Uma perspectiva política em Adorno Neri Pies* Estrutura do pensamento filosófico de Adorno Theodor W. Adorno constrói o seu método e pensamento filosófico a partir da dialética, por entender que ela possui um caráter crítico e eficaz para enfrentar os desafios teóricos postos pela teoria positivista e também pelo idealismo. Através do método dialético, alicerçado no pensamento crítico e reflexivo, Adorno aborda a racionalidade instrumental que, no pensamento do autor, ao invés sublimar, reprime e elimina o outro, o “não idêntico”, ou seja, a tradição filosófica com traços do positivismo e do idealismo, hipostaseia o pensamento e a vida, reforçando a dominação do outro. Ao cerne da estrutura do pensamento do filósofo em questão, adiciona-se ainda as questões referentes à reprodução ideológica do capitalismo contemporâneo e às formas totalitárias de governo1 que não oportunizam integralmente a autonomia e a liberdade dos indivíduos, pois tudo estaria definido de antemão por um pensamento * Doutorando em Filosofia na Unisinos. Mestre em Educação pela UPF. 1 As principais interferências sociais e de governo no pensamento de Adorno são: a) experiência nazista na Alemanha e a fascista na Itália, b) o socialismo opressor de Stalin na Rússia e c) a cultura de massas nos Estados Unidos. Em todas as experiências vê-se regimes totalitários e opressores calcados num espírito decadente e de uma racionalidade formal instrumental opressora. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 129 unificador, que não deixa nada de fora. Sendo assim, uma das questões que precisa ser tematizada é: se a nossa sociedade e vida está regrada por esses elementos, onde “nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do de fora é a verdadeira fonte da angústia”, como pensar perspectivas para além de uma sociedade e uma vida administrada? Essa não é uma questão simples, que possa ser respondida imediatamente, isso se realmente tiver alguma resposta, por isso, ela permeará a nossa investigação da pesquisa. Adorno pode ser considerado o pensador que se contrapõe às teorias que impedem o ser humano de ser autêntico, que querem regular o indivíduo conforme interesse de particulares em prol de um aparente progresso. Assim, ele fomenta e coloca à disposição um pensamento filosófico, operado pela dialética, que não pretende submeter o outro a uma vida administrada, já que é um pensamento que se contrapõe e resiste ao formalismo da ratio burguesa. Romper com o pensamento unificado, homogêneo, totalizador, onde tudo é definido de antemão, se torna uma tarefa incansável tanto para a época de Adorno quanto para os dias atuais, pois ainda persiste a dinâmica, a postura e a condução do sistema para a vida administrada. É preciso superar ou romper com a teoria de que tudo aquilo que é diferente seja igualado ou ainda, de querer estabilizar uma sociedade contraditória por intermédio da racionalidade instrumental. Muito provavelmente para quem vai ter um primeiro contato com a filosofia de Adorno, irá assustar-se por dois motivos, uma vez que as obras dele são extremamente desafiadoras e estão inseridas na vida da contemporaneidade. Em um motivo menor podemos dizer que ele escreve de uma forma bastante singular, tornando a compreensão e interpretação mais complicadas por parte do leitor e num motivo mais enfático, as obras nos fazem pensar e repensar os conceitos ou ideias que temos como dadas e acabadas, ou seja, elas nos fazem questionar sobre sociedade, filosofia, maneira de viver, etc. O seu modo de se expressar pode confundir até mesmo quem aprecia sua teoria, caso não faça-se uma leitura e pesquisa minuciosa e pacienciosa, pois, ora podemos nos perguntar primeiramente, “o que ele quer dizer” e num segundo momento “ele quer mesmo dizer isso?” Assim, percebemos que Adorno quer ir além da superfície imediata das coisas, isto é, não se contenta com as aparências e faz o embate para substituir a simples opinião pela 130 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 verdade, o que sempre é um pensamento ou algo difícil, mas que tem um valor substancial quando se almeja resistir à administração da vida. A estrutura metodológica do pensamento do autor desde o início é composta por questões importantes entrelaçadas estritamente com o mundo em que vivemos, ou ainda, entre sociedade e indivíduos. Adorno tem uma preocupação com os efeitos do sistema capitalista e com a forma de pensarmos, porém, ele não apenas elenca a [...] deformação da razão sob o impacto de transformações históricas ou econômicas específicas. Isso seria presumir antecipadamente que sabemos o que é a história, ou onde começa e termina a economia. Em vez disso, Adorno tenta encontrar formas de investigar a incapacidade da razão em explicar os evidentes fracassos da vida social, posto que pensar histórica ou economicamente seria tanto uma parte do problema quanto sua solução (THOMSON, 2010, p. 11). Mesmo que o mundo aparenta estar cada vez mais nítido a olhos nus, que as ideias e as relações se tornam públicas sistematicamente sem “filtragem”, é imprescindível, para Adorno, ir além da filosofia dos relatos para encontrar efetivamente uma fundamentação reflexiva, uma vez que “a vida não vive” (ADORNO, 1992, p. 15). Assim, a crítica não se refere apenas ao fato histórico, mas a instâncias do pensamento que não conseguiu e ainda não consegue produzir o seu conteúdo de verdade. Nesse sentido, a reflexão filosófica que Adorno faz nos remete a tematizar sobre como os indivíduos vivem e de que forma eles buscam a verdade, sendo que não existe mais uma natureza impositiva que determina a vida, mas ao mesmo tempo as pessoas são dominadas por outros elementos. Vale enfatizar que o ser humano na modernidade pode agir em nome próprio sem medo, pois ele pode fazer uso da sua razão livremente. Entretanto, para Adorno as pessoas estão sob a dominação da razão, isto é, a ação é pensada de antemão sem que o indivíduo perceba, ele está condicionado por um sistema totalizador, não sendo livre e nem autônomo. O indivíduo apenas reproduz o que já está pensado, torna-se um objeto a favor da sociedade administrada. Entendendo dessa maneira ganha sentido a frase “a dominação universal da natureza volta-se contra o próprio sujeito” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 34). Sendo assim, podemos perguntar: como ultrapassar a racionalidade instrumental e fomentar outra esfera política, outra consciência, imprescindíveis para Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 131 romper com a lógica absolutista? Ou se quisermos ir mais longe, por que o pensamento se tornou tímido frente as barbáries constantes, frente a vida administrada? Poderíamos situar os questionamentos também da seguinte forma: o que realmente significa o pensamento crítico, reflexivo, dialético para Adorno? Existe espaço na atual sociedade para o pensamento livre e autônomo se realizar, uma vez que, como vimos acima, “nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do de fora é a verdadeira fonte da angústia” (ADORNO, 1995, p. 29)? Qual seria o espaço e como se daria a sua articulação? Como pensar uma vida e uma sociedade não administrada dentro de um sistema “unificador”? Lembrando sempre que para Adorno, “uma sociedade emancipada, contudo, não seria um estado unitário, mas a realização do universal na reconciliação das diferenças” (ADORNO, 1992, p. 99). Essas são algumas questões que acompanham o pensamento do autor e que nos deixam, de certa forma, inquietos. Ou seja, elas foram também, direta ou indiretamente, trabalhadas por Adorno, em parceria com Horkheimer em um determinado momento e também exclusivamente por Adorno, por isso escrevem no prefácio da obra Dialética do Esclarecimento. “O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (1985, p. 11). Portanto, a reflexão filosófica precisa olhar para a maneira de viver dos indivíduos na contemporaneidade, indo além das normas e resoluções estabelecidas. Romper ou resistir ao pensamento totalizador torna-se na filosofia adorniana uma tarefa elementar, entretanto, a dificuldade em empreender essa tarefa é enorme, pois “não há mais nenhuma expressão que não tenda a concordar com as direções dominantes do pensamento, e o que a linguagem desgastada não faz espontaneamente é suprido com precisão pelos mecanismos sociais” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 12). No entanto, é preciso se aventurar firmemente em águas desconhecidas sem antecipar categorias prévias e fixas, pois pensamento precisa ser um “ato de negação e resistência àquilo que lhe é imposto” (ADORNO, 2009, p. 19). O ato de negação, de resistência, é constitutivo do pensamento e do método de Adorno. Ele faz um profundo estudo das obras de Kant, Hegel, Nietzsche, Marx, Freud, entre outros, mas é através do método 132 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 dialético negativo que ele fundamenta sua teoria e afirma que, a filosofia que outrora estava em crise, permanece viva porque perdeu o instante. Nas palavras de Adorno “a filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém se viva porque se perdeu o instante de sua realização (ADORNO, 2009, p. 11). Isto é, a filosofia hegeliana, havia transformado tudo em sistema e Adorno inverte a ideia afirmando que a dialética não nos proporciona a verdade do mundo, mas sim o conhecimento de sua falsidade. Para referendar essa posição ele diz: “o todo é o não verdadeiro” (ADORNO, 1992, p. 46). Assim, o pensamento de Adorno evidencia-se mais por destruir teorias do que construir. É sempre crítico, procurando contestar as formas violentas e totalitárias que impedem a vida de ser vivida. Percebe-se que tanto a sociedade quanto a vida das pessoas está fechada num sistema que pretende ser total, onde tudo é calculado matematicamente sob a técnica da indústria cultural, responsável por disseminar e unificar as ações. Em tese, “o procedimento matemático torou-se, por assim dizer, o ritual do pensamento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 13). Por isso, o objeto primeiro que Adorno, em parceria com Horkheimer, investigam é [...] a autodestruição do esclarecimento. Não alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa petitio principii – de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 13). Aqui, mais uma vez, aparece de forma nítida a preocupação do pensamento de Adorno ou mesmo a estrutura da sua filosofia, pois aparece a reflexão de que é preciso tematizar sobre os elementos que são destrutivos à vida e à sociedade para encontrar a verdade, ou seja, Adorno constitui sua teoria filosófica considerando que o “esclarecimento tem que tomar consciência de si mesmo. Vale frisar que ‘não se trata da conservação do passado, mas de resgatar a esperança passada” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 133 Torna-se visível que seu pensamento se situa contra a maneira acrítica em que a opinião amistosa promove suas escolhas. Em outros termos, os filósofos da escola de Frankfurt 2, fazem a crítica ao Esclarecimento, ou ao desencantamento do mundo, pois este, efetivamente, se destaca como uma série de fenômenos modernos onde a característica predominante é o processo de racionalização, desmitologização do mundo, o saber como ferramenta do poder, a técnica do cálculo como supremacia, entre outros. Por isso, a necessidade de um olhar crítico sobre a própria filosofia ou sobre os sistemas filosóficos que não tiveram êxito e sobre as transformações da sociedade em curso. A ideia iluminista, do esclarecimento, fundamentava-se na ciência moderna com o indicativo de que seria possível dominar as naturezas externa e interna, ou ainda, os homens não deveriam mais ficar dependentes dos humores da natureza e nem prisioneiros das superstições, as quais impediam que seus conhecimentos se transformassem em ações racionais. Portanto, o progresso da ciência, alicerçada na razão e na técnica, era o caminho para tornar o homem um ser livre e autônomo, com intuito de tornar-se senhor de seu destino. Entretanto, para os pensadores da Escola de Frankfurt, especialmente Adorno, isso não se concretizou, mas sim, trouxe condições extremamente prejudiciais para a sociedade e para o próprio ser humano pelo fato de submeter tudo ao controle do sistema hegemônico. A partir do século XVIII a pretensa ideia de esclarecimento esteve presente, buscando na racionalidade benefícios para a humanidade, isto é, o conhecimento, ou o poder do conhecimento, seria capaz de manipular ou oferecer um bem maior ao ser humano, qual seja, a sua liberdade e a sua autonomia. O iluminismo tinha na sua concepção promover a desmistificação das antigas crenças que mantinham a sociedade, o ser humano, em atraso diante da possibilidade do uso total da razão. Adorno e Horkheimer afirmam que “no sentido mais amplo do processo do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19). 2 Em 1924 surgiu a Escola de Frankfurt na Alemanha, sendo que em comum os pensadores (Adorno, Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Pollock, Erich Fromm, Habermas, entre outros) tinham a preocupação em criar um espaço para discutir e refletir sobre problemas diversos que assolavam a sociedade e a vida das pessoas. 134 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 A argumentação do Esclarecimento de investir o ser humano de saber, de disseminar a lógica do pensar com autonomia e assim desmistificar e dissolver os seus mitos, fez com que a humanidade (sociedade e razão) se tornasse escrava de si mesma e criou uma nova mitologia. Mesmo assim, o iluminismo salienta que “o saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20). Mas sabe-se muito bem, que quem detém o saber ou quem dita a conduta na sociedade capitalista, é quem tem o poder, por isso, a autonomia e a liberdade do indivíduo passa a ser maculada e ele se torna um mero espectador ou seguidor da razão instrumental, seguidor do mundo administrado. Percebe-se que o mundo precisa se reestruturar desde os laços humanos, usando para isso a estratégia do próprio pensamento que precisa reelaborar e tematizar outras perspectivas, é nesse viés, operar por dentro, que Adorno afirma seu pensamento. Pode-se dizer que o objetivo da crítica de Adorno e Horkheimer na dialética é o formalismo da razão desenvolvida até então, na sua forma mais pura, ou seja, a indiferença da razão perante qualquer objeto e, portanto, a submissão da substância à forma. A razão formalista como fora estruturada revela-se como princípio de dominação, como o contrário da emancipação, ou ainda, o homem equivocadamente considera-se livre por ser um mero reprodutor de funções padronizadas da modernidade. Adorno cita que até mesmo o lazer é moldado pelas diretrizes culturais capitalistas, sendo a diversão uma extensão do trabalho, envolvendo relações de dinheiro, interesse e disputa. A indústria cultural mercantilizou e mecanizou todas as ações do homem e atrofiou sua consciência, impedindo-o de ser um sujeito reflexivo. Por isso, para encontrar um caminho a estas questões e uma ‘salvação’, inclusive, para a filosofia, a teoria de Adorno assinala a necessidade da revisão do processo do método dialético. A concepção de dialética predominante na tradição da filosofia estaria alicerçada, estruturada num sistema fechado que impossibilitaria o surgimento e o pensamento de algo novo. Com um sistema fechado, conforme proposto pela tradição do pensamento, ter-se-ia profundas dificuldades, quando não impossível, de compreender a realidade e o contexto da inserção do ser humano. A dialética precisa fazer um processo com que os conceitos não sejam categorias lógicas claramente distintas, mas estruturas móveis e incertas para apreender a realidade que sempre tem uma constante interação e Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 135 evolução. Portanto, “o filósofo não deve pretender ser capaz de dar uma explicação clara e racional do mundo, pois a tentativa de impor ao mundo esses padrões está ligada à violenta dominação humana da natureza” (THOMSON, 2010, p. 14). Dessa forma, os momentos específicos não devem ser derivados do todo e nem vice-versa. O que existe é um ensaio, uma tentativa de explorar de como os conceitos interagem uns com os outros sob diferentes ângulos, isto é, não existe repetição de momentos, mas isto permite lançar um olhar sob diferentes óticas. Essa forma constelar, permite também pesquisar e tematizar sobre a possibilidade de encontrarmos perspectivas políticas decorrentes da racionalidade instrumental, ou seja, de encontrarmos possibilidades de uma vida não administrada, mesmo que Adorno não tenha escrito uma teoria específica sobre a organização política. A perspectiva política Sabe-se que o projeto da modernidade traz consigo a perspectiva de um progresso ilimitado da sociedade, fundado na ciência e na técnica, bem como também querendo abranger a política e a moral. Em outros termos, na modernidade a sociedade e a vida são regidas pela técnica e pela razão instrumental, onde que “o que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama verdade, mas a operation, o procedimento eficaz” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18). No entanto, Adorno vê esse projeto do progresso com desconfiança porque a razão que governa a si e os demais, instrumentaliza-se e torna-se dominante. Esse viés está presente e aparece enfático na sociedade através do aparato econômico que determina a conduta das pessoas, pois “a racionalidade econômica, esse princípio tão enaltecido de menor meio, continua incessantemente a remodelar as últimas unidades da economia: tanto a empresa quanto os homens” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 167). Entendendo assim, a organização da sociedade ou propriamente a vida não conseguiu se realizar como havia projetado a modernidade, pois “o progresso converte-se em regressão” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14) na medida em que ocorre o domínio da natureza e o domínio do homem pelo homem ou ainda porque o 136 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 [...] trabalho social de todo indivíduo está mediatizado pelo princípio do eu na economia burguesa; a um ele deve restituir o capital aumentado, a outro a força para um excedente de trabalho. Mas quanto mais o processo de autoconservação é assegurado pela divisão burguesa do trabalho, tanto mais ele força a autoalienação dos indivíduos, que têm de se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 36). Sendo assim, no pensamento de Adorno permanece atual no sentido de que o iluminismo deixou de lado a exigência clássica de pensar o pensamento, e por sua vez, a dialética teria a função de ser a mola propulsora da reflexividade, do sentido da filosofia e de abrir espaço para a sociedade não administrada, para isso, ela precisaria ter uma estrutura aberta e não mais um sistema fechado, para então, renovar constantemente o conceito e interagir com a sociedade e com a própria filosofia. Essa nova estrutura, de uma dialética negativa, parte do fracasso do idealismo que absorvia o objeto na síntese, ocorrendo um domínio sobre o outro, sobre o objeto. Adorno afirma que a dialética é a consciência consequente da não-identidade, uma negação do conceito. Entretanto, o conceito vai além dele próprio para manter viva a filosofia, por isso, O juízo sumário de que não se pode mais que interpretar o mundo e mutilar-se a si mesma de pura resignação ante a realidade se converte em derrotismo da razão, depois que fracassou a transformação do mundo [...]. Desde que a filosofia faltou à sua promessa de ser idêntica à realidade ou estar imediatamente em vésperas de sua produção, se encontra obrigada a criticar-se sem hesitações (ADORNO, 2009, p. 11). Adorno evidencia-se por buscar uma concepção ampliada da racionalidade, onde seja possível dar espaço ao não-idêntico, isto é, ao outro ou ainda, para aquilo que é diferente na sociedade, mas para isso é preciso tematizar sobre o próprio pensamento e não definir categorias prévias sobre o objeto. Nesse sentido ele também procura manter a vitalidade de seu pensamento: afirmando aquilo que o pensamento não é, aquilo que ultrapassa qualquer sistema estabelecido. O seu pensamento, portanto, perpassa a reflexividade dos conceitos provocando novos significados e constelações conceituais. A sua filosofia aponta para pressupostos sociais e ideológicos Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 137 das concepções epistemológicas para romper com aquilo que denomina de “fetiche dos conceitos”, enaltecendo assim, o caráter crítico do seu pensamento. Dessa maneira o autor dá um novo caráter e sentido à filosofia e à sociedade, protegendo a razão pela dinâmica da reflexividade, repensando a relação que se estabelece entre sujeito e objeto, entre conceito e realidade. O filósofo de Frankfurt procura reformular conceitos fundamentais da filosofia por suspeitar que em toda a tradição do pensamento o eu nunca tolerou o que não era idêntico a ele mesmo. Sempre houve a intenção do domínio total do objeto e do sujeito. “O terror que tem origem no passado pré-animista passa da natureza para o conceito do eu absoluto que submete inteiramente a natureza como seu criador e dominador” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 146). Em outra passagem os autores afirmam que o pensamento tradicional estabeleceu que “tudo deve ser usado, tudo deve lhe pertencer. A mera existência do outro é motivo de irritação. Todos os outros são muito espaçosos e devem ser recolocados em seus limites, que são os limites do terror sem limites” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 151). Esse pensamento totalitário, segundo Adorno, teve seu ápice em Hegel quando ele afirma que o “real é racional”, isto é, quando ele estabelece uma identidade entre ser e pensar, entre pensamento e pensado. É nesse sentido que Adorno é enfático ao dizer que o “todo é falso”, uma vez que não se pode abstrair automaticamente ou hipostasiar. Essa maneira absolutista de pensar estendeu-se diretamente à sociedade através dos regimes totalitários, cujo os traços do pensamento “violento” ainda persistem pela técnica refinada do capitalismo, que mantém a plena administração da vida quando o indivíduo não possui forças de resistência. Pode-se constatar que aquilo que não possui identidade com o sistema, que não possui conceitos prévios, é eliminado pelas forças dominadoras, sendo assim, tanto a filosofia, quanto a perspectiva política, tornam-se possibilidades vivas na tentativa de romper essa visão totalitária e apologética, constituindo uma consciência crítica frente a ideologia tendenciosa e absolutista. Nessa característica de pensamento totalitário, o conceito de liberdade nas obras de Adorno ganha relevância, pois por um lado o indivíduo tem a pretensão de ser livre, mas por outro lado, ele sofre a interferência do sistema que administra sua vida, ou seja, existe na sociedade um sistema alicerçado na economia, na política e na ideologia que conduz a vida 138 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 arbitrariamente. Mesmo que as relações autoritárias visíveis tenham diminuído, as relações de adaptação se desenvolveram de tal forma que a liberdade pode ser confundida com a própria adaptação. Existe portanto, uma neutralização do indivíduo pela adaptação que é operada pela indústria cultural. Por isso Adorno fala da importância do pensamento resistir, já que [...] a ordem existente não compele os homens unicamente pela força física e pelos interesses materiais, mas pelo poder superior da sugestão. A filosofia não é síntese, ciência básica ou ciência-cúpula, mas esforço de resistir à sugestão, a decisão resoluta pela liberdade intelectual e real (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 200). Para Adorno a perda da liberdade é fruto da violência da sociedade industrial que se impregnou definitivamente na vida de todos, isto é, “cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde de o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 105). Na verdade, isso possibilita a interpretação de que ninguém precisa pensar por conta própria, tudo está definido antecipadamente, por isso “a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 138). O que fica explicito a partir dessa citação e de que a razão instrumental, operada pela indústria cultural, fomenta a possibilidade do ser humano se transformar em mero objeto a serviço do mundo administrado, oferecendo inclusive possibilidades para o surgimento de barbáries. Nesse aspecto, é oportuno que o pensamento crítico penetre na realidade para destruir as aparências legitimadoras e mistificadas para “trazer à luz os dispositivos de poder que se escondem sob a ordem social” (PERIUS, 2008, p. 140). No entanto, é preciso, além de trazer à luz os dispositivos, pensar além deles, e o exercício da filosofia é criar novas constelações que iluminem a realidade a partir de dentro, e não mais sobre a realidade. As formas constelares em que Adorno expõe o pensamento, atrevem-se a ignorar as teorias que a filosofia tradicional sempre fez questão de fixar. É importante ressaltamos que mesmo Adorno trazendo a luz tais configurações, ele não nos fornece uma receita para política, sendo assim, precisamos compreender que, quando falamos de política, estamos nos Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 139 referindo a algo ausente, a algo que precisa ser reinventado. Assim, o espaço político aparece como o espaço para que algo novo surja, mas para isso, é preciso desbloquear inclusive o acesso a política, operar de dentro da política para fomentar o mundo das constelações. É preciso ao mesmo tempo acolher a diferença e distanciar-se dela, ou seja, operar de forma dialética tanto “por meio dos extremos e nos próprios extremos” (ADORNO, 1981, p. 31). Nesse mesmo raciocínio, Adorno escreve na Atualidade da Filosofia: “Quem hoje em dia escolhe o trabalho filosófico como profissão, deve, de início, abandonar a ilusão de que partiam antigamente os projetos filosóficos: que é possível, pela capacidade do pensamento, se apoderar da totalidade do real”. Adorno formula seu pensamento, desde os primeiros anos de estudos, de forma diferenciada daquele que perpassou as diferentes épocas da filosofia. Considerou que resistir ao poder, ao que está fixado, pré determinado, era o caminho mais salutar. A filosofia teria o papel de apontar “a contradição entre crença e realidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 200). Ou seja, abdicar aos formatos de domínio absoluto do eu e da própria filosofia e reconhecer a realidade para além da razão, sem que essa tenha o reconhecimento total da realidade. Isso permite tematizar sobre aquilo que não é, sem fixar um conceito. Isso permite também falar sobre uma perspectiva para a política, que precisa alimentar a vida humana sem uniformizar o pensamento e a experiência. É preciso acolher as múltiplas concepções e ações, tendo a política o papel de realizar o discurso de romper com o igualitário, com o homogêneo. É preciso abrir espaço para que a liberdade e a autonomia possam efetivar-se, ou seja, o espaço político ou a política são essenciais para que algo novo na sociedade ocorra. O novo, sem a política, já nasce velho. A pergunta de como tematizar um mundo verdadeiro, justo e livre no interior de um todo social falso ou se nada mais pode ficar de fora do sistema precisa acompanhar o pensamento para quem procura uma vida não administrada. Pois “entender o mundo significa relacionar o pensamento à história, e sem congelar nenhum dos dois: um mundo eterno e imutável a ser manipulado por um pensamento invencível. Os dois interagem: nossa consideração de um ou de outro só pode ser medida... Portanto, a mediação dos dois aspectos do mundo, de história e razão, não é uma fórmula. É um desafio” (THOMSON, 2010, p. 139). Em uma passagem da Minima Moralia Adorno diz que “não há emancipação possível sem a emancipação da sociedade” (ADORNO, 140 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 1992, p. 177), o que nos dá possibilidades de compreender que a política tem um papel importante a cumprir, que é de romper com os discursos homogêneos pré determinados para que a vida possa ser vivida. Para isso, o conceito de redenção é fundamental, pois a partir dele A ausência de propósitos desmente a totalidade do proposital no mundo da dominação, e é somente pela força dessa negação, que consuma da sua consequência o existente a partir do seu próprio princípio racional, que até o dia de hoje a sociedade existente toma consciência de outra, possível (ADORNO, 1992, p. 221-222). Portanto, a política, sob conceito de redenção, precisa alimentar a vida humana, ela precisa ser um ensaio ou ainda, uma alternativa de restabelecer a dimensão consciente do pensamento, tendo por base conceitos em forma de constelações para construir novas perspectivas onde a vida não é administrada pela totalidade. Considerações finais Desde que a razão instrumental se tornou suprema, a partir do exposto, percebemos que o indivíduo perde sua autonomia, sua liberdade, sua força moral, espiritual e sua capacidade de resistência em face da pressão da sociedade para a adaptação daquilo que fora desenhado de antemão, ou seja, o indivíduo incapacitado de estabelecer um sistema consistente de resistência, vê se obrigado a acolher a decisão do poder dominante e administrado. Talvez um passo para construir efetivamente uma perspectiva política seria o fato de reconhecer a insuficiência da própria política do jeito como ela está posta, portanto, fazer a crítica imanente é necessária. Nesse sentido, reconhecer a singularidade de cada ação e pensamento, reconhecer a representação do passado em sua atualidade, considerar o não idêntico e ver as coisas do ponto de vista da redenção é um indicativo para pensar um vida não administrada a partir da política. Por fim, a política precisa ter uma dimensão constelar, pois “uma sociedade emancipada, contudo, não seria um estado unitário, mas a realização do universal na reconciliação das diferenças” (ADORNO, 1992, p. 99). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 141 Referências ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ______. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. ______. Mínima Moralia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. ______. Prismas: Crítica Cultural e Sociedade. São Paulo: Ática, 1998. ______. Teoria Estética. Trad. Arthur Morão. Lisboa: Edições70, 1988. ______. Tres estudios sobre Hegel. Madrid: Taurus, 1981 ______. 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