CliniCAPS, Vol 4, nº 12 (2010) – Artigos A Eficácia do atendimento em equipe no âmbito da saúde mental Effectiveness of care team in the mental health Oswaldo França Neto Professor Doutor do Programa de Pós-graduação strito sensu do Departamento de Psicologia da UFMG Endereço para Correspondência: Rua Monte Sião 19, ap. 201, bairro Serra, Belo Horizonte, MG CEP 30.240-250 e-mail: [email protected] Resumo: As equipes interdisciplinares têm, comprovadamente, se reafirmado como a melhor opção para o atendimento aos usuários nas instituições públicas de saúde mental. Partindo do pressuposto freudiano de que a comunicação não se dá como um dado inequívoco da experiência, como explicar a eficácia dos atendimentos em equipe? Em que se baseia sua dinâmica? Palavras-chave: equipe interdisciplinar, grupo, saúde mental. Abstract: The interdisciplinary teams have been provedly the best option for the assistance to mentally ill patients in psychiatric institutions. Based on the freudian standpoint that communication doesn't occur as an unequívocal experience, how to explain the efficacy of these teams? What is their dynamics based on? Keywords: interdisciplinary team, group, mental health. CliniCAPS, Vol 4, nº 12 (2010) – Artigos Este texto se propõe a fazer algumas considerações sobre a escolha, quase que universal no serviço público, de cuidar dos usuários do sistema de saúde mental por meio de equipes interdisciplinares. Não é raro com que pacientes de difícil manejo coloquem em xeque a equipe, frequentemente levando-a a buscar ajuda externa, e promovendo uma reinscrição dos papéis dos diferentes membros da equipe. Discorrer sobre grupos traz, conceitualmente, alguns problemas. Conforme a definição e o contexto escolhidos serão recortados diferentes universos grupais. Com relação a este texto, será estabelecido como sendo nosso universo as equipes interdisciplinares responsáveis pelo atendimento a pacientes em instituições psiquiátricas, constituídas por profissionais de diferentes formações (psiquiatras, assistentes sociais, psicólogos, psicanalistas, terapeutas ocupacionais, etc), e apresentando uma coordenação única. Frequentemente observa-se nessas equipes uma hierarquia, apesar de nem sempre esta ser explicitada de forma clara. Porém, apesar da delimitação desse objeto específico _ a equipe interdisciplinar _ , esta se situará mais como pano de fundo do que propriamente como tema único. Na verdade, toda a problemática referente à comunidade, aos laços sociais e à vida-em-comum estará aqui em evidência. Normalmente considera-se grupo como o intermediário entre o indivíduo e o social, dando-se a ele uma ênfase maior no que se refere a sua complexidade horizontal, deixando a perspectiva histórica para quando se tematiza o social. Mas no que se refere à totalidade, ou ao ideal de totalização, tanto os grupos quanto as comunidades em um sentido mais amplo nos colocam problemas semelhantes. 1 - A COMUNICAÇÃO DENTRO DA EQUIPE Em um texto onde se propõe teorizar sobre a interdisciplinaridade em saúde mental, Eduardo Mourão Vasconcelos propõe uma classificação das diferentes formas de se estruturarem as equipes (VASCONCELOS, 1997). O texto defende a não ascendência de qualquer das profissões sobre as outras, valorizando a diferença e a desobstrução dos canais de comunicação como a melhor opção para o tratamento do paciente psiquiátrico. O texto é sem dúvida bem intencionado, estando em consonância com o movimento de desinstitucionalização da doença mental. Porém algumas ressalvas podem ser feitas. Basicamente, podem ser colocadas em questão a forma como o autor entende a CliniCAPS, Vol 4, nº 12 (2010) – Artigos comunicação dentro dos grupos, e a maneira como ele considera o que seria o objeto a ser trabalhado pela equipe. Segundo o autor, o objeto a ser trabalhado (no nosso caso específico o paciente em tratamento), seria o mesmo para todos os membros da equipe. Partindo-se desse princípio, já que o objeto é comum, a comunicação entre os diferentes discursos que compõem a equipe se colocaria dentro do horizonte da possibilidade. Um bom grupo, então, seria aquele que viabilizasse essa comunicação, de modo que alguma inteligibilidade se constituísse entre os membros, podendo possibilitar inclusive, em situações ideais, a construção de um discurso novo que fosse compreensível por todos os participantes da equipe. Sob a ótica da psicanálise, essa postura é complicada. Ela é entendida como estando no registro dos ideais. E se é verdade que um ideal comum pode manter unido o grupo, é no campo do engodo que Freud o situa. Em termos psicanalíticos, o emissor recebe sua própria mensagem invertida, nisso consistindo a comunicação (LACAN, 1955/1988). A perspectiva de uma comunicação possível (que seria o objetivo a ser alcançado segundo Eduardo Mourão Vasconcelos) pressupõe que cada membro da equipe seria parte finita de um todo finito. Entre esses campos finitos e distintos se estabeleceria então de forma confiável uma troca de informações. Comunicação, assim, pressupõe limites, e uma interlocução inteligível entre as partes estanques. Porém, para Freud, a psique é extensa, ela não é fechada em uma forma. A finitude nada mais é do que a consequência de uma construção psíquica necessária, que nos referencia, como ilusão-âncora, na constituição da realidade. Em uma equipe interdisciplinar vários discursos estão envolvidos, cada qual com seu objeto específico: para o discurso psiquiátrico o objeto seria a alteração orgânica, para o serviço social o comprometimento familiar, para o psicanalista o desejo, e assim por diante. A comunicação dentro da equipe, portanto, da mesma forma que a comunicação entre os homens em geral, está no registro do impossível. Isso não significa que a equipe não possa funcionar e produzir efeitos, mas as razões desses efeitos estão em outro lugar. Segundo Célio Garcia, a equipe, ao se formar, e ao estabelecer normas iniciais mínimas, seria como um "programa" (GARCIA, 1997, p. 7) semelhante ao de um computador. Só que ao ser acionado, as respostas dadas por esse "programa" seriam determinadas por todas as variáveis, apreensíveis ou não, que cercam a demanda que lhe foi feita. Os saberes e os discursos que irão se constituir a posteriori não só não podem ser extraídos do "programa" básico, como também não podem ser fechados ou identificados a uma inteligibilidade única. Os efeitos serão diferenciados e particulares à cada discurso CliniCAPS, Vol 4, nº 12 (2010) – Artigos envolvido, o que não implica que a equipe não tenha conseguido trabalhar de forma coesa. Fica então a pergunta: o que terá guiado a equipe, fazendo-a funcionar como se pertencesse a um movimento único? 2 - IDENTIFICAÇÃO A estrutura que uma equipe interdisciplinar vai adquirir, a distribuição do poder entre seus membros, as interrelações que vão se estabelecer, o discurso ("hegemônico" ou não) que irá se constituir ao longo do tempo e a partir das dificuldades e impasses que cada paciente irá suscitar, serão extremamente variáveis. No caso feliz de equipes estruturalmente pouco rígidas e em interação com os distúrbios externos, sua maleabilidade pode ser muito grande. Fica difícil classificar o funcionamento das equipes baseado apenas nos saberes instituídos previamente envolvidos, como se pudéssemos nos abstrair da história pessoal de cada integrante, das relações pessoais que irão se formar, do contexto institucional da qual esta faz parte e do engajamento político que ela e seus membros irão adquirir. O que faz uma equipe funcionar como Um, ou pelo menos estabelecer aqueles momentos em que o grupo vai se perceber como fazendo parte de um movimento unívoco, não está subsumida a uma mera vontade política prévia ou a uma boa carta de intenções, apesar de com certeza esses fatores também terem sua importância. Para Freud, algo de um traço identificatório é o que fará o grupo funcionar como tal. Grupo aqui entendido como sendo distinto de um simples grupo-tarefa (onde cada membro desempenharia as atividades que previamente lhe foram designadas sem nenhuma implicação subjetiva com o que está sendo feito). Porém, de que ordem é essa marca ou traço identificatório? Se ela for da ordem de um ideal imaginário, o grupo vai se movimentar com a sensação de que está realmente fazendo Um, com a crença de que existe alguma coisa objetivável, que torna todos iguais frente a essa referência palpável. Nesse grupo a comunicação seria vista como possível. O conflito, a diferença, a cisão, seria empurrada para além de seus limites e corporificada em objetos externos, que passariam a representar, do lado de fora, aquilo que foi expulso do interior. Ao trabalhar a identificação, Freud nos diz que o Um é duplo. O sujeito é cindido, dividido, não reflexivo. É impossível fazer Um do que não é idêntico a si. CliniCAPS, Vol 4, nº 12 (2010) – Artigos Um grupo movido por um ideal imaginário será formado por indivíduos portadores de positividade (idênticos a si), e articulados em torno de uma imagem que os unifica, dando a esse ajuntamento de pessoas uma unidade relativamente estável e tranquilizadora. Porém, o paciente mental, por ser sujeito (e não indivíduo), é um "objeto" complicado de se manusear. Ele se recusa a permanecer em posição passiva, e age sobre o grupo, desestabilizando-o. O paciente traz à cena a divisão que tinha sido empurrada para as fronteiras do grupo, obrigando a equipe a repensar suas ações durante o momento mesmo em que estão sendo efetuadas. O paciente retira o grupo da perspectiva moral e coloca-o no registro ético. A partir do momento em que a divisão é trazida para dentro do grupo, o objeto sobre o qual se estava trabalhando _ a esquizofrenia e sua desagregação _ de repente tornase uma característica do próprio grupo. De Uno, ele passa a se ver como múltiplo, desagregado, e um imperativo ético aí se coloca: é necessário saber o que move sua ação. O grupo, de terapeuta, torna-se paciente de si mesmo. 3 - ÉTICA Para Freud o mito do pai primevo contém estrutura de verdade. Ele está na origem não apenas do social, mas também do pensamento. Podemos pensar esse mito pelo viés da ruptura. Quando aplicada aos grupos, a verdade aí envolvida seria o conflito ou o que não se encaixa no funcionamento visando às regras, à manutenção do status quo social. A ética estaria vinculada a esta ruptura, onde a definição prévia de valores fica suspensa, e o movimento do grupo, meio à deriva no que concerne à moral, é obrigado a se repensar e a se redefinir durante o próprio movimento. Quando o grupo funciona em termos éticos, ele é criativo, no sentido em que instaura uma ação no mesmo instante em que a avalia, em que a julga. Nesse momento, que não acontece sem angústia, uma verdade (entendida como furo no saber) se presentifica, e o grupo age enquanto sujeito, deixando de ser um mero ajuntamento de profissionais. Um grupo burocrático, que apenas cumpre uma tarefa, não está comprometido com a verdade. Ele funciona segundo normas pré-estabelecidas, e "a regra não garante a Verdade" (GARCIA, 1994, p. 48). O processo de uma verdade, que implica em uma postura ética, ocorre quando o grupo se vê obrigado a romper com o contexto pré-estabelecido que o CliniCAPS, Vol 4, nº 12 (2010) – Artigos definia, e a se redefinir. O campo é ético quando a ação e o pensar-se se dão juntos, confundindo-se um com o outro. 4 - ACONTECIMENTO Um grupo-tarefa, que burocraticamente cumpre as atividades previamente estabelecidas, o que o faz funcionar de forma unitária é uma estrutura previamente estabelecida. Ela é o que lhe dá unidade. Um acontecimento1, no sentido em que é proposto por Alain Badiou (BADIOU, 1994), seria o disfuncionamento ou o distúrbio nesse regime. O acontecimento desagrega por um certo momento a unidade inicial fornecida por essa estrutura prévia, provocando pânico. Durante sua vigência o grupo se vê obrigado a se repensar enquanto ação, e a agir ao mesmo tempo que tenta compreender por que age. Sob a égide de um acontecimento, o grupo é interpelado a produzir um discurso novo. Esse discurso, se fiel ao acontecimento, será comum a todos os membros da equipe. Isso não implica que todos vão estar compreendendo as palavras constituidoras desse discurso da mesma forma, isto é, não implica que a comunicação vai passar a existir. Mas esse discurso novo produzirá efeitos, ou dará inteligibilidade ao acontecimento, mesmo que diferenciada para cada um dos membros da equipe. Enquanto o grupo estiver na vigência do acontecimento à qual o discurso é fiel, essa fidelidade dará ao grupo algum tipo de unidade. Considerando-se que o que permite essa união é da ordem de um traço, o grupo, apesar de unido, vai funcionar como sujeito, e portanto cindido O que dará a um evento qualquer o estatuto de acontecimento é muito difícil dizer. Talvez seja um momento de pânico, onde o grupo se vê defrontado com a sua falibilidade2. Ou talvez o contrário, quando o grupo se vê arrebatado por algo que esteja dando certo, que produza efeitos, que propicia uma situação nova e rica de experiências. Um acontecimento é um corte, uma ruptura dentro de uma engrenagem em movimento uniforme, reescrevendo aquela engrenagem de uma outra forma, e dando à cada peça um novo sentido. Seguindo Badiou, a verdade de um acontecimento é "o processo real de uma fidelidade". Ela é aquilo que a fidelidade produziria se um dia ela conseguisse seu intento. Confundindo-se com o 1 Événement, em françês, tendo sido traduzido no texto de Badiou por “evento”. Posteriormente, considerou-se “acontecimento” uma tradução mais adequada. 2 "Quando o grupo parece mais ameaçado, por ocasião de um momento de pânico, é aí então que há grupo!" (GARCIA, 1994, p. 59). CliniCAPS, Vol 4, nº 12 (2010) – Artigos movimento de transformação que se opera enquanto a fidelidade persiste, pode-se dizer que o grupo, durante esse tempo, estará funcionando enquanto sujeito, já que este é "o suporte de uma fidelidade. Logo, o suporte de um processo de verdade"(BADIOU, 1994, p. 110). Podese dizer também que o processo de verdade induz um sujeito, enquanto suporte necessário de seu próprio advento. Durante esse momento em que o grupo se torna sujeito, ele ganha imortalidade, tornando-se diferente de um animal ou de uma engrenagem. E ele continuará imortal enquanto perseverar no processo de verdade. 5 - SUJEITO Ao estudarmos grupos, imediatamente nos vemos defrontados com toda a problemática que concerne ao social. A disciplina que explicitamente tem como objeto o social é a sociologia. Essa disciplina, ao denunciar a mentira das palavras e das ideologias que norteiam o social, no fundo anseia por se propor como a abordagem confiável que descobriria as palavras perfeitas que se adequariam sem falsidades ao seu objeto de estudo, o social (GARCIA, 1994, p. 49). A sociologia denuncia a inadequação, para se propor a seguir, ilusoriamente, como o caminho para a descoberta da adequação perdida. Ela se encontra no campo do Um. Se quisermos resgatar a discussão sobre o social por meio da psicanálise, temos que reencontrar a carência, o que é falhado, cindido. Temos que reencontrar, no movimento do grupo, o sujeito. Para a psicanálise o sujeito não pode ser identificado à individualidade. Ele fica apenso entre a imanência e algo que lhe transcende. Também não pode ser identificado à unidade, pois ele não faz Um, não é idêntico a si mesmo. O Um, no que se refere à inscrição do sujeito, é da ordem do múltiplo, da multiplicidade de possibilidades de inscrições. A ruptura que engendra um processo de verdade faz emergir um sujeito, momentâneo, que se conserva enquanto o grupo (no caso, grupo-sujeito) se mantém no movimento de ruptura. Durante esse processo o que mantém o grupo unido, que é da ordem da identificação, não existe objetivamente a priori, mas trata-se de uma marca que se escreve (ou se reescreve) durante o próprio processo. O semblante final dessa marca só irá se constituir como forma acabada quando o processo tiver se extinguido, quando o grupo voltar a ser um grupo-tarefa, CliniCAPS, Vol 4, nº 12 (2010) – Artigos aquele que apenas responde a preceitos objetivamente definidos, e portanto fora do campo ético. Assim, à guisa de conclusão, podemos aventar que para que um grupo seja terapêutico, isto é, para que ele seja capaz de permear aos pacientes que se propõe tratar a sua existência enquanto sujeitos (e não meramente assujeitados), o grupo tem que manter um certo grau de errância, de não domínio sobre seus atos. As referências que vão balizar seu funcionamento não podem estar subsumidas a qualquer saber previamente totalizado. A conclusão de seu trabalho, a delimitação precisa dos papéis que cada um de seus membros vai adquirir, assim como o modelo terapêutico a ser seguido com cada paciente deve estar sempre no registro do a ser descoberto. A verdade de uma equipe interdisciplinar, assim como daqueles à quem ela se propõe a tratar, é reconstruída a cada novo passo do movimento grupal, na qual ambos _ o grupo e os pacientes _ estão igualmente concernidos. 6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADIOU, A. (1994) Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume Dumará. FIGUEIREDO, A. C. (1997) Vastas confusões e atendimentos imperfeitos. Rio de Janeiro: Relume Dumará. FREUD, S. (1921/1980) "Psicologia de grupo e a análise do ego", in ESB, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago. GARCIA, C. (1994) Psicanálise, política, lógica. São Paulo: Escuta. _________. (1997) Clínica do social. Belo Horizonte: mestrado de psicologia da UFMG. LACAN, J. (1955-1956/1988) O seminário, Livro 3, segunda edição corrigida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. MILNER, J.-C. (1996) A obra clara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. VASCONCELOS, E. M. (1997) "Desinstitucionalização e interdisciplinaridade em saúde mental" in Cadernos IPUB, n° 7. Rio de Janeiro. Recebido em Maio de 2011 Aceito em Junho de 2011