o apóstolo

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O APÓSTOLO
BRAD THOR
O APÓSTOLO
Tradução de
MARTA TEIXEIRA PINTO
Da guerra que a nação americana trava contra o terrorismo emergiu uma nova casta de agentes. Completamente dedicados à sua arte, ignoram os suplícios e as dificuldades da
sua profissão e trabalham incansavelmente com apoios limitados e burocracias exacerbadas para atingirem um só objetivo — o êxito das suas missões.
Motivados por um amor profundo e inabalável pelo seu
país, estes agentes enfrentam perigos de livre vontade para que
os Estados Unidos da América possam permanecer livres.
Anteriormente chamados «crentes fervorosos», este termo já não se lhes aplica. Estes guerreiros transformaram-se
em apóstolos.
Para James Ryan,
Guerreiro
«As pessoas dormem em paz, à noite, nas suas camas
apenas porque existem homens duros preparados para agir
com violência em seu nome.»
GEORGE ORWELL
CAPÍTULO
1
PROVÍNCIA DE NANGARHAR,
AFEGANISTÃO
Próximo de um curso de água proveniente do degelo
dos glaciares do Hindu Kush, uma pequena caravana descarregou o seu contrabando. Caixas repletas de armas, dinheiro, equipamentos de telecomunicações e outros acessórios foram colocadas debaixo de uma saliência rochosa
e cobertas com redes de camuflagem para as manter escondidas da vigilância de cima.
Um homem de quarenta e muitos anos com traços eslavos estava perto e supervisionava. Tinha olhos azuis, cabelo
grisalho curto e a roupa e o porte de um afegão local.
Quando a sua equipa de contrabandistas paquistaneses
terminou, o homem pegou num maço de notas e pagou-lhes o dobro do habitual por o terem levado para dentro
do país. Era um pagamento de rutura. Não voltaria a usar
os seus serviços. Aquela seria a sua última missão.
Acomodou-se confortavelmente perto de uma pilha de
chifres de carneiro que marcavam uma sepultura talibã
e observou a fila de contrabandistas e de animais de carga
enquanto desapareciam nas montanhas rumo ao Paquistão.
Embora não conseguisse vê-los, sabia que havia homens
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nos escarpados montes que se erguiam acima dele, homens
com armas sofisticadas — armas que ele fornecera — que
o tinham debaixo de mira.
Passados vinte minutos, três carrinhas enlameadas Toyota
Hilux de cabina dupla e caixa aberta apareceram vindas da
outra extremidade do vale. Atravessaram ruidosamente o regato e dirigiram-se para a saliência rochosa. Mal as carrinhas
pararam, saltaram para fora jovens com espessas barbas escuras e Kalashnikovs.
Tal como o homem que estava perto dos chifres de carneiro, vestiam roupa tradicional afegã conhecida como salwar
kameez — calças largas de algodão que desciam até ao tornozelo e túnicas soltas até ao joelho. Todos vestiam casacos
de inverno que chegavam a meio das coxas. Muitos traziam
mantas de lã por cima dos ombros, conhecidas por patoos
naquela região, para se protegerem ainda mais do frio. Nas
cabeças usavam pakols, o pano de lã largo rodeado por uma
orla grossa e enrolada e que ficara famoso quando fora usado pelos mujahedin na sua guerra contra os soviéticos.
Os homens trabalharam com rapidez e eficiência. Depois de terem carregado as carrinhas com os equipamentos,
o homem de olhos azuis entrou para o lugar do passageiro
do veículo da frente, o condutor levantou o pé da embraiagem, a carrinha deu um solavanco e arrancou.
A viagem, dolorosa e massacrante para os rins, fazia-se
por uma estrada crivada de sulcos que acompanhava o curso de água ao longo do vale. Quando a carrinha embateu
com força em mais um buraco, os homens do banco de trás
lançaram uma torrente de pragas em pachto.
O homem de olhos azuis mandou-os calar e olhou fixamente através do para-brisas salpicado. A paisagem lá fora
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era estéril e varrida pelo vento. Era difícil acreditar que
combatia e dirigia operações naquele país há mais de vinte
e cinco anos. O seu sangue fora derramado sobre aquele solo
mais vezes do que gostaria de lembrar-se e vira morrer mais
homens do que ninguém.
Amava e detestava o Afeganistão. Tirara-lhe muito mais
do que lhe dera. O seu corpo estava desfeito, bem como
a pequena família que conseguira começar ao longo dos
anos durante as suas breves visitas a casa. Tudo o que lhe
restava na vida era um doce e inocente menino que estava
horrivelmente desfigurado.
O homem de olhos azuis culpava-se por isso. Sabia que
a sua mulher era alcoólica. Também sabia que o problema
se agravava quando ele estava fora. Embora tivesse sido
treinado para ouvir a sua intuição, ignorara-a quando esta
lhe dissera que aquela mulher já não era capaz de cuidar do
seu filho. Se tivesse pensado noutros cuidados para o menino, se tivesse encontrado alguém responsável que tratasse
dele enquanto estava no estrangeiro, o incêndio poderia ter
sido evitado.
Mas não fora e agora carregava a culpa por o filho ter ficado desfigurado, da mesma forma que os guerreiros talibãs
que viajavam com ele carregavam aos ombros os seus patoos.
Tentou esquecer a sua dor e concentrar-se na missão.
Era uma das operações mais audaciosas que o seu serviço
secreto concebera. Se fosse bem-sucedida, poderia finalmente reformar-se e seria tão bem recompensado que nunca lhe faltaria nada, nem a ele nem ao filho. No entanto, esse sucesso dependia, em última instância, do homem com
quem estava prestes a encontrar-se. À distância, pôde finalmente ver o seu destino.
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A aldeia, situada no acidentado distrito de Khogyani na
província de Nangarhar, era principalmente constituída por
casas de barro, algumas de pedra, dispostas de ambos os lados da estrada.
Era austera e sem cor como a maior parte do Afeganistão. As ombreiras das portas e das janelas não estavam pintadas. Traves mal talhadas saíam de baixo dos telhados e nenhum dos edifícios tinha mais de dois andares. Havia pó,
crianças e homens de aspeto duro com armas de fogo por
toda a parte. Não havia mulheres à vista.
Estavam lá, claro, escondidas atrás das grossas paredes
de barro das suas casas pelos maridos e pais talibãs que as
proibiam de trabalhar, de frequentar a escola, ou mesmo de
sair de casa sem estarem completamente tapadas e acompanhadas por um homem da família.
As carrinhas pararam diante de uma parede alta com
duas portas duplas enormes. O condutor do veículo dianteiro tocou três vezes a buzina numa sucessão rápida. Abriu-se
um pequeno painel no portão e um par de olhos furiosos
espreitou para fora. Passados alguns momentos, as portas abriram-se de par em par e as carrinhas entraram lentamente
num complexo tipicamente afegão designado kwala.
Quando o homem de olhos azuis saiu da carrinha, foi
cumprimentado por um dos comandantes talibãs mais famosos e com mais experiência no campo de batalha. O mulá Massoud Akhund tinha um metro e setenta e quatro de
altura, uns bons dez centímetros a menos do que o homem
de olhos azuis, mas tinha uma presença autoritária.
Os olhos de Massoud eram da cor da pederneira e tinham o poder de ver através de um homem. A sua densa
barba negra estava manchada de cinzento. Estava na casa
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dos quarenta, mas uma vida de combates incessantes envelhecera-o, dando-lhe o aspeto de um homem vinte anos
mais velho.
Colocando a sua mão direita sobre o coração no tradicional cumprimento afegão, o mulá Massoud inclinou ligeiramente a cabeça para o seu convidado e disse:
— Salaam alaikum.
O homem de olhos azuis fez o mesmo gesto e replicou:
— Wa alaikum salaam.
Massoud abraçou o seu convidado e apertou-o de encontro ao peito durante alguns momentos. No começo da
carreira, o homem de olhos azuis aprendera que um abraço
dado por um homem afegão era um sinal de respeito.
Quanto mais tempo durasse o abraço, maior o respeito sentido.
Finalmente, o comandante terminou o abraço.
— É bom ver-te outra vez, Bakht Rawan.
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CAPÍTULO
2
Muitos suspeitavam de que o homem de olhos azuis era
russo, mas esse era um assunto que o mulá Massoud não
gostava de discutir. Ainda existiam animosidades latentes,
mesmo na sua própria aldeia, por causa da longa e sangrenta
guerra que os afegãos tinham travado contra os soviéticos.
Por este motivo, Massoud tratava o homem por Bakht Rawan
e não pelo seu nome verdadeiro, Sergei Simonov.
A sua relação durava há mais de vinte anos. Antes de
Massoud se ter juntado aos talibãs, fora um agente secreto
afegão inexperiente e Simonov o seu mentor. O seu nome
de código era pachto e significava «sorte inesgotável», coisa
que Massoud achava que o seu mentor possuía em abundância.
Ambos inquiriram educadamente pelo estado de saúde,
pelas famílias e pelos assuntos um do outro, enquanto Massoud dava ordens aos seus homens para descarregarem as
carrinhas. Depois, fez sinal a Simonov para que o seguisse
para dentro de casa.
O russo descalçou as botas de montanha junto à porta
e seguiu o seu anfitrião. O quarto estava mobilado de forma
espartana, com duas mesas longas, uma cama baixa, uma
pequena secretária de madeira e uma única cadeira. Era mais
do que suficiente.
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Dois dos homens de Massoud trouxeram um tapete antigo e desenrolaram-no no chão. Era um Bokhara, com uma
pata de elefante desenhada a vermelho. Simonov imaginava
quanto custaria um tapete daqueles em Moscovo ou em
Sampetersburgo.
Entraram outros homens transportando mantas, uma almofada, uma ficha e uma extensão elétrica que permitiria ligar o seu equipamento eletrónico ao gerador do complexo.
Satisfeito por ver que o seu convidado tinha o necessário para ficar bem acomodado, o mulá Massoud informou-o
de que o esperaria para tomarem chá dentro de vinte minutos.
Simonov agradeceu ao seu anfitrião e fechou a porta.
Do coldre de cabedal que tinha debaixo da túnica, retirou
uma pistola CZ-75 de nove milímetros e colocou-a em cima
da secretária, ao lado do silenciador que retirou do bolso do
casaco. Dentro do complexo não precisava das armas.
— Ze talibano milmayam — proferiu em voz alta em pachto. — Sou um hóspede dos talibãs.
O código de honra tradicional dos pachtos, conhecido
por Pashtunwali, ditava todos os aspetos das suas vidas e era
muito explícito. Um dos mais importantes princípios do
Pashtunwali dizia respeito à hospitalidade e ao tratamento
dos hóspedes. Quando um pachto convidava alguém para
a sua casa, ficava obrigado pela honra a defender esse hóspede a todo o custo, mesmo que isso significasse lutar até
à morte.
Enquanto arrumava o seu equipamento, Simonov reviu
mentalmente as reservas que o mulá Massoud levantara inicialmente sobre a missão e como as enfrentaria caso surgissem de novo.
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O cerne da questão residia no facto de estar na hora de
os talibãs deixarem para trás a Al-Qaeda.
Em 1998, dois anos depois de obterem o controlo
maioritário do país, os talibãs tinham moldado o Afeganistão para ser o Estado islâmico mais puro do planeta.
Os seus embaixadores andavam para a frente e para trás, entre os Estados Unidos e o Afeganistão, e estavam perto de
assinar um tratado de paz com os combatentes da Aliança
do Norte — os últimos resistentes do Afeganistão que se
opunham ao controlo total do país pelos talibãs. Os soviéticos tinham partido há muito, negociava-se com os senhores
da guerra afegãos, e os talibãs estavam prestes a trazer estabilidade ao seu país dilacerado pela guerra. Em suma, tinham conseguido quase tudo o que desejavam.
Foi nessa altura que Osama bin Laden e a sua organização, a Al-Qaeda, levaram a cabo os atentados bombistas às
embaixadas dos Estados Unidos no Quénia e na Tanzânia.
Os americanos responderam com o disparo de mísseis contra o Afeganistão. Enraivecido, o líder talibã, o mulá Omar,
terminou com as negociações de paz e desligou-se dos
americanos. A guerra contra a Aliança do Norte acelerou e a
situação deteriorou-se gradualmente. Quando parecia que as
coisas não podiam piorar, deu-se o 11 de Setembro e os
americanos invadiram. Em suma, todos os problemas que
os talibãs tinham podiam ser atribuídos à Al-Qaeda. Estava
na altura de se divorciarem.
O mulá Massoud sempre fora suficientemente inteligente para ver a Al-Qaeda como era na realidade — um risco.
Era constituída por estrangeiros que punham a sua jihad global acima de tudo. Não se preocupavam com o que entretanto aconteceria ao Afeganistão e ao seu povo. Massoud
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preocupava-se, e fora por isso que concordara em colaborar
com a missão de Simonov.
O plano era extremamente simples, à moda russa. Simonov
encontrara uma forma de desferir um golpe mortal à Al-Qaeda fazendo que parecesse que os americanos eram os
culpados. Enquanto o ineficiente mulá Omar se afogasse
com o peso da moribunda organização Al-Qaeda atada ao
pescoço, o mulá Massoud avançaria para ocupar o vazio
existente no poder e assumiria o controlo como supremo líder dos talibãs.
Com o que pretendiam ganhar com a queda da Al-Qaeda,
comprariam todas as armas e hardware de que precisavam.
Organizariam uma ofensiva devastadora contra os americanos e seus aliados e obrigá-los-iam a fugir com o rabo entre
as pernas como cães escorraçados. E o que os russos pediam em troca pela sua ajuda era apenas uma pequena parte.
Os russos tinham aprendido a lição e não faziam tenção
de repetir os erros dos anos oitenta. O Afeganistão fora um
cemitério soviético. Desta vez, não queriam ter nada que
ver com o governo do Afeganistão, apenas ajudar a aumentar e partilhar a sua prosperidade. A maneira como os russos pretendiam usar a sua influência não dizia respeito aos
talibãs. Desde que se mantivessem afastados dos assuntos
afegãos, o relacionamento parecia ter pernas para andar.
Simonov tirou o seu equipamento de ligação via satélite
e refletiu na ironia que era a Rússia estar a financiar e orquestrar a instabilidade no Afeganistão, exatamente como
os Estado Unidos tinham feito aos soviéticos nos anos oitenta.
Mas os russos precisavam de ter muito cuidado. Os tempos
tinham mudado. Os Estados Unidos tinham muitos aliados
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no Afeganistão e, se o papel da Rússia na promoção da insurreição fosse provado, as repercussões internacionais seriam extremamente severas.
Ainda revia estes pontos na sua mente quando ouviu
um estrondo e a porta se abriu a pontapé.
O russo estendeu a mão para a CZ que estava em cima
da secretária, mas pensou melhor e parou. De pé junto à entrada da porta, numa posição rígida, estava Zwak, o irmão
do mulá Massoud e que revelava algumas limitações mentais.
Vestia uma camisola azul com capuz e calçava umas botas dois números acima do seu. Uma das pernas das calças
estava enrolada até ao joelho e segurava com força, a seu lado,
uma AK-47 com o topo do cano colado com fita adesiva
azul. Fora incumbido da tarefa «oficial» de guardar a aldeia
e ficar atento a possíveis espiões. Andar com a espingarda
era uma fonte de orgulho e fazia-o sentir-se igual aos outros
guerreiros que lutavam para o seu irmão.
Zwak tinha trinta e um anos, pouco mais de metro
e meio de altura, e tinha uma barba áspera e escura que
acompanhava a linha do seu queixo, exatamente como a do
irmão. Todas as manhãs, os dois homens rapavam os lábios
superiores ao mesmo tempo, junto a um espelho rachado
que existia no pátio. Quando não procurava espiões e não
guardava o poço, estar com o irmão era o passatempo preferido de Zwak.
Simonov tinha um grande respeito pelo modo como
Massoud tratava o seu irmão. Nunca confundira a sua compaixão com fraqueza. Sabia que Massoud era tudo menos
fraco e, assim que o seu país estivesse livre da Al-Qaeda, seria o comandante talibã sob o qual o país iria unir-se.
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O russo examinou o seu visitante. Uma expressão de satisfação espalhou-se pelo rosto de Zwak quando se apercebeu de que assustara Simonov. Estava muito orgulhoso do
seu feito.
Sergei aproximou-se e fez uma inspeção militar ao outro
homem, que foi levada muito a sério por Zwak. Colocou-se
o mais direito possível enquanto o russo examinava a sua
roupa e, depois, a sua arma.
Abanando a cabeça, Simonov atravessou o quarto para
ir buscar qualquer coisa ao seu saco. Zwak descalçou as
suas botas e entrou para ver o que o russo estava a fazer.
Quando Sergei se voltou, segurava um par de sapatilhas
brancas de basquetebol. Apesar do seu ódio pelo Ocidente
e pela cultura ocidental, a única coisa que os talibãs valorizavam tanto como as suas espingardas era umas sapatilhas de
basquetebol.
Zwak não queria acreditar no que os seus olhos viam.
Simonov sorriu enquanto lhas entregava.
— Não deixes que ninguém tas tire — advertiu, embora
não acreditasse que existisse no Afeganistão alguém suficientemente estúpido para roubar o irmão do mulá Massoud.
Esquecendo-se das normas, Zwak deixou cair as sapatilhas e calçou-as. Não tinham exatamente o tamanho certo,
mas serviam-lhe melhor do que as botas enormes que usava
desde que se lembrava.
Zwak experimentou as sapatilhas saltando para cima
e para baixo em bicos de pés. O seu entusiasmo espelhava-se no sorriso que tinha no rosto.
Mas, quando se lembrou do motivo que o levara ao
quarto, o seu sorriso esmoreceu e Zwak assumiu uma atitude formal.
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— Chá — proferiu. — Chá, agora.
O russo sorriu e respondeu em pachto:
— Diz ao teu irmão que vou já.
Pegando na sua espingarda, Zwak colocou-a ao ombro
e dirigiu-se para a porta. Quando chegou à porta, voltou-se
novamente. Simonov pensou que ele ia agradecer-lhe. Mas,
em vez disso, Zwak repetiu:
— Chá, agora.
— Em breve — respondeu o russo. — Chá, em breve.
— E observou o homem enquanto ele saía do quarto para
o pátio para exibir as suas sapatilhas novas diante dos soldados talibãs do seu irmão.
De volta ao seu saco, Simonov retirou a fotografia do
seu filho, Sasha. Era a última fotografia do menino antes
do acidente.
Pregou o retrato na parede por cima da secretária e, beijando os dedos, pressionou-os contra a fotografia.
— Em breve, Sasha. Em breve — prometeu.
Pegando numa pasta cheia de fotografias, o russo inspirou profundamente antes de se dirigir para a porta. Tudo
dependia do comprometimento do mulá Massoud com
o seu plano.
Saindo para o pátio, Simonov rezou para que a americana que selecionara fosse o isco certo para a sua armadilha.
O tempo e o novo presidente dos Estados Unidos o diriam.
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CAPÍTULO
3
PROVÍNCIA DE KANDAHAR
SEGUNDA-FEIRA
(TRÊS SEMANAS DEPOIS)
A doutora Julia Gallo sentara-se num tapete empoeirado
e olhava para os tijolos de barro rachados e para as vigas
de madeira expostas da minúscula divisão. Não precisava de
olhar para o seu intérprete para saber que estava a observá-la.
— Pergunte-lhe outra vez — pediu ela.
Sayed clareou a garganta, mas a pergunta não lhe saía.
Estavam em território perigoso. Já era suficientemente mau
que a jovem médica americana o tivesse arrastado para as aldeias mais remotas no meio de nenhures, mas agora estava
claramente a ver se os matavam. Se os talibãs soubessem
o que ela estava a fazer, seriam ambos mortos.
O afegão, com um metro e sessenta e oito de altura,
profundos olhos castanhos e cabelo negro, tinha mulher,
três filhos e uma quantidade significativa de familiares que
dependiam dele e do dinheiro que ganhava como intérprete.
Pela primeira vez nos seus vinte e dois anos de vida,
Sayed tinha algo que poucos afegãos possuíam — esperança;
esperança para si, esperança para a sua família e esperança no
futuro do seu país. E, apesar do que fazia ser perigoso, não
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havia razão para o tornar ainda mais perigoso perturbando
o espectro da morte. A doutora Gallo, por outro lado, parecia
ter uma lista de prioridades completamente diferente da sua.
Com um metro e setenta e oito, Julia era uma mulher alta de acordo com quase todos os padrões, mas no Afeganistão era uma gigante. E embora mantivesse o seu longo cabelo ruivo escondido debaixo do lenço de cabeça afegão,
conhecido como hijab, não conseguia esconder os seus lindos olhos verdes nem que era uma mulher muito atraente.
Era licenciada em Obstetrícia e Ginecologia pelo Rush University Medical Centre de Chicago e dez anos mais velha do
que o seu intérprete. E, apesar de partilhar a visão de Sayed
sobre o futuro do Afeganistão, tinha a sua opinião sobre
a melhor maneira de a transformar em realidade.
Num país onde os pais não davam nomes aos filhos até
ao seu quinto aniversário porque a mortalidade infantil era
elevadíssima, a doutora Gallo e outros como ela tinham feito uma enorme diferença. A mortalidade infantil descera
mais de dezoito por cento desde que os talibãs tinham sido
depostos. Isso queria dizer que existiam quarenta a cinquenta mil crianças que teriam morrido debaixo do antigo regime e que agora sobreviviam. Deveria estar felicíssima, mas
por qualquer motivo não estava. Estava infeliz e isso fazia-a
esforçar-se ainda mais para produzir mudanças.
Gallo sabia que não estava apenas a agitar o barco das
questões culturais com aquelas visitas que fazia ao campo,
estava a fazer furos no casco e a recarregar repetidamente
a sua espingarda, mas não queria saber. Os talibãs eram uns
sacanas vis e misóginos que deviam apodrecer no inferno.
— Pergunte-lhe outra vez — exigiu.
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Sayed sabia a resposta e estava certo de que a doutora
Gallo também. Era embaraçoso para a mulher ter de responder, mas ela insistiu na pergunta. Era o cenário de uma
mensagem que ela se encarregara de passar regularmente.
À sua maneira, Gallo transformara-se numa fanática em nada diferente dos talibãs e, por muito que Sayed a admirasse,
aquela seria a última viagem que fariam juntos para fora de
Cabul. Pediria à sua organização não governamental, a CARE
International, para não voltar a destacá-lo para o serviço dela.
Não estava disposto a morrer por sua causa.
A doutora Gallo sempre fora complicada. Nunca falava
da sua família ou da sua vida pessoal, por muitas horas que
passassem juntos a viajar ou oportunidades que Sayed lhe
desse. Ou voltava a conversa para ele, fazendo perguntas
para as quais já sabia as respostas, ou limitava-se a ficar sentada no lugar de passageiro a olhar fixamente pela janela.
Sayed desistira de tentar estabelecer uma ligação com ela
e agora desistia de tentar compreendê-la.
Dois pares de olhos baixaram-se para o chão enquanto
Sayed cedia e fazia a pergunta mais uma vez. Seguiu-se um
longo silêncio. O intérprete sentiu-se tentado a preencher
o vazio desconfortável, mas Gallo levantou a mão para silenciá-lo. Finalmente, a mais velha das duas mulheres respondeu em pachto.
Julia escutou-a e, quando terminou, Sayed traduziu.
— Usaram a rapariga para pagar a dívida do pai — transmitiu ele.
— Como se fosse um animal de quinta — replicou Gallo.
— Diga-lhes que não têm de viver assim. Não me interessa que tipo de acordo os homens desta aldeia têm com
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