Reducionismo vs. emergentismo - fflch-usp

Propaganda
Filosofia das Ciências Neurais (TCFC3 - USP)
Cap. III
Reducionismo vs. emergentismo
No materialismo, qual é a natureza da relação entre mente e corpo?
1. Redução versus emergência
Voltemos ao experimento mental da duplicação material humana perfeita (seção II.1),
em que se cria uma cópia material de Calvin-1, que chamamos Calvin-2. A primeira questão
colocada foi se Calvin-2 teria consciência ou não. A resposta positiva define a posição
“materialista”, e a negativa a posição “espiritualista” (ou o dualismo de substância).
Considerando a resposta materialista, colocamos então uma segunda questão (seção II.7): no
instante da criação, quando os estados materiais são qualitativamente idênticos, os estados
mentais dos dois Calvins também seriam qualitativamente idênticos? A resposta positiva
define a posição que aceita a tese da superveniência da mente sobre o corpo.
Aceitando esta posição, a terceira pergunta a ser feita é: qual é a natureza da relação de
superveniência entre o mental e o fisiológico? Será que a consciência pode ser “reduzida” ao
estado físico-químico do corpo? Ou será que a mente possui algum tipo de autonomia
irredutível, de maneira que se falaria que a mente “emerge” do corpo material, sem ser
redutível a este? Para analisar esta questão, e definir mais precisamente o que significa
“redução” e “emergência”, apresentaremos um novo experimento mental, envolvendo o
“demônio psicofisiológico”.
2. O demônio psicofisiológico
Em sua discussão sobre a tese da superveniência da mente sobre o corpo, que chamou
de “paralelismo psicofisiológico”, Henri Bergson a caracteriza de diversas maneiras.17
Para fixar as ideias, formularíamos a tese da seguinte maneira: “Sendo dado um estado
cerebral, segue-se um estado psíquico determinado”. Ou ainda: “Uma inteligência
sobre-humana, que assistisse ao movimento dos átomos de que é feito o cérebro
humano e que tivesse a chave da psicofisiologia, poderia ler, num cérebro trabalhando,
tudo o que se passa na consciência correspondente”. Ou enfim: “A consciência não diz
nada mais do que se passa no cérebro; ela apenas o exprime numa outra língua”.
A primeira formulação se ajusta à definição que demos de superveniência, desde que o
termo “segue-se” seja entendido em um sentido ontológico, em que um domínio “fixa” o
outro. Já a segunda caracterização vai mais além, pois ela exprime a possibilidade de que a
passagem de um domínio para outro possa ser traçada racionalmente.
O recurso a uma “inteligência sobre-humana” já tinha precedentes na filosofia da
ciência, quando o físico Pierre-Simon de Laplace caracterizou um universo determinista como
aquele no qual, para uma inteligência superior, “nada seria incerto e o próprio futuro, assim
como o passado, estariam evidentes a seus olhos”. Podemos caracterizar o “demônio de
Laplace” como um ser abstrato que possuiria pelo menos quatro atributos: (i) Onisciência
17
BERGSON, H. (1974), “O cérebro e o pensamento: uma ilusão filosófica”, trad. F. Leopoldo e Silva, Coleção Os
Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, pp. 161-72; original em francês: 1904. A “inteligência” usada para
caracterizar o determinismo aparece em: LAPLACE, P.-S. (2010), Ensaio filosófico sobre as probabilidades, trad.
P.L. de Santana, Contraponto, Rio de Janeiro (orig. em francês: 1814).
18
Filosofia das Ciências Neurais (2016)
Cap. III: Reducionismo vs. emergentismo
instantânea: conheceria o estado de todo o Universo em um instante do tempo, com resolução
e acurácia perfeitas. (ii) Erudição nomológica: conheceria com exatidão todas as leis que
regem o Universo. (iii) Supercomputação: seria capaz de realizar o cálculo mais complicado
em um intervalo de tempo insignificante. (iv) Não distúrbio: a atuação do demônio não
afetaria em nada o funcionamento do Universo. Com essas quatro propriedades, pode-se
definir o “determinismo estrito” da seguinte maneira: se o demônio de Laplace partir do
conhecimento do estado atual do Universo, e fizer uma previsão sobre qual será o estado
exato do Universo depois de um certo tempo t, então se ele acertar 100% de suas previsões, o
Universo será determinista, se não, será tiquista (indeterminista).18
O demônio psicofisiológico pode ser caracterizado de maneira semelhante. Ele atuaria
sem provocar distúrbio (iv) e teria a capacidade de supercomputação (iii). Porém, no item (ii),
não é preciso incluir o conhecimento das leis causais do Universo, pois o demônio
psicofisiológico atuaria de maneira sincrônica, em um instante temporal ou em um intervalo
muito pequeno de tempo. Ele conheceria todas as leis psicofísicas, ou seja, as leis que
descreveriam como uma configuração material do corpo (considerada em todas as suas
escalas físicas, indo do mais micro para a escala macro do corpo) gera um estado mental (leis
das quais temos ainda um conhecimento muito parco). Podemos chamar a este item de
“erudição nomológica psicofísica”. Por fim, o item (i) poderia ser mantido, sendo consistente
com o que chamamos de “holismo universal” no espectro de superveniência (seção II.8); se a
base de superveniência for restrita ao corpo (cognição incorporada), então o item (i) poderia
ser restringido de maneira que o demônio teria conhecimento exato de todo o corpo material
orgânico (em todas as suas escalas físicas).
3. Definição de reducionismo psicofisiológico e de três variedades de emergentismo
Caracterizado o demônio psicofisiológico, podemos fazer a seguinte pergunta: se o
demônio conhecer o estado material exato de um corpo orgânico, ele “poderia ler tudo o que
se passa na consciência correspondente”? Se a resposta for afirmativa, teremos um mundo em
que vale o reducionismo psicofisiológico; caso contrário, teremos um mundo em que vale a
“emergência forte” da consciência a partir do corpo.
As duas posições que acabamos de definir podem ser consideradas “realistas”, pois
descrevem o mundo que se encontraria para além da capacidade de observação humana. Há,
porém, uma posição muito difundida que adota um princípio pragmatista (antirrealista) de que
não faz sentido tentar especificar detalhes inacessíveis para o ser humano, e muito menos ficar
postulando demônios fantasiosos. Esta visão desemboca num “emergentismo pragmatista”.
Há uma terceira posição emergentista conhecida como “tese da causação
descendente”. Esta tese aceita a superveniência da mente sobre o corpo, mas afirma que os
poderes causais associados às nossas tomadas de decisão conscientes estão no nível mental, e
não no nível fisiológico. Por exemplo, alguém pode estar inicialmente em um estado mental
de desejo de tomar sorvete, e em seguida passar para o estado mental de decisão de que vai se
locomover para a sorveteria. Diríamos que estado mental de desejo causou o estado mental de
toada de decisão; porém, um reducionista poderia dizer que foi o estado cerebral subjacente
ao primeiro estado mental que causou o estado cerebral subjacente ao segundo. Os
emergentistas defensores da causação descendente negam isso: os poderes causais estariam
nos estados mentais, não nos estados cerebrais. O termo “descendente” surge a partir de um
18
Esta análise é feita em PESSOA JR., O. (2012), “Definição de propriedades ‘superempíricas’ como relações
entre fatias do universo”, in SILVA, C.C. & SALVATICO, L. (orgs.), Filosofia e história da ciência no Cone Sul:
seleção de trabalhos do 7º Encontro da AFHIC, Entrementes, Porto Alegre, pp. 401-7.
19
Filosofia das Ciências Neurais (2016)
Cap. III: Reducionismo vs. emergentismo
diagrama, semelhante ao da Fig. II.2, em que a flecha que denota a causalidade sai do estado
mental m1 e se dirige para o estado físico p2.
A discussão sobre a causação descendente transcende o escopo de aplicação do
demônio psicofisiológico, que tem sua atuação limitada a um instante de tempo, de maneira
sincrônica (ou seja, ele não teria a capacidade de afirmar quais seriam as verdadeiras relações
causais). Por outro lado, o filósofo Jaegwon Kim19 criticou a tese da causação descendente
com base na hipótese de que o universo físico teria um “fechamento causal”, no sentido de
que o estado fisiológico p2 seria determinado causalmente de maneira completa pelo estado
físico do corpo e do seu ambiente nos instantes anteriores. Ora, se de fato o fechamento causal
do mundo físico for aceito, não haveria espaço para uma relação causal adicional, de natureza
mental (a não ser que a mente fosse idêntica ao encéfalo, ou melhor, à sua base subveniente
material).
O DEMÔNIO PSICOFISIOLÓGICO PODERIA DEDUZIR O ESTADO MENTAL DE MANEIRA EXATA?
RESPOSTA
CONCEPÇÃO
TESE
Sim (posição
realista)
Reducionismo
psicofisiológico
Em princípio poder-se-ia deduzir o estado mental mi
a partir do estado fisiológico pj.
Não (posição
antirrealista)
Emergentismo
pragmatista
Na prática não se pode reconstruir o estado mental a
partir do fisiológico, portanto não faz sentido
defender o reducionismo.
Não (posição
realista)
Emergentismo forte
Mesmo em princípio o reducionismo é falso, pois o
mundo não comporta tal possibilidade.
---
Emergentismo com
causação descendente
Muitas vezes(p.ex. nos desejos), seriam os estados
mentais anteriores que causam alterações no estado
cerebral (e não os estados cerebrais anteriores).
Tabela III.1: O espectro emergentista. As três primeiras concepções dão respostas à pergunta
do demônio psicofisiológico, já a quarta envolve a noção de “poder causal”.
4. História do emergentismo
O emergentismo surgiu como uma reação à tendência “constritiva e autoritária” da
redução (KIM, 2006, p. 547), e é usualmente definida como a tese geral de que, quando a
matéria adquire um certo grau de complexidade, aparecem propriedades genuinamente novas,
que não estão presentes em cada uma das partes separadas do todo. O que conta como
“genuinamente novo” é objeto de muito debate.
Historicamente, o conceito de emergência surgiu no contexto da filosofia empirista
britânica do séc. XIX. Ao tratar da composição das causas, John Stuart Mill distinguiu casos
em que a soma das causas fornece a soma dos efeitos, o que ele chamou de composição
“homopática” (hoje diríamos “linear”), e casos em que a composição é “heteropática” (não
linear), como aqueles que muitas vezes acontecem em reações químicas, em que surgem
novidades qualitativas. O fato de as causas na química e na fisiologia não se somarem de
maneira homopática indicava, para Mill, que é “impossível deduzir” as leis dessas áreas a
partir das leis da física. Esta é uma expressão da tese da emergência: as leis da química e da
biologia seriam irredutíveis às leis da física, no sentido de não serem dedutíveis a partir
19
KIM, J. (2006),“Emergence: core ideas and issues”,Synthese 151, p. 547-59 (ver p. 558).
20
Filosofia das Ciências Neurais (2016)
Cap. III: Reducionismo vs. emergentismo
destas. Mill também concebia que enunciados da química e da biologia podem ser deduzidos
de leis fundamentais dentro de cada área respectiva. No caso da química, haveria leis
fundamentais que seriam irredutíveis às leis da física, mas que serviriam para reduzir os
outros enunciados da química. Nossas teorias se estratificariam em domínios autônomos.
Essas ideias de Mill foram estudadas e desenvolvidas por dois outros pensadores na
década de 1870: o filósofo e psicólogo escocês Alexander Bain e o filósofo inglês George
Henry Lewes.20 Este último cunhou o termo “emergência”:
Ressaltar que não sabemos como essas condições múltiplas emergem no fenômeno da
Consciência é dizer que o fato sintético não foi resolvido analiticamente em termos de
todos os seus fatores. É igualmente verdadeiro que não sabemos como a Água emerge
do Oxigênio e Hidrogênio. O fato da emergência nós conhecemos; e podemos estar
seguros de que o que emerge é a expressão de suas condições (LEWES, 1875, p. 412).
A posição de Lewes, como ele esclarece na sequência do texto, se contrapõe à do
espiritualista, que defende que a mente tem existência independente do corpo. Sua postura é
claramente materialista, ao escrever que as manifestações da consciência “são” as ações do
mecanismo nervoso.
Na filosofia francesa, Henri Bergson, herdeiro da tradição espiritualista, exerceu
bastante influência em suas críticas ao materialismo e ao reducionismo mecanicista. Em 1907
publicou sua Evolução criadora, defendendo a existência de um “élan vital” que guiaria a
evolução biológica, introduzindo novas variações qualitativas e criatividade na evolução. No
contexto britânico suas ideias foram bastante discutidas, consideradas irracionais por alguns,
mas aceitas em boa medida por outros.
A figura central na elaboração de uma teoria da emergência em um contexto
naturalista, levando em conta a consolidação da teoria da evolução biológica, foi o cientista
inglês Conwy Lloyd Morgan. Ele travou contato com a obra de Bergson em 1912, quando
passaram a se corresponder. Apesar de discordar da tese bergsoniana de que intuição seria
superior à razão, abraçou a ideia de que a evolução biológica produz novidade genuína. Sua
concepção madura foi publicada em 1923 no livro Emergent evolution. Assimilou a
terminologia de Lewes de efeitos “resultantes” e “emergentes”, considerando os primeiros
como desenvolvimentos quantitativos que ocorrem de maneira contínua na evolução, ao passo
que os segundos seriam novidades qualitativas que “co-ocorreriam” com as mudanças
mecanicistas. O surgimento de um emergente seria imprevisível, e quando surgisse, no “nível
da vida”, alteraria o curso dos eventos físicos no nível inferior. Esta atribuição de poder causal
aos emergentes, que escaparia do ordenamento mecanicista, é um exemplo de causação
descendente. Há também uma noção de “estratificação do real”.
Na Filosofia da Mente, foi o inglês Charlie Dunbar Broad quem mais trabalhou os
conceitos de emergência, chegando a propor uma classificação de dezessete tipos de teorias
da mente, no último capítulo do seu The mind and its place in nature (1925), combinando
conceitos como monismo, dualismo, emergência e redução.
Críticas filosóficas associadas ao positivismo lógico, aliadas à consolidação do
programa reducionista da genética, levaram a um certo eclipse do emergentismo entre 1930 e
meados da década de 1950. No campo da filosofia da ciência, a retomada do interesse nos
conceitos de emergência e de causação descendente se deu a partir da revisão crítica feita em
20
MILL, J.S.(1843), A system of logic, ratiocinative and inductive, J.W. Parker, Londres, livro III, cap. VI, pp.
425-36. LEWES, G.H. (1875), Problems of life and mind, vol. 2, J. Osgood, Boston. MORGAN, C.L. (1923),
Emergent evolution, Williams & Norgate, Londres. BROAD, C.D. (1925), The mind and its place in nature,
Harcourt, Brace & Co., New York. Um relato histórico detalhado é oferecido por BLITZ, D. (1992), Emergent
evolution, Kluwer, Dordrecht. O presente resumo aparece de forma mais detalhada em: PESSOA JR., O. (2013),
“Emergência e redução: uma introdução histórica e filosófica”, Ciência & Cultura65(4): 22-26.
21
Filosofia das Ciências Neurais (2016)
Cap. III: Reducionismo vs. emergentismo
1956 por Meehl & Sellars. A ideia de emergência na filosofia da mente oferecia uma maneira
de conciliar o materialismo (ou fisicismo) com o não reducionismo. O neurocientista Roger
Sperry começou a articular sua concepção em 1952, a partir da noção de que os fenômenos
mentais não se encontram no nível neuronal, mas constituiriam um nível holista mais elevado.
Na década de 1960, culminou seus esforços de compreensão do fenômeno psíquico com a tese
da causação descendente (seção III.3), a tese de que a consciência pode controlar, de maneira
top-down (de cima para baixo), os caminhos seguidos pelo cerébro.21
A “re-emergência” dos conceitos de emergência, de estratificação da natureza e de
causação descendente se consolidou, na filosofia da biologia, na década de 1970, em autores
como Ernst Mayr, Paul Weiss, Peter Medawar e Donald Campbell. Na filosofia da ciência,
autores como Karl Popper e Mario Bunge exploraram o conceito no final da década de 1970,
e nos anos seguintes ele se tornou um tópico central da filosofia da mente, associado ao
fisicismo não-redutivo.
5. Hinduísmo e budismo
As concepções a respeito da alma na antiga Índia são altamente originais. O pano de
fundo das filosofias indianas são os antigos hinos do Rig Veda, compostos em torno do séc. X
AEC, formulados pelos arianos que haviam adentrado o subcontinente indiano. O primeiro
florescimento da filosofia da Índia ocorreu no séc. VI AEC, com escritos como os Upanishads,
que apresentam a doutrina da reencarnação e a de um ser divino unificado. Os rituais
religiosos que seguiam esses textos, comandados pelos sacerdotes “brâmanes”, constituem a
tradição hinduísta. A prática de ioga e da auto-disciplina se desenvolvem nesse período. O
Brahman seria o sutil poder cósmico existente dentro de cada coisa, e o atman, o eu eterno
dentro do indivíduo e em todo cosmo. Há a meta da libertação do eu, associado à
reencarnação. Outro tema é a indescritibilidade do conhecimento superior: o eu é visto como
algo que não pode ser conhecido da maneira ordinária.22
Além da religião dos brâmanes, havia nessa época outras tradições ascéticas
(denominadas “sramânicas”), com seus textos próprios, que incluíam o jainismo e o budismo.
Já mencionamos a escola carvaka, materialista, que combatia os rituais religiosos (seção II.2).
Para ela, a alma ou consciência se manifestaria a partir dos quatro elementos materiais por um
processo semelhante à fermentação (que produz álcool a partir de ingredientes nãoalcoólicos), e a morte seria o fim tanto do corpo quanto da alma.
O budismo nasceu neste período na Índia, com os ensinamentos de Buddha (563-483
AEC), espalhou-se pela Ásia, mas praticamente desapareceu na Índia. A vida seria permeada
de sofrimento (dukha), cuja causa é o desejo e a sede. A cura para isso são os “oito caminhos”
que levam à meditação e à práticas contemplativas. Curado do sofrimento, o indivíduo não
renascerá, mas se torna uma espécie de santo, atingindo o nirvana. A existência é vista como
marcada pela impermanência (mudança), sofrimento e ausência do eu. Repudia-se assim a
noção de “substância” ou “coisa”: o que há são eventos de curta duração. A linguagem com
21
SPERRY, R.W. (1986), “A interação mente-cérebro: mentalismo, sim; dualismo, não”, in SPERRY,Ciência e
prioridade moral: uma fusão da mente, do cérebro e dos valores sociais, trad. L.C. Csekö & C.A. Medeiros,
Zahar, Rio de Janeiro, pp. 109-39 (orig. em inglês do artigo: 1980) (disponível na página do curso). Ver estudo
sobre Sperry em LESTIENNE, R. (2013), “A emergência, uma solução ao problema mente-corpo?”, Ciência &
Cultura65(4): 22-26. Duas coletâneas de textos sobre o emergentismo são: BECKERMANN, A.; FLOHR, H. & KIM,
J. (orgs.) (1992), Emergence or reduction?, W. de Gruyter,Berlin.BEDAU, M.A. & HUMPHREYS, P. (orgs.)
(2008),Emergence: contemporary readings in philosophy of science, MIT Press,Cambridge (MA).
22
Seguimos nesta seção a apresentação sucinta feita em SMART, N. (1999), World philosophies, Routledge,
Londres.
22
Filosofia das Ciências Neurais (2016)
Cap. III: Reducionismo vs. emergentismo
seus substantivos nos engana: o eu, por exemplo, é na verdade uma nuvem de eventos.
Contradizendo as concepções hinduístas, o budismo nega uma alma eterna ou a existência de
um atman divino no coração de cada indivíduo. Cada indivíduo seria composto por cinco
tipos de eventos (kandhas): eventos corporais, percepções, sentimentos, disposições e eventos
conscientes. Passamos de uma vida para outra sem uma alma que permanece, mas devido a
uma conexão causal entre os eventos, de instante para instante, de vida para vida. A questão
de como renasceremos depende de nosso kharma psicológico: se nossos pensamentos forem
virtuosos e generosos, teremos boas chances de renascer num estado bom. Pode-se assim
renascer no céu, e viver como um Deus. Questões metafísicas sobre a morte, a eternidade, a
infinitude do Universo, sobre a relação do espírito vivo e o corpo, permanecem não
respondidas, numa postura pragmática.
A escola Sankya do hinduísmo surge por volta do séc. IV AEC, divergindo da tradição
ao negar a existência de Deus e postulando que cada alma eterna (purusa) vive em constante
ciclo de morte e reencarnação. A alma é vista como pura consciência, havendo uma
contrapartida corporal na matéria. Há assim um dualismo, envolvendo a natureza material e
uma pluralidade de almas. Ao contrário dos átomos materiais, bem localizados no espaço, as
almas estariam difundidas no espaço, apesar de estarem presas a um corpo, até conseguirem
atingir a liberação final no estado de “isolamento”, onde não haveria dor ou tristeza
(semelhante ao nirvana budista).
O Sankya acabou se aproximando da escola de Yoga, com suas profundas práticas
meditativas, tão interessantes para a filosofia da mente. O texto Yoga sutra foi escrito por
Patanjali, em torno do séc. II AEC. As outras quatro escolas tradicionais do hinduísmo também
se aliaram em pares. A combinação Nyaya-Vaisesika aliou uma escola de lógica e
epistemologia com uma visão de mundo atomista. O Mimamsa especializou-se na exegese de
textos sagrados, aliando-se com a visão teológica e metafísica do Vedanta.No séc. IV,
Sankara (788-820), que fundou a Advaita Vedanta, uma visão não-dualista, ou monista. Há
um Deus, ao mesmo tempo impessoal e pessoal, e apenas um tipo de substância. A aparente
multiplicidade do mundo seria uma ilusão ou maya. Um desdobramento idealista da Advaita
Vedanta foi a doutrina do Drstisrsti do séc. X, para quem o mundo é criado pela percepção.
No budismo, surge no séc. I EC a filosofia Mahayana, representada pelo pensador
Nagarjuna. Tudo é visto como vazio, pois nada tem existência por si próprio. O ceticismo de
Nagarjuna está presente em sua afirmação de que não tinha posição filosófica, buscando
revelar as contradições em todas as posições, inclusive as teorias do tempo e da causalidade.
O vazio dos fenômenos se encaixa bem com o caminho da contemplação: a consciência pura
almejada pelo budista não distingue entre sujeito e objeto. Um desenvolvimento mais idealista
do budismo é a escola Vijnanavada ou Yogacara, do séc. IV. Só haveria representação: a
realidade do mundo dos fenômenos seria uma projeção criada pela consciência.
As concepções hinduístas e budistas tiveram alguma influência na filosofia ocidental,
como no filósofo Arthur Schopenhauer, que reconhece a “ilusão das aparências” (o véu de
maya) que nos prende ao “princípio de individuação”.23 O conhecimento do todo, porém,
pode nos levar ao estado de resignação em que a vontade desliga-se da vida (o nirvana).
6. Idade Média europeia
Muito da filosofia medieval eram comentários e desdobramentos das filosofias de
Platão e Aristóteles, enquadrados na visão de mundo cristã. Uma das fontes dessa tradição é a
23
SCHOPENHAUER, A.(2001), O mundo como vontade e representação, trad. da2a ed. de 1851 por M.F. Sá
Correia, Contraponto, Rio de Janeiro (1a ed. em alemão: 1819), ver IV, § 68.
23
Filosofia das Ciências Neurais (2016)
Cap. III: Reducionismo vs. emergentismo
obra de Santo Agostinho (354-430), para quem a alma humana seria uma substância racional
própria para governar o corpo. Refletindo sobra a natureza da alma e sua relação com o corpo,
na obra Cidade de Deus, Agostinho antecipou algumas das observações que Descartes faria
sobre o assunto, como a tese de que “se eu erro, sou” (XI, 26) e a constatação de que a
maneira como a alma está unida ao corpo transcende a compreensão humana (XXI, 10). Sua
obra serviu de inspiração para o De anima de Isidoro de Sevilha (570-636), que argumentava
a favor da imaterialidade e imortalidade das almas individuais. Posteriormente, diversos
pensadores cristãos proporiam demonstrações racionais das doutrinas teológicas, incluindo a
imaterialidade e imortalidade da alma. Apenas com Duns Scotus (1266-1308) e Guilherme de
Ockham (1285-1349) surgiria um ceticismo com relação à possibilidade de se provar a
imortalidade da alma.24
A assimilação dos escritos de Aristóteles trouxe problemas de consistência com a
doutrina cristã. No caso da concepção hilemórfica de alma, São Boaventura (1217-74)
admitiu que a alma racional seria o princípio e a forma do corpo humano, mas para preservar
a imortalidade da alma, propôs que esta também seria uma união hilemórfica entre uma
“forma espiritual” e uma “matéria espiritual”. São Tomás de Aquino (1225-74) rejeitou essa
noção de matéria espiritual, mas articulou a concepção de que a alma, mesmo sendo uma
forma, é uma entidade que subsiste sem o corpo. Essa alma separada, porém, não é uma
pessoa completa.
Outra interpretação de Aristóteles havia sido desenvolvida pelo muçulmano Averroes
(ibn Rushd) (1126-98) e aceita na Europa por Siger de Babant (1224-82), e concebia que os
intelectos passivo e ativo seriam um princípio universal único, de forma que haveria só um
intelecto distribuído dentre os inúmeros corpos. Aquino atacou este “monopsiquismo” em seu
A unidade do intelecto contra os averroistas, defendendo que cada homem tem um intelecto
próprio. Outra posição criticada por Aquino é a tese da alma tripartida, rearticulada pelo
filósofo judeu Avicebron (1020-70), segundo a qual o homem teria pelo menos três almas
distintas, a vegetativa, a sensitiva e a racional. Aquino discutiu também o problema da origem
da alma em um embrião humano. Defendeu o “criacionismo da alma”, ou seja, Deus criaria
uma alma humana única (possuidora dos diversos poderes) na concepção, e criticou o
“criacionismo dualista”, que defendia que a alma racional é adicionada por Deus em separado
a um corpo recém-criado, e também o “traducianismo”, que via a alma racional como sendo
gerada naturalmente juntamente com a matéria durante a reprodução sexual.
Mais tarde, no Renascimento, não só o averroísmo seria condenado explicitamente
pela igreja, mas também o alexandrismo, que se refere às teses de Alexandre de Afrodísias (c.
200 AEC), retomadas por Pietro Pomponazzi (1462-1525), de que, apesar de o pensamento ser
um processo não-físico, o sujeito de tal atividade só pode ser um humano vivo e mortal.
7. Dilemas morais no experimento mental da duplicação humana
Retornando ao experimento mental da duplicação humana (seção II.1), um ponto que
faltou discutir é o fato de que Calvin-1, alguns dias antes da duplicação, ter ido a uma festinha
na casa de sua vizinha Susie. Ora, Calvin-2 certamente não foi a esta festinha, então deveria
haver uma diferença entre os dois Calvins no instante da criação. Porém, se aceitarmos a tese
materialista de que a nossa memória está registrada no encéfalo (e no ambiente à nossa volta),
então os dois Calvins terão a mesma impressão subjetiva a respeito dos seus passados, e
estarão em estados mentais com identidade qualitativa.
24
Seguimos nesta seção a HALDANE, J. (1994), “History: Medieval and Renaissance philosophy of mind”, in
GUTTENPLAN, S. (org.), A companion to the philosophy of mind, Blackwell, Oxford, pp. 333-8.
24
Filosofia das Ciências Neurais (2016)
Cap. III: Reducionismo vs. emergentismo
Vamos agora supor que Calvin é um adulto e que, para realizar o experimento, os
organizadores tivessem oferecido a Calvin-1 uma grande quantia de dinheiro, digamos 2
milhões de reais, para que uma semana depois do processo de reprodução perfeita ele tivesse
que ser morto, de maneira indolor, enquanto a sua cópia permaneceria viva, ocupando seu
lugar no mundo. Calvin-1 deveria aceitar a oferta?
Se Calvin-1 fosse uma materialista reducionista “de corpo e alma”, ela não teria
porque recusar a proposta. Do seu ponto de vista, no instante da duplicação, sua consciência é
perfeitamente semelhante à de Calvin-2. É verdade que Calvin-1 e Calvin-2 são “indivíduos”
distintos, no sentido de que os processos causais infligidos em um deles não afeta o outro; ou
seja, os dois indivíduos são “qualitativamente idênticos”, mas não “numericamente idênticos”
(seção II.9). Mas a vivência subjetiva de Calvin-2 é a mesma que a de Calvin-1, é como se
Calvin-1 estivesse ao mesmo tempo dentro de Calvin-2, só que ambos estão desconectados.
Assim, para Calvin-1 não deveria haver diferença se é ele quem continua vivendo ou
se é Calvin-2. Uma conclusão que se pode tirar disso é que não devemos temer a morte, se
houver uma cópia perfeita de nós zanzando por aí. Agora que Calvin-1 se convenceu,
racionalmente, que não deve temer a morte, que diferença faz para ele se a cópia existente é
exatamente igual a ele, ou se a cópia é só parcialmente semelhante a ele? Por que temer a
morte, se há outras pessoas perambulando por aí, compartilhando muitos de nossos atributos?
Este raciocínio pode levar à tese de que, no fundo, todos os seres conscientes são o
mesmo indivíduo. Todos seriam um! O que distingue as diferentes consciências seria o fato
de estarem individuadas em diferentes corpos, carregando diferentes memórias e diferentes
propensões de caráter. Mas por baixo dessas propriedades acidentais haveria uma semelhança
essencial. Esta tese é conhecida como “individualismo aberto”,25 e ela é próxima ao
monopsiquismo que vimos associado a Averroes (seção III.6). O individualismo aberto
explica muito bem o paradoxo de que poderíamos não estar aqui. Se os seus pais tivessem
decidido tomar uma última cerveja antes de irem para cama, certamente um outro esperma
teria feito a fecundação, e um indivíduo com um código genético distinto teria nascido no seu
lugar. Aplicando esse raciocínio ao longo de toda sua história evolutiva, a probabilidade de
você ter nascido seria realmente ínfima! Como é possível que você esteja aqui agora? Para o
individualismo aberto, isso não é um problema, pois a mesma pessoa teria nascido em
qualquer circunstância (mesmo com códigos genéticos distintos).
Este “paradoxo da derradeira cerveja” é um problema para o “individualismo
fechado”, que considera que as identidades pessoais são particulares a sujeitos e sobrevivem
no tempo, pelo menos até a morte. Já para o “individualismo vazio” o problema não se
coloca: para esta concepção, associada ao budismo e a certos trechos de Hume, a identidade
pessoal é apenas um padrão momentâneo que desaparece com a passagem do tempo.
Afinal, qual é a causa de nosso medo da morte? Seria o fato de a morte ser terrível? A
causa parece estar relacionada com a seleção natural. Considere um ancestral remoto do ser
humano, por exemplo o procônsul que viveu na África há 20 milhões de anos. Suponha que
um certo indivíduo procônsul nascesse com uma mutação genética, e não tivesse medo da
morte. Ele teria tido uma probabilidade muito maior de ser devorado por um predador, de
forma que seus alelos destemidos não seriam herdados por outros procônsules. O pavor da
morte é altamente adaptativo! É por isso que a nossa própria morte parece tão terrível para
nós. Mas isso não constitui motivo racional para temer a morte.
25
KOLAK, D. (2004), I am you: the metaphysical foundations for global ethics, Synthese Library, v. 325,
Springer, Dordrecht (Holanda).
25
Download