tráfico sexual de mulheres e as teorias feministas

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TRÁFICO SEXUAL DE MULHERES E AS TEORIAS FEMINISTAS
MONIQUE XIMENES LOPES DE MEDEIROS
Mestranda em Direitos Humanos CCJ/UFPB
Email: [email protected]
Neste trabalho analisam-se as situações das migrações femininas com finalidade sexual
enquadradas no conceito de tráfico de mulheres. A problemática é bastante complexa na
medida em que se confundem as definições legais do que é tráfico de pessoas e do que é
migração voluntária com finalidade sexual. Para além da legislação não há unanimidade
entre as feministas que estudam o tema. Por um lado estão as teorias abolicionistas que
entendem a prostituição como redução da mulher a objeto e, necessariamente, uma forma
de exploração sexual, e em sentido oposto encontra-se o movimento feminista
transnacional e o das trabalhadoras do sexo que não consideram a prostituição como
atividade essencialmente degradante, mas como direito das mulheres disporem do seu
corpo. Assim, quando uma mulher migra voluntariamente e com auxílio de outrem
objetivando prostituir-se no exterior ocorre tráfico de pessoas ou mera migração a
depender da teoria. Diante de uma forte preocupação com o discurso patriarcal envolto
neste tema e da formação da identidade feminina como vítima, frágil e incapaz de
autodeterminação tem-se desenvolvido diversos estudos no Brasil e no mundo que
quebram estereótipos e preconceitos existentes sobre a prostituição e o tráfico de mulheres.
1- INTRODUÇÃO
A definição do que seja o tráfico internacional de pessoas, em especial mulheres,
tem suscitado grandes controvérsias nos últimos tempos, posto que muitas vezes o tema
está imbricado em questões como migração ilegal.
É certo que os países do mundo têm que se unir na luta contra a escravidão
moderna e a exploração sexual, que afeta diretamente a dignidade da pessoa humana e
diversos outros direitos humanos. Contudo, para tanto é necessário definir com precisão o
que é tráfico de mulheres e o que significa migração voluntária.
Essa conceituação é tema polêmico e precisamos aprofundar a discussão para
entender as nuances que cercam a caracterização de migração voluntária como ato a ser
considerado criminoso.
E nessa problemática temos como foco central o consentimento das
mulheres/prostitutas, em especial quando essas pessoas migram voluntariamente na busca
de melhores condições de trabalho e de vida. A voluntariedade das “vítimas do tráfico”
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impõe uma série de questionamentos: Devemos considerar traficante alguém que empresta
dinheiro para ajudar no transporte internacional e demais despesas de uma mulher que lá
pretende voluntariamente se prostituir? E como vítima do tráfico uma prostituta brasileira
que busca melhores condições financeiras através do seu trabalho em outros países?
Sobre tais questões nem na seara jurídica nem as feministas são unanimes. E para
entender os diversos posicionamentos das teorias feministas sobre tráfico sexual de
mulheres e migrações voluntárias faremos uma revisão bibliográfica sobre o tema em tela.
2- A MIGRAÇÃO VOLUNTÁRIA CARACTERIZADA COMO TRÁFICO DE
MULHERES
O Código Penal brasileiro apesar de ter sofrido sucessivas alterações no decorrer de
tempos ainda considera tráfico de pessoas com finalidade de exploração sexual a migração
voluntária.
O seu artigo 231, redação original, criminalizava a figura do tráfico de mulheres e
penalizava os atos de promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que
nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro.
Observe-se que nesse tipo penal apenas a mulher era sujeito passivo do crime e que o fato
típico não incluía as situações em que havia a circulação dentro do interior do território
brasileiro, ou seja, a figura do tráfico interno de pessoas não era considerada crime.
Importante ressaltar que somente a finalidade sexual caracteriza o tráfico de mulheres, se a
migração for para qualquer outro tipo de trabalho não haverá crime.
Posteriormente, com a Lei nº 11.106/2005 a redação do artigo 231 do Código Penal
foi alterada para definir o crime de tráfico internacional de pessoas. Assim, as duas
incongruências encontradas na redação anterior foram corrigidas, o sujeito passivo do
crime passa a ser qualquer pessoa, independente do seu sexo, e a nomenclatura do tipo
penal é adequada ao fato típico contendo expressamente o termo internacional. Vejamos o
teor do dispositivo legal: promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território
nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no
estrangeiro.
Mais recentemente outra alteração foi promovida no supracitado artigo através da
Lei nº 12.015/2009, contudo as mudanças foram ainda mais sutis. Houve nova alteração da
nomenclatura do crime que passou a ser chamado de tráfico internacional de pessoa para
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fim de exploração sexual, explicitando na denominação que a criminalização apenas ocorre
se houver finalidade de prostituição. Conforme ressaltado essa finalidade específica, apesar
de não estar expressa na nomenclatura, já estava expressa desde a redação original. No que
tange à essência do tipo penal podemos dizer que se mantém quase inalterada, havendo
apenas a inclusão no fato típico da finalidade de qualquer outra forma de exploração sexual
da vítima que não somente a prostituição.
Observe-se que mesmo com as sucessivas alterações na legislação a criminalização
do tráfico de pessoas pela Lei Penal manteve-se sempre vinculada à finalidade sexual. É no
mínimo curioso que outras situações não menos graves, como o tráfico de pessoas para
comercialização de órgãos ou para manutenção em condições análogas a de escravidão não
tenham sido criminalizadas pelo Código Penal quando tais condutas eram praticadas com a
exportação ou importação de seres humanos.
Esse panorama modificou-se com a ratificação pelo Brasil em 2004 do Protocolo
adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
Relativos à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres
e Crianças – Protocolo de Palermo.
A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o recrutamento, o transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à
ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude,
ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à
entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins
de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da
prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho
ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a
servidão ou a remoção de órgãos. (art. 3º)
Pela leitura do dispositivo percebe-se que em havendo consentimento válido da
pessoa que deseja migrar não haverá caracterização de tráfico de pessoas. Isto, por si só,
revela uma aparente divergência legal acerca do conceito de tráfico de pessoas. O fato de o
tráfico de pessoas não estar adequadamente tipificado na nossa legislação penal ocasiona
uma série de problemas de onde se sobressaem outros tipos penais relativos à exploração
de mulheres e crianças (JESUS, 2003, p. 6).
Contudo, pela natureza do trabalho aqui proposto não ingressaremos na discussão
de qual a legislação penal a ser aplicada no Brasil diante dos casos concretos. Como a
proposta é entender as diferentes posições das teorias feministas acerca do tema da
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migração voluntária caracterizada como tráfico sexual de mulheres para efeitos do presente
artigo utilizaremos a definição do Código Penal.
3- AS TEORIAS FEMINISTAS SOBRE A MIGRAÇÃO COM FINALIDADE SEXUAL
Conforme dito alhures quando tratamos de prostituição e tráfico de mulheres com
fins sexuais não há unanimidade de opiniões nem mesmo entre as teóricas feministas que
se dedicam ao tema. As abordagens coincidem no interesse em promover o bem estar das
mulheres, porém, elas apresentam uma divisão fundamental no que se refere à concepção
da prostituição e da relação que estabelecem entre prostituição e tráfico (PISCITELLI,
2006, p. 19).
As feministas abolicionistas e o movimento feminista transnacional tem
posicionamentos diametralmente opostos. As primeiras entendem a prostituição como
redução da mulher a objeto e, necessariamente, uma forma de exploração sexual, estas
últimas junto com as trabalhadoras do sexo não consideram a prostituição como atividade
essencialmente degradante, mas como direito das mulheres disporem do seu corpo
(SANTOS; GOMES; DUARTE, 2009, p. 77-78).
Em regra as teóricas feministas que são contrárias à prostituição da mulher não se
pronunciam expressamente sobre a migração com tais finalidades, mas por dedução
podemos concluir que se elas rejeitam a prostituição como autodeterminação e como
profissão certamente são desfavoráveis às atividades que envolvem diretamente o fim
sexual, como a migração para prostituição. Nestes termos faz-se importante expor os seus
argumentos:
A prostituição, ou seja, a venda de corpos, forçada ou não, é talvez a
maior violência social cometida contra as mulheres. Esta violência é
agudizada por sua total banalização. [...] Dizer que a prostituição é um
trabalho e ainda, voluntário, é, no mínimo, um insulto às mulheres, é um
insulto ao trabalho, é o menosprezo total das condições que levaram tais
mulheres a se submeter e mesmo defender a “profissão” que exercem
(SWAIN, 2004, p. 24-26).
Desta forma, entende-se a prostituição como forma de violência contra a mulher e,
portanto, a abordagem é contra qualquer forma de profissionalização dessa atividade.
Argumenta-se também através do olhar da sociedade para essa mulher, afirmando que quer
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um estatuto legal a coloque sob a fiscalização policial, quer trabalhe na clandestinidade, é
ela sempre tratada como pária (BEAUVOIR, 1967, p. 323).
Os raciocínios são diversos e Pateman expõe as diversas correntes feministas para
explicar o que há de errado com a prostituição e conclui que:
Quando os corpos das mulheres estão à venda como mercadorias no
mercado capitalista, os termos do contrato original não podem ser
esquecidos; a lei do direito sexual masculino é afirmada publicamente, e
os homens recebem um reconhecimento público enquanto senhores
sexuais das mulheres – e é isso que está errado coma prostituição (1993,
p. 305).
Para as feministas abolicionistas é inconcebível diferenciar a prostituição forçada
da voluntária, consideram que qualquer atuação do Estado no sentido da sua legalização é,
no fundo, uma autorização as constantes violações dos direitos humanos a dignidade e a
autonomia sexual (SANTOS; GOMES; DUARTE, 2009, p. 78).
Contudo, em sentido oposto, mas não menos preocupadas com o discurso patriarcal
e com a autonomia feminina que necessariamente estão envoltos neste tema, tem-se
desenvolvido diversos estudos no Brasil e no mundo que quebram estereótipos e
preconceitos existentes sobre a prostituição e o tráfico de mulheres. Estas correntes são
contrárias à vitimização impostas às mulheres e, assim, essas feministas pretendem
rediscutir a formação da identidade feminina como vítima, frágil e incapaz de
autodeterminação.
A ASBRAD – Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da
Juventude, ONG que desenvolve estudo a respeito das mulheres brasileiras deportadas ou
inadmitidas no exterior que retornavam ao país através do aeroporto de Guarulhos, aponta
para a ausência de um modelo de vítima e mostra a importância de discutir o
enfrentamento ao Tráfico de Pessoas a partir de uma perspectiva de Direitos Humanos que
considere as mulheres (FIGUEIREDO et al., 2008, p. 255-256). Kamala Kempadoo (2005,
p. 61-62) atua nesse mesmo sentido quando luta pela desconstrução do discurso
hegemônico de tráfico e da prostituição ao mostrar que as mulheres devem ser concebidas
como sujeitos atuantes, autodeterminados e posicionados de maneira diferente, capazes não
só de negociar e concordar, mas também de conscientemente opor-se e transformar
relações de poder.
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Essas perspectivas consideram que evidentemente ninguém aceita ser sequestrado
ou prestar trabalhos forçados, entretanto defendem que “uma mulher adulta é capaz de
consentir em trabalhar em uma atividade ilegal, como a prostituição nos países nos quais é
ilegal em si mesma ou ilegal para migrantes. Mas, se não há pressão para exercer tal
atividade não haveria tráfico” (DOEZEMA, 2004, apud, PSICITELLI, 2006, p. 21).
Desta forma, uma definição de tráfico internacional de mulheres como a
estabelecida pelo Código Penal brasileiro retrata a figura feminina como ser passivo e
irracional, portanto, sem condições de voluntariamente determinar a situação da sua vida e
de seu corpo. Ao pesquisar uma série de processos judiciais envolvendo o tema em tela e a
conceituação do tráfico sexual de mulheres aplicada pela legislação penal Castilho faz
observação interessante acerca dessa “incapacidade feminina” ao tratar de sua autonomia:
Sob um discurso de proteção está presente o não reconhecimento da
capacidade das mulheres de exercer o direito sobre o seu próprio corpo
bem como a estigmatização social das prostitutas como forma de
estabelecer o papel e o lugar das mulheres na sociedade. [...] Afirmar que
a mulher é um ser vulnerável ou estabelecer uma relação necessária entre
prostituição e redução à condição análoga a de escravo revela a crença na
subalternidade da mulher e não aposta no exercício de seu direito de
autonomia (2008, p. 113-114, grifo nosso).
Essas são as duas correntes centrais sobre a prostituição e o tráfico sexual de
mulheres. O embate e a forte divergência entre elas são evidentes, mas não é o caso de
desprezar uma posição em detrimento da outra, ao contrário, entendemos que isso
demonstra a complexidade e a relevância de se discutir um tema cada vez mais atual e
instigante.
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão acerca do tráfico de mulheres tem se intensificado nas últimas décadas,
em especial devido à crescente circulação de pessoas entre os diversos países do mundo,
ainda que uma parcela importante ocorra de forma ilegal/irregular. Esses processos
migratórios tem forte interface com as questões de gênero, devido ao crescente número de
mulheres migrantes.
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E diretamente associada a todo esse contexto temos a prostituição, a migração
voluntária com finalidades sexuais e o tráfico mulheres. Nesses termos é de fundamental
importância entender o posicionamento daquelas que defendem as mulheres e estudam
gênero – as feministas.
Devido a complexidade do tema e o forte embasamento teórico das correntes
expostas dificilmente chegaremos a respostas fechadas e diretas. Mas concordamos com as
feministas transnacionais e enfatizamos a necessidade de se distinguir o tráfico sexual de
mulheres da migração voluntária.
Só dessa forma os entes estatais terão condições de estabelecer políticas públicas de
proteção às vítimas de tráfico e de repressão a um crime que aprisiona mulheres e ofende
sua dignidade sexual e humana.
Entendemos que essa segregação de situações distintas também possibilita que se
finde a violência simbólica imposta a mulheres que assumem posição ativa e de
autodeterminação de sua vida e do seu corpo.
Portanto, concordamos com as feministas transnacionais que vêem as mulheres
migrantes voluntárias não como vítimas, mas como sujeitos autodeterminantes. Assim
sendo, a atual legislação penal precisa ser reformulada para se adequar ao Protocolo de
Palermo, pois se permanecer da forma como está impõe uma restrição indevida à liberdade
feminina, na medida em que mulheres adultas têm sua autonomia tolhida pelo Estado.
E a partir da perspectiva que considera em primeiro lugar as mulheres devemos
refletir e proceder a uma ressignificação do que seja o tráfico de pessoas. Esse tema não
está esquecido, pelo contrário, muito se tem divulgado no âmbito nacional e internacional a
seu respeito, mas quase sempre através de um discurso que dispõe sobre traficantes, redes
internacionais de crime organizado e métodos de combate.
Ao voltar nossos olhos para as mulheres nos propomos fazer diferente e, assim,
distinguir as reais vítimas das migrantes, já que somente dessa forma é possível
desenvolver meios efetivos de combate ao tráfico de pessoas e mecanismos de apoio às
vítimas. E, por conseguinte, podemos libertar as prostitutas migrantes não da opressão que
ocorre em suas vidas, mas da repressão e moralidade que nós as colocamos através dos
discursos da mídia e do direito.
5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Trad. Sérgio Milliet. 2.
ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
CASTILHO, Ela Wiecho V. de. A Criminalização do tráfico de mulheres: proteção das
mulheres ou reforço da violência de gênero? Cadernos Pagu. Campinas: [s.n], n. 31,
julho-dezembro de 2008. p. 101-123.
FIGUEIREDO, Dalila Eugênia M. Dias et al. Direitos Humanos e gênero no cenário da
migração e do tráfico internacional de pessoas. Cadernos Pagu .n. 31. Campinas: [s.n.], p.
251-273, julho-dezembro de 2008.
JESUS, Damásio. Tráfico internacional de mulheres e crianças: Brasil: aspectos
regionais e nacionais. São Paulo: Saraiva, 2003.
KEMPADOO, Kamala. Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres. Cadernos Pagu.
n. 25. Campinas: [s.n], p. 55-78, julho-dezembro de 2005.
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Trad. Marta Avancini. São Paulo: Paz e Terra,
1993.
PISCITELLI, Adriana. Sujeição ou subversão: migrantes brasileiras na indústria do sexo
na Espanha. História e Perspectivas, n. 35. p. 13-55, julho-dezembro de 2006.
SWAIN, Tânia Navarro. Banalizar e naturalizar a prostituição: violência social e histórica.
Unimontes Científica, Montes Claros, v.6, n.2, p. 23-28, jul./dez.2004.
SANTOS, Boaventura de Sousa; GOMES, Conceição; DUARTE, Madalena. Tráfico
sexual de mulheres: representações sobre ilegalidade e vitimação. Revista Crítica de
Ciências Sociais. n. 87, p. 69-94, dezembro. p. 69-94.
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