a manifestação experiencial dos cristãos de antioquia nos cristianismos originários e a controvérsia da circuncisão* Gilson Xavier de Azevedo** Resumo: o objetivo desse artigo de revisão de literatura é refletir sobre a formação dos cristianismos originários, focando a comunidade de Antioquia da Síria em consideração às controvérsias sobre relacionamentos de gentio-cristãos e judeu-cristãos em relação às prescrições judaicas de ritos domésticos e circuncisão adotadas pela Igreja de Jerusalém. O artigo perfaz a vertente histórica e bibliológica de tais questões dentro do que é exposto em Atos e Gálatas, levando em consideração a fidelidade dos grupos originários de Paulo, Barnabé e João Marcos. Esta pesquisa histórico-crítica observa sobremaneira a influência citadina da grande acrópole, considerada por grupos judeus e cristãos como expressão helênico étnica, bem como seus riscos em relação à desvirtualização do Espírito de Jesus. Palavras-chave: Cristianismo primitivo. Controvérsias. Antioquia. Circuncisão * Recebido em: 11.08.2011. Aprovado em: 21.08.2011. * Mestre em Ciências da Religião (Curso Institucional oferecido em Reg. Especial - Parecer 63/04) no Centro de Educação Teológica e Humanística Logos (2002-curso sendo validado pelo mestrado em mesma área pela PUC-GO). Especialista em Coordenação Pedagógica e Administração escolar pela Universidade Veiga de Almeida (2002). Especialista em Ética e Cidadania pela UFG Polo São Simão; especialista em Filosofia Clínica pelo Instituto Packter – SC. Licenciado Pleno em Filosofia (Faeme 2006 - Curso Especial de Formação Pedagógica e validação do curso de Filosofia pelo Instituto Dom Felício e Faculdade Coração de Maria - Lei 1.051/69). Graduado em Teologia Social (Bacharelado-Complementação de curso concluído em 2001) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2006). E-mail: [email protected] Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. 597 A bsolutamente “puro e genuíno”, é assim que a maioria dos autores lidos para a composição desse texto, definem sua concepção de Cristianismo Primitivo. As várias questões que envolveram a formação do grande bloco que se conhece hoje por Cristianismo, é, na verdade, um conjunto de correntes, fatos, ações, escritos e ideias; controvérsias comuns a qualquer cultura como o foi na cultura cristã dos séculos I e II d. C. De origem judaica, mas de classe social inferior, o judeu Jesus, assim como uma dezena de outros judeus de índole messiânica de seu tempo, apresenta-se ao meio judaico/romano e grego como uma proposta aparentemente nova, que mantém a perspectiva monoteísta em um novo estratagema que era a filiação messiânica, de agradável entendimento dos marginalizados. Depois de propagar sua mensagem não institucionalizada como profeta, Jesus, o Galileu, foi assassinado por possível mando dos saduceus e sua pregação foi continuada pelos que dele de aproximaram em vida. Não tardou a necessidade de estruturação de um corpus teológico e a construção de uma cultura organizada de culto, livros sagrados e prescrições, o que teve maior impulso após o Edito de Milão em 313 d.C. Intitulado messias, escolhido ou Filho de Deus, o Jesus da História parecia ser não só a encarnação do verbo, mas de todas as esperanças judaicas dispostas na Torah em sua versão denominada Septuaginta ou a tradução aramaica (Targum). Não obstante, a ideia de se colocar ou ser reconhecido como tal foi talvez uma ideia que se propagou entre pagãos gregos e marginalizados romanos e entre a elite judaica da época. O cristianismo começa a ser vivido de forma oral após a propagação da fé na ressurreição do cristo assassinado por interesse judeu e no impulso místico do que depois ficou conhecido como Pentecostes. Aqueles que tiveram contato direto com Jesus foram se agrupando a outros simpatizantes da proposta por uma espécie de afinidade conceitual e teológica ao mestre. Nota-se nesse período, diferentes comunidades que se formam em culto no entorno dos apóstolos. Como entendiam que o Jesus que seguiam era Judeu por natureza, Pedro e Tiago permaneceram em Jerusalém para ali construir sua comunidade que mesclava elementos judaicos de culto e costumes. No entorno deles, Mateus, Marcos e Lucas, porém muitos anos depois do evento Jesus, buscam reforçar o conjunto de sentenças pronunciadas pelo Mestre e que eram a base da cultura cristã oral, por meio de relatos sistematizados e semelhantes (Sinóticos) da passagem de Jesus entre eles. “Os Evangelhos narrativos começaram a aparecer em fins do século I. O de Marcos foi escrito na década de 70, o de Mateus na de 598 Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. 80, o de João na de 90 e o de Lucas, assim como os Atos dos Apóstolos, em algum momento no início do século II” (MACK, 1994, p. 11). Bem mais tarde, acontece a Paulo, um processo de conversão que vai torná-lo também seguidor do Jesus de Nazaré. Sua conversão representou uma expansão jamais imaginada pelos apóstolos, na propagação das ideias do Cristo aos helenos (habitantes próximos ou distantes de Jerusalém, chamados por Ferreira (2012, p. 23) de étnicos, gentios, pagãos ou estrangeiros); desse modo, são constituídos os principais cristianismos primitivos: judeu cristão, sinótico baseado na Fonte Q (primeiros e desordenados escritos com frases e até poemas atribuídos ao judeu Jesus; uma espécie de cordel ao estilo judaico que buscava ressaltar o corolário do mestre) cristianismo paulino e concomitantemente o cristianismo joanino. Deve-se ainda mencionar a literatura apócrifa constituída por leituras surreais como a da comunidade de Nag Hamadi no Égito, descoberta em 1945. A despeito das muitas correntes que vão se construindo e por vezes se entrelaçando, um texto de justino no ano 150 indica o Espírito1 que permeava essas comunidades: Para afastar as pessoas de nossos ensinos, outros brandirão contra nós o argumento desarrazoado de que afirmamos que Cristo nasceu há 150 anos, em tempos de Quirino; que ensinou, em tempos de Pôncio Pilatos, a doutrina que lhe atribuímos; e criticar-nos-ão, pois, dizendo que não levamos em consideração todos os que nasceram antes de Cristo. Convém que desfaçamos essa dificuldade. Temos aprendido que Cristo é o primogênito do Pai, e acabamos de explicar que ele é a razão (o Verbo), da qual participa toda razão humana, e aqueles, pois, que vivem de conformidade com a razão são cristãos, muito embora sejam reputados como ateus. Assim Sócrates e Heráclito entre os gregos e, como eles, muitos outros [...] (JUSTINO apud BETTENSON, 2011, p. 31). A perspectiva exposta por Justino, mostra-se uma espécie de apologia à veracidade do seguimento do cristo (kyrios, ou autoridade no que fala). De outro modo, mesmo havendo certa ordem nos evangelhos sinóticos, é possível notar dessemelhanças ou particularidades com origem na própria vivência dessas três comunidades primitivas, conforme ilustra-se a seguir: De um lado, Mateus apresenta a atividade pública de Jesus em vinte e cinco capítulos. Por outro lado, Lucas apresenta a atividade de Jesus em vinte e um capítulos. Por fim, Marcos apresenta a atividade de Jesus em quinze capítulos, faltando quase por inteiro as seções dos grandes Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. 599 discursos (sermão da montanha, missão dos doze, discussão com os fariseus Mt 5-7; 10; 23). Marcos também apresenta menos parábolas e mais milagres que os outros sinóticos. Tais diferenças são, em maior parte, provenientes dos objetivos de cada autor ao narrar as histórias. Em linhas gerais, porém, as diferenças de extensão não resultam em grandes diferenças de conteúdo (KIBUUKA, 2008). Todavia, as diferenças entre esses evangelhos estão relacionadas às intenções de se escrever um texto que fosse conforme o citado acima, ao mesmo tento, esclarecedor, propagador e talvez apologético em alguns aspectos. Marcos foi escrito mais próximo do tempo de Jesus, o que propicia por certo um acesso mais direto à fonte Q. É preciso ,portanto, salientar que historicamente, Mateus e Lucas compuseram os seus evangelhos tendo presente o relato de Marcos. No caso do Evangelho2 (primeiro anúncio ou Kérygma 3) de Mateus: [...] terá sido escrito na Síria, talvez em Antioquia ou na Fenícia (onde viviam muitos judeus) com a finalidade de responder, doutrinalmente, às necessidades dessa comunidade. E, porque esta comunidade era proveniente do judaísmo as pessoas conhecem bem as escrituras [...] estas comunidades parecem compostas sobretudo por cristãos provenientes do judaísmo; em segundo lugar temos que esclarecer que estas comunidades estão em conflito aberto com o judaísmo oficial; por último, estas comunidades abrem-se aos pagãos (efetivamente, estes judeus convertidos ao cristianismo redescobrem, nas palavras de Jesus, a Sua vontade de enviar discípulos pelo mundo inteiro). [...] O pensamento teológico de Mateus gira em torno de três vertentes fundamentais: a pessoa de Jesus como Messias e Filho de Deus; a pregação de Jesus centrada no Reino dos Céus [...] O Jesus de Mateus é o novo Moisés [...] (PRE-SEMINARIO, s.d.). De acordo com Richard (1998, p. 33), o Evangelho de Mateus fora mesmo escrito em Antioquia, mas por autores helenistas tendo por fonte o Evangelho Galileu ou a já mencionada Fonte Q comum aos grupos primitivos do período de 40-60 d.C época. Na realidade, o que se pode perceber é que os evangelhos, qualquer um deles, não são evangelhos do Jesus da história, concreto, real, mas das comunidades que necessitavam naquela hora de uma base para crescerem e manterem a fé. Por sua vez o estilo de Marcos: 600 Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. [...] é simples e popular (grego da Koiné). Tem poucos discursos. Os seus relatos são sempre concretos, cheios de ditos copiados do real. Utiliza com frequência os verbos no presente, o que torna o relato atual. A sua linguagem é profundamente temperamental. Ele suscita a emoção, mais pela relação ‘brutal’ dos fatos do que pelo apelo aos sentimentos – isto é particularmente sensível no relato da paixão (PRE-SEMINARIO, s.d.). Richard (1998, p. 41) afirma que o Evangelho de Marcos é o resultado das tradições paulina e de Tiago, o irmão do Senhor. O contexto histórico da construção desses evangelhos, sobremaneira, é o dos conflitos entre judeus e Imperadores romanos, além da eminência da destruição de Jerusalém em 70 d.C. A necessidade de fornecer esperança aos novos seguidores do cristo e a salvaguarda da mensagem em caso de extermínio dos cristãos, fez com que as comunidades primitivas construíssem suas percepções. Diferenças um pouco maiores no modelo sinótico são encontradas no terceiro Evangelho. No caso do Evangelho de Lucas, nota-se que: [...] o próprio autor diz-nos que não foi testemunha ocular daquilo que Jesus disse e fez (1, 1-2). Ele escreve a partir das testemunhas oculares que encontrou na sua vida (1, 2-4). Apesar de termos de considerar as fontes (Marcos e Quelle - uma coleção doutrinal para ajudar os evangelistas primitivos - apóstolos, profetas e doutores - na divulgação da Palavra) encontramos em Lucas muito material evangélico próprio. Basta lembrar que os dois primeiros capítulos do chamado evangelho da infância, os quatro milagres as parábolas que só aparecem em Lucas e toda a passagem dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35). Este texto destina-se a leitores cristãos de cultura grega [...] o evangelho tem por finalidade levar Teófilo a concluir que o plano de Deus se realiza de maneira escatológica na pessoa de Jesus. É importante ainda ressaltar que os Atos dos Helenistas (dos apóstolos como são conhecidos no Brasil) são vivenciados em maioria nesta região da Antioquia da Síria. Todavia, dos três mencionados, foi a construção de Mateus que conferiu identidade e relevância única nos meados do fim do século I. Construído este panorama, busca-se então perceber dentre os muitos elementos doutrinários que vão se formando ao logo dos dois primeiros séculos do cristianismo, uma comunidade específica que chama atenção pela sua diversidade e pelas questões que dali emergem. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. 601 A COMUNIDADE FUNDADA POR SELEUCO I No tempo da formação dos cristianismos originários, Antioquia foi um nome comum a várias cidades do Império Selêucida; no caso da comunidade cristã em questão, trata-se de Antioquia da Síria ou de Orontes ou ainda de Asi (Figura 1), que percorre os territórios do Líbano, da Síria e da Turquia; uma espécie de referência ao rio. Figura 1: Viagem complementar a Jerusalém. Fonte: http://lectiodivina.spaceblog.com.br/image/1220881884-jpg/ Esta Antioquia, onde ocorreram as controvérsias a serem aqui tratadas, é a maior de outras dezesseis; todas fundadas por Seleuco Nicanor em memória de seu pai Antíoco, por volta do ano 300 a. C. (Final do século IV a. C.), conhecido também como Seleucos (c. 358 a.C. a 281 a.C.), um oficial Macedônio de Alexandre, o Grande,. Também é reconhecida como terceira maior cidade do Império Romano em 64 a.C. sendo no ano 27 a província imperial da Síria; somente perdia em proporção e volume de negócios para Roma e Alexandria (RICHARD, 1998, p. 32). 602 Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. Figura 2: Reinos Helenísticos Fonte: <http://4.bp.blogspot.com/_gY3Y_-YmPyg/TNAthZbleLI/AAAAAAAABWk/XrEzOlkF0es/ s1600/Diadochi310Es.jpg “ A cidade era uma completa Acrópole ou Cidade-Estado Helênica, contendo o circo romano, além de banhos, vilas e cemitérios e pisos de mosaico. Nos tempos apostólicos, possuíam mais de meio milhão de habitantes. Ali havia um culto à deusa fenícia Astarote (deusa dos Sidônios: I Reis 11, 2: “Salomão seguiu a Astarete, deusa dos sidônios, e a Milcom, abominação dos amonitas”), conhecida como deusa da lua, da fertilidade, da sexualidade e da guerra. O culto foi abolido por Constantino I. Com exceção de Jerusalém, nenhuma outra cidade esteve tão ligada aos primórdios do cristianismo como Antioquia. Possivelmente o quarto livro dos Macabeus também procede desta cidade (RICHARD, 1998, p. 33). Os cristãos ali instalados, mostravam grande preocupação com questões sociais como a fome de irmãos de outras localidades (At 11, 27-30). Desde o seu início, abrigara judeus e gentios, o que felicitou o aparecimento das questões que vimos. Mas não são apenas tais prerrogativas que marcam a região de Antioquia. Acredita-se que muitas outras questões tenham sido tratadas pelo Concílio de Jerusalém (Ano 48), mas que não foram consideradas por Lucas, dadas as muitas reivindicações da igreja de Antioquia. A Igreja primitiva (período que vai do ano 30 ao 325 d.C.) assistiu à ascensão cristã em Antioquia, originando ali a primeira grande missão gentílica. “Era apropriado que a cidade onde foi fundada a primeira igreja cristã gentia, e onde os cristãos receberam seu nome característico, talvez sarcasticamente, fosse o berço das missões cristãs ao estrangeiro (At 13,1)” (PESFORMOSOS, s.d.). Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. 603 Uma comunidade marcada pelo culto missional, caridade, jejum e disposição evangelizadora, é o que se pode observar em Atos. O nome da cidade aparece em 19 referências no novo testamento, sendo 16 em Atos, o que pode indicar sua importância. 1) Não devemos pensar que a igreja de Antioquia jejuava porque trazia resquícios do judaísmo. Esta não seria uma forma inteligente de pensar, primeiro porque Lucas era gentio e, por isso mesmo, qual o interesse dele em dar tanta ênfase a uma prática estritamente judaica? Segundo, a igreja de Antioquia foi uma das igrejas mais anti-judaicas do passado, naquilo que se refere às práticas religiosas do judaísmo. Direta ou indiretamente o concílio de Jerusalém aconteceu em razão desse anti-judaísmo-cerimonialista. 2) Acreditamos que Lucas fez questão em enfatizar a prática do jejum pela igreja de Antioquia, primeiramente para mostrar que o jejum e oração não são incompatíveis na vida de uma igreja e, em segundo lugar, mostrar como esta prática era (e deve ser) valorizada no meio de uma igreja verdadeiramente missionária (PEREIRA, s.d.). De acordo com Ferreira (2012, p. 24), os cristãos antioquenos particularizavam-se pela busca de liberdade concernente à Lei judaizante, pela conversão em massa dos gentios, pela relação entre a ressurreição do cristo e as religiões de mistério com temas semelhantes. O fato de autodenominar-se chistianós demonstra um grande princípio identitário desta Cidade-Estado-Comunidade e que pode indicar inúmeras situações limite e conflitos dos mais diversos nos quatro primeiros séculos do cristianismo. A perspectiva apocalíptica também é apontada como forte nesta igreja. Diversas questões expostas em Atos (6-15) se dão a partir da realidade da Pólis Antíoca; cita-se por base, o conflito entre Paulo e Pedro, o concílio de Jerusalém (At 6, 1-7), A eleição da diakonia que ali deveria servir aos pobres e irmãos necessitados; a pregação a etíopes, samaritanos e demais povos da região (At 8,5-40); alí também acontece a grande assembléia cristã (At 14,27-28); a cidade foi a “casa” de Paulo por quase quatorze anos; a comunidade possuía grande número de judeus com leis próprias e culto sinaíco autorizado. Atos 15, 30-35 indica a recepção de delegados de Jerusalém e a construção de uma carta apostólica. Além desses, era uma comunidade carismática dirigida por profetas e mestres, tornando-se ainda uma comunidade missional. Basicamente, os principais atos (De Paulo, Pedro, Barnabé, Felipe e Tiago) acontecem em Antioquia, assim como as contendas proporcionais à sua glória. A comunidade que evangeliza o grande proconsul Romano Sérgio Paulo (At 13,9) também 604 Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. é sede de falsos profetas como Bar Jesus? repreendido por Paulo. Diante de tantos fatos envolvendo esta comunidade cristã, passa-se à descritiva dos conflitos que ali aconteceram. DEBATES E CONTENDAS TEOLÓGICAS A comunidade de Jerusalém, exposta e discutida em Atos, foi uma comunidade marcada por fortes conflitos doutrinários, dado que fazia parte desta hebreus e helenistas de muitas partes da Helade e Galade. A liderança desta comunidade na década de 40 de Tiago d.C., chamado irmão do Senhor. O livro de Atos dos Apóstolos (12,17;15; 21,17-25) faz menção à investidura de Tiago nessa comunidade depois de Pedro e dos apóstolos, o que pode ser uma possível cisão que culminou com o afastamento de Pedro (Ano 48). No que tange aos cristãos, percebemos que se fortaleceu o grupo mais ligado a Tiago, e aos “irmãos de Jesus”. Este grupo segue a tendência geral do povo judeu e começou a evitar o contato com os estrangeiros (Gl 2,11-13). O judaísmo, apesar de toda a disciplina e todo separatismo do judaísmo em relação a outras religiões, deu origem ao cristianismo (FERREIRA, 2010, p. 19). Dentre os muitos celeumas vivenciados nesse período, é possível destacar o que ficou conhecido historicamente como “Incidente em Antioquia” por volta do século I narrado inicialmente por Gálatas (2,11-14): 11. Quando, porém, Cefas [Pedro] veio a Antioquia, resisti-lhe na cara porque era condenado. 12. Pois antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele comia com os gentios; mas quando eles vieram, subtraía-se e separava-se temendo os que eram da circuncisão. 13. Os outros judeus também dissimularam juntamente com ele, de modo que até Barnabé foi levado com eles na sua dissimulação. 14. Mas quando vi que eles não andavam retamente conforme a verdade do Evangelho, disse a Cefas perante todos: Se tu, sendo judeu, vives como gentio, e não como judeu, como obrigas os gentios a viver como os judeus?. O texto, escrito por Paulo aos gálatas, indica uma forte pressão deste ao que se poderia deduzir por uma espécie de cristianismo judaico-helenista, onde as prescrições judaicas incorporadas ao “novo judaísmo” agora estaria prejudicando a diplomacia entre os próprios chefes da igreja. Richard (1998, p. 38) afirma que a versão do conflito dada por Paulo em Gálatas seria Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. 605 histórica e a de Lucas em Atos, uma citação de rodapé sem melhores fontes. De acordo com Dunn (2002, s.p.): Pedro seria um ‘intermediário’ entre as visões conflitantes de Paulo (mais próxima dos gentios) e Tiago, irmão de Jesus (mais próxima dos judeus). Pedro era provavelmente, de fato e de direito, o intermediário que fez tudo para manter unida a diversidade existente na era apostólica. Tiago, irmão de Jesus, e Paulo, os dois mais proeminentes líderes na época, além de Pedro, estavam muito identificados com suas respectivas “marcas” de cristianismo, pelo menos aos olhos dos que estavam no polo oposto deste espectro. Mas, Pedro, como visto principalmente no incidente em Antioquia em Galátas 2, tinha tanto o cuidado de manter sua herança judaica, que faltava em Paulo, e uma abertura para as demandas impostas pelo nascente cristianismo, que Tiago não tinha. Richard (1998, p. 39) menciona que Barnabé e Marcos são fiéis ao Espírito, ao contrário de Paulo. Ensinar a Toráh aos gentios, ou qualquer outra prescrição judaica era visto como tolice, uma vez que não havia no seio do judaísmo o proselitismo, ou seja o desejo de converter não judeus em judeus. Quando gentios começaram a se converter do paganismo para o cristianismo, uma série de conflitos vão se sucedendo devido às influencias judaicas dentro do cristianismo. Ainda conforme Richard (1998, p. 39): Com a escolha da circuncisão de Timóteo, Paulo manifesta claramente sua intenção de orientar a missão para os judeus, quando a estratégia do Espírito é claramente a missão aos gentios (At 15, 36-41). [...] Uma leitura superficial do texto dá razão a Paulo contra Barnabé e João Marcos. No entanto, é Paulo quem está indo contra o Espírito. Marcos abandonou Paulo na Panfília porque não estava de acordo com a estratégia de Paulo em começar a missão sempre pelas sinagogas. Agora Barnabé e Marcos, fiéis ao Espírito, querem dirigir-se diretamente aos gentios, o que é rejeitado por Paulo. Como se sabe, a controvérsia ocasionou mais tarde o Concílio de Jerusalém. O ponto central discutido durante o concílio era se os gentios, ao se converterem ao cristianismo, teriam que adotar algumas das práticas antigas da Lei Mosaica para poderem ser salvos, inclusive o fazer-se circuncidar conforme expressa Atos, capítulo 1. Tiago, como guardião da cultura judaico-cristã messiânica, demonstra na narração de Paulo sua preocupação: 606 Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. Eis porque, pessoalmente, julgo que não se devam molestar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus. Mas se lhes escreva que se abstenham do que está contaminado pelos ídolos, das uniões ilegítimas, das carnes sufocadas e do sangue. Com efeito, desde antigas gerações tem Moisés em cada cidade seus pregadores, que o leem nas sinagogas todos os sábados (At 15, 19-21). Existia uma constante preocupação em não deixar a proposta apostólica herdada do Cristo, se perdesse, helenizasse ou se fundisse com os costumes da gentilidade. A situação limite parece ter se agravado ainda mais com a visita de Pedro e Tiago. Os apóstolos e os anciãos, vossos irmãos, aos irmãos dentre os gentios que moram em Antioquia, na Síria e na Cilícia, saudações! Tendo sabido que alguns dos nossos, sem mandato de nossa parte, saindo até vós, perturbaram-vos, transtornando vossas almas com suas palavras, pareceu-nos bem, chegados a pleno acordo, escolher alguns representantes e enviá-los a vós junto com nossos diletos Barnabé e Paulo, homens que expuseram suas vidas pelo nome de nosso Senhor, Jesus Cristo. Nós vos enviamos, pois, Judas e Silas, eles também transmitindo, de viva voz, esta mesma mensagem. De fato, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor nenhum outro peso além destas coisas necessárias: que vos abstenhais das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas, e das uniões ilegítimas. Fareis bem preservando-vos destas coisas. Passai bem” (At 15, 23-29). A discussão toda aclarada acima sobre o problema da imposição sobre a circuncisão dos não judeus convertidos tem um precedente que fora a conversão do perseguidor Saulo de Tarso (Ano 35), dado que a aceitação deste pode ter enfrentado sérios preconceitos somente superados pela postura de Barnabé que o acolhera “E, quando Saulo chegou a Jerusalém, procurava ajuntar-se aos discípulos, mas todos o temiam, não crendo que fosse discípulo” (Atos 9, 26). De mesmo modo, a conversão de Cornélio, um centurião romano descrito como homem justo e temente a Deus, deixou Tiago e seus correligionários ainda mais preocupados com a situação de pureza dentro de sua ekklesia 4 . Pedro tivera uma visão, na qual fora-lhe oferecido pelo Senhor comidas ditas impuras para que comesse, a qual interpretou com sendo o desejo do Senhor em que o evangelho fosse pregado aos pagãos, como já fazia Paulo. A ocasião já provocara muito alarido, dado que é conhecida como o segundo Pentecostes, ou seja, uma grande manifestação por parte dos pagãos próximos a Cornélio também convertidos. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. 607 Depois, já em Jerusalém, Pedro é intimado a dar explicações sobre sua pseudo irreverência nas reuniões pagãs. Pedro que naquela ocasião se convencera de que Deus não faz acepção de pessoas, deu suas razões e diz o texto, todos exclamaram: “Na verdade, até aos gentios deu Deus o arrependimento para a vida” (Atos 11,18). Dalí por diante, a perseguição desencadeada pelo martírio de Estevão irá preencher três outras comunidades: Fenícia, Chipre e Antioquia. Antioquia, recebeu a visita pastoral de Barnabé (At 11, 22-29) que enviado por Jerusalém cuidaria de resguardar os preceitos judaico-cristãos. Depois disso fora com Paulo a Tarso. Uma violenta perseguição ceifa, pela mão de Herodes, a vida de Tiago irmão de João e aprisiona Pedro; este conseguiu fugir mais tarde em condições pouco compreensíveis e místicas conforme a narração. Toda controvérsia parece se agravar no momento em que na Judeia, cristãos são forçados por fariseus convertidos a circuncidar-se como condição de aceitação no grupo. Durante a contenda dos judaizantes (termo foi usado no Novo Testamento para referir aos cristãos hebreus que requeriam que os cristãos gentios seguissem leis mosaicas), Em meio à assembleia antioquena, Pedro pede a palavra e diz: Irmãos, vós sabeis que há muito tempo Deus escolheu-me dentre vós, para que da minha boca ouvissem os gentios a palavra do Evangelho e cressem. Deus, que conhece os corações, apresentou testemunho a favor deles, dando-lhes o Espírito Santo, como também a nós, e não fez distinção alguma entre nós e eles, purificando os seus corações pela fé. Agora, pois, por que provais a Deus, pondo um jugo sobre a cerviz dos discípulos, o qual nem nossos pais, nem nós podemos suportar? Mas cremos que pela graça do Senhor Jesus seremos salvos, assim como eles (At 15, 7-11). O que se percebe desta celeuma toda é que durante a controvérsia da circuncisão e costumes judaicos, quatro tradições distintas estavam em conflito, ou seja, o grupo de Pedro que havia se afastado da comunidade de Jerusalém por fazer concessões religiosas aos gentios ao ponto de ter sonhos avassaladores com ordens divinas de que continuasse (uma espécie de catarse no sonho que lhe auxiliaria a sublimar seu possível sentimento sectário e talvez de culpa em se afastar do Espírito judaizante); depois vemos Tiago que assume a comunidade judaica e impõe o judaísmo prescritivo aos novos convertidos; Aparece depois a figura de Barnabé que apóia inicialmente Pedro, depois acompanha Paulo e o apresenta em Antioquia e por fim se une 608 Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. novamente ao Espírito judaizante e por fim aparece o grupo de Paulo que durante quatorze anos discerne finalmente que o cristianismo deve ser um evento essencialmente marginal (MEIER, 2003) e destinado aos gentios e habitantes de todo o orbe grego. Não se pode falar em consenso entre essas tradições, apenas em fenômenos como acomodação e concessão, pois cada qual se alojou e erigiu seu cristianismo a seu modo até que sua geração terminasse. De toda essa problemática decorre uma constatação feita por Woodruf (1995), em relação ao fato de que era uma comunidade numerosa e com mestres suficientes para serem um centro de disseminação cristã, tanto que criam uma autodenominação: The Chistianus. “Havia na igreja de Antioquia profetas e mestres: Barnabé, Simeão, por sobrenome Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, coloço de Herodes, o tetrarca, e Saulo” (At 13, 1-3). A questão toda parece apaziguar-se com a palavra de Tiago: “Por isso eu julgo que não se deve perturbar os gentios que se estão convertendo a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das viandas oferecidas aos ídolos, da fornicação, dos animais sufocados e do sangue” (Atos 15,1920). De outro modo, Richard (1998, p. 42) expõe que a identidade da comunidade antioquena situa-se justamente no fato de que ali se construiu uma nova e contundente tradição: “própria e específica” e portanto diferente da joanina, paulina ou petrina conforme o mesmo autor indica: Alguns autores insistem que, depois do conflito, a igreja de Antioquia teria retrocedido teologicamente, ficando submissa ao grupo judeu-cristão moderado dos de ‘Tiago’. [...] Em síntese, a identidade da igreja de Antioquia, por volta dos anos 50 dC, é fiel às proposições de Paulo, Pedro, Tiago, Barnabé e Marcos: fidelidade à Verdade do Evangelho, fidelidade à Unidade da Igreja e fidelidade à Missão direta aos gentios. Por fim, o cristianismo construído e vivenciado pela comunidade primitiva de Antioquia é em si suí generis e ao mesmo tempo originário de uma evangelização que chegaria até nossos dias, até nós, portanto; é possível entrever que sem os antioquenos outras formas de tradição poderiam nos ter chegado no ocidente com maior força que chegaram, posteriores ao cristianismo antioqueno. CONCLUSÃO O roteiro apresentado mostrou a relevância da igreja de Antioquia para o desenvolvimento dos cristianismos originários. Em específico Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. 609 nesta comunidade, com condições e estrutura favorável, o cristianismo realmente se desenvolveu se desvencilhando das amarras doutrinárias de Tiago, Barnabé e Pedro. Na realidade, ao contrário do que se costuma dizer, Paulo também não teve grande influência na confluência do Evangelho ali propagado, ao contrário, a comunidade serviu de base para suas missões e foi onde este se construiu dentro do cristianismo. Essas quatro vertentes do cristianismo primitivo (Tiago e Barnabé, Pedro e Barnabé, Pedro e depois Paulo) são então consideradas tradições anteriores à tradição que se formou em Antioquia (pré-antioquenos), sendo que como o visto, o fato de ser uma Acrópole e possuir todos os elementos que uma polis grega possui, além de localizar-se ali um judaísmo já helenístico foram os fatores decisivos para o nascimento da primeira tradição gentílica pós judaísmo chamada pela própria comunidade de christianus. THE EXPERIENCIAL MANIFESTATION OF THE CHRISTIANS OF ANTIOQUIA IN THE ORIGINARY CRISTIANISMOS AND THE CONTROVERSY OF THE CIRCUNCISION Abstract: the aim of this literature review article is to discuss the formation of Christianities originating, focusing on the community of Antioch in Syria in light of the controversy about relationships Gentile Christians and Jewish Christians in relation to the requirements of Jewish circumcision rites adopted by domestic and Church of Jerusalem. The article makes the historic environment and bibliological of such issues in what is exposed in Acts and Galatians, taking into account the fidelity of the original groups of Paul, Barnabas and John Mark. This historical-critical research notes greatly the influence of the great city acropolis, is considered by Jewish and Christian groups as an expression Hellenistic ethnicity, as well as its risks in relation to desvirtualization the Spirit of Jesus. Keywords: Primitive Christianity. Controversies. Antioquia. Circuncision. Notas 1 Pode-se inferir por Espírito ou Espírito Originário, alguns elementos que faziam parte da comunidade originária de Jerusalém: A leitura e partilha da Torah no templo em todos os momentos em que esta ocorria; a partilha do 610 Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 597-612, out./dez. 2011. pão também ao estilo judaico; além da observância das prescrições de culto doméstico, circuncisão e respeito ao shabat. 2 A palavra evangelho significa trazer coisas novas, ou gerar uma nova Eva. 3 kérygma provém de um grupo de palavras que possui a sua raiz no termo grego kerýsso, que pode ser encontrado vastamente no Novo Testamento significando: “...”anunciar”, “tornar conhecido”, “proclamar (em voz alta)”...”; outro termo que também pertence a este grupo é o “...kéryx, “arauto”...”; e por fim, a palavra que está em tela: kérygma, podendo significar,”...”proclamação”, “anúncio” e “pregação” (COENEM, 1998, verbete). 4 Era a principal assembleia da democracia ateniense na Grécia Antiga. Trata-se de uma palavra que assumiu conotação latina onde acclesia que quer dizer “igreja”, atualmente, mas que significou, originalmente, “curral” ou “abrigo de ovelhas”. É uma palavra muito difundida no Cristianismo, em que os fiéis são chamados de “ovelhas” cuidadas pelos “pastores”. Referências BETTENSON, H.. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 1998. BIBLIA ON-LINE.NET. Verbete Koinonia. Disponível em: <http://www.bibliaonline.net/dicionario/?acao=pesquisar&procurar=koinonia&exata=on&link=bol &lang=pt-BR>. Acesso em 15 Fev. 2012. CHAMPLIN, R. N.; BENTES, J. M. Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia. São Paulo: Candeia, 1995. COENEN, L. khru,ssw. In: O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. FERREIRA, Joel Antonio. Cristianismos originários a partir da perspectiva bíblica. INTERAÇÕES - Cultura e Comunidade, Uberlândia, v. 5, n. 8, p. 23-43, jul./dez. 2010. FERREIRA, Joel Antonio. 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