A RELAÇÃO TRANSFERENCIAL NA MELANCOLIA Tatiana Matias Lopes. Em Luto e Melancolia, Freud descreve a melancolia como uma patologia caracterizada pela reação à perda de um objeto amado. Tal perda se dá num nível ideal – ao contrário do caráter concreto característico à perda que leva ao luto –, é retirada da consciência e a libido que antes era destinada ao objeto retorna ao ego e ali fica represada, pois serve para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Como consequência, a inibição melancólica apresenta, além dos elementos semelhantes ao do luto, a diminuição da auto-estima, empobrecimento do ego, autocrítica e sentimento de culpa exacerbados. “A sombra do objeto caiu sobre o ego” (FREUD, 1914[1915])1, o melancólico reage como se a perda fosse do ego e a instância crítica fica a serviço de puni-lo pela culpa que ele carrega. Em O Mal Estar na Civilização, Freud faz uma retomada de alguns textos anteriores, como Além do Princípio do Prazer e Sobre o Narcisismo: uma introdução, e relembra a luta entre Eros e Tanatos ou pulsões de vida e pulsão de morte. O componente representante das pulsões de vida é a libido, que ele afirma poder transitar entre o ego e os objetos e que exerce papel importante na constituição psíquica. Já o representante da pulsão de morte é a agressividade. Sobre ela Freud afirma que “os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade”. Freud formula, então, a proposição de que há no indivíduo a introjeção de sua agressividade, que é assumida pelo superego que, por sua vez, a coloca em ação contra o próprio ego. “A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição” (FREUD, 1930 [1929]) Freud supõe que o sentimento de culpa se origina do complexo edipiano: o remorso pelo assassinato do pai primevo, que surge da ambivalência de sentimentos em relação a ele (amor e ódio), cria o superego por identificação com o pai. O agente crítico é tanto mais duro quanto mais repressões recaem sobre as pulsões agressivas: a onisciência do 1 Todas as citações da teoria freudiana foram retiradas do CD-Rom: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud superego detecta, por assim dizer, a persistência do desejo, a despeito da renúncia da satisfação da pulsão. A partir daí Freud formula a proposição de que “quando uma tendência instintiva [pulsional] experimenta a repressão, seus elementos libidinais são transformados em sintomas e seus componentes agressivos em sentimento de culpa”. Em Psicologia de grupo e a análise do eu (1921), o termo “ideal do ego” é utilizado no sentido da identificação com os pais no declínio do complexo de Édipo. É neste sentido que ele fala do superego criado por identificação ao pai da horda primitiva e que “fica à espera de oportunidades para fazê-lo [o ego] ser punido pelo mundo externo” (FREUD, 1930 [1929]). Muitas contradições de Luto e Melancolia foram sendo esclarecidas por Freud à medida que elaborou os conceitos de superego e pulsão de morte. No final de sua obra ele fala que na melancolia o superego está sendo influenciado por “uma cultura pura do instinto [pulsão] de morte” (FREUD, 1923), e que a melancolia é um exemplo típico do grupo das doenças que se baseiam no conflito entre o ego e o superego – psiconeuroses narcísicas (FREUD, 1924). Se Freud descreve a melancolia quase nos mesmos termos com os quais fala do sentimento de culpa (conflito entre o ego e o superego), podemos presumir que este último deve exercer um papel fundamental no funcionamento melancólico. Freud diz que na melancolia o sentimento inconsciente de culpa é produto de uma identificação com alguma outra pessoa que foi outrora objeto de um investimento erótico e que ele geralmente é o único remanescente da relação amorosa abandonada. Falando especificamente do inconsciente, Laplanche faz uma colocação que parece corrigir a suposição de Freud que diz que o sentimento de culpa se origina do complexo de Édipo e que foi adquirido no assassinato do pai primevo: Para mim o complexo de Édipo não é o complexo nuclear do inconsciente, ele é uma maneira de organizar o inconsciente. Eu disse uma vez, por brincadeira, que o homem Édipo foi o primeiro assassino por "sentimento de culpa", ou seja, ele não tem uma culpa porque matou, mas ele tinha uma culpa ou uma angústia fundamental e matou para dominar essa angústia. Penso que Édipo realizou o complexo de Édipo, não porque era obrigado a isso pelo inconsciente, mas para "dominar" o inconsciente. (Laplanche, 1996). Esta passagem pode nos ajudar a entender porque Freud insistia em afirmar a dificuldade de lidar, na clínica, com pacientes que traziam uma cota considerável de sentimento inconsciente de culpa. Para ele, dependendo da intensidade do sentimento de culpa, é muito difícil encontrar uma força contrária, de igual intensidade, que o tratamento lhe possa opor para que se efetue o sucesso terapêutico (FREUD, 1923). Se Laplanche estiver certo, o sentimento de culpa pode dificultar as manifestações do inconsciente em análise e comprometer o andamento da mesma. Apesar de a melancolia ser fonte para importantes descobertas no campo da psicanálise não encontramos na teoria muitos esclarecimentos sobre sua prática clínica. Como pode se dar a transferência na melancolia, já que tal afecção pressupõe o retorno e o represamento da libido objetal no ego? Sem a possibilidade de investir em objetos externos, e se a transferência implica uma ligação ou investimento libidinal por parte do analisando na figura do analista, o que mantém um melancólico em análise? Tais perguntas, ainda sem resposta, encontrar validade no fato de que a prática existe, e é para ela que precisamos voltar os olhos para pensar os elementos próprios a essa complexa dinâmica. Sobre a posição do analista Ana Cleide G. Moreira diz: Na clínica, diante de um melancólico que demanda uma escuta para seu sofrimento, há uma espécie de urgência que invade o analista, e uma hesitação, uma vaga expectativa do pior, uma espera que parece necessária, diante daquilo que se apresenta como algo inominável pairando. Uma hesitação diante da urgência, como quando se está diante de um abismo perigoso à frente e a sensação física é dada pela lei da gravidade mesma: um empuxo para baixo criando imediatamente a hesitação diante do perigo e a urgência de proteção. Estar com um paciente melancólico é assim hesitação e urgência. Algo ali precipita-se no vazio e a parceria, quando se faz, fica premida pela busca de salvação, que é preciso reconhecer, não fosse o furor curandis mal conselheiro. Freud já havia dito que fazer uso da personalidade do analista como salvador do paciente – enquanto este o coloca no lugar de seu ideal do ego – vai de encontro com as regras da análise, até porque seu propósito é proporcionar ao ego do paciente, condições para escolher as reações patológicas ou outro caminho. Enfim, falar das relações transferenciais na melancolia não é tarefa simples, no entanto, compreender tal dinâmica, pensando os elementos que ali se destacam é fundamental para auxiliar o analista em sua clínica. BIBLIOGRAFIA: FREUD, Sigmund. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição Eletrônica Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago. _____. (1917 [1915]) Luto e melancolia. Edição Eletrônica Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago. _____. (1920) Além do princípio do prazer. Edição Eletrônica Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago. _____. (1921) Psicologia de grupo e a análise do eu. Edição Eletrônica Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago. _____. (1923) O ego e o id. Edição Eletrônica Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago. _____. (1930 [1929]) O mal-estar na civilização. Edição Eletrônica Brasileira da Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago. LAPLANCHE, J. (1987) Novos Fundamentos para a Psicanálise. Lisboa: Edições 70. MOREIRA, Ana Cleide Guedes. A melancolia na obra de freud: um narcisismo sem [des]culpa. Disponível em: http://www.etatsgeneraux-psychanalyse.net/archives/texte211.html