Insulinas Análogas - Nota de Ensino

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CASOTECA DIREITO GV – PRODUÇÃO DE CASOS 2011
Judiciário e fornecimento de insulinas análogas pelo sistema público de saúde:
direitos, ciência e políticas públicas1
NOTA DE ENSINO
1. Contextualização do Caso:
O caso apresentado está contido no tema maior da Judicialização de políticas
públicas, especialmente relacionadas ao direito à saúde. Contrapõem-se os pleitos
individuais e coletivos dos cidadãos pela efetivação de políticas que concretizem este
direito e as medidas tomadas pela própria Administração, dentro de seus limites
financeiros e técnicos, que buscam, em última análise, a maior efetividade das
políticas públicas elaboradas.
Mais especificamente, coloca-se este estudo pela perspectiva do papel do Poder
Judiciário em meio a este embate, analisando o conteúdo, limites e desafios de sua
atuação.
Pretendeu-se avaliar o problema da forma mais ampla possível, não se atendo a
casos específicos, mas buscando demonstrar brevemente as diversas perspectivas
que rodeiam o tema. Nesse sentido, somente considerações acerca do que se tem
passado no todo podem clarear a maior parte das questões envolvidas no tema da
Judicialização do direito à saúde, algo que tem chamado a atenção não só da
comunidade jurídica, como dos médicos, da sociedade civil e dos governantes.
O crescente número de pedidos relacionados à saúde no Judiciário tem provocado
consequências de grande porte, que extrapolam a concessão deste ou daquele
medicamento, mas ensejam um debate sobre o papel do juiz na promoção do direito a
saúde e como isso pode ou não representar uma intervenção do Poder Judiciário nas
escolhas do Executivo, cristalizadas em políticas públicas.
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Caso didático produzido em 2011 para a Casoteca DIREITO GV, por Daniel Wang, Denise Franco,
Fernanda Terrazas, Mariana Vilella e Natália Pires.
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Partindo desse panorama mais genérico nosso caso concentra-se nos pedidos
judiciais de insulinas. Os pedidos de insulinas, além da relevância numérica que
possuem no cenário geral da judicialização, trazem pontos interessantes, envolvendo
questões maiores de como tratar a diabetes. O Poder Público já possui uma política de
concessão de medicamentos e insumos para esta doença, prioritariamente por meio
das insulinas denominadas humanas. O que se tem percebido, contudo, são inúmeros
pedidos ao Judiciário não das insulinas já fornecidas, mas de uma modalidade mais
evoluída e mais cara, não incorporada à política pública e cujos benefícios ainda
geram controvérsias científicas acerca da sua efetividade: as chamadas insulinas
análogas.
Assim, apoiados em considerações tanto médicas, quanto do âmbito da gestão pública
da Saúde propomos aos alunos um debate jurídico amplo acerca de como os juízes
tem recebido e julgado os milhares de pedidos de insulinas análogas que recebem.
2. Resumo do Caso:
A Lei Federal 11.347/06, em seu artigo 1º, determina que todos os pacientes
portadores de diabetes terão direito a receber gratuitamente do Sistema Único de
Saúde todos os medicamentos e insumos necessários para seu tratamento. A mesma
lei estabeleceu também que cabe ao Ministério da Saúde selecionar os medicamentos
que serão adquiridos pelos gestores de saúde para fornecimento gratuito aos
pacientes (art. 2º).
A despeito da existência dessa política, reclamam os pacientes que nas listas de
medicamentos produzidos pelo Ministério da Saúde constam apenas as insulinas
regulares e NPH, ficando excluídas da política as chamadas insulinas análogas.
Pacientes e médicos que defendem o uso das insulinas análogas alegam que seu uso
diminui casos de hipoglicemia, além de ser mais conveniente, o que aumentaria a
adesão ao tratamento e diminuiria a quantidade de problemas relacionados ao
diabetes, economizando outros gastos pelo sistema de saúde.
O fornecimento dessas insulinas tem sido a principal reivindicação de associações de
pacientes de diabetes que, entre outras estratégias de atuação, fazem intenso uso de
ações judiciais contra o poder público, tanto na forma de ações individuais em que se
pede o fornecimento dessas insulinas para um indivíduo, quanto por meio de ações
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coletivas movidas em parceria com o Ministério Público e a Defensoria Pública, para
exigir a inclusão das insulinas análogas na lista oficial de medicamentos regularmente
e gratuitamente oferecidos pelo Sistema Único de Saúde.
Atualmente, dentre as ações que demandam fornecimento e tratamento médico, as
insulinas análogas são uns dos produtos mais pedidos em diversos estados.
O
grande número de pedidos judiciais gerou muitos efeitos. Além das vitórias de
pacientes individuais nos tribunais, alguns estados já estão fornecendo as insulinas
análogas em suas listas de medicamentos, apesar da recusa do Ministério de Saúde
de incluí-las na política nacional de combate ao diabetes.
A decisão reiterada do Ministério da Saúde e da maioria dos estados de não fornecer
as insulinas análogas fundamenta-se no argumento de que não há evidências
científicas de que as mesmas reduzam a mortalidade e a morbidade dos pacientes,
sendo sua única vantagem o uso mais cômodo (Relação Nacional de Medicamentos
Especiais, 2008). Outra razão alegada seria o fato de que as análogas são muito mais
caras que as insulinas humanas e a NPH, regularmente oferecidas pelo sistema
público, podendo, inclusive, chegar a um valor 13 vezes maior.
3. Temas e Possíveis Questionamentos
São sugeridos como temas e questionamentos à aula e aos debates sobre o material:
(1) O debate em torno do fornecimento de insulinas análogas pelo sistema público de
saúde tem como pano de fundo algumas questões fundamentais sobre o papel do
Judiciário na proteção do direito à saúde, bem como sobre os limites de sua atuação
na revisão de decisões administrativas. Diante disto, sugere-se questionar junto aos
alunos: A quem cabe decidir sobre quais tratamentos devem ser fornecidos pelo
sistema público de saúde aos cidadãos, aos juízes, aos médicos dos pacientes ou aos
gestores públicos? O direito à saúde inclui acesso irrestrito a qualquer tratamento que
o paciente possa precisar? Como o Judiciário deve ponderar as necessidades de
cada indivíduo com aquelas da população? Como decidir quando não há consenso
científico sobre os benefícios de um tratamento?
Abordagem sugerida a esta questão para debate com os alunos:
Sugere-se que se leve em conta para o debate uma visão crítica sobre a
dinâmica da separação de poderes. A inclusão de políticas públicas na Constituição
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tem progressivamente levado ao Judiciário questões que extrapolam o conflito jurídico
clássico entre pretensões delimitadas e individuais, função para o qual ele foi
originariamente incumbido. Aos alunos pode ser proposto discutir esse novo papel do
Judiciário tendo por base questões como a legitimidade de suas decisões nesses
casos e os limites que a capacidade técnica do juiz impõe quando ele é confrontado
com escolhas de gestão de políticas públicas, inclusive sugerindo e questionando
mecanismos que podem permitir ao Judiciário ampliar sua cognição, como as
comissões técnicas de auxilio, as audiências públicas etc.
(2) As organizações de pacientes escolheram tutela jurisdicional como uma das
principais vias para levar adiante suas demandas. O Judiciário tem realmente se
tornado mais acessível para participação de cidadãos nas políticas públicas?
Abordagem sugerida a esta questão para debate com os alunos:
Aqui se propõe um debate que questione a legitimidade do Judiciário dentro do
processo decisório democrático para rever, ampliar ou modificar políticas públicas
idealizadas pelo legislador e pela administração pública. Sugere-se que se discuta se
existe desprestígio por parte do Judiciário em relação às escolhas feitas pelo
legislador, consubstanciadas em decisões tomadas pelo Executivo, argumentando se
isso pode ser negativo em termos de dinâmica institucional. Também é possível
trabalhar com decisões judiciais encontradas pela pesquisa empírica em que os
desembargadores culparam o Estado pelas falhas na política pública de saúde,
concedendo a insulina análoga por entenderem que os indivíduos não seriam
culpados pela má-gestão estatal. Importante questionar se o Judiciário é de fato um
local de participação democrática dos cidadãos junto às políticas públicas,
argumentando se existe um acesso irrestrito desta seara a todos os cidadãos. Um
caminho de debate seria questionar o número de ações propostas pelo Ministério
Público ou pela Defensoria Pública em meio às ações pesquisadas, questionando se
aqueles que chegam ao Judiciário são de fato os que mais precisam e se as decisões
tomadas individualmente pelos juízes levam em conta questões distributivas.
(3) Foi demonstrado pela pesquisa empírica que as ações individuais pedindo
insulinas análogas têm índice maior de êxito que ações coletivas. Vale a pena impetrar
ações coletivas, cujos efeitos são mais amplos, mas que possuem menor chance de
vitória?
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- Em uma reflexão sobre o papel do juiz perante a política pública, questiona-se: Ele
pode modificá-la ou ampliá-la por meio de uma decisão individual? Ou até antes disso,
a decisão individual representa uma ingerência externa na política pública?
- Qual a diferença dos pedidos individuais para um pedido amplo, em ação coletiva,
em que se pede a criação da política em si, passando o governo a fornecer o
medicamento a todas as pessoas? Nesse caso há o mesmo tipo de ingerência?
Deveria haver diferenças na fundamentação da decisão?
Abordagem sugerida a esta questão para debate com os alunos:
Para debater esse ponto recomenda-se a leitura da parte final do relatório (anexo X)
em que são apresentados os modelos de decisões ideais. Uma sugestão é estimular o
aluno a pensar o porquê dessa diferença de tratamento para pretensões individuais e
coletivas. Existem algumas possibilidades de resposta a esta diferença de tratamento.
Por exemplo, o apelo emocional de um pedido individual, diante do qual o juiz acaba
proferindo uma decisão por sensibilizar-se com os riscos de saúde e de vida alegados
pelo individuo, obrigando-se a fazer todo o possível para assegurar seu tratamento em
razão de um dever moral imediato, no fenômeno denominado pela doutrina de “the
rule of rescue”. Outra explicação a este fenômeno que pode ser argumentada é a
dificuldade que o juiz possui em observar impactos orçamentários significativos
quando se depara com uma demanda individual, enquanto em demandas coletivas os
impactos financeiros ao Estado aparecem de forma mais visível.
(4) Deve o Direito e as instituições judiciárias admitir análises de custo-benefício na
tutela de direitos?
Especialmente diante do quadro de incerteza científica sobre a efetividade e os
benefícios das insulinas análogas em relação às comuns, tem se mostrado difícil para
o Estado sedimentar uma política pública concedendo as análogas, uma vez que
implicaria em um aumento significativo dos custos para um tratamento que, de certa
forma, já é fornecido.
É preciso, portanto, avaliar se os benefícios advindos das
insulinas análogas justificam os gastos adicionais com o seu fornecimento.
Esse tipo de análise torna o debate sobre a incorporação de insulinas análogas no
sistema público de saúde ainda mais complexo. Não basta apenas saber se uma nova
tecnologia em saúde é mais eficaz e segura, mas é preciso também avaliar os custos
econômicos e sociais de introduzi-la no rol de tratamentos a serem oferecidos aos
pacientes.
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Diante disso, pergunta-se:
- Deve o sistema público de saúde levar em consideração os custos trazidos pela
incorporação das insulinas análogas no sistema público de saúde?
- Ao apreciar os pedidos, os juízes devem ou não considerar os custos de suas
decisões ?
- A judicialização é um processo racional de distribuição de recursos?Como fica o
direito das pessoas que também poderiam utilizar essas insulinas mais modernas,
mas, por diferentes razões, não acessam a justiça?
Abordagem sugerida a esta questão para debate com os alunos:
Neste ponto, é possível questionar o papel do Judiciário na alocação de recursos
escassos, discutindo se o Judiciário é capaz de elaborar alterações orçamentárias e
administrativas coordenadas e eficientes. Nesse sentido, pode ser suscitado o quanto
custam as insulinas análogas em relação às comuns, discutindo que todas as insulinas
análogas, são mais caras que as humanas, comumente fornecidas pelo Estado, de
modo que sua concessão judicial realoca recursos escassos e distribuídos de forma
coletiva ao cumprimento de decisões individuais. Pode ser discutindo se aqueles que
acessam a Justiça foram ou não as escolhas prioritárias da política pública idealizada
e se as decisões a seu favor reorganizam os recursos financeiros do Estado de forma
justa em termos distributivos.
(5) Quem deve ter a palavra final em caso de divergência científica: o médico do
paciente ou o gestor público?
Abordagem sugerida a esta questão para debate com os alunos:
Nesse caso sugere-se que se questione as diferentes perspectivas que estão em jogo
para a escolha do medicamento pleiteado junto ao Judiciário. A maior parte das
decisões encontradas fundamenta-se na escolha do médico particular, que assim
entendeu as análogas como melhor escolha ao tratamento do paciente. No entanto, é
importante lembrar que o papel que se espera do médico, ao receitar um
medicamento, é a preocupação com o maior bem-estar possível do seu paciente e não
com os custos do tratamento ou mesmo com a gestão de políticas públicas. O gestor,
por outro lado, ao escolher a concessão de uma insulina em relação à outra leva em
consideração outras questões, tais como o grau certeza científica acerca da
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efetividade do medicamento, que varia em meio a comunidade médica em relação às
insulinas análogas, como foi demonstrado, e os custos da incorporação deste
medicamento ao sistema de saúde, o que pode vir a inibir, inclusive, qualquer ganho
de efetividade, ainda que comprovada.
(6) Não há consenso científico sobre a efetividade das insulinas análogas quando
comparadas com as regulares, que são fornecidas normalmente. Uma parcela da
literatura médica chega a afirmar que o único benefício comparativo que as análogas
podem trazer é a maior comodidade no tratamento, o que implica em maior adesão
dos pacientes. Questiona-se, nesse sentido:
- A maior comodidade de um medicamento é suficiente para substituir uma política
pública?
- Quem é responsável pela adesão ao tratamento? O Estado ou o paciente?
- O Estado, ao fornecer, deve se preocupar com a maneira como as pessoas estão
utilizando os medicamentos ou seu papel é somente o de fornecê-los?
Abordagem sugerida a esta questão para debate com os alunos:
Nesta questão espera-se que os alunos questionem os limites da atuação estatal e as
prioridades que ele deve traçar diante da complexidade de interesses na gestão de
políticas públicas. Espera-se que seja perquirido se o Estado deveria preocupar-se
com a comodidade ou apenas fornecer o essencial, visualizando uma atuação mais
ampla de sua política, argumentando até onde o Estado deve ir quando resta em jogo
a vida e saúde das pessoas. Caso o debate pareça convergir sobre a necessidade do
Estado de se preocupar tanto com o fornecimento quanto com a adesão ao
tratamento, sugere-se questionar de modo inverso, acerca dos limites dessa atuação,
não só em termos de distribuição de recursos, mas voltando-se até para exemplos
reductio ad absurdum em que o Estado coagiria seus cidadãos a aderir ao tratamento
por meio da insulina.
(7) Foi identificado que seis estados da Federação decidiram por uma política de
fornecimento de insulinas análogas. Questiona-se: Esta decisão aumenta a pressão
sobre o governo federal e os estados que não as fornecem?
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- Enquanto não houver uma política federal, em relação aos demais Estados que não
decidiram pelo fornecimento: isso não representaria uma desigualdade no acesso à
Saúde?
Abordagem sugerida a esta questão para debate com os alunos:
Nesta questão, espera-se que os alunos sejam capazes de questionar até que ponto a
política de saúde deve ser gerida pelos Municípios, Estados e União, de forma
separada ou conjunta, trazendo para o debate aspectos do Federalismo brasileiro e da
distribuição de competências constitucionais. Sugere-se que seja proposto aos alunos
avaliar os impactos orçamentários que um determinado Estado pode vir a ter quando
incorpora as insulinas análogas a sua política de fornecimento de medicamentos
enquanto os demais Estados vizinhos não o fazem. Sugere-se questionar a
possibilidade de ações de indivíduos domiciliados em um Estado que não possui esta
política serem propostas em outro Estado que realizou a incorporação, em um
fenômeno conhecido como “efeito carona”, em que um ente da federação arroga para
si uma competência e, neste caso, um custo ao prover determinada política, mas
acaba por sofrer com uma “invasão” de demanda por esta política vinda de outros
entes da federação, não idealizados pela política.
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