liberalismo retomou como
ideologia hegemônica das classes dominantes,
premidas pela crise do Modo de Regulação Social
Fordista. Com o liberalismo de volta, os setores
dominantes encetam um grandioso esforço de
propaganda para justificar o real ataque ao espaço de riqueza representado pelo setor público,
ataque .que assumiu e ainda assume as formas
mais variadas, mas que, por qualquer delas, seja
através da privatização díreta", seja pela via da
E aqui esta mos considerando o processo de forma genérica, sem nos atermos às constantes fraudes que marcaram a venda das estatais no
Brasil
46
EDUCAÇAo
EM DEBATE.
Ano 27 V I - N°s 49/50 - 2005
quidação de instituições e órgãos governamentaís, tem sempre a mesma finalidade: aumentar
a lucratividade social do capital.
Na verdade, ambos os procedimentos implementados têm este fim comum: no primeiro,
pela redução de custos "sociais" com os setores subalternos cria-se, além da cultura geral de
desproteção e desregulamentação" dos trabaadores e das relações de trabalho, a possibihade de redirecionamento dos anteriores gastos
sociais para os setores comercial, industrial e financeíro do capital; pela privatização direta se
~ ansfere abertamente patrimônio público para
lsos particulares, num processo perverso que
emandaria, por si, uma exposição completa que
aão é a intenção deste trabalho.
Ora, num quadro assim, a nova cultura heemônica define uma opinião de senso comum
contrária à instituição pública, ao passo em que
se mantém, de forma agravada, a situação que engendra a miséria e a exclusão sociais crescentes.
_eforça-se, desta forma, a necessidade premente
o assistencialismo e do provimento de serviços
básicos à população mais pobre, que vai encon~ ar no serviço autônomo e na auto-organização
ocial, comunitária, grupal, etc., seus caminhos
e realização. Estas novas formas disfarçadas do
serviço público apenas traem a permanência da
necessidade da intervenção do Estado no proviento das necessidades básicas das classes trabalhadoras, expostas à ganância do capital, ao
mesmo tempo em que determinam uma forma
. erenciada em sua gestão: o trabalhador não
adquire os direitos de servidor público que, meso apresentando aspectos positivos e negativos,
epresentam em nossos dias uma cota razoável
da produção social que é apropriada por um segmento da classe trabalhadora em detrimento dos
capítalistas.
É também importante observar que toda
grande obra gerada pela necessidade social, ao
longo da história, foi sempre tarefa coletiva e, assim sendo, pública, pela impotência individual no
provimento destes serviços. Instalação de infraestrutura social de água, esgotos, eletricidade e
gás, por exemplo, é sempre fruto de um trabalho
coletivo, mesmo quando exercido sob controle e
apropriação privados. Já alguns outros serviços
continuam coletivos na execução, mas não se
configuram como campo de apropriação privada
de lucros, sendo assim desinteressantes para o
capital. Eis como se dá a definição capitalista do
.
EDUCAÇÃO
EM DEBATE,
que, na estrutura do Estado, deve ser pnvanza
ou extinto.
Por outro lado, ao romper com o imo lismo, lentidão e burocratização do serviço público conforme estruturado e organizado pela política burguesa ao longo do século XX, a gestão
descentralizada, mais ágil e menos hierárquica
do chamado "terceiro setor", aponta para a necessidade de que se refaça o serviço público sob
outras formas de organização menos hierarquizadas, mais democráticas em seu funcionamento
interno, e sujeitas ao permanente controle popular. Este novo "modelo" permitiria superar os
problemas inerentes à estrutura pública anterior,
que tende ao corporativismo pela incorporação
das contradições do sistema social capitalista.
Esta forma democratizada, ao mesmo tempo, não
se configuraria como "tampão" de contradições
sociais, mas como espaço de aprendizado de cidadania política e consciência de classe.
Fica claro, sob este enfoque, que o espaço
dos serviços públicos é necessário e inevitável
em qualquer sociedade, apenas ampliando-se
pelo provimento de necessidades decorrentes da
exclusão social determinada pelo capitalismo. O
trabalho necessário aos serviços sociais será sempre social-coletivo, e assim, sob uma organização
mercantil-monetária das relações sociais, como é
o caso das sociedades do capital, será pago pela
sociedade. A questão de que estas tarefas sejam
exercidas por instituições públicas, ou por organizações do "terceiro setor" , é a de decidirmos se
a este montante ou valor necessário, queremos
acrescentar outro montante destinado a saciar a
voracidade lucrativa do capital privado.
Quanto aos outros aspectos levantados por
Lipietz, referentes à questão da instauração de
um novo MRS ou novo pacto social que reinstalaria o controle social (púb ico) s e
ocesso
de produção e reprod çã de ca __- as do
aspecto de prole o poa CD co
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que é ecessán es
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fundamen s es
Odese v
contra- ege . ca
en o
de
salário so al para odos os membros da
SOCIedade,encammhe a redução da jornada de
trabalho e a ampliação do tempo livre, estabeleça
as bases de um novo pacto internacional para o
desenvolvimento social em todos os países, nações e culturas do mundo, bem como estabeleça
solidamente uma série de outras práticas sociais
Ano 27, V. I - N°s. 49/50 - 2005
47
anticapitalistas, será uma tarefa hercúlea somente
possível com o concurso de pessoas, grupos e
classes comprometidos com a superação do capitalismo. Esta construção coletiva deverá, além
disto, estar enraizada de forma prefigurada ou
embrionária na práxis de resistência dos setores
subalternos de hoje, desenvolvendo-se a partir
delas e reforçando-as no sentido do estabelecimento de processos de desenvolvimento social
anticapital.
A dificuldade concreta é que ninguém sabe
de antemão, ou exatamente, como e quais serão
estes processos, nem como instaurá-los ou deflaçrá-Ios. Estas práticas serão engendradas pela
dinâmica dos processos de luta e organização
anticapitalista dos próprios setores subalternos.
Esta é a grande dificuldade e, ao mesmo tempo,
a riqueza histórica da nova sociedade ainda utópica, mas enraizada nas contradições da realidade atual. Desta forma, deverá ser descoberta,
construída, desenvolvida, por dentro e contra a
atual ordem estabelecida e o senso comum que a
coteja. Deverá estar articulada e engrenada com
suas contradições. Esta tarefa somente se tornará
possível com a construção de uma nova perspectiva política e social que inclua o papel central
para a educação política.
As contradições do sistema capitalista,
por si mesmas, levando permanentemente
à
crise em níveis cada vez mais globais e aprofundados, contribuirão com o cenário em que novos
paradigmas societários se farão necessários para
motivar a ação dos grupos, classes e indivíduos.
Contradições, no entanto, e seu produto direto,
as crises, apontam para o esgotamento de um
determinado modo de produção, não para a nova
forma social-produtiva que deverá sucedê-lo. E
este ponto foi mal compreendido pelos movimentos políticos marxistas por demasiado tempo. O
novo modo de produção ou, num nível mais acanhado, o novo modo de regulação social, deverá
ser engendrado pela práxis dialética cotidiana
de uma maioria politicamente educada da sociedade. Esta educação deverá se basear num enfoque humanista radical que inclua a compreensão
crítica do atual modo de produção sob controle do
capital e das formas e caminhos de sua superação.
O processo educacional e político necessário a que se atinja este patamar de consciência
social deverá levar para além do sindicalismo
burocrático e pragmático vigente atualmente e,
•Ç1
ente irá além do modelo educativo atual
centrado na escola. Vinculando escola e movimentos sociais, trabalho e educação, estudando
os processos sociais e aprendendo em suas práticas, a Educação se tornará uma prática social
efetivamente articulada com a produção e reprodução da vida social, desenvolvendo o que
Gramsci chamava de "Teoria da Práxís".
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