Ergatividade em Panará Luciana DOURADO LALI/LIV-UnB 1. Morfologia A língua Panará (família Jê, tronco Macro-Jê) exibe um padrão ergativoabsolutivo em sua morfologia. Esse padrão ocorre em orações no modo realis que se caracterizam por apresentar os SNs sujeitos de verbos transitivos marcados pela posposição he‚ para nomes ou pronomes no singular e com a nasalização da última vogal dos nomes ou pronomes no dual, paucal e plural. Já os SN’s sujeitos de verbos intransitivos e objetos de verbos transitivos são nãomarcados, isto é, ocorrem com morfema zero. O padrão ergativo-absolutivo do Panará também se reflete no sistema de concordância verbal. Verbos transitivos concordam duplamente com o sujeito (ergativo) e (a) com o objeto direto (absolutivo), como em (1) ou (b) com o objeto de certas posposições (absolutivo), como em (2). Verbos intransitivos concordam: (a) apenas com o sujeito (absolutivo), como em (3); ou (b) concomitantemente com o sujeito (absolutivo) e com o objeto de certas posposições (absolutivo), como em (4). (1) i‚pˆarã O =ne =me =rowa homens.ERG REAL.TR =3PL.ERG =3DU.ABS =matar -PERF mi pˆtira i‚ko kõ jacaré.ABS dois rio LOC ‘os homens mataram dois jacarés dentro do rio.’ 1 (2) mara he‚ O eleERG =ti =a =pe =pˆ-ri REAL.TR =3SG.ERG =2SG.ABS =MAL=pegar-PERF sõsesua ka pe anzol.ABS você MAL ‘ele pegou o anzol em detrimento de você.’ (3) yˆ =ria =pia kamEra REAL.INTR =2PL.ABS =ir kri tã vocês.ABS aldeia ALA ‘vocês foram para a aldeia.’ (4) yˆ =r(a) =(h)çw =ria =te‚ kamEra REAL.INTR =1SG.ABS =ICOM =2PL.ABS =ir i‚kye hçw eu kri vocês.ABS tã ICOM aldeia ALA ‘vocês me levaram para a aldeia.’ Os sintagmas posposicionais marcados pelos casos benefactivo, malefactivo, comitativo, instrumental-comitativo e inessivo são argumentos nucleares de predicados transitivos e intransitivos, nessa língua. O verbo concorda com o objeto dessas posposições por meio de clíticos absolutivos. A possibilidade de incorporação dessas posposições ao núcleo verbal, assim como a estratégia adotada para relativizar os seus objetos, revelam o seu status de argumentos nucleares frente a outros sintagmas posposicionais, que se comportam como verdadeiros oblíquos e que são marcados pelos casos alativo, ablativo, final e locativo de vários tipos. A atribuição de caso aos nominais constituintes nucleares em Panará não depende de traços semânticos de agentividade desses nominais, para o sujeito de verbo transtivo, ou de paciente para o sujeito de verbo intransitivo e o objeto direto de verbo transitivo, nem tampouco depende da natureza semântica do verbo. A codificação sintática de caso parece se ater à estrutura argumental do verbo. Portanto, qualquer nominal com função de sujeito de verbo transitivo será marcado, e qualquer nominal com função de sujeito de verbo intransitivo e de objeto direto será não-marcado. (5) s´peri he‚ O =ti vento ERG REAL.TR =O =ku‚ˆ kukrE =3SG.ERG =3SG.ABS =derrubar ‘o vento derrubou a casa.’ 2 casa.ABS (6) i‚kye‚ he eu O =re =k -ãpu‚ pri‚ara ERG REAL.TR =1SG.ERG =2.ABS-ver ka kõ crianças você COM ‘eu vi as crianças com você.’ (7) yˆ =O =hçw =ria =kõ-ri kamera REAL.INTR =3SG.ABS =INSTR =2PL.ABS =beber-PERF vocês.ABS i‚ko hçw água INSTR ‘vocês beberam água’(lit: vocês saciaram a sede com água).’ No modo irrealis, esse padrão se cinde apenas no que se refere à concordância verbal: a mesma série de clíticos pronominais marca a concordância tanto com sujeito de verbo transitivo quanto com sujeito de verbo intransitivo, isto é, ambos nominativos, diferentemente do objeto direto, que mantém o mesmo sistema de concordância absolutiva. No entanto, os argumentos nominais, de um lado, sujeito de verbo transitivo, de outro, sujeito de verbo intransitivo e objeto direto mantêm a mesma forma ergativa e absolutiva, respectivamente, como no modo realis. (8) s´peri he‚ vento ka =ti =ku‚ˆ‚ =O kukrE ERG IRR=3SG.NOM=3SG.ABS =derrubar.IMPF casa.ABS ‘o vento vai derrubar a casa.’ (9) i‚pri‚ ka =ti =kuˆ criança.ABS IRR=3SG.NOM=ir muu tã Brasília ALA ‘a criança irá para Brasília.’ A cisão da ergatividade se reflete apenas na morfologia do Panará, tendo em vista que processos sintáticos de comportamento e controle de sujeito e objeto (Givón 2002) seguem, em geral, um padrão de cisão nominativoacusativo. Trata-se, portanto, de uma ergatividade “superficial”. De acordo com Givón (2002), línguas superficalmente ergativas são velhas línguas ergativas, considerando que suas propriedades de comportamento-e-controle têm tido um tempo bastante longo para se realinharem com os princípios de controle nominativo. Panará apresenta assim características de uma língua que há muito se tornou ergativa, tendo em vista que existe uma clara dissociação entre as propriedades de comportamento e controle e aquelas de codificação expressa (marcação de caso, concordância e ordem dos constituintes), em que as primeiras seguem, predominantemente, o padrão nominativo e as últimas o padrão ergativo. 3 2. Sintaxe O Panará apresenta, presumivelmente, a ordem de constituintes SVO/VS, com genitivo precedendo o nome, o adjetivo seguindo o nome e com posposição. Como se vê, o objeto direto absolutivo ocupa a mesma posição final do sujeito absolutivo, isto é, a ordem básica dos constituintes aponta para um alinhamento ergativo-absolutivo. Assim, as propriedades de codificação expressa, isto é, marcação de caso, concordância e ordem dos constituintes (Givón 2002) encontram-se alinhados no padrão ergativo-absolutivo. Já as propriedades de comportamento e controle (Givón 2002) seguem exclusivamente o padrão nominativo-acusativo. Mostraremos a seguir alguns casos mais representativos de processos sintáticos, nos quais as propriedades de comportamento e controle do sujeito e do objeto revelam claramente que não há um alinhamento ergativo-absolutivo nessa língua. A incorporação de posposição ao núcleo verbal em Panará resulta em processos de promoção do objeto indireto e demoção do objeto direto. Nas construções relativas, a língua admite a relativização do argumento temático (o absolutivo) quando a posposição não se encontra incorporada, como em (a) de (10), mas não é aceitável a sua relativização quando a posposição se encontra incorporada como em (b): (10)a. pe‚k´ [O =ti =ra =sõ-ri i‚kiara mã ] vestido.ABS REAL.TR =3SG.ERG=3PL.ABS=dar-PERF nulheres BEN ‘o vestido que ele deu para as mulheres.’ b. *pe‚k´ [O =ti =ra =mã =sõ-ri i‚kiara] vestido.ABS REAL.TR =3S.ERG=3PL.ABS=BEN=dar-PERF mulheres ‘o vestido que ele deu para as mulheres.’ Já o objeto da posposição incorporada pode ser relativizado com a mesma estratégia utilizada para a relativização de sujeitos de verbos transitivos ou intransitivos e objetos diretos (11), diferentemente da estratégia utilizada para a relativização de objetos indiretos (quando a posposição não se encontra incorporada), em que se usa um complementizador seguido da posposição, como em (12): 4 (11) i‚kiara [O =ti =ra pe‚k´ ] =mã =sõ-ri mulheres REAL.TR =3S.ERG=3PL.ABS=BEN=dar-PERF vestido ‘as mulheres, para quem ele deu o vestido’. (12) i‚kiara [premera mã mulheres COMP O =ti =ra =sõ-ri BEN REAL.TR=3S.ERG=3PL.ABS=dar-PERF pe‚k´ ] vestido.ABS ‘as mulheres, para quem ele deu o vestido’. A inaceitabilidade de (b) em (10) e a aceitabilidade de (11) comprovam que o argumento temático é demovido do status de objeto básico e o objeto da posposição passa a ser o objeto diretamente associado ao verbo, quando a posposição se incorpora. Observa-se também, comparando-se (11) com (12), que a despeito da aparente imutabilidade da morfologia, já que o verbo concorda com o objeto da posposição com ou sem a incorporação, o objeto indireto em construções com incorporação muda seu status gramatical, tornando-se um argumento diretamente associado ao verbo, isto é, um objeto direto. Ocorre, pois, a promoção do objeto indireto a objeto direto, faz com que o objeto direto temático (absolutivo) seja rebaixado a não-termo (Gary e Keenan 1977). Assim, nem os processos de promoção e demoção, nem as estratégias de relativização nesta língua apresentam um alinhamento ergativo-absolutivo nem nominativo-acusativo. Os primeiros atingem apenas os objetos direto e indireto, os últimos não separam em estatégias diferentes os argumentos nucleares do verbo (sujeito e objeto direto). No caso de topicalização em Panará, apenas objetos diretos (13) e (14) e indiretos (15) foram encontrados, ao passo que a focalização contrastiva atinge apenas o sujeito de verbo intranstivo, (16) e (17), e transitivo (18), demonstrando claramente um alinhamento nominativo-acusativo. O (13) pakua =ne =O =krE kˆpa amã banana.TP REAL.TR =3PL.ERG=3SG.ABS =enterrar terra INES nãpr´ ahe madura FIN i‚kiarã mulheres.ERG ‘as bananas, as mulheres as enterraram para que ficassem maduras.’ (14) i‚kye‚ O eu =ti =rã =sa-ri nãkã REAL.TR =3SG.ERG =1SG.ABS=morder-PERF cobra ‘eu fui mordida pela cobra (lit: eu, a cobra me mordeu).’ 5 he‚‚ ERG (15) kowkiati amã O panela =ti =O =pu i‚tuma he‚‚ INES REAL.TR =3SG.ERG =3SG.ABS =encher gordura ERG ‘dentro da panela tem muita gordura (lit: dentro da panela, a gordura a encheu).’ (16) içti mãmã ku´ s-õpã i‚ta sucuri FOCO parir RNC-filho tã chuva quando ‘é a sucuri que dá cria quando chove.’ (17) içti i‚kyˆ mãmã pan i‚ko yamã sucuri comprida FOCO andar água INES ‘é a sucuri comprida que anda dentro d’água.’ (18) ku´rã he mãmã fuso FOCO re =ku´-ri mãmã 3PL.ERG=fazer-PERF FOCO mãmã re FOCO 3PL.ERG=enrolar re =mãpEy 3PL.ERG=aprontar =rõkiã ‘são os fusos que fazem, que aprontam e que enrolam.’ Em construções complexas com apagamento por co-referência (equideletion), a identificação de qualquer argumento elíptico não constitui um problema, tendo em vista que a rica morfologia verbal do Panará permite recuperá-lo. Assim, qualquer argumento nominal pode ser apagado, independentemente do fato de ser marcado ou não-marcado, ou na função de sujeito ou de objeto direto. (19) i‚kye‚ yˆ =ra =po eu.ABS REAL.INTR =1SG.ABS =chegar O =ka =r -ãpu‚ REAL.TR =2SG.ERG =1SG.ABS-ver ‘eu cheguei e você me viu.’ (20) i‚kye‚ yˆ =ra =po eu.ABS REAL.INTR =1SG.ABS =chegar O =re =k -ãpu‚ ka REAL.TR =1SG.ERG =2ABS -ver ‘eu cheguei e vi você.’ 6 você.ABS (21) ka O he =ka =r -ãpu‚ i‚kye‚ você ERG REAL.TR =2SG.ERG =1.ABS-ver yˆ =a eu.ABS =tç REAL.INTR =2SG.ABS =ir ‘você me viu e foi embora.’ (22) ka O he =ka =r -ãpu‚ i‚kye‚ você ERG REAL.TR =2SG.ERG =1.ABS-ver yˆ =ra eu.ABS =tç REAL.INTR =1SG.ABS =ir ‘você me viu e eu fui embora.’ Apenas no caso em que argumentos diferentes referentes à terceira pessoa do mesmo número são apagados, é que a construção passa a ter um problema de interpretabilidade, que pode ser resolvido pela explicitação daquele argumento na oração seguinte (23), por meio de sua repetição. Caso essa explicitação não ocorra, o sujeito passa a ser interpretado como o elemento elíptico na segunda oração (24), isto é, um alinhamento nominativo-acusativo, a menos que o contexto pragmático-discursivo elimine qualquer possibilidade de que este seja o elemento apagado (25). O (23) nãpi´ he‚ =ti =s-ãpu s-u‚pi´ mãe ERG REAL.TR=3SG.ERG=3SG.ABS-ver su‚pi´ yˆ =O =pˆ RNC-pai.ABS =kuˆ pai.ABS REAL.INTR=3SG.ABS=DIR=ir ‘a mãe viu o pai e o pai voltou .’ (24) nãpi´ he‚ mãe O =ti =s -ãpu‚ s ERG REAL.TR =3SG.ERG =3SG.ABS -ver yˆ =O =pˆ -u‚pi´ RNC -pai.ABS =kuˆ REAL.INTR =3SG.ABS=DIR =ir ‘a mãe viu o pai e (a mãe) voltou.’ (25) yçwpˆ he‚ onça yˆ O =ti =s -ãpu‚ iãsˆ ERG REAL.TR =3SG.ERG =3SG.ABS -ver =O =pi‚tç -ri REAL.INTR =3SG.ABS =fugir -PERF ‘a onça viu o veado e (o veado) fugiu.’ 7 veado.ABS Verifica-se, pois, que em situações não pragmaticamente marcadas, regras sintáticas em Panará operam basicamente sob o princípio nominativoacusativo, tratando S e A da mesma maneira como pivot sintático (Dixon 1979). Verifica-se, por outro lado, que nas construções relativas a mesma estratégia de relativização é adotada tanto para o SN sujeito de verbo transitivo quanto para o SN sujeito de verbo intransitivo, embora a mesma estratégia seja também adotada para a relativização do SN objeto direto. No modo irrealis, o sistema de concordância apresenta o padrão nominativo-acusativo, uma evidência da existência da categoria de sujeito nessa língua. No caso em que ocorre a mudança da ordem dos constituintes para efeito de topicalização, o pivot sintático A/S se mantém (26), lembrando ainda que o Panará não apresenta construções variantes que proporcionem mudança no status gramatical de agente ou paciente, como passivas ou anti-passivas: (26) i‚pri O =ti =O =sa -ri nãka menino.ABS REAL.TR =3SG.ERG =3SG.ABS =morder -PERF cobra yˆ =O he‚ ERG =tç REAL.INTR =3SG.ABS =ir ‘o menino, a cobra o mordeu e fugiu (a cobra).’ 3. Considerações finais Como os dados parecem sugerir, existe em Panará uma dissociação entre propriedades de codificação expressa (marcação de caso, concordância gramatical e ordem de constituintes) e propriedades de comportamento e controle de relações gramaticais, em que as primeiras seguem um padrão ergativo-absolutivo e as últimas um padrão nominativo-acusativo. Assim, a ergatividade em Panará é um fenômeno morfológico superfical, predominando, pois, o padrão nominativo-acusativo do ponto de vista sintático, o qual opera com o pivot sintático A/S (Dixon 1979). 8