Homofobia: a dimensão de poder na estigmatização da diferença

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Homofobia: a dimensão de poder na estigmatização da diferença
Rita C. C. Rodrigues
Até que ponto a violência homofóbica pode ser
interpretada como uma modalidade da violência
de gênero? O que há, na violência homofóbica, de
disputa por poder, isto é, de manifestação do
desejo de conquistar valores como prestígio,
dominação e superioridade?
Resumo
Este trabalho problematiza os desencadeadores das dinâmicas de violência física e
simbólica manifestas sobre as homossexualidades e esboça uma análise política acerca das
distintas formas de recepção dos gêneros fora da norma. Para tanto, propõe um quadro
analítico que conjugue as dimensões do político de maneira contextualizada.
Em uma primeira abordagem busquei compreender os motivadores dessa violência
específica (homofobia), unicamente a partir do exame da diferença nos modos de recepção
social às transgressões de “papel social” (gênero) e de orientação sexual (sexo). Ali[1],
observava que a “bicha”, adotando a expressão social de gênero feminino, via sobre si
incidir “o desdobramento do estigma do passivo sexual”[2]. Incorporando o gênero
historicamente construído e representado como inferior e desprezível, estaria,
comparativamente à “lésbica” masculinizada, menos exposta às antagonizações mais
visíveis. Sua infração aos sistemas de sexo e de gênero, portadora de uma valoração
inferiorizante, desencadearia sanções circunscritas à inexpressividade social (pária), vale
dizer, ao ridículo. Entendia que a “bicha” deslizava da posição de prestígio atribuída ao
masculino para uma outra, duplamente desqualificada: pela assunção do gênero
desprestigiado (feminino) e pela infração à heteronormatividade. Não colocando em xeque,
com sua forma de infração, as estruturas de poder tradicionalmente fixadas, ela estaria
automaticamente ao abrigo de manifestações mais agudas de violência (física, sobretudo).
Essa leitura, entretanto, não dava conta da violência que atinge outras feminilidades
marginalizadas, como a travesti ou a transexual. Também não era capaz de explicar o
prestígio e o poder que, no interior das casas de candomblé, alcançam tanto os filhos de
santo portadores de gênero feminino (“adés”) quanto os pais de santo efeminados. Do
mesmo modo, não esclarecia os motivadores de violências (muitas vezes letais) contra os
homossexuais não portadores do gênero feminino, como o brutal assassinato de Édson
Néris.
Reexaminando a questão à luz de novas contribuições teóricas, busquei uma
abordagem que examinasse os mecanismos capazes de transformar diferenças pessoais em
fatores de desprestígio, segregação e, mesmo, eliminação, na conformidade com que
operam em cada contexto específico (Norbert Elias). Em outras palavras, busquei uma
perspectiva capaz de ter em consideração múltiplos fatores condicionantes. Dos sistemas de
significação ordenadores de cada contexto específico, ou seja, aquilo que representa valor
em cada configuração social, capaz, portanto, de influenciar na produção de distintos estilos
de gênero (Fátima Cecchetto), aos distintos volumes de capitais globais que cada pólo da
figuração examinada é capaz de efetivamente mobilizar (Pierre Bourdieu). Nesse exercício
igualmente incorporei as contribuições advindas da categoria do gênero (Joan Scott), bem
como a noção de sistemas de sexo e de gênero (Gayle Rubin).
Esta abordagem multifacetada e dinâmica, ao evidenciar a dimensão de poder constitutiva
da homofobia, revelou-se capaz de dar conta das distintas formas de recepção das infrações
de gênero e de sexo praticadas por homens e mulheres. Semelhante perspectiva analítica, ao
possibilitar a abordagem de múltiplas variáveis envolvidas nas manifestações de
homofobia, torna-se passível de contribuir com o esforço coletivo para o seu enfrentamento
e superação.
Palavras-chave: homofobia – gays e lésbicas – sexo e gênero – poder – estigmatização.
Poder e Estilos de Gênero
Quero iniciar essa reflexão conjunta trazendo as duas questões formuladas por Sérgio
Carrara na abertura de sua fala sobre homofobia, durante o II Curso sobre Violência,
promovido pelo Clam/Ims/Uerj e Ifcs/Ufrj e ministrado este ano no Rio de Janeiro:
– O que há de violência de gênero nessa modalidade de violência?
– Até que ponto a violência homofóbica pode ser interpretada como uma modalidade da
violência de gênero?
Acrescento outra:
– O que há, na violência homofóbica, de disputa por poder, isto é, de manifestação do
desejo de conquistar e manter assegurados valores tais como prestígio (aceitação,
reconhecimento), dominação (controle), superioridade (singularização assimétrica)?
Examinando a categoria do gênero, vamos recordar que se trata de algo que é da ordem do
construído socialmente, portanto relacional, contextualizado, histórico[3]. Estimuladas
pelos questionamentos formulados pelos movimentos feminista, lésbico e homossexual,
pesquisas acadêmicas demonstraram a inexistência de um modelo universal para cada
gênero. Através delas pudemos compreender como masculino e feminino são organizados
através do sistema de significados vigente em cada contexto ou configuração social[4]. Daí
termos hoje a percepção de que na realidade existem diversos estilos de masculinidade e
feminilidade[5]. De modo semelhante, com os estudos sobre “gays” e “lésbicas” foi
possível o entendimento de que também a sexualidade porta estilos, que são igualmente
construídos e históricos[6].
Temos então que:
=> os atributos dos gêneros (as valorações e prescrições de conduta construídas a partir da
representação dos significados atribuídos a cada um dos sexos e concebida como plasmada
nessa corporeidade);
=> os estilos e os significados das práticas sexuais;
=> os estilos e os significados da direção do desejo (orientação sexual);
=> os significados sócio-culturais do sexo anatômico
são moldados através dos sistemas de significação, isto é, dos valores e prescrições
estruturadores de cada universo social, atravessados por variáveis tais como posição,
geração, religiosidade, etnia, nacionalidade, volume de capitais econômico e simbólico etc.
Esse conjunto de significados e normas de conduta compõe convenções mutuamente
compartilhadas, conformando “guias de instrução” (cenários)[7]. Ao mesmo tempo em que
fornece orientação sobre o ser e agir idealmente desejável em cada segmento ou cultura,
esse conjunto de prescrições e significados é apropriado de forma ativa pelo indivíduo.
Concebido como ator, detém a faculdade de atuar de modo crítico e revisor das prescrições
normatizadas, podendo vir a elaborar condutas e significados alternativos. Esse processo,
segundo John Gagnon, implica em “uma constante luta entre grupos e indivíduos”[8].
Assim, na concretude de cada universo social, para cada um dos gêneros é composto um
padrão, isto é, um conjunto de atributos e prescrições, que é reconhecido e valorizado
(hegemônico, segundo alguns autores[9]) e outros que são vistos como desprezíveis
(subordinados), tornando o seu portador potencialmente desqualificável. Connel e Kimmel
desenvolvem uma abordagem dinâmica, voltada principalmente para os processos de
construção dos diversos tipos de masculinidades[10].
Connel observa que a forma de estruturação das práticas sociais compreendida pelo gênero
encontra-se necessariamente impregnada pelas demais dimensões estruturantes (as
conhecidas transversalidades) e entende a vida social como uma arena onde os estilos de
gênero entram em disputa por legitimação. Kimmel, de seu lado, também reconhece o
aspecto de disputa que constitui os gêneros e procura examinar os modos através dos quais
os ambientes sociais constroem de forma simultânea os modelos subordinados e
hegemônicos. Destaca, porém, que esse processo de construção do estilo hegemônico se dá
através da “estigmatização da diferença de outras identidades de gênero”[11].
A estigmatização da diferença
Este é o ponto que parece central examinar: as dinâmicas sociais de produção de
prestígio e estigma. Em outras palavras, os modos pelos quais elementos constitutivos de
mera singularidade são transformados em fatores de desqualificação de uns e de prestígio
para outros.
Como é sabido, os processos de desqualificação social constituem instrumentos de
estigmatização, isto é, de exercício de dinâmicas de poder e controle que atribuem
significado inferiorizante, socialmente desqualificável, a algum atributo de diferenciação.
Via de conseqüência, por oposição, atribuem valoração positiva àquele que não o possua.
Podem se expressar sobre os mais distintos individualizadores: constituição corporal,
origem e posição social, raça/etnia, religião, funcionalidade corpórea, faixa etária,
nacionalidade, sexo, gênero, capital cultural e econômico etc.
Com base nesse entendimento, parece produtivo investigar os modos de operação
dessas dinâmicas, de forma a se poder pensar mecanismos capazes de contribuir para a
superação de suas manifestações mais deletérias – entre elas a face mais conhecida das
homossexualidades: a homofobia.
É esta a idéia que trago para examinarmos em conjunto.
Antes, porém, quero registrar o entendimento da homofobia como uma modalidade
de estigmatização da diferença que atinge as insubordinações às normas prescritas para o
gênero e a sexualidade.
Suas manifestações envolvem processos tanto simbólicos, portanto, sutis,
psicológicos, quanto ostensivos, corporais, podendo chegar ao nível da completa
eliminação do indivíduo tornado portador de traços que lhe desqualificam diante de um
determinado sistema de valores. Assim compreendida essa modalidade de violência, o
exame dos processos através dos quais são socialmente produzidos prestígio e
estigmatização, pode auxiliar na busca de sua melhor compreensão e combate.
Dadas a freqüência e a variedade com que as dinâmicas de desqualificação se
manifestam, observamos que, para além das diferenças específicas de cada universo, a
dificuldade em lidar com a alteridade sem transformá-la em instrumento de inferiorização
marca o humano como um todo[12].
Percebemos, desse modo, que a homofobia é uma das formas de sua manifestação.
Sendo os processos de inferiorização um fenômeno universal, quais as suas
características? Como se manifestam? Qual o fator capaz de torná-los eficazes?
Segundo observam Elias e Castoriadis, os processos de estigmatização são
verificados universalmente. Eles se expressam sobre qualquer atributo diferenciador. O
elemento determinante para a fixação da noção desqualificadora ou abjeta é o desnível de
poder, que pode se expressar através do grau de coesão entre os integrantes do segmento
que promove as desqualificações. O que representa, na prática, a adesão aos mesmos
valores e condutas promotores da violência, além de representar um capital simbólico
passível de ser mobilizado favoravelmente.
Uma de suas características é a tendência do segmento (ou indivíduo) dominante em
atribuir ao coletivo vulnerabilizado e em processo de estigmatização as características
consideradas “ruins”, presentes em algum integrante individualmente (Generalização do
“pior”).
Em contrapartida, o grupo dominante constrói e dissemina uma imagem de si
organizada em torno da característica mais “positiva” de qualquer integrante de seu
segmento (Generalização do “melhor”)[14].
Outro aspecto a ser ressaltado diz respeito às dinâmicas de desqualificação enquanto
integrantes do processo de busca de aceitação no interior de um outro segmento,
hegemônico, ao qual não se pertença originariamente[15]. São processos formados por
ostensivos movimentos de apartação e diferenciação do grupo ou segmento ao qual se
encontre socialmente vinculado e outros, de aproximação e identificação em relação aos
valores e condutas constituintes do grupo ou segmento ao qual se deseja ter associação e vir
a pertencer. Esse processo opera com a reprodução das mesmas dinâmicas
desqualificadoras e dos mesmos referenciais do grupo ou segmento de destino[16].
Destacável igualmente a função complementar, presente em todo processo de
desqualificação social, de, por contraste, fazer o elemento desprestigiado e vulnerabilizado
(singular ou coletivamente considerado) se sentir algo “superior” ao protagonizar dinâmicas
desqualificadoras. Proporciona um sentimento de compensação; de que não se é assim tão
inferior ou abjeto, na medida em que há alguém ainda mais desqualificável.
Este é um ponto que parece central nas manifestações de homofobia, notadamente
naquelas que envolvem atores com posições socioeconômicas fortemente assimétricas, não
necessariamente implicando os chamados crimes de lucro[17].
A Estigmatização enquanto identificação
Nenhuma coletividade se define nunca como Uma sem colocar imediatamente a
outra diante de si. ... O sujeito só se põe em se opondo: ele pretende afirmar-se como
essencial e fazer do outro o inessencial. Beauvoir, 1986, 15-16.
Observando os modos através dos quais indivíduos ou grupos realizam processos de
desqualificação, Norbert Elias demonstra como estes se organizam a partir dos referenciais
de grupo ou indivíduo que, numa figuração específica, detenha posições de poder[18]. Esse
diferencial de poder atua no sentido da instituição desses referenciais (ou conjunto de
significados e valores) transformando-os em modelo hegemônico ou paradigmático. Tais
referenciais, ao atuarem como provedores de valor e prestígio, conformam processos
identitários, que são também processos de diferenciação[19]. Tais dinâmicas se organizam
e operam no âmbito da relação, não podendo, portanto, ser tomadas estática ou
descontextualizadamente.
O processo que produz a pertinência (identificação) do ator social a um determinado
microcosmo, através dos modos de adesão ao seu estilo paradigmático, simultaneamente
engendra a sua apartação (diferenciação) em relação aos outros estilos disponíveis no
próprio universo ou em outros[20].
Os indivíduos são, assim, a um só tempo, tornados e se tornam eles próprios iguais
em relação ao conjunto de valores e prescrições (estilo) ao qual se encontram em processo
de adesão e diferentes em relação a todos os demais estilos possíveis: todos os modos de ser
e viver não contidos naquela normatização instituída e instituidora que lhe reconheceu
como igual e à qual ele próprio aderiu.
São essas possibilidades outras, tornadas “abjetas”, “desprezíveis”, “marginais” ou
“desviantes” que organizam os limites, as fronteiras do aceito e prescrito. Compõem, assim,
o seu outro necessário, existindo na exata medida da norma, numa dinâmica complementar
e necessária[21]. A um tempo, ameaça e sedução[22].
Tanto os modos de instituição e preservação desses padrões de visão e ação quanto
os processos de inclusão e pertencimento nesse universo de significados envolvem tensões
e disputas e combates que são, em última análise, lutas entre sistemas de significados; entre
estilos ou princípios de visão e de divisão[23].
Ainda que recordando a possibilidade de um mesmo ator pertencer a múltiplos e
variados universos socioculturais, o que interessa aqui é pensar os processos de
estranhamento e a antagonização. Em seguida, pensá-los operando em termos dos sistemas
de gênero e sexualidade paradigmáticos.
Instituído um determinado conjunto de prescrições e valores como referente
hegemônico, impõe-se ao ator social que, para alcançar pertencimento e prestígio (tornar-se
distinguido positivamente diante dos demais integrantes do mesmo elenco), mais do que
partilhar e incorporar o comum repertório de valores e atitudes, desenvolva uma atuação
diligente no sentido da sua observância e reprodução.
Essa tarefa é desempenhada não apenas pelo ator singularmente considerado, mas,
igualmente, pelas mais distintas formas de comunidades. Elas formam instituições que têm
por missão o estabelecimento, a manutenção e a reprodução do sistema de valores e
prescrições de conduta que deverá ser observado pelos seus integrantes. Suas formas mais
conhecidas e estudadas compreendem família, vizinhança, escola, igreja. Também são
representadas pelas corporações militares e policiais; pelas cortes judiciárias, com seus
rituais e simbologias; pela universidade; o clube de lazer, mas, também, notadamente nos
centros urbanos, as chamadas tribos, gangues ou galeras. Michel Foucault, como sabemos,
foi o destacado pesquisador no desvelamento desses processos de instituição e preservação
da ordem[24]. Também Pierre Bourdieu se dedicou a examinar em determinadas
instituições como tais mecanismos perpetuam o sistema de valores e condutas tornado
paradigmático[25]. Fátima Ceccheto investigou os processos de produção de estilos de
masculinidades e entre praticantes de jiu-jitsu, galeras de funk e freqüentadores bailes
charme, em três bairros da cidade do Rio de Janeiro[26].
Esses conjuntos de prescrições e significados, construídos, fixados e incorporados
no interior das relações sociais, penetram nas camadas da consciência pessoal, passando a
funcionar como uma opinião normativa interna à pessoa. A profundidade dessa
internalização, sedimentada em processos de longa duração, torna a arbitrariedade das
significações essencializada, parecendo ser da própria “natureza das coisas”, ocultando-se,
nesse processo, as lutas pela fixação e reprodução dos significados[27].
Os incipientes estudos que dispomos no Brasil abordando a homofobia têm se
dedicado a observar as características daqueles/as que têm sido alvo dessa modalidade de
violência, embora também cuidem de examinar os contextos nos quais se desenrolam[28].
Por razões conhecidas e que envolvem as representações acerca das homossexualidades que
organizam as visões de mundo dos agentes da lei e demais profissionais do mundo jurídico,
ainda é baixo o índice de denúncias e, mais ainda, o número de casos que chegam a ser
apurados, com seus agentes devidamente sentenciados e cumprindo as penas prescritas[29].
Abordagens priorizando os valores e prescrições instituintes do estilo de masculinidade dos
agentes da violência não são costumeiras.
Se tomarmos consideração o modelo de masculinidade e sexualidade tornado
hegemônico ou paradigmático da sociedade ampliada, o que encontraremos como atributos
que devem ser perseguidos, moldados, cultivados, transmitidos e impostos?
Estilo de masculinidade paradigmático
Na cultural ocidental de matriz judaico-cristã os gêneros constituem modelos (ou
estilos) de condutas e funções sociais que se organizam, percebem e relacionam entre si de
forma dicotômica e assimétrica. Seus conteúdos tradicionalmente fixados prescrevem
atributos tais como docilidade, receptividade, fragilidade, abnegação, suavidade,
emotividade, reduzido desejo sexual e passividade, para o feminino; e agressividade,
controle e dominação, intensidade e descontrole do desejo erótico, racionalidade, vigor
físico e assertividade, para o masculino.
Conforme observa Cecchetto, há uma forte associação entre corpo e gênero em
nossa cultura[30]. O processo de normatização social tende a tornar unas e indissociáveis as
representações e prescrições acerca do sexo anatômico e do gênero. Na realidade das
interações socioculturais, contudo, verifica-se que, embora predominantemente vistas como
integrantes de um mesmo sistema (de gênero) tais representações e prescrições emergem
efetivamente de três paradigmas distintos – de sexo (corporeidade sexuada), de sexualidade
(orientação sexual) e de gênero (estilos de feminilidade e masculinidade).
A força estruturadora desses três paradigmas – um operando sobre a sexualidade,
erigindo a heterossexualidade em norma absoluta; outro, sobre o sexo, tomando o detentor
do falus como o referente de prestígio e valor (respeito, idoneidade moral etc); e finalmente
o gênero, moldado a partir desses dois paradigmas - nós podemos inferir a partir das
reflexões produzidas por Gayle Rubin, em seus principais trabalhos: El tráfico de mujeres:
notas sobre la “economía política” del sexo e Reflexionando sobre el sexo: Notas para una
teoría radical de la sexualidad[31]. Ainda que suas conclusões finais não sigam nesse
sentido.
Um trabalho onde é possível perceber claramente o modo de operação desses três
paradigmas é o de Patrícia Birman, Fazer estilo criando gêneros: possessão e diferença de
gênero em terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro[32]. Ali são examinadas as
interações sociais envolvendo homens heterossexuais, homens homossexuais efeminados,
mulheres heterossexuais e mulheres lésbicas com estilo de gênero masculinizado no interior
de comunidades de culto afro-brasileiras. Por meio das falas colhidas pela pesquisadora é
possível compreender, com extrema nitidez, os distintos modos de recepção e incorporação
das infrações de gênero e de sexualidade, bem como a existência concreta de estilos de
gênero desconectados da norma para a corporalidade – homens efeminados e mulheres
masculinizadas.
Plasmados sobre tais vetores (heterossexualidade, androcentralidade e estilos de
gênero hegemônicos e subordinados), os processos de instituição de seus conteúdos
(significados), geralmente sutis, simbólicos, tendem a ser tornados invisíveis, fazendo com
que a diferenciação construída seja percebida, defendida e reproduzida como da ordem da
natureza e da biologia[33]. Movimentos no sentido contrário às normatizações fixadas e
consagradas tendem a ser fortemente reprimidos. Essa tarefa é mais violentamente
desempenhada por um estilo de masculinidade que se organiza em torno da dominação,
hierarquia, competição, agressividade, refratário a alteridade, a diversidade e a modos de
convivência simétricos e cooperativos.
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Revista
Artigo
Homofobia: a dimensão de poder na
estigmatização da diferença
Rita C. C. Rodrigues
Elaborado em 09/2009.
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Desativar Realce a A
Estilo de masculinidade paradigmático
Na cultural ocidental de matriz judaico-cristã os gêneros constituem modelos (ou estilos) de
condutas e funções sociais que se organizam, percebem e relacionam entre si de forma
dicotômica e assimétrica. Seus conteúdos tradicionalmente fixados prescrevem atributos
tais como docilidade, receptividade, fragilidade, abnegação, suavidade, emotividade,
reduzido desejo sexual e passividade, para o feminino; e agressividade, controle e
dominação, intensidade e descontrole do desejo erótico, racionalidade, vigor físico e
assertividade, para o masculino.
Conforme observa Cecchetto, há uma forte associação entre corpo e gênero em nossa
cultura[30]. O processo de normatização social tende a tornar unas e indissociáveis as
representações e prescrições acerca do sexo anatômico e do gênero. Na realidade das
interações socioculturais, contudo, verifica-se que, embora predominantemente vistas como
integrantes de um mesmo sistema (de gênero) tais representações e prescrições emergem
efetivamente de três paradigmas distintos – de sexo (corporeidade sexuada), de sexualidade
(orientação sexual) e de gênero (estilos de feminilidade e masculinidade).
A força estruturadora desses três paradigmas – um operando sobre a sexualidade, erigindo a
heterossexualidade em norma absoluta; outro, sobre o sexo, tomando o detentor do falus
como o referente de prestígio e valor (respeito, idoneidade moral etc); e finalmente o
gênero, moldado a partir desses dois paradigmas - nós podemos inferir a partir das
reflexões produzidas por Gayle Rubin, em seus principais trabalhos: El tráfico de mujeres:
notas sobre la “economía política” del sexo e Reflexionando sobre el sexo: Notas para una
teoría radical de la sexualidad[31]. Ainda que suas conclusões finais não sigam nesse
sentido.
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Um trabalho onde é possível perceber claramente o modo de operação desses três
paradigmas é o de Patrícia Birman, Fazer estilo criando gêneros: possessão e diferença de
gênero em terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro[32]. Ali são examinadas as
interações sociais envolvendo homens heterossexuais, homens homossexuais efeminados,
mulheres heterossexuais e mulheres lésbicas com estilo de gênero masculinizado no interior
de comunidades de culto afro-brasileiras. Por meio das falas colhidas pela pesquisadora é
possível compreender, com extrema nitidez, os distintos modos de recepção e incorporação
das infrações de gênero e de sexualidade, bem como a existência concreta de estilos de
gênero desconectados da norma para a corporalidade – homens efeminados e mulheres
masculinizadas.
Plasmados sobre tais vetores (heterossexualidade, androcentralidade e estilos de gênero
hegemônicos e subordinados), os processos de instituição de seus conteúdos (significados),
geralmente sutis, simbólicos, tendem a ser tornados invisíveis, fazendo com que a
diferenciação construída seja percebida, defendida e reproduzida como da ordem da
natureza e da biologia[33]. Movimentos no sentido contrário às normatizações fixadas e
consagradas tendem a ser fortemente reprimidos. Essa tarefa é mais violentamente
desempenhada por um estilo de masculinidade que se organiza em torno da dominação,
hierarquia, competição, agressividade, refratário a alteridade, a diversidade e a modos de
convivência simétricos e cooperativos.
A centralidade do conflito na vida dos homossexuais
Lamentavelmente, na realidade de nosso país, “a história de vida de gays, lésbicas e
travestis é construída no e a partir do conflito”, conforme sintetizado por Alessandra
Rinaldi, em estudo sobre as representações que gays, lésbicas e travestis têm sobre
violência, conflito e discriminação[34].
Devemos, porém, recordar que o conflito em si não constitui fator negativo. Ao
contrário. Instaurado em face da divergência, permite a construção de novas formas de
convívio, possibilita o repensar de padrões até então vigentes[35].
Nossa dificuldade em compreendê-lo nessa dimensão criativa remonta à nossa
formação histórica, que por sua vez se inscreve em matrizes igualmente pouco permeáveis
aos valores republicanos, colaborativos e da alteridade[36]. É essa dificuldade em se
relacionar com a diferença e a divergência, marcas características de formações autoritárias
e competitivas, que nos conformam e se expressam através dos elevados indicadores de
violência e segregação social.
Finalizando
Para finalizar (mas não concluir):
O que há de comum nas manifestações de homofobia como o assassinato do
vereador Renildo José dos Santos, de Coqueiro Seco, em Alagoas, em 10/03/1993; o do
adestrador de cães Edson Néris da Silva, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, em
06/02/2000, os corriqueiros extermínios das travestis e transgêneros prostitutas[37], os
espancamentos e cárceres privados ainda hoje praticados por pais e irmãos contra “gays” e
“lésbicas”, a desqualificação das “lésbicas” masculinizadas (monokós) no interior de
algumas casas de candomblé[38]?
A mim me parece que todos eles refletem disputas por dominação, controle e
prestígio, que se expressam a partir de nossa intrínseca dificuldade em lidar com a
diferença. Atuam no sentido de perpetuar um determinado sistema de valores e normas de
conduta baseado na agressividade, na hierarquização, na aversão à diferença, na
objetalização e subjugação do Outro e na instrumentalização da vida.
A partir de tais percepções, por onde ir?
Parece-me que apenas nos voltando para o exame das dinâmicas contextualizadas,
em busca de seus referentes ordenadores. Quais sistemas de valores organizam as
prescrições: para sexo anatômico (possuir ou não um falus), estilo de gênero e orientação
sexual em cada contexto? O que exatamente, isto é, qual/quais desse/s valor/res está/ão
sendo visto/s como ameaçado/s diante da presença dos gêneros e das sexualidades fora da
norma[39] em cada configuração? Que função desempenha a violência (física e
simbólica)desferida contra tais infratores? Qual o ganho social e pessoal auferido pelo
agente da violência (física e simbólica)?
Entendo que somente através de tais problematizações é possível avançarmos na
busca de mecanismos capazes de, compreendendo suas lógicas estruturantes, desmontá-las
e construir bases outras para as relações sociais. Assentadas em torno de valores outros,
como respeito à diversidade, cooperação e solidariedade.
Referências
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defendida e aprovada em dezembro de 2006 perante o PPGPS/UFF/ESS.
Notas
[1] Colaço, 1984, 36-39.
[2] Colaço, 1984, 37.
[3] Scott, 1989.
[4] Scott, 1989.
[5] Cecchetto, 2004.
[6] Parker, 2001; Gagnon, 2006.
[7] Gagnon, 2006.
[8] Gagnon, 2006, 224. Destaquei.
[9] A formulação de Gagnon não reconhece a existência de roteiros de conduta social
(estilos; estruturação de práticas) que sejam hegemônicos. Em seu entendimento, a
permanente dinâmica de disputa no estabelecimento de atributos e práticas para as atuações
sociais (papéis) significaria a impossibilidade de sua fixação paradigmática. Para Gagnon, o
fato de inexistir um controle completo, totalmente inviabilizador da existência de roteiros
alternativos é lido como inocorrência da hegemonia (Gagnon, 2006, 224).
[10] Cecchetto, 2004, 24 e ss..
[11] Kimmel apud Cecchetto, 2004, 29. Negrito de minha autoria.
[12] Elias e Scotson, 2000, passim, Castoriadis, 260.
[14] Elias, 2000.
[15] Rodrigues, 2006(a).
[16] Rodrigues, 2006(a); 2006(6); 2006(c).
[17] Vianna e Carrara, 2004, 366-367; Ramos e Borges, 2001, 67-78.
[18] Elias, 2000, p. 24-25.
[19] Castoriadis, 2004, 259-260.
[20] Elias, 2000; Navarro-Swain, 2001-2002, 32.
[21] Butler, 2001, 155, 161-166; Scott, 1991; Barret y Phillips, 2002, 13-23; Cecchetto,
2004.
[22] Portinari, 1989, 90-91; Faury, 76-77.
[23] Bourdieu, 2001.
[24] Foucault, 2003; 2005; 1999; Microfísica do Poder. 11ª reimpressão. Rio de janeiro:
Graal, 1995.
[25] Bourdieu. 2001(a); 2005; 2003; 2001(b); 1999.
[26] Cecchetto, 2004.
[27] Bourdieu, 2001(a), 199-218, 2001(b), 7-15, 54-55
[28] Mott, 2000; Mott & Cerqueira, 2001; Iser, 2000; Ramos e Carrara, 2005; 2006.
[29] Vianna e Carrara, 2004, 365-383.
[30] Cecchetto, 2004, 71.
[31] Rubin, 1996 e 1989.
[32] Birman, 1995. Ver também: Landes, 2002; Fry, 1982; 1995; 2002.
[33] Bourdieu, 1999, 2001(b), 2003, 2005.
[34] Rinaldi, 2001, 10.
[35] Fontes, 1998, 33-52.
[36] Chauí, 2001; 2006; D’Araújo, 2003; Santos, 1993; 2006.
[37] Silva, 1993.
[38] Colaço, 2005; Rodrigues, 2006(b); 2006(c).
[39] “Gays”, “lésbicas”, “sapatão”, “viado”, “bicha”, “travesti”, “monokó”, “adé”,
transexual, “transgênero”.
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