6 Carta do IBRE Dezembro 2010 O modelo argentino não nos serve Os dois últimos anos foram caracterizados, na visão de alguns analistas, por certa inflexão na receita de política econômica adotada pelo Brasil desde 1999. O superávit primário caiu, o que fez sentido no pior momento da crise econômica global. No entanto, retirando-se o efeito contábil da operação que envolveu a capitalização da Petrobras, manteve-se em um patamar reduzido após o país retomar o crescimento em um ritmo próximo ao da plena utilização dos fatores. Na área cambial, introduziram-se controles para tentar conter a valorização da moeda. No anúncio da escolha do atual diretor de Normas, Alexandre Tombini, para a presidência do Banco Central, a nova equipe econômica de Dilma Rousseff prodigalizou-se em garantias de manutenção do chamado “tripé macroeconômico” — câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários que, no primeiro momento, estabilizaram e, posteriormente, promoveram a queda da dívida pública líquida. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, que permanecerá no cargo no novo governo, prometeu austeridade fiscal em 2011 e acenou para uma meta de superávit primário de 3,3% do PIB. E Tombini, por sua vez, disse que Dilma assegurou-lhe que a autonomia operacional do Banco Central será mantida. No entanto, essas notícias não são suficientes para tranquilizar os que desejam a manutenção do modelo macroeconômico bem-sucedido há mais de uma década. Afinal, na gestão prática cotidiana, a atual equipe econômica, muito parecida com a que estará no poder no próximo governo, tomou diversas decisões, especialmente na área fiscal, que podem ser lidas como desvios — mesmo que não dramáticos — do tripé macroeconômico. Ambiguidade Nesse contexto, artifícios contábeis tornaram ambíguo o conceito de superávit primário, um dos indicadores cruciais do tripé. Os empréstimos do Tesouro para o BNDES, por sua vez, expandiram a dívida bruta sem mexer na dívida líquida, comprometendo, dessa forma, outro termômetro fiscal importante para os analistas. Na verdade, ainda não há evidências de uma mudança dramática nos rumos da política econômica brasileira, nem de que esta venha de fato a ocorrer. Mas, a título de exercício, caberia uma análise de opções ao atual modelo. Não há aqui espaço para um exame exaustivo dessa questão. É mais útil, portanto, pensar o que poderia derivar concretamente da “flexilização” do tripé mencionada acima. Partindo-se das preocupações com a “excessiva” valorização do câmbio real, dos sinais de relaxamento fiscal e da ideia de que existe um caminho que possa ser aberto (e não concluído) com a queda dos Carta do IBRE 7 Dezembro 2010 juros, parece claro que, em se alterando o atual modelo, se tentaria caminhar para uma política econômica como a da Argentina. Semelhanças culturais e paralelismos da história econômica dos dois países reforçam essa tese. À primeira vista, a simples menção ao modelo argentino seria suficiente para afastar qualquer temor de que o Brasil trilhasse aquele caminho. Afinal, haveria uma percepção geral de que o país vizinho vem enfrentando nos últimos anos dificuldades econômicas e políticas muito maiores, e suas opções econômicas gozam de muito menos prestígio internacional, quando a comparação é feita com o Brasil. O problema, porém, é que aquela percepção pode não ser tão generalizada assim. Na verdade, quando se faz uma análise inicial do desempenho da Argentina desde 2003, o que se vê é um país com crescimento veloz, juros reais negativos e câmbio menos valorizado que o do real — como se pode observar, uma combinação que há de ter algum apelo para muitos críticos do atual modelo brasileiro. A Argentina sofreu um forte impacto da crise global, mas já se recupera e deve crescer 7,5% este ano e 4% em 2011, segundo as projeções do FMI. Por outro lado, o grande dano colateral da política econômica argentina, como é bem conhecido, é a inflação, que hoje supera a taxa de 20% ao ano, segundo consultores independentes (os índices oficiais são sabidamente manipulados e perderam a confiança dos analistas). Embora no front inflacionário as notícias não sejam animadoras, os simpatizantes do modelo argentino poderiam alegar que a realidade acabou se revelando menos catastrófica do que as previsões. Depois de alcançar 40% anualizados no início de 2003, a inflação recuou para menos de 5%, voltou a subir a 30%, em 2008, reduziu-se novamente, antes de voltar a subir. É um desempenho ruim, sem dúvida, mas não houve, pelo menos até agora, o retorno ao processo hiperinflacionário, como alguns anteviam. Objetivo Não é propósito desta Carta a avaliação cuidadosa do modelo argentino, embora a nossa convicção seja a de que sérios riscos e fragilidades ameaçam as perspectivas de médio e longo prazo da economia do país vizinho. O objetivo aqui é o de averiguar se, independentemente de suas qualidades, ou da falta delas, o caminho trilhado pela Argentina pode ser reproduzido no Brasil. Isso significa também avaliar até que ponto a tentação de buscar um caminho fácil Na verdade, para reduzir os juros reais e ainda não há desvalorizar o câmbio, sem evidências de enfrentar as dificuldades da política fiscal, poderá deuma mudança sestabilizar rapidamente a dramática nos economia brasileira — ainrumos da política da que a Argentina venha econômica resistindo em seu modelo há brasileira, nem alguns anos. de que esta venha Quando se analisa o dede fato a ocorrer. sempenho argentino desde a ruptura da conversibiliMas, a título de dade e o calote da dívida exercício, caberia externa em 2001 e 2002, uma análise de um primeiro ponto a se opções ao atual levar em conta é o altíssimo modelo grau de desorganização deflagrado pela crise. O PIB, que começou a cair desde 1998, por conta do esgotamento do modelo de câmbio fixo, teve uma queda total acima de 15% até o piso em 2002. O nível de 1998 só seria retomado em 2005. O fim da conversibilidade também provocou uma brutal desvalorização do câmbio nominal, que saiu de um para 3,5 pesos por dólar em menos de um ano. O imenso hiato do produto aberto pela contração econômica, porém, impediu que a megadepreciação tivesse um impacto inflacionário ainda maior. Por outro lado, o calote na dívida externa, que a reduziu a algo como 25% do valor original, 8 Carta do IBRE recolocou a Argentina num patamar razoável em termos de relação entre o endividamento e o PIB. O custo dessa decisão, é claro, foi alijar o país do mercado financeiro internacional. No curto e médio prazo, no entanto, o não pagamento da dívida deu sobrevida ao novo modelo argentino.1 Boa parte dos aspectos positivos do desempenho argentino após a crise deveu-se ao esperado processo de recuperação que se seguiu ao grande desastre. Além da própria atividade econômica, indicadores de desemprego, desigualdade e pobreza que atingiram níveis alarmantes em 2002 e 2003, recuperaram-se rapidamente quando a tempestade amainou. No momento em que a fase mais crítica foi superada, houve intensa sensação de alívio e de melhora socioeconômica na população. Esse fato, por sua vez, ajudou a convalidar politicamente as iniciativas do presidente Néstor Kirchner e de sua sucessora, Cristina Kirchner. Dezembro 2010 e do Leste Asiático. Assim, os termos de troca argentinos, até mais que os brasileiros, tiveram um fenomenal ganho a partir de 2003, facilitando a gestão das contas públicas e externas. Opções De posse de todos esses trunfos, o governo Kirchner teve diante de si duas opções. A primeira seria o caminho mais árduo de reconquistar a credibilidade internacional, mantendo as duras condições de renegociação da dívida (que eram inevitáveis), mas controlando a inflação e respeitando os contratos. Ele escolheu, porém, a via que maximizou o crescimento no curto prazo, em prejuízo do combate à inflação, ao tirar a independência do Banco Central, congelar tarifas de serviços públicos e estimular a economia com juros reais baixos ou até negativos. A outra face do modelo foi o esforço constante para tentar Partindo-se das preocupações com a “excessiva” impedir a valorização real do valorização do câmbio real, dos sinais de peso, por meio do controle da relaxamento fiscal e da ideia de que existe um taxa de câmbio nominal. A mocaminho que possa ser aberto (e não concluído) com tivação era clara: a Argentina a queda dos juros, parece claro que, em se alterando não poderia operar com déficit o atual modelo, se tentaria caminhar para uma em conta-corrente, dada a sua política econômica como a da Argentina exclusão do mercado financeiro internacional. Um último lance de sorte, que deu novo fôlego às escolhas macroeconômiMas outros fatores também contribuíram cas argentinas, foi — paradoxalmente — a para fortalecer a retomada argentina. A própria própria crise global de 2008/2009. Como já ruptura da camisa de força cambial deu novo mencionado, o país foi muito abalado, mas oxigênio à economia do país — como aconteceu está em franca recuperação, como boa parte no Brasil depois de 1999 —, aumentando a comdos produtores de commodities. E a crise repetitividade das exportações manufatureiras. Esse freou a aceleração inflacionária, que atingiu revigoramento, por sua vez, fez aflorar os efeitos quase 30% ao ano, na medida trimestral, em positivos defasados das mudanças institucionais meados de 2008, recuando para menos de 15% do governo Menem, como a reforma da Previno final de 2009. dência e a privatização. Essa pausa no processo inflacionário ajudou Além disso, o fim da conversibilidade foi seguitambém no front cambial, já que é justamente do de muito perto pela explosão dos preços das a alta dos preços internos que corrói o efeito commodities, na esteira da decolagem chinesa Dezembro 2010 real da desvalorização nominal perseguida pelo governo. Com a crise, houve um efeito conjunto de desvalorização nominal e desaceleração da inflação, que contribuiu para reconstituir a competitividade argentina, que vinha sendo lentamente erodida pela subida dos preços desde 2003. Como a lógica econômica é implacável, a tendência simultânea à inflação e à valorização real da moeda já se instalou novamente a partir de 2010, com a recuperação da economia do país. A melhora dos termos de troca vem empurrando o peso para cima, e, à medida que as autoridades econômicas mantêm o nível do câmbio nominal, a inflação encarrega-se de apreciar o câmbio real. Figurino Carta do IBRE 9 de 2003 —, com as longas avenidas da reutilização dos fatores ociosos e da revalorização cambial, que evitaram até agora a implosão do modelo econômico do país vizinho. E há, finalmente, a dimensão política. Vindo dos anos terríveis de 1998 a 2002, a população argentina agarrou-se à plataforma econômica do casal Kirchner como um afogado a um destroço flutuante. Comparada à queda dramática do PIB e ao caos sociopolítico-econômico pós-calote (presidentes caíram em sucessão), a combinação de crescimento rápido com inflação pareceu aos argentinos uma opção mais atraente. No Brasil, depois dos gloriosos anos de crescimento com baixa inflação que caracterizaram a segunda metade do governo Lula, uma receita que trará de volta a disparada de preços e a instabilidade macroeconômica, além de prejudicar o prestígio internacional do país, Mesmo assim, como já observado, a Argentina ainda consegue exibir uma combinação de câmbio mais desvalorizado e juros mais baixos, quando Depois dos gloriosos anos de crescimento com comparada ao Brasil. É uma ilusão, baixa inflação que caracterizaram a segunda porém, julgar que possamos adotar metade do governo Lula, a receita argentina esse figurino. A sua sobrevivência que traria de volta a disparada de preços e a por vários anos no país vizinho instabilidade macroeconômica, não faria sentido deriva especificamente do fato de para a economia brasileira que se partiu de uma subutilização significativa dos fatores econômicos e de haver um espaço enorme para tem toda a aparência de uma má escolha. A a revalorização da moeda. Nos dois casos, opção argentina, na verdade, não faz sentido tratou-se de poderosos fatores de contenção para a economia brasileira. inflacionária que, não obstante terem sido acionados, ainda assim permitiram que a escalada de preços atingisse a perigosa situação hoje encontrada na Argentina. 1 Em contraste, o Brasil atual vive uma siO calote foi negociado em 2005. As estatísticas oficiais não tuação muito próxima ao pleno emprego dos apresentam o quanto não foi pago. A dívida está contabilizada fatores, e o câmbio já está em níveis muito integralmente com uma forte queda na virada de 2005 para valorizados. Uma política de queda forçada 2006. A redução que aparece na estatística nessa virada é de dos juros e de fixação nominal do real em nível 32,4% de US$ 191 bilhões para US$ 129 bilhões ou 70,5% do PIB. mais desvalorizado certamente não contaria, Em 2009, a dívida fechou em US$ 147 bilhões ou 47% do PIB. A no Brasil de hoje — como contou na Argentina dívida não reconhecida é de US$ 30 bilhões ou 9,6% do PIB.