Bolsa Família GOVERNO LOCAL E DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS DJALMA EUDES DOS SANTOS* No âmbito dos governos municipais, principalmente a partir de 1988, percebe-se uma efervescência de experimentalismos e inovações que, por sua vez, contribuem para o deslanchar de uma série de práticas locais orientadas por princípios de descentralização e participação popular. Um dos eixos dessas experiências tem sido a promoção e o enriquecimento de uma agenda local de políticas públicas a partir da inserção, nas experiências participativas, de noções como governança. De modo mais geral, esta noção, que aponta para a formulação de agendas multipolares nas quais são postos em relevo novos papéis para os governos locais, ante a emergência de novos atores nos espaços participativos, transforma esses governos em importantes espaços de inovações em políticas públicas. Neste estudo, o que tratamos como experimentalismos refere-se ao desenvolvimento de ações institucionais pautadas numa perspectiva de inclusão social que aponta para a intersetorialidade e para a transversalidade enquanto marcos estruturantes das ações. Assim, as noções de conselhos e redes, entendidas como dimensões implícitas numa noção de governança, supõem a intersetorialidade no planejamento e a transversalidade nas ações, culminando em um novo desenho de políticas - o que permite, portanto, novas abordagens a partir da inserção de temas e conceitos advindos de outras fontes de conhecimento, transversais. Na disseminação desse novo formato, a dimensão local adquire centralidade, dado o potencial de alargamento do rol de políticas públicas, programas e projetos que, evidenciando novas temáticas e conceitos, fundem-se na formulação de uma agenda participativa. Na viabilização de espaços que possam integralizar três grandes dimensões dos direitos humanos - o direito de participar e decidir livremente nas arenas públicas, o direito à saúde, o direito à educação e de acesso aos bens culturais - a noção de governança cumpre uma função primordial, especialmente pelo seu efeito de proporcionar uma abordagem plural e interativa do poder, implicando na rotinização de tendências como co-participação, cogestão, co-gerenciamento: «o "co" tem estado na ordem do dia desde inícios de 1990» (GAUDIN, 1999), resultando em políticas engendradas a partir das noções de coordenações múltiplas e negociações multipolares de agendas (ibid.: 281). Outro aspecto possível de ser declinado da noção RESUMO O Programa Bolsa Família tem como um de seus objetivos básicos a promoção da intersetorialidade, atuando de forma indutora na produção de agendas e políticas locais. Para efeito deste nosso estudo, destacamos o caso da Prefeitura de Belo Horizonte. Nosso interesse é explicitar o quanto e como algumas vivências e experimentalismos da capital mineira têm contribuído para o alargamento da concepção de uma nova agenda que, pelo seu potencial de construção de conhecimentos e de democratização, trazendo importantes inovações para a gestão do PBF. de governança é a ampliação das possibilidades para o trabalho em redes. A prática reticular absorve a possibilidade de trabalho com diferentes aprendizagens, e mais, permite, pelo exercício dialógico, a produção de novos conceitos que servem à prática plural do governo. Conforme nos relata Teixeira (2002: 1), trata-se de um fenômeno recente, baseado em estruturas policêntricas, envolvendo diferentes atores que, vinculados entre si pelo estabelecimento de objetivos comuns, buscam unidade na ação a partir do estabelecimento de "modalidades gerenciais capazes de viabilizar os objetivos pretendidos" preservando, por sua vez, tanto a estrutura de rede quanto as identidades dos agrupamentos e atores integrados nesta modalidade de governança. A governança, entendida finalmente como a potencialização do governo participativo, possibilita também a ampliação da abordagem da problemática inerente às noções de vulnerabilidade e risco social e produz, no âmbito local, uma conexão virtuosa e funcional entre a intersetorialidade e a transversalidade. Portanto, se a intersetorialidade pode ser entendida como o marco político do novo desenho das políticas públicas, a transversalidade aí opera enquanto marco estruturante, uma importante ferramenta de planejamento e vigorosa fonte de produção de conhecimentos. Dito de outro modo: "A intersetorialidade permite abordar os problemas urbanos e sociais em seu caráter complexo e multidimensional de forma mais global" (BRASIL, 2005); a transversalidade, enquanto instrumento de aprendizagem e planejamento, permite dimensionar o fluxo das ações, levando em conta os diferentes atores e papéis que estes podem jogar. Enfim, a urdidura de atores e projetos no exercício cotidiano de decisão coletiva pode ser considerada como um dos grandes temas para um uso contemporâneo da governança nos governos locais. * Graduado em Filosofia, mestrando em Sociologia (UFMG), Especialista em Projetos Sociais em Áreas Urbanas pelo Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG, professor de História na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte. 1 Este artigo é o resumo de uma pesquisa acadêmica, pelo Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob orientação da Professora Flávia de Paula Duque Brasil, que resultou numa monografia com o título: Programa Bolsa Família - Governo Local e Democratização do Acesso: a experiência da Prefeitura de Belo Horizonte. Belo Horizonte, UFMG, 2007, 81 fls. 12 12 Pensar BH/Política Social Junho/Agosto de 2007 Bolsa Família O PBF em Belo Horizonte O Município de Belo Horizonte tem se tornado uma importante referência no que diz respeito ao desenvolvimento de práticas descentralizadas indutoras de participação popular e de novos arranjos de gestão pública, pautados por princípios de inclusão social e intersetorialidade. Vimos surgir, já em 1993, um amplo e heterogêneo conjunto de espaços de participação, dentre os quais, destacamos para nosso estudo, o Orçamento Participativo, o Programa BH Cidadania e o Programa Bolsa Escola Municipal. Ambos caracterizados como uma ação do poder público direcionada àqueles nódulos onde a exclusão social é mais perceptível: a exclusão socio-territorial (BRASIL, 2005). Com significativo acúmulo em políticas descentralizadas (Orçamento Participativo, Conselhos, Bolsa Escola Municipal e BH Cidadania), a implantação do PBF, em 2004, pode melhor ser entendida numa lógica de superação do estilo arcaico, patrimonialista e clientelista de produção de políticas sociais - superação alcançada a partir das práticas já citadas. Parte da estrutura de gestão do PBF em Belo Horizonte, é regulamentada no âmbito de uma legislação local. Isso indica, dentre outras coisas, que a partir das diretrizes nacionais, há um incremento local de ações que pautam seu modo de gestão. O Ministério estabelece a linha geral, com tendência descentralizadora, visando instigar a promoção de agendas locais que apontem para o desenvolvimento de ações em que possam fazer coincidir os interesses e potencialidades regionais. Os três principais eixos do programa refletem exatamente essa expectativa: a intersetorialidade, a participação comunitária e o controle social. Em linhas mais gerais, portanto, podemos afirmar que, em Belo Horizonte, com o formato articulado de toda a área técnica do município e com as perspectivas em curso de descentralização e de participação popular, é possível identificar liames de intersetorialidade e inclusão social, o que denota, por outro lado, avanços de governança tal como discutimos antes. Esses temas foram objeto das nossas entrevistas com o Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Patrus Ananias2, e com a analista de políticas públicas e assessora técnica da Gerência de Programas de Transferência de Renda da Secretaria Municipal de Políticas Sociais da Prefeitura de Belo Horizonte, Maria Thereza Nunes Martins Fonseca.3 Relatos de experiências A entrevista com o Ministro foi direcionada para questões de âmbito nacional. Assim, para a nossa pergunta sobre a importância das experiências dos governos locais no desenho das políticas nacionais, Patrus Ananias destaca que: É muito importante integrar o local e o regional 2 3 na perspectiva de desenvolvimento de um projeto nacional... É importante pensar o País, considerando as diversidades e características locais e regionais. A própria Constituição prevê a possibilidade de abertura de mais espaços para a inserção dos municípios nos projetos nacionais, com o desafio de integrar as diferenças, potencializando, através dos arranjos locais, a aplicação dos recursos. Há, portanto, razões políticas e jurídicas para que pensemos assim. Não tem sentido um modelo local que não esteja integrado com um modelo nacional, de forma republicana. Quanto à forma como o MDS desenvolve essa integração, o Ministro Patrus afirma que o papel do Ministério é muito mais de indução de inovações do que, propriamente, de determinação das ações. A atenção do Ministério estaria mais voltada, portanto, para a qualificação técnica e o financiamento de práticas locais. Já no que se refere às parcerias com os governos Estaduais, ainda não há nenhuma experiência significativa, conforme indica o Ministro. Possivelmente, isto esteja ligado a uma tendência de descentralização que aponta mais para a municipalização, e que lida pouco com a postura de concorrência com o Governo Federal que, freqüentemente, se observa na ação dos governos de alguns Estados. Quanto à percepção acerca da experiência de gestão local do PBF em Belo Horizonte, ele afirma: É claro que Belo Horizonte tem uma filosofia de prioridades na área social e de participação popular, como é o caso do Orçamento Participativo, iniciado em nossa gestão. Há, sobretudo, uma idéia de intersetorialidade, o que é algo muito importante... A área social sempre foi priorizada, desde a primeira gestão em 1992, através de ações nas áreas de cultura, educação, saúde e assistência social... BH começou cedo essa experiência de desenvolvimento de uma política social de distribuição de renda, com o Bolsa Escola. Essa história de BH tem, portanto, um êxito nacional. Sobre o papel dos governos locais na gestão do PBF, a analista de políticas públicas, Maria Thereza Fonseca, expressa uma visão semelhante à do Ministro: Dentro das perspectivas dos novos paradigmas das políticas contemporâneas, a descentralização está muito associada ao controle público, à participação, à territorilização. Isso significa que os cidadãos moram num município e este tem maiores chances de identificar as demandas e potencialidades dos que nele vivem. Então, acredito que o governo local sempre subsidia o Governo Federal, na medida em que a sua experiência, se teorizada, pode gerar conhecimento que possa alavancar situações que permitam abstrair diretrizes... Em outras palavras o município pode ser um sensível dispositivo de capital social. Sobre a importância das experiências de Belo horizonte, ela afirma: "Belo Horizonte tem sido uma boa vitrine de polí- Realizada em 24 de janeiro de 2007. Realizada em 30 de janeiro de 2007 Junho/Agosto de 2007 Pensar BH/Política Social 13 Bolsa Família ticas sociais... Aqui nós já temos uma discussão, desde 1997, dentro da política da assistência social, do que seriam políticas para e com a família. Tomar a família como um objeto de atenção e um sujeito coletivo de direitos é um paradigma bastante inovador. Também a discussão sobre a territorialização e definição de áreas consideradas com maiores riscos, dentro das nove regionais, que aconteceu dentro do Programa BH-Cidadania, é um fato muito interessante.Outra questão que também transversaliza é a dos direitos humanos. A Prefeitura possui uma Secretaria Municipal Adjunta de Direitos de Cidadania que vem discutindo as questões de públicos específicos e também as questões gerais como os Direitos Humanos... e isso tem sido algo que atravessa o pensar das outras políticas. Considerações Finais As duas entrevistas, parcialmente reproduzidas aqui, confirmam nossa visão de que a gestão do PBF em BH apresenta grandes inovações, dentre as quais, merecem destaque:1) a natureza estratégica de gestão do Programa, que aponta para princípios de descentralização e de governança. 2) As experiências iniciadas com o Orçamento Participativo contribuem fortemente para o aprofundamento dessas práticas e promovem avanços em dois procedimentos na gestão do PBF: a implantação de gerências específicas em cada uma das nove regionais e a abordagem dos problemas da pobreza e da vulnerabilidade a partir de uma noção de intersetorialidade e de trabalho em rede. No que concerne à democratização do acesso, não nos referimos propriamente ao acesso universal e incondicional, mas à constituição de arenas decisórias, em que os passos do Programa possam ser amplamente discutidos e as decisões favoreçam aos que de fato precisam, a todos quanto for necessário.4 Nisso, Belo Horizonte acumula uma série de experiências significativas. As arenas abertas a partir da multiplicidade de Conselhos, vêm possibilitando significativas melhorias políticas e sociais naqueles territórios onde a vulnerabilidade se apresenta com maior intensidade, o que, certamente, resulta em impacto positivo na qualidade de vida das famílias atendidas pelo programa. Um limite a ser destacado aqui diz respeito à ausência do Governo Estadual numa possível articulação intergovernamental voltada para a Região Metropolitana de BH. Devido ao adensamento populacional no entorno da capital, com forte tendência de conurbação, é importante o desenvolvimento de ações articuladas entre os vários municípios, dado que uma mesma realidade social é amplamente compartilhada no anel de cidades que compõem a periferia desta metrópole. Por conseguinte, o que podemos afirmar dessa cultura de participação é que, em última análise, já não é mais propriedade política de uma coligação partidária que ora exerce o governo municipal. Trata-se de um processo em construção na cidade e para a cidade, cuja história, dificuldades, desafios e acertos, contribuíram para fixá-la definitivamente como patrimônio político dos munícipes. ABSTRACT One of the basic aims of the Family Grant Program (FGP) is the intersectoriality promotion, acting in an inductive way in the agendas and local policies production. For our study effectiveness, we detach the case Belo Horizonte City Hall. Our interest is to point out how much and how some experiences and experimentalisms of the Mineira capital have contributed for the enlargement of the conception of a new agenda that, for its potential of knowledge and democratization construction, brings important innovations for the FGP management. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANANIAS (2006) Patrus. "Bolsa Família e Projeto Nacional". In: Belo Horizonte, Revista Pensar BH/Política Social, n. 15, abril /junho de 2006. BRASIL (2005) Flávia de Paula Duque. "Governos Locais e Inovações Democráticas no Contexto Brasileiro Contemporâneo". Curitiba, IPARDES, 2005 (mimeo). DRAIBE (1990), S. Miriam. "As políticas sociais brasileiras: diagnósticos e perspectivas". In: Para a década de 90 - prioridades e perspectivas de políticas públicas. Brasília: IPEA /IPLAN, 1990. DUBOIS (1997), J. Communautés de Politiques et Projets Urbains: étude compareé de deux grandes opérations d'urbanisme municipales contemporaines. Paris, Editions l'Harmaytan, 1997. 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