o sentido da meditação filosófica - miguel reale

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O SENTIDO DA MEDITAÇÃO
FILOSÓFICA - MIGUEL REALE (19102006) E A INFLUÊNCIA RECEBIDA DE
HARTMANN E MONDOLFO
RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ
COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS
“PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF.
INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA – SÃO PAULO.
[email protected]
O Brasil perdeu seu maior filósofo contemporâneo: Miguel Reale. O falecimento do
mestre paulista, no entanto, não significa que a sua obra cairá no esquecimento. A
meditação de Reale fecundou de maneira indelével a nossa cultura filosófica, de forma tal
que, hoje, não poderíamos pretender identificar a meditação nacional, sem fazermos
referência obrigatória ao sistematizador da Corrente Culturalista e criador do Instituto
Brasileiro de Filosofia.
Reale deu prosseguimento, entre nós, à superação do vício apologético, que Tobias
Barreto denominou de “Filosofia em mangas de camisa”. No clima de tolerância intelectual
que imprimiu ao Instituto, desde a sua fundação, em 1949, tiveram cabida, ao longo de
todos estes anos, os representantes das mais variadas correntes de pensamento que se
consolidaram no Brasil. Tivemos acolhida, também, nós, os pertencentes às novas gerações
de estudiosos da meditação brasileira, em que pese a nossa inexperiência e as dificuldades
enfrentadas nas várias Universidades, para encontrarmos veículos de divulgação dos nossos
escritos. Reale estimulava e acolhia, com generosidade, a contribuição das novas gerações.
Daí porque os jovens sentiam-se tão à vontade na proximidade do grande Mestre.
Testemunhei isso em Congressos e Seminários, os mais variados, ao longo do país. Era
espírito jovem que pulsava com os jovens. Talvez, por isso, os burocratas do pensamento o
odiassem tanto. Burocratas sediados nas Universidades e nos Ministérios. Os patrulheiros
ideológicos jamais perdoaram ao velho professor a sua ousadia crítica. No Brasil dos clãs e
das patotas, Reale era uma exceção de abertura e de solidariedade intelectual.
Uma homenagem ao saudoso Mestre. Quero, nestas páginas, lembrar apenas um dos
aspectos mais marcantes de sua obra, aquele que diz relação à forma em que se dá o
pensamento filosófico contemporâneo, que surge como meditação sobre os problemas que a
ciência deixou de lado, aqueles que, por irresolúveis, atrapalham a positividade do saber:
morte, finitude, felicidade, amor. Eis os grandes escolhos sobre os quais se debruça, com
afinco, a filosofia. Destacarei, na minha exposição, dois pontos: em primeiro lugar, a
influência que Reale recebe de dois grandes vultos do pensamento do século XX: Nicolai
Hartmann (1882-1950) e Rodolfo Mondolfo (1877-1976), influência que o leva a pensar a
Filosofia como Problema. Em segundo lugar, tratarei da aplicação que Reale faz dessa
versão da Filosofia, no que tange ao estudo das Filosofias Nacionais, particularmente da
Filosofia Brasileira.
Miguel Reale, o maior pensador brasileiro do século XX.
A
HERANÇA RECEBIDA DE
PROBLEMA
HARTMANN
E
MONDOLFO: A FILOSOFIA
COMO
A filosofia no mundo de hoje é pensada ao redor de problemas. Nicolai Hartmann
foi quem primeiro assinalou o papel daqueles na meditação filosófica. O seu pensamento
estruturou-se a partir dos postulados da Escola de Marburgo, mas acabou por se separar do
idealismo lógico daquela Escola, bem como do neo-kantismo, por influência imediata de
Husserl e Scheler, mas também, segundo o próprio filósofo destaca, graças à retomada, por
ele, da antiga tradição metafísica presente na obra de Aristóteles. Hartmann destaca que na
elaboração da sua proposta filosófica influiu a leitura das obras de Kant e de Hegel,
notadamente no que tange à discussão das raízes ontológicas que são pressupostas no
pensamento desses filósofos.
A formulação de uma nova ontologia amadurece, no pensamento de Hartmann, por
volta de 1919. As primeiras obras nas quais o autor expôs essa teoria são Metaphysik der
Erkenntnis (1921) e Ethik (1925). Nos anos seguintes, Nicolai Hartmann publicou a sua
obra dedicada à lógica, sob o título de Studien zur Logik (1931 a 1944), cujo manuscrito
terminou se perdendo no meio à agitação vivida na Alemanha, no final da II Guerra
Mundial.
Não há dúvida de que Hartmann é um dos autores que mais têm influído na filosofia
do século XX. Possuía o que denominaríamos hoje de ética da responsabilidade
intelectual, num meio em que pairavam as idéias do totalitarismo e da despersonalização.
Dessa inspiração ética, profundamente enraizada na tradição kantiana, dá testemunho a sua
convicção de que não pode haver consciência alguma sobranceira à pessoa singular. Para
Hartmann, unicamente o espírito pessoal é dotado de intuição, bem como da capacidade de
assinalar fins. Essa sua enraizada convicção intelectual levou-o a não ceder nunca às modas
intelectuais, se norteando unicamente pela procura sempre renovada da verdade.
A essência da posição de Hartmann, no que tange à teoria do conhecimento,
consiste na afirmação do caráter histórico dos grandes problemas da Filosofia, que
constituem problemas-limite, comuns a todas as ciências, e que são, no fundo, problemas
metafísicos atrelados a um núcleo irracional e insolúvel. Hartmann utilizou na sua
meditação o método fenomenológico, mas desatrelando-o da redução transcendental, tendo
unicamente adotado a redução ao eidos. Graças a isso, para Hartmann, o fenômeno não
exclui a aporética, mas ao contrário torna possível o acesso à Filosofia. À descrição
fenomenológica segue-se, em primeiro lugar, para Hartmann, a prática dos métodos
analítico e dialético, que constituem uma perspectiva de caráter horizontal dos fenômenos
(livre da dimensão triádica da dialética hegeliana); em segundo lugar vem o método
sintético que, no nível mais alto da intuição, possibilita a unificação das categorias, dando
ensejo à descoberta de todos os atos alicerçados em outros de nível inferior. Nicolai
Hartmann conferiu tal grau de importância ao método eidético, que terminou confundindo
redução ao eidos com a própria epoché fenomenológica. [Cf. Fraga, 1990: 2, 1010-1014].
O cerne da ontologia de Harmann é a sua teoria dos modos de ser ou análise modal,
que o pensador alemão expõe na obra intitulada Mögichkeit und Wirklichkeit (1938). Nesta
obra, o pensador explica as leis fundamentais que regulam as relações de possibilidade e
realidade, necessidade e acidentalidade, impossibilidade e não realidade. A lei real da
necessidade é formulada nos seguintes termos: "o que é realmente possível também é
realmente necessário". Essa lei deriva do antigo princípio metafísico de que o ser não pode
provir do não ser ou, em outros termos, de que a possibilidade do ser não é
simultaneamente possibilidade do não ser. Hartmann formula, ademais, a lei ou fórmula "de
identidade", que reza assim: "as condições de possibilidade real de uma coisa são
simultaneamente as condições da sua necessidade real" [Apud. Fraga, 1990: 2, 1010-1014].
Esta lei exprime uma convicção contrária ao conceito popular de possibilidade, que foi
aceito pela ontologia tradicional, desconhecendo o rigor que os pre-socráticos (de Megara)
conferiam ao conceito de possibilidade. A lei real da necessidade não implica, no entanto,
para Hartmann, um determinismo total do mundo, mas apenas o que ele denomina de uma
sobreposição de várias formas de determinação [cf. Fraga, ibid.].
Nicolai Hartmann (1882-1950), que focalizou a criação filosófica como discussão de problemas.
Em que pese o fato da concessão que Hartmann faz à perspectiva realista na sua
ontologia (difícil de justificar teoricamente, uma vez aceitos os princípios do neokantismo), um aspecto contudo deve ser ressaltado: em face da complexidade do mundo, é
necessário reconhecer que o pensamento moldado em sistemas está fora de jogo. A
respeito, escreve o filósofo alemão em Autoexposição sistemática [Hartmann, 1989: 4]:
Explicar o espírito a partir da matéria ou entender a matéria a partir do espírito, o ser a partir da
consciência; reduzir o organismo ao mecanismo ou fazer passar o acontecer mecânico por uma
vitalidade encoberta, tudo isso e muito mais é hoje uma coisa impossível de se realizar. Isso
contradiz já nos primeiros passos o que com segurança sabemos nos domínios especiais. O
pensamento construtivo ficou fora de jogo.
Embora os pensadores contemporâneos não renunciem a uma busca de nexo
sistemático entre os fenômenos, Hartmann considera, no entanto, que essa pressuposição
deve ser abandonada como ponto de partida. O que a meditação filosófica faz, no seu
início, é tomar consciência de uma complexidade do mundo, que o autor alemão não duvida
em identificar como perspectiva problemática do pensar.
Ao pensamento sistemático construtivo Hartmann contrapõe o pensamento
problemático investigador. Essas duas grandes linhas epistemológicas são claramente
identificáveis na história da Filosofia ocidental. Embora encontremos pensadores mais
afinados com a perspectiva sistemática (como Plotino, Proclo, Tomás de Aquino, Duns
Scot, Hobbes, Espinosa, Fichte, Schelling) e outros mais próximos da visão problemática
(como Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Leibniz, Kant), em todos eles a meditação
filosófica emerge a partir da base dos problemas metafísicos, que são os que acompanham a
perplexidade da mente humana diante do mistério do Ser.
Em geral, escreve Hartmann, o morto e o simplesmente histórico pertencem ao pensar sistemático;
pelo contrário, o supra-histórico e o vital pertencem ao pensar problemático puro. Nele se encontram
as aquisições da história do pensamento [Hartmann, 1989: 7].
Os historiadores da filosofia e os comentaristas deformaram, infelizmente, o
pensamento de Platão, apresentando-o como decorrente de uma visão sistemática préconcebida. Ora, nada mais afastado do grande filósofo grego do que essa preguiçosa
concepção sistemática. Nele era fundamental, antes de mais nada, a perplexidade em face
do Ser, a dimensão da dúvida, que o levava a considerar como cosmogonias mitológicas as
concepções herdadas dos seus antepassados. É necessário recuperar, frisa Hartmann, a
dimensão problemática da filosofia platônica, para que saibamos valorar a sua criatividade.
Platão, ao manter viva a perplexidade diante do real, deu vida à meditação filosófica,
abrindo a porta para a interrogação e a elaboração de novos caminhos.
Hartmann considera necessário, de outro lado, recuperar a valoração problemática
da meditação aristotélica, que parte da aporética e que se encaminha para a construção de
um sistema de pensamento. Acontece que a sistematização escolástica empobreceu essa
dimensão dinâmica da meditação do estagirita, ressaltando o momento sistemático e
esquecendo o ponto de partida problemático. Três razões explicariam, nos historiadores da
filosofia, essa pressa em valorar o sistema por cima dos problemas: em primeiro lugar, a
impaciência para descobrir soluções custe o que custar; em segundo lugar, a pressuposição
(falsa) de que problemas insolúveis são filosoficamente inúteis; em terceiro lugar, o
menosprezo em face das perguntas irrecusáveis.
Em relação à primeira razão, Hartmann considera que é muito mais filosófico legar
aos nossos discípulos perguntas sem responder, do que pretender construir, a qualquer
preço, respostas sistemáticas para tudo. Em relação à segunda razão, o filósofo alemão
considera que os problemas insolúveis são filosoficamente úteis. A história do pensamento
ocidental mostra que o verdadeiro progresso advém da abertura à indagação e do
questionamento às soluções já adquiridas. Ora, as ciências somente progridem em face do
princípio da refutabilidade que nos leva a adotar, perante o que recebemos dos nossos
antepassados, uma atitude não de subserviência, mas de crítica. O drama dos dogmatismos,
estreitamente ligados aos totalitarismos no mundo contemporâneo, consiste justamente no
fato de eliminarem a dúvida e o pensamento crítico. Em relação à terceira razão, Hartmann
destaca que há problemas que foram colocados num determinado momento e que jamais
seria possível colocá-los antes. A formulação de indagações está sempre ligada a
determinadas condições históricas irrepetíveis, bem como a um determinado estado do
saber. Enquanto os filósofos estiverem preocupados unicamente com a dimensão
sistemática, não perceberão o sentido dos eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos,
que ancoram na perplexidade diante da realidade. Assim, frisa Hartmann, "acontece que é
necessária previamente uma reflexão especial sobre a linha histórica do pensamento
problemático, que se oculta por trás da fachada dos sistemas, para garantirmos aqueles
conteúdos" [Hartmann, 1989: 13]
Os eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos: esse constitui o ponto de partida
do filosofar. Ora, destaca Hartmann, esses eternos e irrecusáveis conteúdos emergem da
consciência perplexa pela complexidade do real, que constitui um fenômeno básico não
impugnável. "Os fenômenos, escreve, são sempre mais fortes do que as teorias. O homem
não pode mudar os fenômenos; o mundo permanece como é, qualquer que seja o
pensamento do homem sobre ele. O homem pode somente apreendê-lo ou errar em relação
a ele" [Hartmann, 1989: 14].
Hartmann propõe um método progressivo para a razão não se afastar da realidade e
construir as suas teorias sem falsear a apreensão dos fenômenos. O primeiro passo é
constituído pela descrição fiel dos fenômenos. O segundo consiste na aporética ou estudo
dos problemas enquanto constituem o incompreendido dos fenômenos, explicitando com
claridade as aporias naturais; este passo deve levar em consideração o estado da pesquisa
respectiva. O terceiro passo, por fim, consiste na teoria, ou abordagem da solução das
aporias. Em relação à metodologia proposta, o filósofo alemão escreve:
Essa progressão: fenomenologia, aporética, teoria, não pode ser abreviada. Os dois primeiros graus,
tomados cada um em si, constituem um amplo campo de trabalho, uma ciência inteira. E
precisamente porque nenhum dos dois é o definitivo e verdadeiro, recai sobre eles a maior ênfase. O
seu campo de trabalho é aquele onde os sistemas construtivos têm pecado. Estes precisamente
ficaram curtos demais. E justamente por isso as teorias repousavam sobre bases frágeis. Aqui é
preciso criar fundamentos sólidos -- não os fundamentos objetivos da teoria (que devem ser
encontrados preferentemente só quando começa o estudo das aporias), mas os pontos de partida do
conhecimento, enquanto deve ser algo mais do que simples descrição do encontrado anteriormente.
No relativo ao terceiro grau, deve consistir num tratamento puro das aporias destacadas, e certamente
com base no mesmo resultado presente nos fenômenos. Esse tratamento ou estudo não é mais do que
uma solução das aporias. Somente pode tender em direção a uma solução. De antemão não pode
dizer nem como resultará a solução, nem se alguma é possível absolutamente. O estudo das aporias é
algo muito diferente quando pode se alicerçar num limpo trabalho prévio, realizado sobre o
fenômeno e o problema, e quando parte sem mais de algo supostamente dado. Os problemas vistos
com ingenuidade foram colocados na maior parte das vezes de forma inadequada, e atingem a
realidade só de forma periférica. Pois a colocação problemática condicionada toma-se possível
graças ao conteúdo problemático objetivo. Dessa forma misturam-se muitas aporias artificiais e as
naturais são encobertas. Mas, antes de mais nada, somente depois de efetivado o trabalho da
aporética, resulta possível dar novamente à teoria mesma o seu valor e sentido original [Hartmann,
1989: 16-17].
A radical inadequação entre o nosso pensamento e a realidade presente no mundo
dos fenômenos, essa seria, no sentir de Hartmann, a metafísica dos problemas, a partir da
qual tentamos, de várias formas, explicar a realidade (dando ensejo aos sistemas), sem que
contudo consigamos nunca dar conta dela. Eis a raíz do que hoje denominamos de modéstia
epistemológica, única atitude condizente com a busca diuturna da verdade.
Retomando os conceitos desenvolvidos por Hartmann, o pensador italiano Rodolfo
Mondolfo tematizou, por sua vez, o papel da indagação dos problemas na criação filosófica.
A consciência da insuficiência dos nossos conceitos, esse seria o ponto de partida de uma
autêntica reflexão. A respeito, escreve Mondolfo:
Na aquisição de conhecimentos e na reflexão intelectual, sempre acontece tropeçarmos com
dificuldades que se baseiam no reconhecimento de faltas e imperfeições em nossas noções, cuja
insatisfação, portanto, nos suscita problemas. E daí surge a investigação, isto é, pela consciência de
um problema, cuja solução nos sentimos impelidos a procurar, estando justamente a indagação
voltada para a solução do problema, que nos foi apresentado [Mondolfo, 1969: 30].
O pensador italiano considera que o sucesso da investigação filosófica decorre, sem
lugar a dúvidas, da clareza com que tenha sido colocado o respectivo problema. É o ponto
que os escolásticos chamavam de status quaestionis, que era colocado antes da elaboração
doutrinária, na tradicional Lectio. Em relação a esse aspecto, Mondolfo escreve:
A fecundidade do esforço investigador é proporcional à clareza e à adequação da formulação do
problema; de maneira que a primeira exigência imposta ao investigador é a de conseguir, da melhor
maneira possível, uma consciência clara e distinta do problema, que constitui o objeto de sua
indagação. Esta exigência é válida preliminarmente para qualquer espécie de investigação, porém o
é, sobretudo, na filosofia, sendo a filosofia antes de mais nada -- como já Sócrates o ressaltava-consciência da própria ignorância, isto é, da existência de problemas que exigem o esforço da mente
na procura de uma saída dessa situação de mal-estar e de insatisfação [Mondolfo, 1969: 30].
Na trilha da perspectiva genética apontada por Vico ("a natureza das coisas é o seu
nascimento"), Mondolfo escreve:"toda a investigação teórica que quiser encontrar seu
caminho com maior segurança, supõe e exige, como condição prévia, uma investigação
histórica referente ao problema, a seu desenvolvimento e às soluções que foram tentadas
para resolvê-lo" [Mondolfo, 1969: 30-31].
O filósofo italiano Rodolfo Mondolfo (1877-1976), que aprofundou na caracterização, feita por Hartmann, da criação
filosófica como discussão de problemas.
Mondolfo considera que a perspectiva problemática atrela-se à essência da pesquisa
filosófica. Aparentemente haveria oposição entre a tarefa do historiador (inquiridor da
verdade sub specie temporis) e a do filósofo, (perscrutador da alétheia sub specie aeterni).
No entanto, a esta última só se chega pela porta estreita da historicidade, pois como frisa
Karl Jaspers [1980: 34], "se saíssemos da História tombaríamos no nada". A respeito deste
ponto, escreve Mondolfo:
Com efeito, podemos distinguir um duplo aspecto na filosofia, conforme ela se apresente
como problema ou como sistema. Como sistema, é evidente que o pensamento filosófico, apesar de
sua pretensão, sempre asseverada, de uma contemplação sub specie aeterni, não consegue, na
realidade, afirmar-se a não ser sub specie temporis, isto é, necessariamente vinculado à fase de
desenvolvimento espiritual própria de sua época e de seu autor, e destinado a ser superado por outras
épocas e outros autores sucessivos. Ao contrário, quanto aos problemas que suscita, o pensamento
filosófico, ainda que esteja sempre subordinado ao tempo em sua geração e desenvolvimento
progressivo, apresenta-se, no entanto, como uma realização gradual de um processo eterno. Com
efeito, os sistemas passam e caem; porém, os problemas formulados sempre permanecem como
conquistas da consciência filosófica, conquistas imperecíveis, apesar da variedade das soluções
tentadas e das formas pelas quais tais problemas são propostos, pois esta variação representa um
aprofundamento progressivo da consciência filosófica. Dessa maneira, a reconstrução histórica do
desenvolvimento da filosofia aparece como um reconhecimento do caminho percorrido pelo processo
de formação progressiva da consciência filosófica, o que vale dizer, como uma conquista da
autoconsciência [Mondolfo, 1969: 33-34].
Há evidentemente, para Mondolfo, uma lógica da história da filosofia. Nesse
aspecto, o pensador italiano assume as teses fundamentais de Hegel nas suas Lições de
História da Filosofia. Há um fio condutor na história do pensamento humano. Ora, esse fio
corresponde à estrutura lógica da razão que busca, no meio aos fatos e aos fenômenos, se
manter idêntica a si mesma. Daí por que Mondolfo considera que
A história da filosofia não pode, de maneira alguma, ser considerada como uma sucessão de criações
contraditórias, que negam cada uma o que a outra afirmava, ou constróem ao seu bel-prazer um
edifício destinado a ser derrubado, a fim de deixar seu lugar para outra construção, que será
igualmente demolida como produto arbitrário de uma fantasia caprichosa [Mondolfo, 1969: 57-58].
Em decorrência dessas observações no terreno da historiografia da filosofia,
Mondolfo considera que se deve elaborar um método de pesquisa que respeite a essência da
dimensão problemática da meditação ocidental. A respeito, Mondolfo [1969: 261] escreve:
Devemos reviver em nossa consciência a experiência filosófica da humanidade passada, tanto em seu
conjunto, quanto na individualidade de cada pensador. E para viver de novo cada sistema temos que
realizar o máximo esforço, a fim de colocarmo-nos na situação espiritual em que se encontrava o
filósofo que o criou, isto é, temos que reproduzir em nossa interioridade a consciência dos
problemas que preocupavam a sua época, assim como as exigências particulares de sua
personalidade, compenetrando-nos de seu processo de formação e de sua vida interior. E quando, nos
filósofos que são objeto de nosso estudo, esta vida interior [tiver sido] muito intensa e ativa,
deparamo-nos geralmente com um movimento contínuo de aprofundamento, renovação e evolução
espirituais, que reúne, por assim dizer, múltiplas personalidades sucessivas numa única pessoa, o que
complica e dificulta a tarefa do intérprete que procura a reconstrução histórica.
O pensador italiano frisa que no estudo historiográfico da filosofia deve-se
reconhecer, como aspecto fundamental, o progresso contínuo do espírito humano. Mas esse
fato não reduz a cinzas as conquistas dos nossos antecessores. Elas serão sempre
importantes, como a escada que nos permitiu subir mais alto para enxergar, numa maior
altura, o horizonte. Continua presente, aqui, a convicção filosófica de Hegel no progresso
do espírito humano. A respeito, frisa Mondolfo [1969: 263]:
Naturalmente, não ficam anulados ou destruídos os resultados das investigações e intuições
de Hegel ou de Zeller, ou de outros grandes historiadores, por serem superados pelas indagações
sucessivas, cuja realização foi condicionada e estimulada por eles próprios. O processo de superação,
como pensava Hegel, sempre outorga uma verdade mais profunda ao que foi superado, o qual
permanece vital e ativamente nas raízes dos novos resultados, cuja obtenção tornou possível,
impulsionando-os para a sua realização. Neste aspecto, devemos expressar nosso respeito e
reconhecimento para com os grandes historiadores do passado, cujo estudo será sempre ponto de
partida e fonte de fecundas sugestões - positiva ou negativamente, por meio da aceitação ou da
oposição que provoca, das soluções que indica ou dos problemas que formula - para os novos
investigadores.
A ORIGINALIDADE DA FILOSOFIA COMO PROBLEMA, SEGUNDO MIGUEL REALE
No contexto da reflexão crítico-histórica desenvolvida por Miguel Reale, abriu-se
fecunda perspectiva para analisar, de forma clara e objetiva, os principais problemas que
afetam ao homem contemporâneo. Por esse caminho vai se identificando a forma brasileira
de abordar a existência humana do ângulo filosófico, sendo que hoje podemos falar, como
frisa com propriedade Zdenek Kourim [1997: 425] de uma autêntica "emancipação
intelectual" do nosso país.
Miguel Reale parte do fato de que a criação filosófica contemporânea ocorre
preferencialmente sob a forma de meditação sobre problemas e não como formulação das
grandes perspectivas transcendente e transcendental (que já foram fixadas por Platão e por
Kant, respectivamente), ou como construção de sistemas (modalidade adotada pela
meditação filosófica ocidental até o final do século passado). A partir daí, o nosso autor
formula um método que permite a análise da meditação filosófica brasileira e latinoamericana como discussão de problemas, superando o vício do engajamento apologético,
que condena ou hiper-valoriza autores, de acordo com as preferências axiológicas do
estudioso e vencendo, de outro lado, a atitude puramente analítica, que reduz a filosofia ao
estudo dos clássicos, sem, contudo, reconhecer aos pensadores brasileiros e latinoamericanos a capacidade de meditar sobre a própria realidade.
Capa da edição brasileira da obra de Miguel Reale intitulada Pluralismo e Liberdade, ferozmente censurada pelas patrulhas
marxistas nas Universidades brasileiras, no final da década de 1970.
No seu ensaio intitulado “A doutrina de Kant no Brasil” [1949] o filósofo brasileiro
já tinha destacado o fato de o pensamento kantiano ter tido no Brasil um desenvolvimento
criativo, em estreita relação com a reflexão dos nossos pensadores sobre as circunstâncias
particulares da história brasileira. O criticismo kantiano, observa Reale no mencionado
ensaio, não entrou no Brasil simplesmente como cópia das idéias do filósofo de Königsberg
(hipótese que Clóvis Bevilacqua [1929: 5-14] tentou provar no seu trabalho dedicado à saga
da doutrina kantiana em terras brasileiras), mas penetrou de forma viva e criativa. A
respeito, escreve Miguel Reale [1949: 55]:
A doutrina de Kant, no que ela possui de perenemente vital, não se presta a essas recepções
fáceis nem pode ser convertida em um conjunto cerrado de princípios. O criticismo é antes um
método, uma atitude ou posição espiritual. É um ponto de partida para a pesquisa criadora; mais uma
forma de inquietação e de crise estimativa do que de plenitude e suficiência. Daí poder-se dizer que a
presença de Kant, ao menos como motivo de filosofar, constitui um sinal de densidade cultural,
como certas roupagens vegetais assinalam as terras ricas de húmus. A compreensão de Kant não
permite, em verdade, uma atitude ou forma cômoda de filosofar sem excessiva filosofia, sem serem
empenhadas a fundo as nossas mais subtis capacidades de inteligência em um trabalho perseverante e
metódico.
A filosofia clássica é, portanto, para o pensador brasileiro, não uma muralha que
impede o vôo do espírito, mas antes uma trilha aberta, que nos convida a caminhar por ela,
iluminando a problemática que vivemos com os seus ensinamentos. Em relação a esse
posicionamento, Antônio Paim assume posição semelhante à de Reale. Se referindo à
questão da filosofia como problema, Paim [1981: 92] escreveu:
A filosofia é certamente um saber especulativo, que se volta para uma problemática que, embora
renovada através do tempo, se tem revelado perene em contraposição à alternância dos sistemas.
Esses problemas, contudo, têm sempre a ver com a circunstância cultural. De sorte que o caráter
especulativo da filosofia não pode ser arrolado como simples diletantismo, como se a filosofia não
tivesse nenhum compromisso com a temporalidade e as angústias de determinado momento da
cultura de um povo.
Em relação à metodologia formulada por Miguel Reale para possibilitar a pesquisa
da História das idéias filosóficas, Antônio Paim [1981: 92] escreveu:
O método sugerido por Miguel Reale para a investigação da filosofia brasileira compõe-se dos
seguintes elementos: 1) identificar o problema (ou os problemas) que tinha pela frente o pensador,
prescindindo da busca de filiações a correntes que lhes são contemporâneas no exterior; 2) abandonar
o empenho de averiguar se o pensador brasileiro interpretou adequadamente as idéias de determinado
autor estrangeiro, mais expressamente, renunciar ao confronto de interpretações e, portanto, ao cotejo
da interpretação do pensador brasileiro estudado com outras interpretações possíveis, para eleger
entre uma ou outra; e 3) ocupar-se preferentemente da identificação de elos e derivações que
permitem apreender as linhas de continuidade real de nossa meditação.
Convém indagar, a esta altura, como fundamenta Reale a metodologia apontada. Ao
meu entender, o autor concebe a história das idéias como um desdobramento da “reflexão
crítico-histórica” por ele analisada em Experiência e Cultura [Reale, 1977: 126 seg.].
No contexto da original interpretação que o pensador paulista realiza da
fenomenologia husserliana, à luz da herança transcendental kantiano-hegeliana, ele destaca
a correlação in fieri do subjetivo e do objetivo na subjetividade concreta.
Em verdade -- frisa a respeito Miguel Reale [1977: 27] -- se a consciência intencional se
dirige sempre para algo, visando à conversão de algo em objeto, e se este, enquanto objeto, não se
distingue daquilo que se oferece à consciência, não se pode considerar ‘puramente subjetivo’ o
momento culminante do processo eidético. Parece-me, ao contrário, que a ‘reflexão fenomenológica’
é necessária e intrinsecamente subjetivo-objetiva, isto é, ontognoseológica, consoante terminologia
que julgo mais adequada para indicar o âmbito em que se dão todos os atos cognoscitivos e as
volições do homem em sua perene e dinâmica relação com a natureza, assim como na trama de seus
próprios conhecimentos e volições e do percebido e querido por ‘um eu’ e ‘outro eu’ .Na
subjetividade transcendental já está, por assim dizer, in nuce, a experiência ontognoseológica, o
processo de significações ou ‘intencionalidades objetivadas’ que são a realidade da ‘cultura’.
Consciência intencional ou temporalidade ou historicidade, longe de serem antitéticas, são, pois,
expressões que se exigem e se complementam.
Ora, se consciência intencional e historicidade são expressões dialéticas e
complementares, a “reflexão crítico-histórica” é, para Miguel Reale, o momento culminante
do processo ontognoseológico, que é, essencialmente, “reflexão ambivalente”, no seio da
qual “quanto mais se desvelam as fontes da subjetividade mais se capta o sentido da
objetividade” [Reale, 1977: 129]. Somente assim, considera o nosso autor, é possível
salvaguardar os dois aspectos básicos destacados pela fenomenologia na dinâmica do
conhecimento: o da subjetividade e o da objetividade (ou “mundo do viver comum”, ou
“mundo da originariedade natural”).
Capa da obra de Miguel Reale intitulada Teoria Tridimensional do Direito, na qual o filósofo paulista senta as bases
filosóficas para o estudo do Direito, analisando-o à luz de três variáveis: fato, valor e norma.
É conhecida a forma clara e contundente com que o pensador brasileiro aplica o
conceito de “reflexão crítico-histórica” ao filosofar, quando reflete sobre a doutrina da
Lebenswelt husserliana. Para Miguel Reale é claro que
Nenhum conhecimento ou nenhuma Filosofia tem sentido fora do diálogo da história, ou sem
consciência da historicidade do homem e de suas idéias, de sorte que o desconhecimento do valor da
História equivale a abdicar da Filosofia, da cultura e do sentido da própria vida [Reale, 1977: 130131].
Esta concepção insurge-se contra a denominada por Husserl “Filosofia da
decadência” (Verfallphilosophie), que pratica a “retirada do mundo” e que “espelha um
fenômeno de massa” ao olvidar o “espírito de responsabilidade pessoal e radical inerente ao
ethos da autêntica Filosofia” [Reale, 1977: 131]. O pensador já pressentia, sem dúvida, há
vinte anos atrás, quando escrevia estas palavras em Experiência e Cultura, o fenômeno de
alienação protagonizado hodiernamente pela moda analítica que se pratica nas corporações
autistas e pseudofilosofantes, em que infelizmente se converteram não poucos
departamentos de filosofia das Universidades brasileiras.
À luz da “reflexão crítico-histórica” proposta por Miguel Reale, o filosofar
brasileiro teria, basicamente, duas tarefas: identificar os temas-chave da filosofia ocidental
e, em segundo lugar, refletir, à luz desse legado, sobre a própria problemática histórica.
Valeria aqui lembrar rapidamente a forma em que Hegel [1981: 41 seg.] entendia o estudo
da filosofia, pois o autor brasileiro aproxima-se neste ponto do filósofo alemão. Se, por um
lado, a análise das filosofias nacionais e dos sistemas deve ser objeto de estudo da história
da filosofia, no sentir de Hegel, a inquirição, contudo, não pára aí. Momento fundamental
da dialética da razão é constituído, também, pela busca da identidade dela consigo mesma,
ao que só se pode chegar mediante a integração das várias filosofias nacionais e dos
sistemas numa visão de conjunto que, revelando as diferenças históricas, explicite também,
o fundo comum que as une, a força e a lógica do espírito humano na busca da sua
identidade. Para utilizar o belo símil colocado pelo ilustre pensador português Antônio Braz
Teixeira, o fato de ter pernas que repousam sobre a terra, não tira à ave a capacidade de
voar até os céus. Ora, Reale tem realizado ambas as tarefas com indiscutível originalidade.
Como lembra com propriedade Roque Spencer Maciel de Barros [1994],
Miguel Reale desempenhou e desempenha entre nós, e creio que também hoje, em Portugal, um
papel semelhante ao que Ortega y Gasset desempenhou em Espanha e no mundo ibérico em geral.
Diríamos que Reale se põe diante de cada autor estudado compreendendo que cada um há de ser
examinado não segundo padrões abstratos, mas com as ‘suas circunstâncias’. ‘Tu es tu e a tua
circunstância’, parece dizer a cada um o filósofo brasileiro, disposto a situar-se diante dos problemas
que o autor em exame enfrentou, com as ferramentas de que dispunha e, se critica as suas obras, fá-lo
‘de dentro’, da perspectiva do pensador estudado, com generosa serenidade e simpatia, que combina
com o rigor crítico.
No seu trabalho de diálogo filosófico com os autores, Reale faz da tolerância e do
pluralismo o clima de trabalho, que soube comunicar ao Instituto Brasileiro de Filosofia
criado por ele em 1949 e ao seu órgão, a Revista Brasileira de Filosofia. Os que
Amam a verdade alimentada pelo livre sopro das idéias, -- frisa Reale [1994: 23] numa das suas
últimas obras -- mister é que fortaleçam a sua posição pela seriedade das pesquisas, pela meditação
serena que é o âmago, a ‘intimidade’ da filosofia (...). É claro que do diálogo filosófico não se exclui
a veemência, nem a paixão pela verdade, mas os caminhos da filosofia são os das convicções
livremente elaboradas e transmitidas, não se justificando a polêmica convertida em razão do
filosofar.
Ao enxergar a magna obra de Miguel Reale no terreno da História das idéias, à luz
da qual se formaram as duas gerações que, nos últimos cinqüenta anos têm desenvolvido de
forma sistemática o estudo do pensamento filosófico brasileiro, bem como o diálogo deste
com o pensamento português, podemos concluir que a corrente culturalista, sistematizada
pelo saudoso pensador paulista, é a que mais influência tem tido, no Brasil particularmente
e em Ibero-América, de modo geral, no que tange à tarefa de fundamentar filosoficamente a
pesquisa no terreno da História das idéias. Reale desempenha, nesse terreno, em IberoAmérica, papel semelhante ao que desempenharam Marrou e Aron na França, no ambiente
mais largo da fundamentação crítica do método de pesquisa em História.
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