A capacidade de discernir pela escuta cotidiana do coração

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a rt i g o
A capacidade de discernir
pela escuta cotidiana do coração
Adelson Araújo, SJ
O autor é Delegado para a Formação da Província do Brasil
da Companhia de Jesus.
Introdução
Todos nós sabemos que, no âmbito da Medicina, um dos procedimentos primários usados pelos médicos para saber o estado do
paciente é, precisamente, o da escuta dos sons internos dos órgãos
do corpo, cuja finalidade é examinar como estão funcionando os
sistemas vitais da pessoa, especialmente o seu sistema circulatório,
respiratório e gastrointestinal.
Ora, esse procedimento técnico chamado de auscultação (do latim
auscultare, escutar) que tem origem milenar no antigo Egito, pode ser
comparado ao que, no campo da espiritualidade cristã, de igual forma
sempre foi ensinado pelos antigos Padres da Igreja, como escuta do
coração ou da consciência, dentro do caminho da vida espiritual.
Com este artigo esperamos mostrar, de forma modesta e sem
pretender mergulhar com profundidade no tema, como em nossa
era atual continuam sendo necessários exercícios de escuta espiritual
como esse, para que tenhamos uma vida pautada em decisões bem
discernidas e orientadas ao sentido último da nossa existência: ser
felizes realizando o plano de Deus.
E, assim como os avanços da Medicina nos permitiram chegar
à descoberta de instrumentos como o estetoscópio, para poder escutar bem os sons do coração, da respiração e do intestino no corpo
humano, buscaremos mostrar como, no campo da espiritualidade,
tipos de exercícios como o exame de consciência — mais precisamente aquele encontrado no número 43 do livro dos Exercícios
Espirituais de Santo Inácio, o qual chamaremos aqui de exame espiritual cotidiano — são instrumentos eficazes para alcançarmos uma
boa escuta do que se passa em nosso mundo interior, cuja prática
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regular nos leva a sermos capazes de discernir bem nossas decisões,
à luz da vontade divina.
A escuta do coração na linguagem espiritual
Quando falamos de escuta do coração, no contexto da espiritualidade cristã, devemos recordar que, na linguagem bíblica, as palavras
“consciência” e “coração” aparecem sempre intimamente relacionadas,
chegando algumas vezes a parecerem sinônimas. O grande exegeta
jesuíta Carlo Maria Martini afirmava, a propósito disso, que não
deveríamos nos surpreender com essa proximidade semântica, uma
vez que ambos os termos nos remetem a algo que “está dentro de
nós, que é inalienável, preciosíssimo, do qual não renunciaremos por
nenhum bem do mundo”1. Nesta mesma direção vai o pensamento
de Marko Ivan Rupnik, quando, ao tratar dos fundamentos teológicos do exame de consciência em Santo Inácio, define este exercício
como a prática de examinar-se no coração com sabedoria2.
O tema da busca da pureza do coração e do consequente exercício
da escuta ou exame de si mesmo como meio para alcançar e preservar
esta pureza, com efeito, está presente na espiritualidade cristã desde
as orações encontradas nos Salmos, quando o salmista pede a Deus
para que possa apresentar-se diante dele puro, isto é, com o coração e a
consciência limpa3. Assim, é motivado pelo desejo de estar junto a Deus
e de aproximar-se dele com o coração puro que o homem olha dentro
de si e busca examinar-se, com os próprios olhos de Deus4. Da mesma
forma, na espiritualidade sapiencial vemos que ao deter-se sobre o seu
coração por meio do exercício do exame, o homem consegue discernir
a sua realidade interior e exterior, sendo capaz de identificar o bem que
vem de Deus e o mal praticado pela própria humanidade5.
Essa característica da espiritualidade veterotestamentária continuará presente igualmente nos textos do Novo Testamento, a começar
pelos próprios ensinamentos de Jesus, que inaugura uma nova moral
e espiritualidade do coração, pela qual mostra que o agir cristão parte
do coração e chega ao coração, ou seja, ao centro da pessoa, implicando a totalidade do homem na unidade de inteligência, vontade
e sentimento. E São Paulo com suas epístolas ajudará a difundir
tudo isso insistindo que a vivência do dom maior do Espírito — a
Charitas — será consequência de “um coração puro, de uma boa
consciência e de uma fé sem hipocrisia” (1Tm 1,5).
34
1. Carlo Maria MARTINI, Dizionario spirituale. Piccola guida per
l’anima, Casale Monferrato, Piemme, 2001, 198.
2. Cf. Marko RUPNIK, O exame
de consciência. Para viver como
remidos. São Paulo, Paulinas,
2009, p. 47-50.
3. Cf. Salmo 24,3: “Quem pode
subir à montanha de Iahweh? Quem
pode ficar de pé no seu lugar santo?
Quem tem mãos inocentes e o
coração puro…”.
4.Cf. Salmo 26,2: “Examina-me
Iahweh, coloca-me à prova, depura
meus rins e meu coração”.
5. Cf. Livro do Eclesiastes
7,25.27.29: “Em meu coração
dediquei-me a refletir e a pesquisar a sabedoria e a interpretação
das coisas, para reconhecer o mal
como algo insensato e a insensatez
como uma tolice. […] Eis o que
encontro — diz Coélet — ao examinar coisa por coisa para chegar
a uma conclusão […]. Eis a única
conclusão a que cheguei: Deus fez
o homem reto, este, porém, procura
complicações sem conta”.
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6. Cf. Atanasio de ALEXANDRIA,
Vita di Antonio, a cargo de L. CREMASCHI, Milano, Paoline Edizioni,
1995, p. 41-43.
7. Marcel VILLER; Karl RAHNER,
Ascetica e mistica nella patristica, Brescia, Queriniana Editrice,
1991, p. 95.
8. Cf. Tomás SPIDLÍK, Ignacio de
Loyola y la espiritualidad oriental,
Bilbao-Santander, Mensajero-Sal
Terrae, 2008, p. 23-24.
9. AGOSTINHO DE HIPONA, “In
Joannis Evangelium. Tractatus CXXIV”, em: PL 35, 1541-1542.
A escuta do coração como caminho necessário de conversão,
de discernimento e de união com Deus estará presente em toda a
tradição patrística, onde continuaremos a ver que vocábulos como
coração e consciência estarão sempre ligados e adquirirão muitas
vezes um único sentido, a ponto de Padres do Deserto, como Santo
Antão, serem chamados por Santo Atanásio de mártires do coração,
por viverem um verdadeiro martírio da consciência 6. Eis por que o
teólogo Karl Rahner7, explicando esta obra clássica da teologia
mística dos Padres, sustentará a relação existente entre a vigilância
do coração e o exame de consciência, como meios para se ordenar
as paixões e vencer o pecado. De fato, os monges cristãos dos primeiros tempos, começando por Antão e Pacômio, contavam com a
vigilância — népsis –– e com a escuta de si mesmos para vencerem
a guerra invisível e espiritual contra as surpresas e ataques do Inimigo. E contavam para isso com uma prática que já conheciam e
propagavam os grandes pensadores da Antiga Grécia, o exercício
do exame.
Na teologia mística e afetiva dos Padres da Igreja, com efeito,
o centro do cosmos e da história é o coração do homem. Por isso,
para mestres da espiritualidade como São Basílio é imprescindível
ter atenção a si mesmo, pois é este conhecimento que conduz à
recordação de Deus e ao conhecimento da sabedoria divina8. Para
Santo Agostinho, da mesma forma, todo homem que busca a verdade
deve possuir o cognitio sui, ou seja, a capacidade de voltar-se sobre
o próprio coração, para perceber a ação de Deus dentro e fora dele.
É ele quem diz:
Voltai-vos para vosso coração! Onde andais tão distante, senão
a buscar em vós mesmos a vossa perda? […] Voltai ao Senhor.
Apressa-te, volta rapidamente ao teu coração, tu que, como exilado,
vagaste distante: não conheces a ti mesmo e queres conhecer quem
te fez? Volta, volta ao teu coração, libera-te do corpo […]. Volta
ao teu coração: verás então que foste feito de Deus, porque no
teu coração está a imagem de Deus. No íntimo do homem habita
Cristo, no íntimo de si o homem renova a imagem de Deus e na
imagem reconhece o seu criador9.
Desse modo, a espiritualidade patrística, assim como a espiritualidade bíblica, associa sempre o exercício do exame de consciência
com o coração do homem, indicando que se trata de algo muito mais
profundo que um simples exercício de memória das faltas ­cometidas,
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pois que penetra no interior do ser humano, em um inevitável encontro consigo mesmo e com o Autor da sua vida.
A escuta do coração no exame espiritual cotidiano
de Santo Inácio
Tudo o que vimos acima sobre a escuta do coração, tem em nosso
entendimento uma estreita relação com os exercícios de discernimento
ensinados por Santo Inácio de Loyola, entre os quais destacamos o
exame espiritual cotidiano, no que concerne à capacidade da pessoa
de entrar dentro de si mesma para conhecer os movimentos internos
que experimenta, detectando a sua origem e a direção para a qual
a está levando.
Com efeito, em sua experiência pessoal Inácio bebeu de toda a
rica fonte dos ensinamentos dos Padres, como também de movimentos
da sua época como a Devotio Moderna, considerada como aquela que
teve mais influxo na vida espiritual do santo fundador dos Jesuítas10.
Em ambas as fontes, o cristão é levado a valorizar o discernimento,
presente na busca do conhecimento de si e da vontade de Deus.
Entre os Padres, podemos tomar o exemplo de Orígenes, que
nos apresenta esses exercícios de discernimento como verdadeiras
armas, porque para ele não há vida cristã sem luta. E esta luta, após
o tempo das grandes perseguições e martírios dos cristãos, agora se
dá dentro do próprio homem, em seu coração, sendo por isso necessário conhecer-se bem e discernir os espíritos, para não se deixar
enganar pelas armadilhas do Inimigo. Já Santo Antão ensinava que
o pecado é sempre fruto de um engano, de uma visão errada das
coisas, da distorção da realidade. Eis por que a prática do exercício
do exame espiritual vale mais do que determinadas práticas físicas
de mortificação, pois “alguns destroem o seu corpo com a ascese,
mas como lhes falta discernimento, se afastam de Deus” (Detti 8).
E podemos ainda citar São Cassiano, falando do discernimento dos
espíritos: “Tal discernimento dos pensamentos é indispensável. Aqueles provenientes do demônio se assemelham muitas vezes àqueles
que vêm de Deus, como as moedas falsas são frequentemente muito
semelhantes àquelas autênticas, tanto que para poder distingui-las, é
preciso examiná-las muito de perto” (Conferenzi spirituali).
Por sua vez, os difusores da Devotio Moderna, ao se contraporem
a uma mística meramente especulativa, defendiam e propagavam uma
36
10. Cf. John O’MALLEY et al.,
Jesuit Spirituality, a Now and Future
Resource, Chicago, Loyola University Press, 1990, p. 1-20.
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forma de espiritualidade muito mais prática e afetiva, que ajudasse
o cristão a se aproximar da pessoa de Jesus, de seus ensinamentos
e da sua vida concreta. E o caminho para isso passava pela prática
metódica de determinados exercícios interiores, como o exame espiritual cotidiano, entendido como meio para se alcançar a pureza
do coração e uma vida de maior devoção e interioridade com Deus,
mediante o discernimento dos espíritos. Podemos ver isto muito
presente nas obras de destaque deste movimento, como o famoso
livro Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, onde se lê:
11. Tomás de KEMPIS, Imitação de
Cristo, São Paulo, Loyola, 1979.
Volve teu olhar sobre ti mesmo e evita julgar as ações alheias…
(Livro I, Cap. XIV, 1); […] Muitas vezes se inflamam os teus
desejos e, com veemência, te excitam; examina, porém, o que mais
te move: se a minha honra, se o teu próprio interesse (Livro III,
Cap. XI, 1); […] Ai que tristeza! Logo após breve recolhimento,
nos dissipamos e não submetemos as nossas obras a rigoroso
exame. Não reparamos para onde se inclinam os nossos afetos…
(Livro III, Cap. XXXI, 4); […] Examina-te com mais atenção
e reconhecerás que ainda vive o mundo em ti e o vão desejo de
agradar aos homens (Livro III, Cap. XLVI, 2)11.
Tendo tido contato direto com estas formas de viver a espiritualidade cristã, Santo Inácio adotou até o fim da sua vida o discernimento e a prática do exame como norma de vida, jamais deixando
de discernir a todo momento a qualidade da sua resposta à presença
amorosa de Deus na sua vida, por meio da atenção vigilante ao
chamado do seu Senhor. De fato, ele começou a aprender o discernimento dos diversos espíritos já na sua convalescença em Loyola e
depois em Manresa, sendo oriundas desta época as suas “Reglas para
en alguna manera sentir y cognocer las varias mociones que en la anima
se causan”, dirigidas à Primeira Semana dos Exercícios Espirituais, se
bem que ainda em sua forma rudimentar. Posteriormente em Paris
e, finalmente, em Roma, Inácio terminaria de aperfeiçoá-las e de
escrever também as “Reglas para el mismo efecto con mayor discreción
de espíritus…”, endereçadas à Segunda Semana.
Em sua experiência espiritual, Inácio percebeu que existem dois
tipos de espíritos que atuam em nosso coração e provocam todo tipo
de sentimentos, movimentos interiores — moções no vocabulário
inaciano: medos, desânimos, desconcertos, tristeza, aridez, sensação
de incoerência…; ou paz, alegria, coerência, sensação de estar na
verdade, ânimo. Portanto, antes de tudo, é necessário dar-se conta
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destas moções interiores; e discernir quais provêm do bom espírito e
quais do mau espírito, para acolhê-las ou rechaçá-las. A que provém
do bom espírito é a ação de Deus mesmo, pelo Espírito Santo. A que
provém do mau espírito é a nossa reação egoísta (consciente ou inconsciente) a seu influxo; reação egoísta que tem seu grande aliado
no estilo que o mundo circundante nos apresenta.
É precisamente dentro deste contexto que vemos a escuta do
coração ter seu lugar dentro da espiritualidade inaciana. Pois, além de
ser um vocábulo amplamente usado na espiritualidade cristã, como
vimos acima, na espiritualidade inaciana o termo coração está muito
ligado ao sentir, aparecendo quinze vezes mencionado no livro dos
Exercícios Espirituais, para indicar aquele sentir interno que é umbral
do conhecimento místico12. Ora, para Inácio, a vontade de Deus não
é desumanizadora, mas coincide com os sentimentos e desejos mais
profundos que habitam o coração do ser humano. O caminho do
homem e da mulher é, portanto, um caminho de discernimento dos
próprios sentimentos e desejos, para passar dos mais superficiais e
banais àqueles mais verdadeiros e profundos. Discernimento que, em
Inácio, é certamente um dom divino, mas que sou chamado a afinar
sempre mais por meio da reflexão teórica sobre a experiência de Deus
e da prática constante de Exercícios Espirituais. Por isso, podemos
dizer que, em Inácio, o discernimento se torna um estilo de vida. Ele
vive em um contínuo estado de discernimento na reflexão e na busca
contínua nas suas escolhas do verdadeiro bem. Nas pequenas como
também nas grandes decisões, Inácio opera continuamente esta busca,
usando como instrumento predileto o exame espiritual cotidiano.
12. Cf. Javier MELLONI, La mistagogía de los ejercícios, BilbaoSantander, Mensajero-Sal Terrae,
2001, p. 93-94.
A importância do exame espiritual cotidiano
em um mundo em mudanças
A este ponto da nossa reflexão, podemos dar um novo passo e
nos perguntarmos: E hoje, em nosso mundo de constantes mudanças, que lugar e importância podem ter o discernimento espiritual
e exercícios como o exame cotidiano para o cristão do século XXI?
Contudo, antes de buscarmos responder a esta pergunta, faz-se
necessário recordar alguns aspectos dessa mudança que ocorre no
mundo, dentre as várias formas possíveis de abordar este tema.
Com efeito, uma das características da mudança epocal que vivenciamos é o predomínio da secularização na sociedade hodierna,
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13. Charles TAYLOR, A Secular
Age, Cambridge, Belknap Press of
Harward University, 2007.
como reflete apuradamente Charles Taylor em seu famoso livro A
Secular Age13. Numa palavra: Vivemos em um mundo secularizado!
De acordo com esse filósofo, existem diferentes modos de interpretar
esse fenômeno da secularização. Um primeiro modo refere-se à possibilidade do ser humano poder falar de política sem falar de Deus e
poder enxergar a religião de cada um como assunto privado. Também
associada a esta primeira dimensão da palavra secularização está a
ideia de uma sociedade que não é governada por nenhuma doutrina
abrangente, isto é, nenhuma explicação última do cosmos que sirva
como fonte do certo e do errado. A palavra que resume este primeiro
significado da secularização, segundo Taylor, é laicismo.
Um segundo modo de interpretar a secularização de nossos
tempos atuais é a retirada da ideia de Deus ou, em sentido amplo, de
religião, não mais somente da vida política, mas agora inclusive da
esfera privada dos indivíduos. Cada vez mais e mais pessoas passam
a viver suas vidas sem sentir necessidade de falar em algum sentido
último para elas, sem falar em Deus. Isto era impensável antes do
período moderno, isto é, não se podia pensar na vida moral sem
pensar numa ordem superior na qual essa estivesse inserida. Hoje,
um número cada vez maior de pessoas se sente em paz com a ideia
de que o universo como um todo não faz, nem precisa fazer nenhum
sentido. A palavra que resume este segundo significado da secularização, ainda segundo Taylor, seria ateísmo.
Mas, o aspecto principal que esse filósofo destaca é que, perguntas essenciais que antes inevitavelmente nos levariam a buscar a
resposta na religião e em Deus, hoje podemos perfeitamente buscar
responder em outros horizontes, tais como a arte, a beleza, o amor
ao próximo, o bem da comunidade, o bem do ser humano em geral
ou a simples busca de prazer: O que faz a vida mais humana, melhor,
mais louvável, mais digna de ser vivida? Como podemos alcançar este
estado de plenitude? É a esta metastatis do horizonte de sentido que
Taylor quer chamar a atenção com o termo secularização.
Ora, é neste novo e distinto meio ambiente que o cristão continua a viver a sua experiência de Deus. Trata-se de um ethos em que
nenhuma via escolhida tem o direito de entender-se como a única.
Hoje, estamos o tempo inteiro sendo confrontados com mil formas
diferentes de espiritualidades, com distintas fontes de plenitude. O
que antes só era encontrado em Deus e estava sob autoridade de seus
representantes eclesiásticos, hoje pode ser encontrado na natureza, na
arte, na literatura, na neurociência, etc. O homem ocidental deixou
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de ver-se como membro de uma ordem que possui um significado
para além dela mesma — um cosmo — e passou a enxergar o mundo
exterior como não mais que um universo, isto é, um conjunto natural
fechado, composto de leis imutáveis e impessoais. Isso faz perceber
que vivemos em um mundo fragmentado e pluralista, onde as mudanças vão muito mais além do que podemos prever. E necessitamos,
portanto, saber discernir como devemos nos posicionar enquanto
cristãos diante dessas mudanças e diante da própria vida.
Sem embargo, em um mundo assim caracterizado pelo fim
do discurso único e pela substituição da atmosfera cristã por outra
marcadamente secularizada e plural, às vezes até avessa à religião e
a Deus, o discernimento espiritual não pode ser um exercício feito
de uma só vez. Ele há de ser um exercício permanente, contínuo.
Vivemos em uma sociedade regida pelas leis do mercado e do consumo, que trata sempre de responder às nossas necessidades por
caminhos diferentes e onde as situações novas nos pedem sempre
um novo discernimento, uma nova criatividade e novas respostas,
diante de tantos apelos e de tantas sensações às quais somos constantemente expostos. De fato, como afirma Benjamin González
Buelta, “nunca como hoje se estudou com tanta precisão a maneira
de criar sensações que entrem dentro de nós, se dirijam às fontes
sempre abertas de nossas necessidades e, desde aí, vão infiltrando-se
e contaminando nossos desejos”14. Daí, ser extremamente importante
que continuemos a ser capazes de “auscultar” o nosso coração ou a
nossa consciência, para discernir como tudo isso nos atinge e como
devemos nos portar em cada nova situação com que nos deparamos.
E, assim como aquele velho instrumento do estetoscópio continua
a ter um papel fundamental para examinar o estado de saúde física
de alguém, estamos convencidos de que o exame espiritual cotidiano deixado por Santo Inácio representa uma ajuda singular para o
cristão manter-se capaz de discernir a sua vida e a sua relação com
Deus, o mundo e os outros.
De fato, falando deste cenário de mudanças, o Pe. Adolfo Nicolás,
Superior Geral da Companhia de Jesus (janeiro, 2009), recordou que
Inácio também viveu em uma época semelhante, marcada por grandes
mudanças. Ele percebeu a necessidade de buscarmos sempre encontrar
as respostas adequadas ao nosso tempo, sem nos conformarmos com
o estado atual das coisas. Por isso, ele nunca estava contente com o
status quo. O famoso Magis que Santo Inácio propõe, sugere exatamente essa certa insatisfação com a maneira como as coisas estavam
40
14. Benjamin González BUELTA,
Caminar sobre las águas, BilbaoSantander, Mensajero-Sal Terrae,
2010, p. 62.
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15. Cf. Zygmunt BAUMAN, A Cultura no Mundo Líquido Moderno,
São Paulo, Zahar, 2013.
acontecendo. Pois, nós crescemos, mudamos o tempo todo. Isto supõe
estar continuamente atentos ao que acontece ao nosso redor, ao que
é bom e ao que não é tão bom. Por outro lado, há mudanças que
ocorrem em nosso coração, que podem nos aproximar ou afastar de
Deus. Se conhecermos a nossa própria situação, compreenderemos
que nem sempre estamos na mesma disposição. Devemos mudar e
temos que estar atentos a isso, completa o Pe. Nicolás.
Eis a razão pela qual, em nossos dias, temos que reaprender a
escutar o nosso coração e a falar do discernimento como um habitus,
uma atitude constante, uma disposição orante e vigilante de atenção
constante a Deus e ao seu Espírito, um estilo de vida que invade
tudo o que eu sou e faço. Isso pressupõe da nossa parte uma certeza
experiencial que Deus fala, comunica-se. A atitude do discernimento
me leva a viver constantemente uma relação aberta, tendo certeza de
que o que importa é fixar o olhar no Senhor, o que me impede de
fechar-me em mim mesmo, pois o discernimento me faz ver que eu
não sou o epicentro de minha vida, mas sim Ele, a quem reconheço
como a fonte da qual tudo provém e para a qual tudo conflui. Assim
como aconteceu na vida de Inácio, todo o processo de discernimento
se funda sobre estas dimensões: Deus nos atrai a Ele através do desejo,
fazendo-nos abandonar as seguranças humanas para mergulharmos
confiantes no Amor Divino, libertando a nossa liberdade dos seus
apegos para tornar-nos capazes de responder com todo o nosso ser
ao seu apelo.
Já se falou, como fez Zygmunt Bauman15, que nesta nossa época
de constantes mudanças, permeada de rápidas mutações e frágeis
relações, nada é feito para durar. Diante disso, temos necessidade
de exercícios de discernimento permanente, como acreditamos ser o
exame espiritual cotidiano, se queremos encontrar e dar respostas adequadas à nossa existência. Trata-se daquele estado de discernimento
que é expressão orante da fé na qual permanecemos naquela atitude
de fundo de reconhecimento radical da objetividade de Deus Pai,
Filho e Espírito Santo. Como exercício de escuta do coração, o exame
inaciano não tem nada de cálculo, de lógica indutiva, nem se parece
com uma técnica de engenharia na qual eu peso meios e fins, nem se
aproxima a uma discussão ou busca de consenso. Mas, consiste em
uma forma de oração, cuja dimensão ascética me leva à purificação
e reordenação dos meus próprios afetos, do meu próprio querer e do
meu próprio pensar, libertando-me da cegueira espiritual que muitas
vezes me impede de saber escolher o caminho certo a trilhar.
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Por outro lado, além dessa dimensão purificativa, o que caracteriza o exame inaciano é a sua dimensão iluminativa, como
verdadeiro exercício de discernimento que nos ajuda a permanecer
mais atentos aos acontecimentos da vida, respondendo com maior
fidelidade à vontade de Deus, e a experimentar melhor o seu amor.
Em nosso entendimento, um dos modos mais eficazes de atingirmos
esse coração discernente é a prática assídua deste exercício espiritual
tão apreciado por Santo Inácio, que ficou mais conhecido como
exame de consciência. Trata-se, com efeito, de um exercício que no
cotidiano contribui para adquirir aquela grande arte de discernir, que
é certamente o âmbito mais apropriado para sentir a voz do Espírito
que cria hoje, que sugere novidade para o hoje, que é fecundidade
hoje16. O exame inaciano pode ser considerado, de fato, um exercício
orante diário de discernimento, que ajuda a pessoa a responder ao
convite amoroso de Deus, tendo como objetivo justamente “desenvolver um coração com um olhar de discernimento”17. Por meio dos
seus cinco passos bem precisos, ele leva a pessoa a apropriar-se da
sua realidade interior, naquilo que ela tem de positivo e virtuoso e
naquilo que ela tem de negativo e maléfico, com repercussões em
sua vida concreta e na relação consigo mesma, com Deus e com o
próximo.
Sabemos que mesmo fora da esfera espiritual-cristã, é cada vez
mais forte a busca por técnicas e filosofias de vida que favoreçam esse
conhecimento de si mesmo e do self-control, em vista a uma evolução
“espiritual”, ou simplesmente racional. Uma dessas técnicas mais
recentes chama-se mindfulness, que poderíamos traduzir livremente
por “consciência plena”. Ela foi trazida para o Ocidente, sobretudo,
a partir da década de 1970, por meio dos trabalhos do médico Jon
Kabat-Zinn, da Universidade de Massachusetts, que buscava no
budismo e na ioga formas de meditação que aliviassem a dor de pacientes com doenças crônicas. Hoje, o campo de interesse por este
tipo de exercício é muito mais abrangente, pois ele é considerado uma
forma de adquirir a capacidade de reconhecer e lidar com as próprias
emoções, de tomar consciência do seu estado presente, para poder
tomar decisões acertadas. Isso mostra como, em pleno século XXI, o
ser humano continua sentindo necessidade de maior conhecimento
de si mesmo, do seu mundo interior, para ter maior controle, equilíbrio e harmonia consigo mesmo e com o mundo.
Por isso que, mesmo numa sociedade guiada pelas leis do business
e da macroeconomia, exercícios oriundos da espiritualidade cristã,
42
16. Cf. RUPNIK. O Exame…, p.
58-61.
17. George ASCHENBRENNERS,
“Exame de Consciência”, em: Itaici
– Revista de Espiritualidade Inaciana, 2 (1989) 10.
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18. Chris LOWNEY, Liderança heroica: as melhores práticas de uma
Companhia que há mais de 450
anos vem mudando o mundo, Rio
de Janeiro, Edições de Janeiro,
2015.
como o exame de consciência, têm sido redescobertos e revalorizados, como instrumentos recomendados e necessários para se crescer
no mundo empresarial, por mais singular que isso possa parecer. É
o que vemos acontecer, por exemplo, com as teses defendidas pelo
escritor norte-americano Chris Lowney18, em sua obra Liderança heroica, na qual busca mostrar a enorme semelhança que existiria entre a
técnica usada hoje pelas grandes empresas do mundo financeiro para
descobrir e treinar seus novos líderes executivos e a espiritualidade
que Santo Inácio de Loyola transmitia aos jesuítas da sua época, a
quem Lowney define como “líderes que eram bem conscientes dos
seus pontos de força, fraquezas, valores e visões de mundo”. E, após
explicar que tudo isso se dava particularmente por meio dos Exercícios
Espirituais, esse autor acrescenta que o meio usado por aqueles homens
para fortalecer-se espiritualmente, quando voltassem ao burburinho
da vida real, era precisamente o exame de consciência.
À guisa de conclusão: Qual a contribuição específica do
exame espiritual cotidiano para a espiritualidade cristã hoje?
A despeito de toda essa onda atual de valorização de técnicas
que visam a uma evolução das próprias potencialidades e da capacidade de lidar com as próprias emoções, não podemos esquecer
que os exercícios espirituais inacianos, como ademais todos aqueles
ensinados desde os Padres da Igreja, dentro do cristianismo, estão
inseridos numa busca de crescimento na relação e união com Deus,
a fonte primeira e absoluta da nossa vida. Essa é a razão pela qual o
cristão, em última análise, se esforça para examinar o seu coração ou
consciência, procurando adquirir o hábito de discernir constantemente
a ação de Deus em sua vida, como também a do Inimigo, em vista a
dar uma resposta sempre mais livre, generosa e fiel ao projeto divino,
que beneficie não somente a si mesmo, mas também aos outros.
Com efeito, o caminho espiritual proposto por Inácio pretende
suscitar um contínuo progresso no interior do ser humano. Para ele
a Trindade doa a redenção ao homem/mulher e estimula para uma
ação na história, na identificação com a pessoa de Jesus Cristo. O
indivíduo, por sua parte, associa-se à obra redentora do Filho de
Deus, através da prática do serviço e tendo sempre como horizonte
a entrega total de si mesmo à vontade divina, na contínua busca do
Magis (mais), palavra que no vocabulário inaciano representa um
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princípio de discernimento que leva a pessoa a progredir continuamente para a realização da maior glória de Deus. Essa maior glória de
Deus consiste no princípio unificador da espiritualidade inaciana, a
serviço da qual o ser humano se coloca, por meio do imprescindível serviço ao próximo. Como verdadeira mística do serviço, ajudar
o próximo está sempre no centro da espiritualidade inaciana que,
por isso, será sempre uma espiritualidade apostólica, voltada para o
sustento da missão, para o discernimento do melhor e maior serviço
a Deus e aos demais.
E, para se alcançar esta capacidade de discernimento, tão importante em nossa época como fora na época de Inácio, é fundamental
que cultivemos uma vida espiritual intensamente vivida, fortalecida
por momentos específicos de estudo e reflexão sobre essa vida,
pela releitura das próprias experiências vividas, mas também pelo
esforço em tornar um estilo de vida o exercício do discernimento
contínuo e a escuta do coração. Daí “a importância decisiva, em ordem
à maturação da capacidade de discernir, do exercício do exame de
consciência”19. No caso específico do exame, estamos convencidos de
que, mais do que nunca, o cristão de hoje tem necessidade desse tipo
de instrumento que o ajude a aprender a se posicionar neste mundo
líquido, onde tudo flui e ele não sabe muitas vezes onde pisar. Pois,
não obstante as características do mundo em que vivemos serem
essas que acabamos de sinteticamente abordar, o Senhor continua
a nos chamar para subir na sua barca, para com Ele atravessar essas
águas profundas e turbulentas, até chegar à terra onde se realiza o
reino de Deus.
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19. Maurizio COSTA, Direzione
spirituale e discernimento, Roma,
Apostolato dela Preghiera Edizioni,
2002, 126.
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