Anais do X Simpósio de Cognição e Artes Musicais – 2014 Evidências do processamento auditivo-musical nos transtornos do espectro autista ! Gustavo Schulz Gattino Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] Igor Ortega Rodrigues Universidade Federal do Rio Grande do Sul Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente [email protected] Gustavo Andrade de Araujo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente [email protected] Resumo: o processamento auditivo- musical de indivíduos com transtornos do espectro autista (TEA) pode ser explicado por uma capacidade auditiva menos complexa ou por uma capacidade auditiva focal. O objetivo deste estudo de revisão é discutir estas duas teorias a partir de achados da literatura dos últimos sete anos. Os resultados da revisão apontam para prejuízos no processamento da música relacionados a um crescimento cerebral precoce (do nascimento até os seis anos de idade) e por alterações de funcionamento em áreas como o cerebelo, córtex orbitofrontral, núcleo caudado e neurônios espelho. Ainda que várias evidências já tenham sido descobertas, este tema precisa ser melhor explorado em estudos de ressonância magnética funcional em amostras maiores do que as já estudadas para a obtenção de evidências mais contundentes. Pode-se afirmar a partir dos estudos encontrados que a música causa um efeito único para os indivíduos com TEAs e que os resultados destes estudos podem ser aproveitados para intervenções terapêuticas. Palavras-chave: música, transtornos do espectro autismo, processamento auditivo musical ! Title: Evidence from the auditory-musical processing in autism spectrum disorder Abstract: autism spectrum disorders (ASD) represent a complex behavioral disorder with multiple and different levels of severity etiologies. These disorders are characterized by impairments in social interaction, communication and the fixation on routines and interests. The auditory -musical processing in these individuals can be explained by a less hearing capacity or by a focal hearing. It is suspected that the damage in music processing are related to early brain growth until and by alterations of functioning in areas such as the cerebellum, orbitofrontral cortex, caudate nucleus and mirror neurons. Although several evidences have been discovered , this issue needs to be further explored in studies of functional magnetic resonance imaging in larger samples than have been studied to obtain corroborative evidence . What can be said is that music causes a unique effect on these individuals and these can be exploited for therapeutic interventions as the music therapy intervention. Keywords: music, autism spectrum disorder, auditory-musical processing ! Introdução Os transtornos do espectro autista (TEA) representam uma desordem comportamental complexa, com etiologias múltiplas e diferentes níveis de gravidade (Amitai et al ., 2012; Hurwitz et al .,2012 ). Estes transtornos são caracterizados por prejuízos na interação social, Anais do X Simpósio de Cognição e Artes Musicais – 2014 comunicação e pela fixação em rotinas e interesses. Os TEA são diagnosticados a partir dos três anos de idade e atualmente não há um marcador biológico que defina a presença ou a ausência do autismo. No entanto, existem várias alterações neurológicas comuns apresentadas pelos indivíduos com TEA. Estas alterações neurológicas estão diretamente relacionadas com os efeitos neurofisiológicos nestes indivíduos. Dessa forma, o objetivo deste manuscrito é descrever estas alterações e correlacionar com os efeitos da música nestes indivíduos. ! Considerações do processamento auditivo musical nos TEA Os indivíduos com TEA apresentam um funcionamento sensorial atípico (Samson et al., 2011). No entanto, este funcionamento no que se refere à música ainda não é compreendido totalmente pelos pesquisadores (Wan et al., 2012). O processamento auditivo- musical é explicado por uma série de teorias. No entanto, não há um consenso sobre elas. Alguns relatam que os indivíduos com TEA possuem uma capacidade auditiva menos complexa do que os indivíduos de desenvolvimento típico. Outros atribuem uma capacidade auditiva focal nos TEA, enquanto que o esperado seria uma capacidade auditiva global. Esta capacidade auditiva focal pode também explicar os casos dos grandes gênios musicais autistas que apresentam uma grande habilidade para tocar e compreender estruturas musicais complexas da música que no entanto, não conseguem muitas vezes perceber o sentido metafórico ou sentimental presente numa determinada peça (Wan et al., 2012). Suspeita-se que o processamento auditivo-musical possa ser explicado em primeira instância pelo crescimento precoce do cérebro de uma pessoa com TEA desde os primeiros meses até os 5 anos de idade (Rapin & Goldman, 2008). Este crescimento causa um aumento anormal no peso e no volume cerebral que afeta tanto a massa cinzenta quanto a substância branca (Ecker et al., 2012). Essas diferenças anatômicas estruturais são mais proeminentes durante a vida pós-natal precoce e a infância. Devido a este crescimento anormal, algumas áreas cerebrais ficam mais desenvolvidas do que outras e dificultam a transmissão de informações de forma homogênea para diferentes áreas do cérebro. Neste sentido, o processamento auditivo-musical ocorre nas pessoas com autismo assim como o trânsito em uma grande cidade: ele acontece, porém de uma forma mais lenta que o normal (isto explicaria o processamento menos complexo). Ao mesmo tempo, um crescimento cerebral precoce pode resultar em algumas áreas do cérebro maiores do que outras. Dessa forma, o indivíduo poderá ter um grande desenvolvimento de áreas do lobo temporal e frontal ( tal como ocorre em muitos indivíduos) e estes irão apresentar um processamento auditivo- Anais do X Simpósio de Cognição e Artes Musicais – 2014 musical focal. Existem ainda algumas diferenças anatômicas em regiões específicas do sistema nervoso central como o cerebelo, o complexo amígdala-hipocampo, as áreas de Broca e Wernicke, o córtex orbitofrontal e o núcleo caudado (Wan et al., 2012) em pessoas com TEA. Assim, vamos destacar a relação de algumas destas com o processamento auditivo-musical. As alterações do cerebelo envolvem tanto funções cognitivas como funções sócioemocionais no indivíduo (Fatemi et al., 2012). Anomalias nesta região podem causar prejuízos na percepção rítmica em indivíduos com autismo grave ou profundo e ao mesmo tempo explicam as dificuldades destes indivíduos em expressar ou compreender sentimentos complexos na música. Dentro do cerebelo há uma região nomeada vérmis anterior e esta região é responsável pelo controle do ritmo no nosso corpo. Indivíduos com autismo leve ou moderado dificilmente apresentam prejuízos nesta região. Anormalidades no córtex orbitofrontal e núcleo caudado talvez sejam as mais intrigantes para o entendimento dos efeitos neurofisiológicos nos TEA. Estas regiões estão diretamente relacionados a comportamentos repetitivos e estereotipados e prejuízos sócioemocionais (Travers et al., 2012). Ao mesmo tempo, estas regiões também estão relacionadas diretamente com o processamento musical. O córtex orbitofrontal é um dos centros de processamento musical no cérebro e é responsável por nossas respostas mais complexas relacionadas à música no que diz respeito à compreensão de suas estruturas (harmonia, melodia), atribuição de significados metafóricos e relação direta com a sensação de prazer de expectativa (sentir prazer por esperar uma determinada parte da música). A região do núcleo caudado (localizada nos gânglios da base) está diretamente relacionada com a liberação do neurotransmissor dopamina (relacionado à sensação de prazer) no encéfalo. Esta liberação de dopamina ocorre quando a pessoa sente prazer ao escutar música. Portanto, o estímulo musical pode ser usado para estimular habilidades sócio-emocionais e diminuir comportamentos repetitivos e estereotipados justamente por sobrepor áreas responsáveis por estas funções, como é feito pela musicoterapia (Kim et al., 2008; Gattino et al., 2011). Alguns estudos têm indicado outras peculiaridades do processamento auditivo-musical principalmente ao que se refere à compreensão e expressão de sentimentos atribuídos à música (Lai et al., 2012). A percepção de sentimentos em expressões faciais é um dos grandes desafios para pessoas com TEA (Peterson et al., 2012). O conteúdo emotivo dessas expressões torna-se muitas vezes imperceptível para estes indivíduos. Todavia, a percepção de sentimentos como alegria e tristeza numa peça musical é processada da mesma forma nos Anais do X Simpósio de Cognição e Artes Musicais – 2014 indivíduos com TEA quando comparados com pessoas de desenvolvimento típico (Quintin et al., 2012). Em outras palavras, o entendimento de sentimentos num contexto musical torna-se mais claro para um sujeito com TEA do que a visualização de expressões faciais (Bhatara et al., 2010). O mesmo pode ser dito para a expressão de sentimentos. Muitas vezes as pessoas com TEA têm dificuldade para expressar através de gestos, expressões faciais e através da linguagem verbal o que sentem (Peterson et al., 2012). Entretanto, no contexto musical há uma manifestação de emoções mais evidente que permite muitas vezes que a música seja um facilitador de comunicação para estes indivídos (Quintin et al., 2011). Ainda, indivíduos com TEA possuem mais facilidade para memorizar a percepção de alturas sonoras em comparação com indivíduos típicos. Estes fatores descritos acima evidenciam ainda mais a possibilidade do uso da música para fins terapêuticos, como já realizado e evidenciado pelos estudos da musicoterapia (Kim et al., 2008; Gattino et al., 2011). Outra região de extrema importância para a compreensão do processamento auditivo- musical são os neurônios espelho. Estes estão associados ao processo de imitação e memória musical (Wan et al., 2010). Quando ouvimos uma música ou assistimos a execução de uma peça que sabemos tocar ou cantar, o nosso cérebro ativa áreas (neurônios espelho) com a intenção de tocar ou cantar mentalmente aquela canção que já foi aprendida num primeiro momento. Neste sentido, essa sobreposição de áreas relacionadas com prejuízos nos TEA e habilidades musicais, faz com que o sujeito com TEA estimule algumas áreas prejudicadas por outras vias (estímulos musicais) e dessa forma restabeleça algumas funções antes prejudicadas (Thaut et al., 2009). A imitação musical normalmente não está afetada nestes indivíduos. ! Considerações finais Diversas evidências apontam para um funcionamento auditivo-musical diferenciado em pessoas com TEA. No entanto, esse funcionamento precisa ser melhor explorado em estudos de ressonância magnética funcional em amostras maiores do que as já estudadas para a obtenção de evidências mais contundentes. Ao mesmo tempo, poucos estudos discutem as grandes capacidades musicais de autistas de alto funcionamento e esses estudos ainda precisam ser melhor avaliados para que se possa entender o que ocorre no sistema nervoso central destes indivíduos enquanto tocam ou escutam música. O que se pode afirmar é que a música causa um efeito único para os indivíduos com autismo e os resultados dos estudos Anais do X Simpósio de Cognição e Artes Musicais – 2014 apresentados neste manuscrito podem ser aproveitados para intervenções terapêuticas. ! Referências Amitai M, Peskin M, Gothelf D, Zalsman G.(2012). Autism spectrum disorders: updates and new definitions. Harefuah.151(3):167-70, 88. Bhatara A, Quintin EM, Levy B, Bellugi U, Fombonne E, Levitin DJ (2010). Perception of emotion in musical performance in adolescents with autism spectrum disorders. Autism Res.3(5):214-25. Ecker C, Suckling J, Deoni SC, Lombardo MV, Bullmore ET, Baron-Cohen S, et al. (2012). Brain anatomy and its relationship to behavior in adults with autism spectrum disorder: a multicenter magnetic resonance imaging study. Arch Gen Psychiatry. 69(2):195-209. Fatemi, S. H., Aldinger, K. A., Ashwood, P., Bauman, M. L., Blaha, C. D., Blatt, G. J., . . . Welsh, J. P. (2012). 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