Homofobia: a dimensão de poder na estigmatização da diferença Rita C. C. Rodrigues Até que ponto a violência homofóbica pode ser interpretada como uma modalidade da violência de gênero? O que há, na violência homofóbica, de disputa por poder, isto é, de manifestação do desejo de conquistar valores como prestígio, dominação e superioridade? Resumo Este trabalho problematiza os desencadeadores das dinâmicas de violência física e simbólica manifestas sobre as homossexualidades e esboça uma análise política acerca das distintas formas de recepção dos gêneros fora da norma. Para tanto, propõe um quadro analítico que conjugue as dimensões do político de maneira contextualizada. Em uma primeira abordagem busquei compreender os motivadores dessa violência específica (homofobia), unicamente a partir do exame da diferença nos modos de recepção social às transgressões de “papel social” (gênero) e de orientação sexual (sexo). Ali[1], observava que a “bicha”, adotando a expressão social de gênero feminino, via sobre si incidir “o desdobramento do estigma do passivo sexual”[2]. Incorporando o gênero historicamente construído e representado como inferior e desprezível, estaria, comparativamente à “lésbica” masculinizada, menos exposta às antagonizações mais visíveis. Sua infração aos sistemas de sexo e de gênero, portadora de uma valoração inferiorizante, desencadearia sanções circunscritas à inexpressividade social (pária), vale dizer, ao ridículo. Entendia que a “bicha” deslizava da posição de prestígio atribuída ao masculino para uma outra, duplamente desqualificada: pela assunção do gênero desprestigiado (feminino) e pela infração à heteronormatividade. Não colocando em xeque, com sua forma de infração, as estruturas de poder tradicionalmente fixadas, ela estaria automaticamente ao abrigo de manifestações mais agudas de violência (física, sobretudo). Essa leitura, entretanto, não dava conta da violência que atinge outras feminilidades marginalizadas, como a travesti ou a transexual. Também não era capaz de explicar o prestígio e o poder que, no interior das casas de candomblé, alcançam tanto os filhos de santo portadores de gênero feminino (“adés”) quanto os pais de santo efeminados. Do mesmo modo, não esclarecia os motivadores de violências (muitas vezes letais) contra os homossexuais não portadores do gênero feminino, como o brutal assassinato de Édson Néris. Reexaminando a questão à luz de novas contribuições teóricas, busquei uma abordagem que examinasse os mecanismos capazes de transformar diferenças pessoais em fatores de desprestígio, segregação e, mesmo, eliminação, na conformidade com que operam em cada contexto específico (Norbert Elias). Em outras palavras, busquei uma perspectiva capaz de ter em consideração múltiplos fatores condicionantes. Dos sistemas de significação ordenadores de cada contexto específico, ou seja, aquilo que representa valor em cada configuração social, capaz, portanto, de influenciar na produção de distintos estilos de gênero (Fátima Cecchetto), aos distintos volumes de capitais globais que cada pólo da figuração examinada é capaz de efetivamente mobilizar (Pierre Bourdieu). Nesse exercício igualmente incorporei as contribuições advindas da categoria do gênero (Joan Scott), bem como a noção de sistemas de sexo e de gênero (Gayle Rubin). Esta abordagem multifacetada e dinâmica, ao evidenciar a dimensão de poder constitutiva da homofobia, revelou-se capaz de dar conta das distintas formas de recepção das infrações de gênero e de sexo praticadas por homens e mulheres. Semelhante perspectiva analítica, ao possibilitar a abordagem de múltiplas variáveis envolvidas nas manifestações de homofobia, torna-se passível de contribuir com o esforço coletivo para o seu enfrentamento e superação. Palavras-chave: homofobia – gays e lésbicas – sexo e gênero – poder – estigmatização. Poder e Estilos de Gênero Quero iniciar essa reflexão conjunta trazendo as duas questões formuladas por Sérgio Carrara na abertura de sua fala sobre homofobia, durante o II Curso sobre Violência, promovido pelo Clam/Ims/Uerj e Ifcs/Ufrj e ministrado este ano no Rio de Janeiro: – O que há de violência de gênero nessa modalidade de violência? – Até que ponto a violência homofóbica pode ser interpretada como uma modalidade da violência de gênero? Acrescento outra: – O que há, na violência homofóbica, de disputa por poder, isto é, de manifestação do desejo de conquistar e manter assegurados valores tais como prestígio (aceitação, reconhecimento), dominação (controle), superioridade (singularização assimétrica)? Examinando a categoria do gênero, vamos recordar que se trata de algo que é da ordem do construído socialmente, portanto relacional, contextualizado, histórico[3]. Estimuladas pelos questionamentos formulados pelos movimentos feminista, lésbico e homossexual, pesquisas acadêmicas demonstraram a inexistência de um modelo universal para cada gênero. Através delas pudemos compreender como masculino e feminino são organizados através do sistema de significados vigente em cada contexto ou configuração social[4]. Daí termos hoje a percepção de que na realidade existem diversos estilos de masculinidade e feminilidade[5]. De modo semelhante, com os estudos sobre “gays” e “lésbicas” foi possível o entendimento de que também a sexualidade porta estilos, que são igualmente construídos e históricos[6]. Temos então que: => os atributos dos gêneros (as valorações e prescrições de conduta construídas a partir da representação dos significados atribuídos a cada um dos sexos e concebida como plasmada nessa corporeidade); => os estilos e os significados das práticas sexuais; => os estilos e os significados da direção do desejo (orientação sexual); => os significados sócio-culturais do sexo anatômico são moldados através dos sistemas de significação, isto é, dos valores e prescrições estruturadores de cada universo social, atravessados por variáveis tais como posição, geração, religiosidade, etnia, nacionalidade, volume de capitais econômico e simbólico etc. Esse conjunto de significados e normas de conduta compõe convenções mutuamente compartilhadas, conformando “guias de instrução” (cenários)[7]. Ao mesmo tempo em que fornece orientação sobre o ser e agir idealmente desejável em cada segmento ou cultura, esse conjunto de prescrições e significados é apropriado de forma ativa pelo indivíduo. Concebido como ator, detém a faculdade de atuar de modo crítico e revisor das prescrições normatizadas, podendo vir a elaborar condutas e significados alternativos. Esse processo, segundo John Gagnon, implica em “uma constante luta entre grupos e indivíduos”[8]. Assim, na concretude de cada universo social, para cada um dos gêneros é composto um padrão, isto é, um conjunto de atributos e prescrições, que é reconhecido e valorizado (hegemônico, segundo alguns autores[9]) e outros que são vistos como desprezíveis (subordinados), tornando o seu portador potencialmente desqualificável. Connel e Kimmel desenvolvem uma abordagem dinâmica, voltada principalmente para os processos de construção dos diversos tipos de masculinidades[10]. Connel observa que a forma de estruturação das práticas sociais compreendida pelo gênero encontra-se necessariamente impregnada pelas demais dimensões estruturantes (as conhecidas transversalidades) e entende a vida social como uma arena onde os estilos de gênero entram em disputa por legitimação. Kimmel, de seu lado, também reconhece o aspecto de disputa que constitui os gêneros e procura examinar os modos através dos quais os ambientes sociais constroem de forma simultânea os modelos subordinados e hegemônicos. Destaca, porém, que esse processo de construção do estilo hegemônico se dá através da “estigmatização da diferença de outras identidades de gênero”[11]. A estigmatização da diferença Este é o ponto que parece central examinar: as dinâmicas sociais de produção de prestígio e estigma. Em outras palavras, os modos pelos quais elementos constitutivos de mera singularidade são transformados em fatores de desqualificação de uns e de prestígio para outros. Como é sabido, os processos de desqualificação social constituem instrumentos de estigmatização, isto é, de exercício de dinâmicas de poder e controle que atribuem significado inferiorizante, socialmente desqualificável, a algum atributo de diferenciação. Via de conseqüência, por oposição, atribuem valoração positiva àquele que não o possua. Podem se expressar sobre os mais distintos individualizadores: constituição corporal, origem e posição social, raça/etnia, religião, funcionalidade corpórea, faixa etária, nacionalidade, sexo, gênero, capital cultural e econômico etc. Com base nesse entendimento, parece produtivo investigar os modos de operação dessas dinâmicas, de forma a se poder pensar mecanismos capazes de contribuir para a superação de suas manifestações mais deletérias – entre elas a face mais conhecida das homossexualidades: a homofobia. É esta a idéia que trago para examinarmos em conjunto. Antes, porém, quero registrar o entendimento da homofobia como uma modalidade de estigmatização da diferença que atinge as insubordinações às normas prescritas para o gênero e a sexualidade. Suas manifestações envolvem processos tanto simbólicos, portanto, sutis, psicológicos, quanto ostensivos, corporais, podendo chegar ao nível da completa eliminação do indivíduo tornado portador de traços que lhe desqualificam diante de um determinado sistema de valores. Assim compreendida essa modalidade de violência, o exame dos processos através dos quais são socialmente produzidos prestígio e estigmatização, pode auxiliar na busca de sua melhor compreensão e combate. Dadas a freqüência e a variedade com que as dinâmicas de desqualificação se manifestam, observamos que, para além das diferenças específicas de cada universo, a dificuldade em lidar com a alteridade sem transformá-la em instrumento de inferiorização marca o humano como um todo[12]. Percebemos, desse modo, que a homofobia é uma das formas de sua manifestação. Sendo os processos de inferiorização um fenômeno universal, quais as suas características? Como se manifestam? Qual o fator capaz de torná-los eficazes? Segundo observam Elias e Castoriadis, os processos de estigmatização são verificados universalmente. Eles se expressam sobre qualquer atributo diferenciador. O elemento determinante para a fixação da noção desqualificadora ou abjeta é o desnível de poder, que pode se expressar através do grau de coesão entre os integrantes do segmento que promove as desqualificações. O que representa, na prática, a adesão aos mesmos valores e condutas promotores da violência, além de representar um capital simbólico passível de ser mobilizado favoravelmente. Uma de suas características é a tendência do segmento (ou indivíduo) dominante em atribuir ao coletivo vulnerabilizado e em processo de estigmatização as características consideradas “ruins”, presentes em algum integrante individualmente (Generalização do “pior”). Em contrapartida, o grupo dominante constrói e dissemina uma imagem de si organizada em torno da característica mais “positiva” de qualquer integrante de seu segmento (Generalização do “melhor”)[14]. Outro aspecto a ser ressaltado diz respeito às dinâmicas de desqualificação enquanto integrantes do processo de busca de aceitação no interior de um outro segmento, hegemônico, ao qual não se pertença originariamente[15]. São processos formados por ostensivos movimentos de apartação e diferenciação do grupo ou segmento ao qual se encontre socialmente vinculado e outros, de aproximação e identificação em relação aos valores e condutas constituintes do grupo ou segmento ao qual se deseja ter associação e vir a pertencer. Esse processo opera com a reprodução das mesmas dinâmicas desqualificadoras e dos mesmos referenciais do grupo ou segmento de destino[16]. Destacável igualmente a função complementar, presente em todo processo de desqualificação social, de, por contraste, fazer o elemento desprestigiado e vulnerabilizado (singular ou coletivamente considerado) se sentir algo “superior” ao protagonizar dinâmicas desqualificadoras. Proporciona um sentimento de compensação; de que não se é assim tão inferior ou abjeto, na medida em que há alguém ainda mais desqualificável. Este é um ponto que parece central nas manifestações de homofobia, notadamente naquelas que envolvem atores com posições socioeconômicas fortemente assimétricas, não necessariamente implicando os chamados crimes de lucro[17]. A Estigmatização enquanto identificação Nenhuma coletividade se define nunca como Uma sem colocar imediatamente a outra diante de si. ... O sujeito só se põe em se opondo: ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial. Beauvoir, 1986, 15-16. Observando os modos através dos quais indivíduos ou grupos realizam processos de desqualificação, Norbert Elias demonstra como estes se organizam a partir dos referenciais de grupo ou indivíduo que, numa figuração específica, detenha posições de poder[18]. Esse diferencial de poder atua no sentido da instituição desses referenciais (ou conjunto de significados e valores) transformando-os em modelo hegemônico ou paradigmático. Tais referenciais, ao atuarem como provedores de valor e prestígio, conformam processos identitários, que são também processos de diferenciação[19]. Tais dinâmicas se organizam e operam no âmbito da relação, não podendo, portanto, ser tomadas estática ou descontextualizadamente. O processo que produz a pertinência (identificação) do ator social a um determinado microcosmo, através dos modos de adesão ao seu estilo paradigmático, simultaneamente engendra a sua apartação (diferenciação) em relação aos outros estilos disponíveis no próprio universo ou em outros[20]. Os indivíduos são, assim, a um só tempo, tornados e se tornam eles próprios iguais em relação ao conjunto de valores e prescrições (estilo) ao qual se encontram em processo de adesão e diferentes em relação a todos os demais estilos possíveis: todos os modos de ser e viver não contidos naquela normatização instituída e instituidora que lhe reconheceu como igual e à qual ele próprio aderiu. São essas possibilidades outras, tornadas “abjetas”, “desprezíveis”, “marginais” ou “desviantes” que organizam os limites, as fronteiras do aceito e prescrito. Compõem, assim, o seu outro necessário, existindo na exata medida da norma, numa dinâmica complementar e necessária[21]. A um tempo, ameaça e sedução[22]. Tanto os modos de instituição e preservação desses padrões de visão e ação quanto os processos de inclusão e pertencimento nesse universo de significados envolvem tensões e disputas e combates que são, em última análise, lutas entre sistemas de significados; entre estilos ou princípios de visão e de divisão[23]. Ainda que recordando a possibilidade de um mesmo ator pertencer a múltiplos e variados universos socioculturais, o que interessa aqui é pensar os processos de estranhamento e a antagonização. Em seguida, pensá-los operando em termos dos sistemas de gênero e sexualidade paradigmáticos. Instituído um determinado conjunto de prescrições e valores como referente hegemônico, impõe-se ao ator social que, para alcançar pertencimento e prestígio (tornar-se distinguido positivamente diante dos demais integrantes do mesmo elenco), mais do que partilhar e incorporar o comum repertório de valores e atitudes, desenvolva uma atuação diligente no sentido da sua observância e reprodução. Essa tarefa é desempenhada não apenas pelo ator singularmente considerado, mas, igualmente, pelas mais distintas formas de comunidades. Elas formam instituições que têm por missão o estabelecimento, a manutenção e a reprodução do sistema de valores e prescrições de conduta que deverá ser observado pelos seus integrantes. Suas formas mais conhecidas e estudadas compreendem família, vizinhança, escola, igreja. Também são representadas pelas corporações militares e policiais; pelas cortes judiciárias, com seus rituais e simbologias; pela universidade; o clube de lazer, mas, também, notadamente nos centros urbanos, as chamadas tribos, gangues ou galeras. Michel Foucault, como sabemos, foi o destacado pesquisador no desvelamento desses processos de instituição e preservação da ordem[24]. Também Pierre Bourdieu se dedicou a examinar em determinadas instituições como tais mecanismos perpetuam o sistema de valores e condutas tornado paradigmático[25]. Fátima Ceccheto investigou os processos de produção de estilos de masculinidades e entre praticantes de jiu-jitsu, galeras de funk e freqüentadores bailes charme, em três bairros da cidade do Rio de Janeiro[26]. Esses conjuntos de prescrições e significados, construídos, fixados e incorporados no interior das relações sociais, penetram nas camadas da consciência pessoal, passando a funcionar como uma opinião normativa interna à pessoa. A profundidade dessa internalização, sedimentada em processos de longa duração, torna a arbitrariedade das significações essencializada, parecendo ser da própria “natureza das coisas”, ocultando-se, nesse processo, as lutas pela fixação e reprodução dos significados[27]. Os incipientes estudos que dispomos no Brasil abordando a homofobia têm se dedicado a observar as características daqueles/as que têm sido alvo dessa modalidade de violência, embora também cuidem de examinar os contextos nos quais se desenrolam[28]. Por razões conhecidas e que envolvem as representações acerca das homossexualidades que organizam as visões de mundo dos agentes da lei e demais profissionais do mundo jurídico, ainda é baixo o índice de denúncias e, mais ainda, o número de casos que chegam a ser apurados, com seus agentes devidamente sentenciados e cumprindo as penas prescritas[29]. Abordagens priorizando os valores e prescrições instituintes do estilo de masculinidade dos agentes da violência não são costumeiras. Se tomarmos consideração o modelo de masculinidade e sexualidade tornado hegemônico ou paradigmático da sociedade ampliada, o que encontraremos como atributos que devem ser perseguidos, moldados, cultivados, transmitidos e impostos? Estilo de masculinidade paradigmático Na cultural ocidental de matriz judaico-cristã os gêneros constituem modelos (ou estilos) de condutas e funções sociais que se organizam, percebem e relacionam entre si de forma dicotômica e assimétrica. Seus conteúdos tradicionalmente fixados prescrevem atributos tais como docilidade, receptividade, fragilidade, abnegação, suavidade, emotividade, reduzido desejo sexual e passividade, para o feminino; e agressividade, controle e dominação, intensidade e descontrole do desejo erótico, racionalidade, vigor físico e assertividade, para o masculino. Conforme observa Cecchetto, há uma forte associação entre corpo e gênero em nossa cultura[30]. O processo de normatização social tende a tornar unas e indissociáveis as representações e prescrições acerca do sexo anatômico e do gênero. Na realidade das interações socioculturais, contudo, verifica-se que, embora predominantemente vistas como integrantes de um mesmo sistema (de gênero) tais representações e prescrições emergem efetivamente de três paradigmas distintos – de sexo (corporeidade sexuada), de sexualidade (orientação sexual) e de gênero (estilos de feminilidade e masculinidade). A força estruturadora desses três paradigmas – um operando sobre a sexualidade, erigindo a heterossexualidade em norma absoluta; outro, sobre o sexo, tomando o detentor do falus como o referente de prestígio e valor (respeito, idoneidade moral etc); e finalmente o gênero, moldado a partir desses dois paradigmas - nós podemos inferir a partir das reflexões produzidas por Gayle Rubin, em seus principais trabalhos: El tráfico de mujeres: notas sobre la “economía política” del sexo e Reflexionando sobre el sexo: Notas para una teoría radical de la sexualidad[31]. Ainda que suas conclusões finais não sigam nesse sentido. Um trabalho onde é possível perceber claramente o modo de operação desses três paradigmas é o de Patrícia Birman, Fazer estilo criando gêneros: possessão e diferença de gênero em terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro[32]. Ali são examinadas as interações sociais envolvendo homens heterossexuais, homens homossexuais efeminados, mulheres heterossexuais e mulheres lésbicas com estilo de gênero masculinizado no interior de comunidades de culto afro-brasileiras. Por meio das falas colhidas pela pesquisadora é possível compreender, com extrema nitidez, os distintos modos de recepção e incorporação das infrações de gênero e de sexualidade, bem como a existência concreta de estilos de gênero desconectados da norma para a corporalidade – homens efeminados e mulheres masculinizadas. Plasmados sobre tais vetores (heterossexualidade, androcentralidade e estilos de gênero hegemônicos e subordinados), os processos de instituição de seus conteúdos (significados), geralmente sutis, simbólicos, tendem a ser tornados invisíveis, fazendo com que a diferenciação construída seja percebida, defendida e reproduzida como da ordem da natureza e da biologia[33]. Movimentos no sentido contrário às normatizações fixadas e consagradas tendem a ser fortemente reprimidos. Essa tarefa é mais violentamente desempenhada por um estilo de masculinidade que se organiza em torno da dominação, hierarquia, competição, agressividade, refratário a alteridade, a diversidade e a modos de convivência simétricos e cooperativos. Publicidade Revista Artigo Homofobia: a dimensão de poder na estigmatização da diferença Rita C. C. Rodrigues Elaborado em 09/2009. «Página 2 de 2» Desativar Realce a A Estilo de masculinidade paradigmático Na cultural ocidental de matriz judaico-cristã os gêneros constituem modelos (ou estilos) de condutas e funções sociais que se organizam, percebem e relacionam entre si de forma dicotômica e assimétrica. Seus conteúdos tradicionalmente fixados prescrevem atributos tais como docilidade, receptividade, fragilidade, abnegação, suavidade, emotividade, reduzido desejo sexual e passividade, para o feminino; e agressividade, controle e dominação, intensidade e descontrole do desejo erótico, racionalidade, vigor físico e assertividade, para o masculino. Conforme observa Cecchetto, há uma forte associação entre corpo e gênero em nossa cultura[30]. O processo de normatização social tende a tornar unas e indissociáveis as representações e prescrições acerca do sexo anatômico e do gênero. Na realidade das interações socioculturais, contudo, verifica-se que, embora predominantemente vistas como integrantes de um mesmo sistema (de gênero) tais representações e prescrições emergem efetivamente de três paradigmas distintos – de sexo (corporeidade sexuada), de sexualidade (orientação sexual) e de gênero (estilos de feminilidade e masculinidade). A força estruturadora desses três paradigmas – um operando sobre a sexualidade, erigindo a heterossexualidade em norma absoluta; outro, sobre o sexo, tomando o detentor do falus como o referente de prestígio e valor (respeito, idoneidade moral etc); e finalmente o gênero, moldado a partir desses dois paradigmas - nós podemos inferir a partir das reflexões produzidas por Gayle Rubin, em seus principais trabalhos: El tráfico de mujeres: notas sobre la “economía política” del sexo e Reflexionando sobre el sexo: Notas para una teoría radical de la sexualidad[31]. Ainda que suas conclusões finais não sigam nesse sentido. 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Por meio das falas colhidas pela pesquisadora é possível compreender, com extrema nitidez, os distintos modos de recepção e incorporação das infrações de gênero e de sexualidade, bem como a existência concreta de estilos de gênero desconectados da norma para a corporalidade – homens efeminados e mulheres masculinizadas. Plasmados sobre tais vetores (heterossexualidade, androcentralidade e estilos de gênero hegemônicos e subordinados), os processos de instituição de seus conteúdos (significados), geralmente sutis, simbólicos, tendem a ser tornados invisíveis, fazendo com que a diferenciação construída seja percebida, defendida e reproduzida como da ordem da natureza e da biologia[33]. Movimentos no sentido contrário às normatizações fixadas e consagradas tendem a ser fortemente reprimidos. Essa tarefa é mais violentamente desempenhada por um estilo de masculinidade que se organiza em torno da dominação, hierarquia, competição, agressividade, refratário a alteridade, a diversidade e a modos de convivência simétricos e cooperativos. A centralidade do conflito na vida dos homossexuais Lamentavelmente, na realidade de nosso país, “a história de vida de gays, lésbicas e travestis é construída no e a partir do conflito”, conforme sintetizado por Alessandra Rinaldi, em estudo sobre as representações que gays, lésbicas e travestis têm sobre violência, conflito e discriminação[34]. Devemos, porém, recordar que o conflito em si não constitui fator negativo. Ao contrário. Instaurado em face da divergência, permite a construção de novas formas de convívio, possibilita o repensar de padrões até então vigentes[35]. Nossa dificuldade em compreendê-lo nessa dimensão criativa remonta à nossa formação histórica, que por sua vez se inscreve em matrizes igualmente pouco permeáveis aos valores republicanos, colaborativos e da alteridade[36]. É essa dificuldade em se relacionar com a diferença e a divergência, marcas características de formações autoritárias e competitivas, que nos conformam e se expressam através dos elevados indicadores de violência e segregação social. Finalizando Para finalizar (mas não concluir): O que há de comum nas manifestações de homofobia como o assassinato do vereador Renildo José dos Santos, de Coqueiro Seco, em Alagoas, em 10/03/1993; o do adestrador de cães Edson Néris da Silva, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, em 06/02/2000, os corriqueiros extermínios das travestis e transgêneros prostitutas[37], os espancamentos e cárceres privados ainda hoje praticados por pais e irmãos contra “gays” e “lésbicas”, a desqualificação das “lésbicas” masculinizadas (monokós) no interior de algumas casas de candomblé[38]? A mim me parece que todos eles refletem disputas por dominação, controle e prestígio, que se expressam a partir de nossa intrínseca dificuldade em lidar com a diferença. Atuam no sentido de perpetuar um determinado sistema de valores e normas de conduta baseado na agressividade, na hierarquização, na aversão à diferença, na objetalização e subjugação do Outro e na instrumentalização da vida. A partir de tais percepções, por onde ir? Parece-me que apenas nos voltando para o exame das dinâmicas contextualizadas, em busca de seus referentes ordenadores. Quais sistemas de valores organizam as prescrições: para sexo anatômico (possuir ou não um falus), estilo de gênero e orientação sexual em cada contexto? O que exatamente, isto é, qual/quais desse/s valor/res está/ão sendo visto/s como ameaçado/s diante da presença dos gêneros e das sexualidades fora da norma[39] em cada configuração? Que função desempenha a violência (física e simbólica)desferida contra tais infratores? Qual o ganho social e pessoal auferido pelo agente da violência (física e simbólica)? Entendo que somente através de tais problematizações é possível avançarmos na busca de mecanismos capazes de, compreendendo suas lógicas estruturantes, desmontá-las e construir bases outras para as relações sociais. Assentadas em torno de valores outros, como respeito à diversidade, cooperação e solidariedade. 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Extraído da dissertação de mestrado defendida e aprovada em dezembro de 2006 perante o PPGPS/UFF/ESS. Notas [1] Colaço, 1984, 36-39. [2] Colaço, 1984, 37. [3] Scott, 1989. [4] Scott, 1989. [5] Cecchetto, 2004. [6] Parker, 2001; Gagnon, 2006. [7] Gagnon, 2006. [8] Gagnon, 2006, 224. Destaquei. [9] A formulação de Gagnon não reconhece a existência de roteiros de conduta social (estilos; estruturação de práticas) que sejam hegemônicos. Em seu entendimento, a permanente dinâmica de disputa no estabelecimento de atributos e práticas para as atuações sociais (papéis) significaria a impossibilidade de sua fixação paradigmática. Para Gagnon, o fato de inexistir um controle completo, totalmente inviabilizador da existência de roteiros alternativos é lido como inocorrência da hegemonia (Gagnon, 2006, 224). [10] Cecchetto, 2004, 24 e ss.. [11] Kimmel apud Cecchetto, 2004, 29. Negrito de minha autoria. [12] Elias e Scotson, 2000, passim, Castoriadis, 260. [14] Elias, 2000. [15] Rodrigues, 2006(a). [16] Rodrigues, 2006(a); 2006(6); 2006(c). [17] Vianna e Carrara, 2004, 366-367; Ramos e Borges, 2001, 67-78. [18] Elias, 2000, p. 24-25. [19] Castoriadis, 2004, 259-260. [20] Elias, 2000; Navarro-Swain, 2001-2002, 32. [21] Butler, 2001, 155, 161-166; Scott, 1991; Barret y Phillips, 2002, 13-23; Cecchetto, 2004. [22] Portinari, 1989, 90-91; Faury, 76-77. [23] Bourdieu, 2001. [24] Foucault, 2003; 2005; 1999; Microfísica do Poder. 11ª reimpressão. Rio de janeiro: Graal, 1995. [25] Bourdieu. 2001(a); 2005; 2003; 2001(b); 1999. [26] Cecchetto, 2004. [27] Bourdieu, 2001(a), 199-218, 2001(b), 7-15, 54-55 [28] Mott, 2000; Mott & Cerqueira, 2001; Iser, 2000; Ramos e Carrara, 2005; 2006. [29] Vianna e Carrara, 2004, 365-383. [30] Cecchetto, 2004, 71. [31] Rubin, 1996 e 1989. [32] Birman, 1995. Ver também: Landes, 2002; Fry, 1982; 1995; 2002. [33] Bourdieu, 1999, 2001(b), 2003, 2005. [34] Rinaldi, 2001, 10. [35] Fontes, 1998, 33-52. [36] Chauí, 2001; 2006; D’Araújo, 2003; Santos, 1993; 2006. [37] Silva, 1993. [38] Colaço, 2005; Rodrigues, 2006(b); 2006(c). [39] “Gays”, “lésbicas”, “sapatão”, “viado”, “bicha”, “travesti”, “monokó”, “adé”, transexual, “transgênero”.