Ação comunicAtivA - Editora Contexto

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Ação comunicativa
Wolfgang Leo Maar
A ação comunicativa – ou, se quisermos enfatizar sua dimensão pragmática,
o agir comunicativo – encontra-se no centro da elaboração teórica de Jürgen
Habermas. Nascido em 1929, ele é um expoente da segunda geração da Teoria Crítica. A geração dos fundadores é caracterizada, sobretudo, pela obra de
1947, Dialética do esclarecimento, de Max Horkheimer e Theodor Adorno, que
formaram com Walter Benjamin e Herbert Marcuse, entre outros, o núcleo
inicial do que posteriormente seria a Escola de Frankfurt.
A Teoria Crítica desenvolveu-se a partir da década de 1920 em torno do
tema que foi a principal novidade da formação social no século xx: a sociedade de massa. O problema que mais concentra sua atenção nessa sociedade é
o nexo característico apresentado entre as formas de poder, as configurações
da estrutura de dominação e as correspondentes estruturas da racionalidade,
a razão instrumental. Esta, centrada sobretudo no domínio humano sobre a
natureza convertida em mero objeto, terminaria por se refletir em domínio
sobre os próprios homens, que, embora se pretendam sujeitos, efetivamente
são sujeitados pelo processo posto em movimento por eles próprios. Conforme
declaram no prefácio de Dialética do esclarecimento, Horkheimer e Adorno se
propuseram “nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de
entrar num estado verdadeiramente humano, está se afundando numa nova
espécie de barbárie” (Adorno e Horkheimer, 1985: 11). Os desenvolvimentos
científicos, tecnológicos, culturais etc. não resultaram em avanços da emancipação humana. Ao contrário, junto ao “progresso” há uma inexorável “regressão”,
quadro que dá luz à “dialética do esclarecimento”.
A Teoria Crítica concentra-se principalmente nas relações entre as esferas
do poder e da razão, ou seja, nas maneiras pelas quais os homens, em sua
interação entre si e com a natureza, formam simultaneamente sua sociedade
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e sua racionalidade. Merecem atenção especial os nexos entre as estruturas de
dominação e as formas em que se objetiva a razão: ciências, cultura, artes, política, economia etc. Paradigmático nesse sentido é o novo conceito de indústria
cultural, simultaneamente político, econômico e cultural, apresentado na obra
Dialética do esclarecimento.
Contexto
Habermas examinou a sociedade de massa no período posterior à Segunda
Guerra Mundial, contexto fundamental para compreender seu nexo particular
com a Teoria Crítica, marcado pelo final das chamadas três décadas de ouro
do Estado do bem-estar do capitalismo do pós-guerra e pela consolidação do
que alguns autores denominaram “novo espírito do capitalismo”, com suas
tendências de desestatização, perda de direitos civis e arrocho do trabalho.
Enquanto a geração anterior tinha sido marcada pela experiência do fascismo
e do Estado autoritário, Habermas ostentou uma visão mais otimista do que
os que o antecederam em relação à formação social capitalista. Nesta perduraria a valorização da democracia e do pensamento liberais que tinham sido
obstruídos com políticas que se contrapunham ao welfare mediante práticas
de exclusão de direitos e contenção das organizações populares e de trabalhadores. Seu tema prioritário foi investigar, neste contexto, a possibilidade da
emancipação humana representada especialmente pela realização de interesses
públicos. Poder e razão, referenciais da Teoria Crítica originária – na qual, nos
termos iluministas, razão é subordinação ao universal –, configuraram-se para
Habermas como nexo entre poder, razão e formas sociais da racionalidade.
Como pensar, nestas últimas, a questão da universalidade em que pode se
basear uma legitimação social?
Para Habermas, era preciso focar as estruturas e as regras que tornam possíveis interações entre sujeitos apoiadas em seu reconhecimento mútuo, que são
pressupostas como características gerais pela aptidão discursiva e comunicativa
dos atores sociais, ou seja, pela sua competência interativa. São aptidões universais independentes das várias culturas, que podem servir ao “aprendizado”
da sociedade em termos de sua fundamentação como consenso social. Assim,
delimita-se uma dimensão universal nas estruturas sociais, políticas, culturais
e econômicas, que se objetiva na dinâmica do agir comunicativo, distinguindo
a razão instrumental vigente de uma razão comunicativa. A preocupação de
Habermas se dirigia à “discussão racional voltada a este fim”: a emancipação
Linguagem
Segundo Habermas, a linguagem impregna a estrutura dos interlocutores,
nos termos de suas expectativas, que precisam identificar e partilhar; assim,
desenvolvem-se intersubjetividades sustentadas no reconhecimento mútuo.
Além disso, linguagem refere-se a “algo que não se encontra nela, mas no
mundo”, delimitando assim uma dupla estrutura: ao lado do uso comunicativo
da linguagem, apresenta-se seu uso cognitivo. Nos atos da fala, os conteúdos
associam-se a pretensões de validade e fundamentam relações intersubjetivas
que constituem realidades sociais fatuais, que podem ser empiricamente
conferidas. Assim, a própria linguagem estaria impregnada do que seria uma
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em relação às imposições instrumentais. Nesse sentido, o Estado do bem-estar
constituiria uma realidade empírica exemplar. Haveria uma dimensão de emancipação na democracia vigente? Se sim, quais seriam suas condições, formais
ou empíricas? Todo o esforço de elaboração teórica de Habermas se orientou
pela tentativa sistemática de fundamentar a possibilidade do que seria, em sua
visão, uma crítica normativa, emancipadora, ao estado vigente de racionalização
instrumental estratégica ou calculista e de suas formas de dominação.
No rumo que Habermas imprimiu à sua teoria social, a ação comunicativa
era fundamental à tentativa de visualizar a possibilidade de resolução de conflitos sociais sem o recurso à violência, mediante o que se apresentaria como uma
“comunicação desprovida de coerção”. Ecoa aqui a influência da obra de Hannah
Arendt, preocupada em evitar a qualquer custo a identificação entre agir político
e agir com violência, característica principal de sua crítica do totalitarismo.
No agir comunicativo está em causa a possibilidade de usar, em contextos de interação social e entre seus participantes, a promoção de consensos
pautados no entendimento, na cooperação e na produção de concordâncias,
o que caracterizaria a própria linguagem. Nesse sentido, importa ao filósofo
principalmente o uso comunicativo da linguagem. Esta seria examinada por
uma focalização pragmática, e não pelos enfoques da sintaxe ou da semântica.
Sua análise centrou-se nas relações intersubjetivas dos locutores, algo que, por
exemplo, não era a preocupação central de Wittgenstein, com seu modelo de
jogo de linguagem, embora o foco deste no agir conforme regras revele questões
comuns com Habermas. Suas referências seriam, especialmente, os estudos
sobre os atos da fala de John L. Austin e John R. Searle e o pragmatismo de
Charles S. Peirce e George H. Mead.
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dimensão normativa, em que se apresentaria uma ideia de autonomia moralemancipadora dos homens, de uma maioridade ou emancipação, algo que na
tradição cultural alemã, desde os tempos de Kant e seu famoso ensaio O que é
ilustração? (1784), seria denominado mediante o termo Mündigkeit.
Contudo, a concepção pragmática avança de um modo original para além
do conteúdo normativo presente na linguagem. Habermas destacou esta questão
ao examinar o que denominou aptidão ou competência do agir comunicativo.
Isto é, expressar-se mediante a linguagem e, simultaneamente, assumir um
papel na coordenação de ações conforme regras realizadas efetivamente de
modo linguístico. Desse modo, Habermas distinguiu a ação comunicativa
do que seria um discurso. Neste último, o conteúdo normativo da linguagem
constitui, ele próprio, objeto de diálogo, ao se tomar como tema sua aceitação,
suas condições de efetivação e até mesmo justificar uma determinada posição
na situação em questão. Mas, no plano do discurso estaria ausente a dimensão
da ação, e, portanto, não podemos nos referir a um agir comunicativo.
Mundo da vida
As relações intersubjetivas e as correspondentes pretensões de validade formariam um âmbito objetivo de convicções partilhadas e vividas como experiências.
Por essa via, fundamentam-se orientações estabelecidas como resultado histórico
de inúmeras relações sociais de cooperação efetivadas no processo de interação
e de entendimento recíproco, convertidas em processos de aprendizado por
meio dos quais se renovam e se reproduzem de maneira ampliada. Esse quadro
social resultante de ações comunicativas foi caracterizado por Habermas pela
categoria de mundo da vida.
Nos termos próprios ao plano do mundo da vida, a sociedade seria apreendida conforme um processo de reprodução simbólica. Paralelamente, contudo,
impõe-se a reprodução material das sociedades, condicionada, seja pelo trabalho
social econômico, seja pela administração política. Essa duplicidade nos processos de reprodução acompanhou Habermas desde os primórdios de sua obra.
Em Trabalho e interação, de 1968, examinou o nexo de trabalho e interação
que se consolidaria na Teoria do agir comunicativo (2012), obra publicada em
1981, como contraposição entre dois paradigmas: o da comunicação e o da
produção. Segundo o filósofo, os processos de reprodução não são intercambiáveis, nem podem ser remetidos um ao outro; são qualitativamente distintos.
O primeiro, referido à reprodução simbólica, seria intencional intersubjetivo;
Teoria da Ação Comunicativa
As ações distinguem-se e se relacionam entre si de maneira complexa, que varia
no percurso da elaboração habermasiana. Na Teoria do agir comunicativo, obra
central da teoria da sociedade de Habermas, ele propôs ir além da abrangência
da racionalidade conforme Max Weber, ampliando a racionalidade dirigida ao
cumprimento de fins com a dimensão da racionalidade comunicativa, que seria
específica de um entendimento linguístico. Assim, as ações sociais referem-se a
uma racionalidade tomada num plano duplo: o da racionalidade comunicativa,
ou voltada ao entendimento; e o da racionalidade instrumental, voltada estrategicamente à consecução de determinados fins, isto é, dirigida ao êxito. Às essas
duas dimensões corresponderiam duas formas de integração: a integração social,
que se relaciona aos mecanismos que coordenam a orientação de ações de parceiros de interação social comunicativa; e a integração sistêmica, que se refere a
mecanismos que coordenam ações não intencionais mediante nexos funcionais.
Habermas utilizou pontos de vista do funcionalismo, do estruturalismo e da
teoria dos sistemas para suas concepções no âmbito da linguagem. A maneira pela
qual vinculou um incremento de eficiência sistêmica à autonomização da economia de mercado e da burocracia política em relação às ações sociais intencionais
das ações comunicativas, deve-se principalmente à influência da Teoria Social de
Niklas Luhman, com seu ceticismo quanto à possibilidade de autorreflexão social
coletiva. Nesses termos, a integração sistêmica seria valorizada positivamente. Com
a transição à modernidade, as duas racionalidades se diferenciam de um modo que
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ação comunicativa
o segundo, ligado à reprodução material, seria acionado por sujeitos movidos
em direção a resultados em função do processo de reprodução sistêmica – não
intencional – da formação social.
Como já enfatizado, embora na ação comunicativa o destaque caiba à dimensão comunicativa, essa primazia só faz sentido como característica de uma
ação. A ação comunicativa é uma ação social coordenada por meio de uma
perspectiva comunicativa, ou seja, constitui uma práxis comunicativa. Segundo Habermas, ela contracena, de outra parte, com ações sociais coordenadas
mediante perspectivas com grande déficit de interação comunicativa, como
ocorreria com os prismas da economia – coordenado mediante o dinheiro – e
da política – coordenado por meio do poder. A práxis material que fundamenta
esses prismas seria a responsável pelo recurso à coerção e ao exercício da violência e da manipulação.
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adquire significado empírico, explicitado como um incremento de complexidade
sistêmica. Esse ganho de racionalização no capitalismo poderia funcionar como
potencial de liberação das forças do mundo da vida que haviam sido integradas
sistemicamente. Na modernidade, com a passagem do feudalismo ao capitalismo,
há um incremento de eficiência sistêmica favorável à expansão desse mundo no
plano de sua reprodução material. Isso ocorre devido à desconsideração, conforme
a reprodução simbólica do mundo da vida, dos danos provocados pela produção
do dissenso no âmbito da produção material.
Crítica à dialética do esclarecimento
Com as duas formas de integração citadas, Habermas tomou posição diante
do que, conforme sua leitura, seria o caráter de resignação decorrente das interpretações de Adorno e Horkheimer expostas na Dialética do esclarecimento (1947). A
seu ver, os frankfurtianos teriam se fixado negativamente na integração sistêmica
coordenada pela funcionalidade da reprodução material da sociedade, realizada
pelas costas dos homens e, nesse sentido, tornada independente da efetivação
dos seus interesses. Na acepção habermasiana, não se trataria de um processo
de totalização e de obnubilação decorrente da produção material centrada na
dominação da natureza, agora convertida em dominação dos próprios homens
pelos homens, como pensam Adorno e Horkheimer. Segundo Habermas, ocorreu
nada mais do que uma racionalização sistêmica do mundo da vida. Esse seria
um processo histórico de progressiva autonomização do plano da economia e
da política na integração sistêmica. Apesar de realizado às expensas da interação
social comunicativa, gerando uma nova intransparência insuperável e a ser levada em devida conta, este processo mudaria os nexos entre o mundo da vida e o
mundo sistêmico pela ampliação da eficiência no plano da reprodução material.
Em decorrência, esses processos deveriam doravante ser levados em conta, seja
como perdas potenciais, seja como potenciais novas oportunidades.
O processo de relações entre o mundo sistêmico e o mundo da vida foi denominado por Habermas colonização do mundo da vida. Nele se desenvolvem
as atuais possibilidades de intervenção nos planos da cidadania e dos direitos
políticos, das relações de mercado e de consumo, de classe e de trabalho. Certamente, um dos padrões dessas intervenções se pautaria pelo nexo entre as esferas
do público e do privado. No âmbito entre essas duas esferas se apresentam formas potenciais de ações sociais comunicativas que, em cada um desses planos,
imporiam forças de resistência ao processo de colonização do mundo da vida.
Interação comunicativa vs. Crítica da ideologia
Para a Teoria da Ação Comunicativa, o importante é mostrar o que seriam,
conforme Habermas, as tendências de desenvolvimento social e as possibilidades
de intervenção que nele se abrem.
Trata-se em grande medida de esclarecer os participantes da sociedade
acerca de situações de que não se dão conta. Nesse sentido, também Habermas
confirmou sua inserção na perspectiva iluminista. A esfera pública, que tinha
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ação comunicativa
Os critérios habermasianos já não seriam mais a formação da autonomia
e da intencionalidade subjetiva, isto é, a máxima transparência na condução
dos processos quando estes desenvolvem uma autonomização em face dos
interesses dos homens que, embora não tenham seus interesses essenciais
atendidos, continuam seus sujeitos. Tudo isso ele associou à predominância
do que seria uma filosofia do sujeito, ou da consciência. Conforme A teoria do
agir comunicativo, essa concepção seria devida ao predomínio do “paradigma
da produção”, segundo o qual os homens são constituídos em sua interação
com a natureza mediante o trabalho social. Habermas acreditava que, por
essa via, os homens estariam impossibilitados de exercitar a crítica ao trabalho como ação instrumental. Assim, impor-se-ia uma mudança de padrão,
rumo ao paradigma da comunicação, que confere destaque à eficiência da
reprodução material e à capacidade de coordenação e controle processual. A
ação instrumental, como ação meramente dirigida ao êxito individual, seria
só uma das dimensões de uma ação comunicativa voltada ao entendimento
recíproco e à coordenação coletiva.
No lugar de processos de formação política ou moral no âmbito de
uma filosofia do sujeito, em que se privilegiam sujeitos emancipados, essa
mudança de paradigma favoreceria o desenvolvimento de processos práticos
de aprendizado coletivo. Estes poderiam canalizar a reprodução material
que ocorre no plano do mundo da vida a novos parâmetros de integração
social, mediante processos de ação comunicativa que se imporiam à integração sistêmica vigente.
É preciso destacar, nessa oportunidade, que a tradução pretendida teoricamente entre o que seria produção social material e o chamado paradigma da
produção, com as reduções na abrangência da produção social e da crítica daí
decorrentes, é fonte de equívocos que geraram inúmeras críticas a Habermas.
Retornaremos ao tema quando abordarmos a questão do dinheiro e do capital.
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sido tematizada anteriormente em sua obra Mudança estrutural na esfera pública
(1962), seria agora focada em sua concretização numa realidade objetiva coletiva.
Porém, nessa etapa central do pensamento habermasiano há um diferencial
importante em relação à anterior. Já não se tratava mais de desenvolver nos
homens a consciência adequada da situação, nos termos do que tradicionalmente é chamado de crítica da ideologia. No centro da atenção estavam agora
as condições de interação comunicativa entre os membros da sociedade. Ou
seja, estavam em causa as competências comunicativas para que eles pudessem
desenvolver procedimentos democráticos de esclarecimento e encaminhamento
de suas demandas, seja como necessidades, seja como reivindicações.
Habermas apostou no potencial de comprometimento racional entre os
partícipes de esferas públicas democráticas. A ação comunicativa atuante nessa
esfera pública não devia consistir apenas na concordância em relação à compreensão do discurso, pois assim seria somente uma ação comunicativa fraca.
Para alcançar uma ação comunicativa forte, seria preciso atingir um nível de
consenso em relação às intenções de ação no nexo entre linguagem e mundo.
O convencimento recíproco nessa direção não poderia resultar de imposições
coercitivas, nem se basear em manipulações, ilusões ou falsos conhecimentos.
Por exemplo, ao incorporar politicamente, pela ação comunicativa, as
ações reivindicatórias e de participação social, bem como as ações de autorreflexão coletiva, existentes, por exemplo, nos chamados novos movimentos
sociais, seria possível construir racional e publicamente consensos que, uma
vez praticados, integrariam sob a abrangência da ação comunicativa inclusive
aqueles que seriam discordantes. Estão em causa, sobretudo, a confiabilidade
ou seriedade das intenções e a possibilidade da sua efetivação, mesmo que não
haja concordância entre os partícipes desse entendimento comunicativo em
relação a que essas intenções devam se realizar ou de fato se realizam.
Em sua obra, Habermas tendeu a apresentar sua contribuição teórica como
tentativa de conferir uma sustentação racional aos procedimentos de políticas
democráticas para lhes garantir uma sobrevida. Essa seria uma questão fundamental, na medida em que as instituições não poderiam ser mantidas pela
coerção da força ou pelas práticas de manipulação. Há necessidade do convencimento racional, nos moldes em que este fora proposto inicialmente por
Kant em sua reivindicação da publicidade no plano da política, que chamou
de “paz perpétua”. Do mesmo modo, Habermas pretendia em sua obra Entre
fatos e normas (1992), que a estabilidade social no plano dos “fatos” devia se
encontrar com as “normas” das exigências de justiça universal conforme os
interesses de todos.
Limites e perspectivas
ação comunicativa
A teoria da ação comunicativa de Habermas se apresenta como uma “metateoria”, isto é, refere-se ao próprio contexto da sua elaboração teórica. Dessa maneira,
expressa no próprio âmbito da sua elaboração teórica as condições sociopolíticas,
econômicas, culturais etc. em que se desenvolveu, e que correspondem à socialdemocracia do chamado Estado do bem-estar. A teoria habermasiana incorpora,
justamente porque a pressupõe, a cultura política europeia no período mencionado.
Nessa medida, pode-se concluir que as possibilidades e os limites da
concepção habermasiana de ação comunicativa são, sobretudo, do contexto
sociopolítico-cultural em que ela se desenvolveu.
Os procedimentos democráticos mencionados permitiriam, se adotados
hoje, por exemplo, enfrentar uma questão como a da produção de consensos
em função de determinações impostas no plano da política. Para concretizar o
problema, vejam-se os consensos produzidos socialmente após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em relação aos que são considerados hoje
suspeitos de terrorismo. Estes perderam seus direitos políticos universais; isso
ocorreu seja no plano individual, de pessoas, seja no plano nacional coletivo,
de países e populações, como nos casos das guerras do Iraque e do Afeganistão.
Num plano mais abrangente, pode-se afirmar inclusive que todos perdemos
parte importante dos direitos de cidadania como preço a pagar pelo novo direito
à segurança, que agora consta na atual Constituição Europeia. Todos esses seriam
casos de imposição e correspondente infração à esfera pública democrática,
resultando, portanto, em frágil comprometimento racional.
A questão postulada aqui seria a de evitar, nos termos de uma objetividade
pública, a perda do controle, que ocorreria se simplesmente tivéssemos que
optar entre duas perspectivas: de uma parte, as posições do liberalismo individualista e sua defesa dos direitos individuais; de outra, os hábitos comunitários
concretizados socialmente em culturas, seja de ampliação, seja de restrição de
direitos. Mas, para Habermas, a universalidade se instala formalmente na comunicação social intersubjetiva. Por esse motivo, adverte em relação ao risco
representado pela perda de uma cultura política liberal, na qual “liberal” não se
refere a indivíduos, mas à formação da opinião pública e das vontades coletivas.
O interesse de Habermas está, especialmente, na preservação da aptidão
ao controle por meio de procedimentos públicos produtores de consensos que
gerariam comprometimentos racionais. Nesses termos, a limitação de direitos
individuais ou as chamadas guerras justas poderiam até ser justificadas em nome
do encontro necessário entre normas e fatos. No palco da disputa política,
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poderiam sê-las em nome de uma ação comunicativa baseada na seriedade das
respectivas intenções e na possibilidade de realizá-las. Porém, tais justificativas
não têm a ver com orientações para que devam ser efetivadas, o que cabe à
disputa política.
Contudo, a contribuição habermasiana carece de um aprofundamento
adequado na apreensão da constituição da própria cultura política no contexto das relações sociais efetivas, isto é, das condições da realidade material;
a cultura política, hoje, assenta-se materialmente no capitalismo. A mesma
clareza que Habermas pretendeu apresentar na solução de questões no plano
político, embora também muito discutível, não pode se repetir na focalização
dos problemas da esfera econômica tais como são, resultantes da concentração
produtiva ou da financeirização. Nessas situações, não está em causa apenas o
controle das determinações da esfera econômica, ou seja, o possível equilíbrio
entre concentração e distribuição; a circunstância é incontrolável e impõe uma
transformação da esfera econômica no sentido de evitar a acumulação de capital
decorrente do próprio processo produtivo capitalista, que gera continuamente
uma crise universalmente partilhada. Mas, para Habermas, dinheiro é apenas
meio de distribuição de produtos do trabalho, não é capital. Este não pode
ser apreendido como contraposição entre perspectivas contrárias aptas a uma
situação de equilíbrio; é desequilíbrio. Conforme Marx, capital é contradição
em processo, que reproduz barbárie e objetivamente se desenvolve em direção
a outra forma social objetiva. Eis aqui as consequências da equivocada redução
habermasiana da produção material e social dos homens – em sua interação
entre si e com a natureza, que é simultânea e indissoluvelmente trabalho e
interação – ao que seria o paradigma da produção, que não possibilita o nexo
com a cultura política vigente.
O paradigma da comunicação procura se distinguir do paradigma da
produção na mesma medida que o contexto sociopolítico do Estado do bemestar se apresenta como distinto do contexto econômico, da produção material
no modo de produção capitalista correspondente àquele Estado. A esfera da
produção material, uma vez reduzida como ação instrumental, seria isolada de
qualquer crítica. Por essa via, a produção material até mesmo seria subtraída ao
alcance da esfera da ação comunicativa, na qual efetivamente se movimentam
a vida social e a crítica ao descontrole e à autonomização nela presentes. Todo
o esforço crítico se orienta para e na esfera da ação comunicativa, desviando-se
do plano da produção, que, embora de modo involuntário, seria assumido acriticamente e se perpetua junto com sua cultura política hegemônica. De modo
similar, também se assume acriticamente o capitalismo no plano da democracia
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ação comunicativa
em sua forma vigente, formal e geradora de exclusão, focando-o apenas como
processo em que haveria uma inevitável perda patológica de controle causada
pela financeirização exacerbada.
A rigor, a produção material não apenas coloniza a ação social como integração sistêmica, mas ela mesma representa também uma ação comunicativa
específica, própria. Estaria objetivada, por exemplo, na interação entre homens
que agem como sujeitos monetários”, embora até possam ser desprovidos de
dinheiro, tal como sugeriu o ensaísta Robert Kurz na obra Os últimos combates
(1999): homens cuja interação copia o intercâmbio monetário e cuja existência é mercantil; sua cultura, inclusive a política, é pautada pelo capital. Essa
ação comunicativa constitui, assim, o reflexo possível do trabalho meramente
produtor de valor, o labor instrumental, alienado e gerador de reificação, que é
função direta do modo de produção capitalista e das correspondentes relações
de produção centradas na geração da acumulação capitalista.
Essa ação comunicativa efetiva, alienante e alienada, hoje é preponderante,
por exemplo, nos ditames que regem as ações do mercado e suas imposições
sobre a vida cotidiana, naturalizando, isto é, convertendo em natural o que é
social e desumanizando a vida cotidiana. Ela constitui a verdadeira tendência
de desenvolvimento no presente. Apesar da centralidade dessa questão na vida
contemporânea, em que se configura o desafio primordial para se levar em
frente a Teoria Crítica, ela não é tema da ação comunicativa pela perspectiva
habermasiana; falta-lhe a dimensão dialética necessária para apreender aquela
tendência como contradição. Não se trata de uma situação de patologia, mas
de normalidade contraditória na sociedade capitalista atual.
O contexto vigente de infiltração total da esfera pública pela dinâmica
reprodutiva do capital, em especial em sua dimensão financeira e suas consequências no âmbito de uma política meramente calculista, constitui a figura
atual mais visível da razão instrumental e impõe desafios ainda maiores à crítica.
Os nexos com a linguagem tornam-se ainda mais complexos no plano da expressão de uma forma social pressionada pela mercantilização extremada, que
é essencialmente apenas propaganda de si mesma que eclipsa suas contradições
objetivas. Como Habermas destacou, há um papel educativo exercido pela ação
comunicativa: criar condições para o exercício do diálogo, ou seja, de práticas
políticas isentas de coerção. Mas, simultâneo a este ganho, há também seu
avesso. Isto é, a formação prática de procedimentos que, pela sua própria lógica,
contém, travestidos em cultura política vigente, elementos que travam no plano
intersubjetivo a expressão de vontades coletivas constituídas objetivamente na
sociedade, acarretando a perda de sua participação nos processos de formação
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das vontades públicas. Estamos diante de uma “dialética da comunicação”,
na qual o agir comunicativo apresenta-se inclusive como imposição objetiva.
Nesse caso, a busca dialógica do consenso deixa de ser referencial normativo,
tornando-se necessário voltar à orientação no campo da disputa política de
forças sociais, tais como as orientações de classe.
Implicações no Brasil
No Brasil, a vasta obra de Habermas tem grande repercussão. Contudo, a
Teoria do agir comunicativo foi traduzida em nosso país apenas em 2012, e não
por acaso. A influência dessa obra ocorreu sobretudo indiretamente, apropriada
na elaboração habermasiana no âmbito de enfoques que privilegiam outros
aspectos, como as concepções da teoria do direito, ou da democracia baseada
em práticas intersubjetivas, como as chamadas políticas de reconhecimento.
Porém, a ação comunicativa constitui a nervura da obra de Habermas, que,
numa relação dialógica com seu pensamento, continuamente a converte em
tema para rever seus pressupostos e sua argumentação. Essa ação possui implicações relevantes entre nós por enfatizar práticas de orientação democrática,
participativa e inclusiva no contexto brasileiro, marcado por hábitos públicos
conforme uma cultura política coercitiva, autoritária, não participativa e excludente. Habermas não separa processos e sujeitos, mas privilegia processos
de emancipação na formação de sujeitos coletivos.
O contexto social recente do país é marcado pela redemocratização, com o
fim da ditadura militar e o desenvolvimento de “novos movimentos sociais”, o
que conduziu à centralidade da questão da cidadania e à sua edificação democrática. Segundo Habermas, essa democratização deveria ser sustentada, principalmente, em procedimentos que configuram uma cultura política baseada
em ações comunicativas, em cujo contexto destacam-se duas contribuições,
até discutíveis, porém importantes, pois têm como objetivo o restauro pleno
do espaço para a disputa política.
Primeira, no plano do positivismo jurídico reinante, uma concepção
discursiva do direito. A política não é criação de direitos, que podem ser
instituídos de modo autoritário; mas direitos são criação da política. Segunda,
e que mais interessa aqui: uma alternativa para se contrapor à organização
meramente instrumental-mercantil da esfera pública, caracterizada, seja no
plano privado dos consumidores, seja no plano público do populismo. Seria
uma contraesfera pública, baseada numa prática comunicativa permanente,
Referências
ADORNO, Theodor W.; Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad.
Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
HABERMAS, J. Obras escolhidas. Lisboa: Edição 70, 2009, 5 v. (Philosophische Texte. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 2009.)
_______. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2012. 2 v. (Theorie des kommunikativen
Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981.)
CARVALHO, M. C. B. (org.) Teorias da ação em debate. São Paulo: iee-puc/sp, 1993.
DOSSIÊ HABERMAS. Novos Estudos Cebrap, 18 set. 1987.
IINGRAM, D. Habermas e a dialética da razão. Brasília: UnB, 1993.
LEYVA, G. (ed.) La Teoria Crítica y las tareas actuales de la crítica. Madrid: Anthropos, 2005.
OUTHWAITE, W. Habermas: a Critical Introduction. Stanford: Stanford Un. Press, 1994.
PINZANI, A. Habermas. Porto Alegre: Artes Médicas, 2009.
RUSH, F. (org.) Teoria crítica. São Paulo: Ideias & Letras, 2008.
Agenda Setting, Newsmaking
e a Espiral do Silêncio
Clóvis de Barros Filho
Sérgio Praça
Após décadas de estudos empíricos e teóricos na área de comunicação, é
espantoso quão pouco ainda sabemos sobre algumas questões fundamentais,
como: quais fatores e mecanismos determinam a agenda pública e a agenda
da mídia; como esses fatores e mecanismos operam na prática; o que afeta a
publicização de opiniões individuais sobre temas que estão na agenda; como
o simulacro de objetividade posto em prática pelos jornalistas impacta tanto a
formação da agenda da mídia quanto a recepção das notícias.
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AGENDA SETTING, NEWSMAKING E A ESPIRAL DO SILËNCIO
centrada em procedimentos discursivos de interação na constituição coletiva
da opinião pública e da esfera em que se constituem escolhas e decisões. Ela
teria uma função político-educativa, ao se contrapor à ação manipulativa da
defesa de interesses econômicos e políticos pelos meios de comunicação de
massa, restituindo-lhes suas contradições para recolocá-los novamente no
palco das lutas políticas.
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