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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Problemas cotidianos e infarto agudo do miocárdio (IAM):
conferindo sentido à experiência de enfermidade.
Salvador, 2008
Jucy-Lêno Oliveira
Problemas cotidianos e infarto agudo do miocárdio (IAM):
conferindo sentido à experiência de enfermidade.
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Ciências Sociais.
Orientação: Profa. Dra. Iara Souza.
Salvador, 2008
2
AGRADECIMENTOS
Sou grato pela oportunidade de estudar a:
Universidade Federal da Bahia
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
Agradeço pela colaboração nesta pesquisa ao:
Instituto do Coração da Bahia - INCOBA
Centro de referência em doenças cardiovasculares Adriano Ponde – CRDC
A todas as pessoas pós-IAM entrevistadas, inclusive as que não estão mais entre
nós, minha estima e gratidão.
Aos funcionários do INCOBA e do CRDC pela colaboração e disponibilidade que
muito auxiliaram na concretização deste estudo.
À FAPEX pela concessão da bolsa de estudo
A todos os professores com os quais tive o privilégio de conviver
Profa. Dra. Iara Souza, orientadora, minhas reverências são para sempre.
Reverencio igualmente o grupo ECSAS – Núcleo de Estudos em Ciências Sociais e
Saúde: professores Paulo César Alves, Miriam Rabelo, Iara Souza, Gabriela Hita,
Mark Carvalho, Gessé, Luis Correia, bolsistas e participantes. Com todos vocês
aprende-se a importância de exercitar cotidianamente a concentração intelectual, a
seriedade de conduta e a tranquilidade emocional em um ambiente sensível e terno
entre amigos. Obrigado pelo abrigo.
E ao professor Igor Rossoni pela cuidadosa revisão do texto final deste trabalho.
3
RESUMO
Esta investigação objetiva compreender como pessoas vitimadas por infarto agudo
do
miocárdio
(IAM)
conferem
sentido
à
experiência
da
enfermidade.
Especificamente, analisa-se – entre o adoecer e a vida cotidiana – algumas relações
estabelecidas por
pós-IAM, visando a evidenciar
concepções de causas,
descrições de crises cuidados e mudanças adotados, além de projetos futuros.
Para atingir ao objetivo efetivou-se 33 entrevistas roteirizadas com pessoas em
reabilitação junto ao Instituto do
Coração da Bahia (INCOBA) e
Centro de
Referência em Doenças Cardiovasculares Adriano Pondé (CRDC) em Salvador,
Bahia.
ABSTRACT
The objective of this dissertation is understand how the person after suffer a Cardiac
Diseases (AIM) give an experience signification. It shows some relations established
for the person after-AIM between the sick and normal life, detaching causes for sick,
definition of AIM crisis, cares actions, besides changes and future projects of life. To
obtain the purposely objective were realized 33 interviews with the people in hospital
treatment at Bahia Heart Institute or at Reference Cardiac Diseases Center Adriano
Pondé in Salvador, Bahia.
4
“Eu sou eu e minha circunstância”
(Ortega & Casset apud MACHADO NETO, A. L. 1977, p 138)
5
SUMÁRIO
Apresentação__________________________________________ 8
Introdução____________________________________________10
Capitulo I – Horizonte teórico_____________________________24
Capitulo II – Pesquisa e procedimentos metodológicos____________38
•
Concepção da pesquisa____________________________________38
•
Campos de pesquisa______________________________________ 39
•
Instituto do Coração da Bahia (INCOBA)_______________________39
•
Centro de Referência em DCV Adriano Pondé (CRDC)____________41
•
Método de trabalho________________________________________43
•
Pessoas, entrevistas e dinâmica de campo_____________________43
•
Critérios de seleção de pessoas para entrevista__________________45
•
Consentimento Livre e Esclarecido____________________________46
•
Roteiro de entrevista_______________________________________47
•
Modelo de organização dos relatos das entrevistas_______________49
Capitulo III: relatos de causas e crises de IAM____________________51
•
Relato Sra. Analí__________________________________________54
•
Relato Sr. Valdo__________________________________________57
•
Relato Sr. Ubiracy_________________________________________61
•
Relato Sr. Vieira Néri_______________________________________64
•
Relato Sr. Marom_________________________________________67
•
Relato Sr. Maragojipe______________________________________70
Relatos de crise de IAM_________________________________75
Capitulo IV: Relatos de cuidados, mudanças e projetos___________80
Prescrições de profilaxia-reabilitação ao IAM relatadas___________80
6
•
Relato Sra. Leona________________________________________81
•
Relato Sr. Félix__________________________________________81
•
Relato Sra. Analí_________________________________________81
•
Relato Sr. Valdo_________________________________________82
•
Relato Sr. Maragojipe_____________________________________82
Cuidados, mudanças e projetos futuros______________________84
• Relato de cuidados, mudanças e projeto Sr. Félix_______________85
•
Relato de cuidados, mudanças e projeto Sr. Maragojipe._________86
•
Relato de cuidados, mudanças e projeto Sra. Leona_____________87
Capítulo V – Considerações finais_____________________________90
Anexos_____________________________________________________95
•
Consentimento livre e esclarecido___________________________95
•
Cadastro no SISNEP/MS__________________________________97
•
Roteiro de entrevista_____________________________________99
Referências bibliográficas_____________________________________101
7
Apresentação
O presente estudo “Problemas cotidianos e infarto agudo do miocárdio (IAM):
conferindo sentido à experiência de enfermidade” vincula-se ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia
da UFBA e objetiva investigar como pessoas em reabilitação se relacionam com
o adoecer e a nova realidade cotidiana que se obrigam a vivenciar, enfatizando-se
causas, descrições de crises, cuidados, mudanças adotadas após o IAM e
aventamentos de projetos futuros.
Visando a concretizar o objetivo proposto, realizou-se entrevistas roteirizadas com
pessoas – após alta hospitalar – em tratamento médico ambulatorial no Instituto
do Coração da Bahia (INCOBA) e no Centro de Referência em Doenças
Cardiovasculares Adriano Pondé (CRDC), em Salvador. Com o fito de ampliar os
dados em análises ainda foram conferidas palestras e conversas entre os
profissionais vinculados às referidas unidades municipais de saúde.
Em termos operacionais, o trabalho de pesquisa desenvolve-se em cinco
capítulos.
Na introdução que os precedem, expõe-se um panorama quantitativo das
doenças cardiovasculares (DCV) incluindo notas sobre fatores de risco;
prescrições de reabilitação-profilaxia ao IAM; indicações médicas pré e pósoperatória, além de também apresentar considerações a respeito da ideia de
adesão ao tratamento na área da saúde.
8
No primeiro capítulo – objetivado ao horizonte teórico – versa-se acerca da
experiência de enfermidade; do cotidiano; das ações; do estoque de
conhecimentos; de normalidades; projetos e práticas.
No segundo, trata-se dos procedimentos metodológicos vinculados à concepção
da pesquisa propriamente dita ao atentar-se para descrições dos campos de
coleta de dados; critérios de seleção de pessoas entrevistadas; determinação de
roteiro de entrevistas; consentimento livre e esclarecido; notas sobre o trabalho de
campo e modelo de organização dos dados.
No capítulo terceiro, apresentam-se relatos de causas e de descrições das crises
de IAM.
No quarto, apreciam-se os relatos de cuidados, mudanças e projetos futuros das
pessoas pós-IAM. Todas, obviamente, terão nomes fictícios neste trabalho,
visando salvaguardar as respectivas privacidades.
Fecha-se o processo investigativo, no quinto capítulo, ao tecer-se considerações
de natureza conclusiva a respeito do tema observado ao longo do estudo.
Salienta-se, ainda, a inclusão de três textos em anexos: consentimento livre e
esclarecido; cadastro do projeto no SISNEP/MS e roteiro de entrevista.
9
Introdução
A Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde
(OMS/OPAS, 2003) indicam as doenças crônicas não-transmissíveis como as
maiores causadoras de mortes e inaptidão de pessoas no mundo. Elas
representam 59% dos 56,6 milhões de mortes anuais e 45,9% da carga global de
doenças.
A
OMS/OPAS
categoriza
como
“agravos
não-transmissíveis”:
doenças
cardiovasculares (DCV)1, diabetes, câncer, acidente vascular cerebral (AVC),
doenças respiratórias e apontam como fatores de risco para tais enfermidades
descontrole na taxa de colesterol;, HAS2; tabagismo; obesidade; consumo de
álcool; estresse, entre outros. Portanto, uma das diretrizes da OMS/OPAS para
reduzir a ocorrência refere-se às mudanças de hábitos das pessoas relativos aos
fatores de risco.
Em torno de 16,6 milhões de mortes anuais devem-se às DCV, com ênfase nas
cardiopatias e nos AVC. A cada ano, infartos e derrames conduzem a óbito 12
milhões de pessoas, sendo 7 milhões por cardiopatias isquêmicas e 5 milhões por
AVC. Porém, 80% das doenças coronárias, 90% de diabetes tipo 2 e 1/3 de
cânceres seriam minimizados se houvesse mudanças de hábitos pessoais nos
comportamentos tidos pela biomedicina como fatores de risco às DCV.
1
As DCV são doenças que alteram o funcionamento do sistema circulatório, constituído pelo
coração, vasos sanguíneos (veias, artérias e capilares) e vasos linfáticos. O sangue é bombeado pelo coração
e circula pelos vasos sanguíneos irrigando os tecidos do corpo. (Arquivos virtuais da SBC, 2003). Neste
estudo, embora tendo-se ciência da diversidade de tipos das DCV, focaliza-se uma das mais abruptas e
violentas: o infarto agudo do miocárdio (IAM). Nesse sentido, não se desprezam causas, severidade,
sintomas e tratamentos para análise mais profunda e ampla dessas enfermidades.
2
A Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) é fator de risco determinante, vez que – de acordo com
estudo do CNPq/UFRJ/92 - afeta de 11 a 20% dos adultos. Sabe-se que 85% dos pacientes com AVC e 40 a
60% dos pacientes com IAM apresentam HAS associado.
10
O quadro global de vítimas por doenças revela cifra de 56.554.00 milhões de
óbitos no mundo (OMS/OPAS 2001). Referente a este montante, as doenças nãotransmissíveis perfazem 33,1 milhões; ou seja: 58,5% do total de mortes. Destas,
as DCV são responsáveis por 16,6 milhões de óbitos/ano. Dado que representa
aproximadamente 1/3 do total de mortes. Ademais, 80 a 86%, dos casos de DCV
ocorrem em países com média ou baixa renda, estimando-se que em 2010 serão
as primeiras causas de mortes nos países em desenvolvimento. Deste modo, a
OMS/OPAS sugere constatar que não existem fronteiras geopolíticas, étnicas e
de gênero para o crescimento das DCV.
No caso do Brasil, quando se pensa em números de óbitos e taxas de
mortalidade por tais causas, deve-se considerar a subenumeração de óbitos com
a qual o Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM-MS)
trabalha. Todavia, esse sistema abrange 82% dos registros de mortes ocorridos
no país no ano de 1999. O “Anuário Estatístico de Saúde do Brasil de 2001”
informa uma “transição epidemiológica” no perfil de mortalidade do brasileiro,
constatando a diminuição da mortalidade infantil por doenças infecciosas e um
aumento gradual de mortes por causas crônico-degenerativas. Indica – ainda para
o ano de 1999 – 938.658 óbitos, ou seja, uma taxa bruta de 6,8 mortes por
mil/hab. Ademais, tem de se considerar que a taxa de causas de mortes mal
definidas é de 15%, com a região nordeste do Brasil apresentando 30%. Ainda
sobre esta região, o estado o Maranhão apresenta uma taxa de 40% e Paraíba
53%. Algo que pode indicar que a subenumerção pode ocultar casos de DCV que
não são contabilizados pelos órgãos oficiais.
No Brasil a taxa de mortes por doenças do aparelho circulatório é de 32%, sendo
11
a primeira causa. As neoplasias com 15% e doenças do aparelho respiratório com
11%. Completa-se a transição com doenças infecciosas e parasitárias de 9% para
6%, e de 7% para 5% as afecções perinatal nas últimas duas décadas.
Paralelamente, os números das DCV na população brasileira mostram em torno
de 300 mil/ano no decorrer da década de noventa (SIM-MS, 200), evidenciando
que os casos dessas doenças estão crescendo no Brasil e no mundo.
A Secretária de Saúde do Estado da Bahia (SESAB) registra 6.122 infartos agudo
do
miocárdio
(IAM)3,
para
os
anos
noventa.
Conquanto,
observando
conjuntamente outras doenças do aparelho circulatório como hipertensão
essencial primária, IAM, insuficiência cardíaca, doenças hipertensivas, AVC e
arritmias – acrescentando-se as categorias estatísticas da SESAB denominadas
“outras doenças do coração” e “outras doenças isquêmicas do coração” – aferese um total próximo de 55.863 casos de doenças relacionadas ao coração.
(Anuário. SESAB, 1999).
Conforme referido, a posição mais recente da biomedicina sobre as DCV, as
define como um conjunto de doenças causadas – em grande medida – por
“fatores de riscos” como a hipertensão sistêmica arterial (HAS), dislipidemia,
colesterol
alto,
tabagismo,
diabetes
mellitus,
sedentarismo,
obesidade,
hereditariedade e estresse. Contudo, Alves (1997, p. 4) observa que
...embora algumas vezes confundido com o conceito de ‘causa’, fator de risco é
usualmente tomado ou comparado como ‘indicador’, isto é, como uma variável
epidemiologicamente demonstrada.
3
O infarto agudo do miocárdio (IAM), primariamente, é a criação de necrose miocárdica, devido,
comumente, a um desequilíbrio crítico entre provisão de oxigênio e demanda do miocárdio. Isto é resultado
de placas que rompem e formam trombos em um vaso coronário resultando em redução de sangue para uma
porção do miocárdio (Arquivos virtuais da SBC, 2003).
12
Assim, os estudos biomédicos (como a epidemiologia) tendem a evidenciar a
prevalência da morbimortalidade dessas doenças relacionando-as a fatores como
sexo, classes sociais etc; ou a investigações de casos modelos de controle,
associando-os aos fatores de risco (Helman, 1994, apud ALVES, 1997). Nesse
aspecto:
a totalidade de vida, modos de existência, atitudes e comportamentos individuais”
não são devidamente considerados nos estudos centrados em fatores de risco
(Alves, 1997, p. 4).
Prontamente, é de se esperar que o modelo biomédico de cuidado às DCV
aponte alguns determinantes profiláticos e reabilitadores – como mudanças de
atividades e comportamentos que possam contribuir para a ocorrência das DCV –
no sentido de enfrentar essas patologias. Entretanto, as estatísticas oficiais
mostram que os modelos de tais intervenções visando a diminuirem os casos
dessas doenças não surtem os resultados esperados. Logo, OMS/OPAS (2003)
recomenda que os modelos de estudos, à profilaxia, tratamento e reabilitação às
DCV, abranjam as dimensões psicológicas, ambientais e sociais. Para isso, indica
diretrizes de pesquisa acerca de como as DCV são entendidas pelos adoecidos e
quais elementos consideram interveniências prejudiciais à saúde cardíaca. Nessa
diretriz, compreender como pessoas pós-IAM conferem sentido à experiência de
doença é tema de relevância investigativa.
A medicina trabalha com a idéia de adesão ao tratamento para dar conta dos
comportamentos das pessoas enfermas em reabilitação. A adesão ao tratamento4
4
A adesão ao tratamento de doença crônica pode ser esboçada em termos quantitativos gerais, da
seguinte forma: 50% dos pacientes apresentam uma boa adesão, pois seguem as prescrições medicamentosas
de maneira satisfatória em 80% do tempo de reabilitação. 20% seguem a medicação 50 a 80% do tempo e
30% dos pacientes seguem as prescrições em menos de 50% da reabilitação. (Vitória A. M. A. “Conceitos
básicos e recomendações para melhorar a adesão ao tratamento”). Disponível em www.saude.gov.br
13
das DCV ancora-se nos conhecimentos da psicologia, indicando o nível de
compromisso que a pessoa enferma tem com as prescrições de reabilitação. A
submissão cotidiana às prescrições eleva o nível de adesão. Quanto mais
elevada à adesão, maiores serão as probabilidades de resultados positivos na
reabilitação, ou seja, quanto mais a pessoa enferma obedecer às prescrições,
maior adesão e comprometimento empenhados. Deste modo, ampliam-se as
possibilidades de plena reabilitação. Logo, o nível de adesão é construído
considerando quantas, quais e por quanto tempo as pessoas enfermas se
submetem às prescrições médicas. Para se ter uma adesão eficiente a totalidade
das prescrições deve ser seguida em todo o tempo de reabilitação. Por outro lado,
o nível de adesão pode ser baixo se;
a doença for crônica, mas com cotidiano suportável, piorando progressivamente e
aos poucos ao longo do tempo; requerer mudanças de estilo de vida e de valores
culturais; não existir ainda, e a intervenção tiver caráter preventiva (HORNE, 1999,
apud, Romano, 2001, p. 174).
A adesão ao tratamento5 é multifatorial, sendo elementos sociais, biológicos,
econômicos, subjetivos, a doença tratada, a relação com a equipe de saúde, os
procedimentos médicos realizados, os tratamentos oferecidos e resultados
obtidos, fatores a serem considerados para uma avaliação do nível de adesão do
paciente às prescrições do tratamento. Em cardiologia, a reabilitação prescreve à
pessoa enferma um controle de suas ações que apontam para mudanças no
cotidiano. Pois, exigem adequações do cotidiano para se realizarem as medidas
profiláticas e de reabilitação à doença, especialmente o IAM pelo caráter abrupto
5
Ver: NOBRE, F.“Adesão ao Tratamento: o Grande Desafio da Hipertensão”. 2001. Ed. Lemos
Editorial.
14
da ocorrência. Nestes termos, a adesão ao tratamento de doença crônica é
afetada
pela
complexidade
das
prescrições
relativas
a
números
de
medicamentos, dosagens e quantidade de vezes diárias no uso dos mesmos.
Ademais, há baixa adesão quando se verifica comunicação ineficaz entre médico
e paciente, ou quando as prescrições interferem diretamente no cotidiano do
paciente. Assim, mudanças no cotidiano e promoção de efeitos colaterais no
paciente também baixam o nível de adesão à reabilitação.
Deste modo, a aliança terapêutica (Nobre, 2001) entre médico e paciente é
condição de exigência para se objetivar uma adesão eficiente. Os pacientes
devem adotar cotidianamente as responsabilidades em relação aos respectivos
tratamentos. Assim, aconselha-se aos profissionais de saúde exercerem
estratégias de persuasão destinadas e aplicadas aos pacientes em reabilitação. A
simplificação das prescrições é procedimento indicado, mediante a claras
recomendações verbais e escritas: redução de dosagens e quantidades de
remédios e identificação destes por cor, forma e nome. Além desses cuidados –
de acordo com Nobre – mais ênfase nas
limitações alimentares, hidratação, efeitos colaterais e interações medicamentosas
devem ser enfatizados (Idem, p. 175-6).
Em suma, as estratégias para adaptar as prescrições as atividades cotidianas dos
pós-IAM devem ser efetivadas visando a relacionar – mais proximamente – o
prescrito ao cotidiano. No entanto, o que se observa é situação inversa, ou seja,
os afazeres diários necessitam serem ajustados às prescrições. É nesse sentido
que ingestão de remédios, regimes alimentares, monitoramentos de sensações
corporais, proibições de atividades, criação de diário de reabilitação e uso de
15
“beepers” para alertar sobre os horários das ingestões de medicamentos entre
outras atividades prescritas, verificam-se como elementos complexos e
desafiadores para as pessoas pós-IAM em reabilitação, pois modificar condutas,
atividades e hábitos cotidianos derivam ações que incluem as redes de
sociabilidades nas quais a pessoa adoecida está inserida. Deste modo, atividades
corriqueiras e funcionais como, por exemplo, alimentar-se, banhar-se, adormecer,
divertir-se, trabalhar etc vêem-se condicionadas a se moldarem à imposição das
prescrições. Ao mesmo tempo em que o prescrito, na prática cotidiana das
pessoas enfermas, vai sendo, paulatinamente, moldado às possibilidades e
limites da dinâmica do cotidiano.
Tais prescrições não se evidenciam apenas pelo concurso de médicos e outros
profissionais da saúde no ato de consulta, mas também por encartes, folhetos e
cartilhas elucidativas ou promocionais, como – por exemplo tópico –
cartilha
elaborada pela Bristol-Myers Squibb Brasil S.A (fábrica e distribuidora de
medicamentos) com o fito de orientar pacientes pós-cirúrgicos em atividades de
reabilitação. Essas cartilhas – por vezes de cunho informativo, por outras
ampliadas com teor estético-publicitário – exploram tonalidades suaves e
coloridas, expressões faciais sorridentes e saudáveis, rostos rosados em
atividades que denotam bem-estar, ação e disposição. Os registros gráficos, por
fim, expressam imagens elucidativas de pessoas saudáveis.
Tais encartes aludem – de acordo com a medicina – acerca das etapas pelas
quais o paciente pós-IAM, se devidamente ajustado à natureza ideal de
recuperação, passa em sua reabilitação após alta hospitalar. Assim, objetiva
colaborar na recondução do paciente ao cotidiano com dificuldade minimizada.
16
Em caso circunscrito ao universo desta pesquisa, mas não somente nele, tais
informativos são disponibilizados aos pacientes pelos profissionais do CRDC e
recebem a denominação de “Reabilitação no pós-infarto; Manual para
recuperação no pós-infarto do miocárdio 1 e 26” (anexo). Apenas como referência
elucidativa: vê-se na capa desenho de uma pessoa sorridente, de pijama, em uma
cadeira de leitura com um banquinho para apoiar as pernas, maçãs do rosto
cheias e rosadas, com um foco de luz para iluminar o livro a mão, com face feliz e
tranquila. Em dada cartilha lê-se: “Este é um fascículo com orientação para as
pessoas que sofreram infarto do miocárdio (ou ataque cardíaco) ou que estão em
risco de vir a sofrê-lo. Seu objetivo é ajudá-lo no processo de reabilitação ou
prevenção desse problema. Aqui estão apresentadas as atividades que devem
ser feitas em casa até a sexta semana após a ocorrência do infarto e qual a
importância de mudar alguns hábitos em sua vida, principalmente em relação à
alimentação e ao sedentarismo.”. Em seguida, relaciona atividades para a
segunda semana de tratamento, com um outro desenho de um homem com um
avental, vassoura e balde de lixo à mão. Na sequência, orienta que voltem aos
poucos às atividades do cotidiano. Explicam, ainda, aos familiares que os
pacientes podem exercer atividades físicas contributivas à reabilitação, desde que
suaves e rápidas, pois é importante à recuperação. Lê-se em letras grandes;
“NÃO TENTE: levantar ou empurrar objetos pesados, trocar os pneus do carro,
destampar frascos com a tampa travada ou abrir portas emperradas”. Seguem-se
prescrições acerca da alimentação: tabelas nutricionais indicando quantidades e
tipos de alimentos que podem ser ingeridos, tabela com “Características da dieta
ideal”, sendo suficiência, adequabilidade, equilíbrio e variabilidade de alimentos,
aspectos os quais toda dieta ideal tem de ter para satisfazer os parâmetros
6
Cartilhas cedidas pelo Dr. Kasman, cardiologista da equipe de atendimento do CRDC.
17
nutricionais exigidos na reabilitação de IAM. Para a terceira semana indica-se que
as pessoas pós-IAM já podem fazer movimentos suaves, como agacharem-se e
levantarem objetos leves. Caminhadas curtas e lentas em locais tranquilos e
arborizados são aconselháveis. É nessa terceira semana que as atividades
sexuais podem ser retomadas, estando ciente de que a “relação sexual requer o
mesmo esforço físico despendido ao subir escadas e caminhar em ritmo
acelerado”. Assim, evidenciam-se algumas condições para ter relação sexual
após o IAM: em letras grandes – “conselhos para retomar a vida sexual sem
problemas” 7. As relações devem ser por curto tempo, em locais agradáveis e em
posições que as pessoas pós-IAM não sustente o peso da parceira/parceiro.
Estes devem ter um papel ativo. As duchas frias ou quentes, saunas antes ou
após a relação devem ser evitadas. O turno ideal é pela manhã. Fazer exercício,
ingerir alimentos e álcool em excesso antes da relação é desaconselhável. As
relações geradoras de tensão emocional devem ser evitadas. Prescreve
interromper a relação caso a pessoa pós-IAM sinta algum sintoma da doença:
pulsar acelerado do coração, taquicardia, tonteira, calafrios, falta de ar, fraquezas
nos braços ou pernas, dores abdominais ou torácicas, vertigem, sensação de
desmaio, visão embaçada e suor frio no rosto. Essas sensações valem também
para cessar os exercícios físicos. Para a quarta semana prescreve-se que podem
realizar ações que exigem “estados de alerta e alguma grau de tensão
emocional”. Dirigir é uma delas, desde que acompanhadas. Levantar pesos com
no máximo cinco quilos, mas lentamente e com respiração profunda e
prolongada. Por fim, na sexta semana de “Volta à vida social”, exercícios
7
Para uma discussão mais detalhada na perspectiva psicológica a respeito do tema ver
Romano, W. B. “Psicologia e Cardiologia: Encontros possíveis”. (2001). SP: Casa do Psicólogo,
pps 154-170.
_______________________________________________________________________________________
__
18
aeróbicos (dançar, nadar, andar rápido, etc.) podem ser efetivados, pois
“aumentam a freqüência cardíaca e a necessidade de oxigênio”. Prescreve-se ter
agradáveis atividades junto a família e amigos, sem cigarro e álcool. Deste modo,
a prescrição final é:
Não esqueça de que você deve cumprir o tratamento estabelecido pelo seu médico
e assumir a responsabilidade por sua saúde. Isto é, você deve comparecer
pontualmente às consultas médicas e fazer corretamente os exames de laboratório.
Deve também tomar seus medicamentos do modo como o médico os prescreve,
observando a dose e o horário determinados. Nunca deve tomar remédios por conta
própria
Assim, se por um lado as prescrições objetivam que as pessoas pós-IAM adiram
ao tratamento disciplinadamente, para que os resultados da reabilitação sejam
alcançados, por outro, as prescrições demandam vigilância, controle e mudanças
em suas atividades cotidianas para obterem resultados de excelência no
tratamento ou convivência cômoda com a enfermidade. Isso conduz ao
questionamento sobre como as pessoas lidam com tais exigências em seus
cotidianos e à reflexão referente à ideia de adesão ao tratamento da medicina.
Isso se dá, pois tal princípio exige que o enfermo seja o maior responsável pela
reabilitação e profilaxia à doença. Daí se pondera como pessoas pós-IAM lidam
com situações cotidianas ditas por elas como problemáticas, adjuntas às
implicações da doença.
Tais questionamentos começaram a ser ratificados quando se observou, nos
trabalhos de campo desta pesquisa no CRDC, algumas palestras destinadas aos
pacientes atendidos naquela unidade, visando a informá-los a respeito de que
ações devem adotar para conviverem com o processo de reabilitação, entre
outros assuntos tratados referente à situação de pós-IAM.
19
As palestras são realizadas no auditório do CRDC, mesmo local onde se
realizaram as entrevistas desta pesquisa. Os pacientes são convidados pela
assistente social da instituição para presenciarem conferências proferidas por
psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, fisioterapeutas, enfermeiras e
médicos. Os profissionais disponibilizam informações a respeito de procedimentos
de ordem cirúrgica, condições e disposições de internação, constituição das salas
de cirurgia e Unidade de Terapia Intensiva, além de informações a cerca de
tempo médio de cirurgia, condições de recuperação na UTI e na enfermaria.
Complementando o quadro de conscientização, especificam aos pacientes as
condições necessárias para receberem alta hospitalar. Ademais, convidam-se
pacientes recuperados para testemunharem sobre os próprios desdobramentos já
vivenciados.
As palestras observadas8 se fizeram em mescla de ambiente de interesse, pressa
e receio do público, enquanto as palestrantes usavam imagens e palavras para
mostrar aos presentes o que iria acontecer. Ao final das palestras o público –
formado por pessoas com idade entre 40 a 60 anos – era menor que no início.
As prescrições especificadas durante as sessões de palestras referem-se à
condições, documentação e exames que os pacientes devem apresentar quando
chamados para efetivarem o processo cirúrgico. Entretanto, como se trata de
regime em fila de espera é necessário que estejam com toda documentação em
ordem, pois a data sempre é função de surgimento de vaga nos dois únicos
8
Em uma palestra, o pesquisador observou um senhor de abdômen grande dormindo
sentado em uma cadeira na primeira fila. Um outro, avisou que sairia antes do final, pois tinha um
negócio a resolver. Uma mulher pediu para falar logo de sua experiência, pois tinha que ir pagar
uma conta.
20
hospitais conveniados: Santa Isabel e Espanhol. Assim, por precaução, os
pacientes devem manter os exames atualizados, o cotidiano organizado,
acompanhantes definidos, familiares à disposição, doadores de sangue – de oito
a dez – aptos ao exercício; para, a qualquer momento, responderem ao chamado
do hospital para realização da cirurgia.
O tempo de espera depende do número de pacientes inscritos no programa,
podendo perdurar por ordem de mais de dois anos para concretizar a operação.
Deste modo, a demora na fila de espera gera situações problemáticas e, por
vezes, definitiva, ou seja, ocorrência de óbito antes da intervenção. Em casos de
consequencialidade relativa, os exames pré-operatórios perdem a validade –
geralmente em torno de trinta dias – causando transtorno para mantê-los sempre
atualizados. Como a condição sócio-econômica dos pacientes é baixa, a grande
maioria se vale dos recursos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS),
ampliando-se assim a problemática, pela precariedade funcional do serviço.
Ademais, os pacientes ainda se deparam com diversa ordem de entraves e
indefinições durante o período de espera: clínica que não executa alguns exames,
prazo longo para entrega de resultados, grande contingente de pessoas nas
clínicas conveniadas; profissionais ausentes para assinarem requisições de
exames; paciente que – por residirem no interior do Estado9 – carecem de se
deslocarem a capital para cumprirem as demandas especificadas pelo processo.
9
Em conversa com mãe de uma paciente de aproximadamente oito anos de idade em processo de
reabilitação no CRDC , o pesquisador foi informado de que ali permaneciam há horas, a espera de médico
que não chegava para a consulta. Mencionara que viera de Santa Maria da Vitória, no oeste da Bahia, em
carro emprestado pela Prefeitura Municipal da localidade, em 10 horas de viagem. Alimentavam-se de
biscoito e água. Tentavam contato com o motorista pelo telefone público do CRDC e não conseguiam. A
mãe não conhecia Salvador e não dispunha de recursos necessários para outra atitude, motivo pelo qual a
induzia a esperar pela incerteza da consulta e tempo do motorista em aparecer para retornarem à cidade de
origem. O caso fez-se premente para evidenciar situações e condições que vivencia o público de pacientes
pré e pós-operatórios do CRDC.
21
Não sabendo o dia da cirurgia, as palestrantes explicam o pré, o operatório e o
pós-operatório, na expectativa de que o dia chegue. Desse modo, as palestras
enfatizam o que os pacientes pós-operados devem fazer quando retornarem ao
cotidiano.
As situações vistas em campo sugerem que os pacientes dão continuidade às
atividades cotidianas considerando a incerteza de serem submetidos à cirurgia.
Observar tais situações intensificaram um dos argumentos de pesquisa, segundo
o qual as práticas cotidianas exercem força de interveniência na lida da pessoa
pós-IAM em reabilitação.
As prescrições de profilaxia-reabilitação de um IAM, em grande medida, apontam
para mudanças no cotidiano, para que este se ajuste ao prescrito. Todavia, o
cotidiano não está plenamente sob controle do enfermo e sim compartilhado com
outras pessoas. Desse modo, faz-se como impositivo em alguns aspectos,
organizado e organizador da dinâmica cotidiana constituída no tempo do viver em
comunidade, o que exige negociações constantes entre as pessoas para
compartilhar situações, sejam para suprir necessidades materiais ou mesmo
satisfazer prazeres. Por outro lado, as prescrições, originadas no modelo
biomédico, visam mudanças de comportamentos individuais entendidos pela ótica
dos fatores de risco. Assim, evitar os fatores pode prevenir a ocorrência das DCV
(Hopkins and Williams 1981; Ducan 1996, Dressler 1991; Lessa 1993 apud
ALVES, p 7, 1997). Entretanto, o que se observa é o fato de que as taxas de
incidência crescem proporcionalmente ao crescimento da população, apontando
para a existência de discrepâncias entre o que o modelo determina como medidas
profiláticas-reabilitativas eficazes, causas e formas de lidar com as prescrições e
22
o que os enfermos relacionam como interveniências no respectivo adoecer e na
lida com as implicações advindas da doença. Daí, nesta pesquisa, se direcionar
reflexões sociológicas às relações estabelecidas, pela pessoa pós-IAM, entre
doença e vida cotidiana quando do retorno a esta após internação. Nesse sentido,
busca-se destacar relações entre IAM e situações cotidianas problemáticas, como
modos iniciais para conferir sentido à experiência de enfermidade.
23
Capítulo I – Horizonte teórico10
As Ciências Sociais em Saúde reconhecem que as condições sociais de vida tem
relação com causalidade, desenvolvimento, controle e solução das doenças11.
Essas ciências tendem a propor uma visão compreensiva do evento da doença
concentrando análise no processo de enfermidade, no qual se articulam
diferentes dimensões da realidade. Logo, dispõe objetivos mais prementes a
compreensão da experiência cotidiana de enfermidade no que concerne às
práticas e sentidos que a pessoa adoecida, e outras envolvidas, elaboram para a
doença.
Na compreensão sociológica da experiência de enfermidade as noções de
disease, illness e sickness são essenciais. Disease é a evidência corporal da
doença segundo o modelo biomédico moderno ocidental, que tende a “utilizar um
tratamento físico (drogas ou cirurgia) para corrigir anormalidades subjacentes.
(Helman,1994, p.104). Por seu turno, Illness refere-se à:
resposta subjetiva do paciente, e de todos os que o cercam, ao seu mal-estar.
Particularmente, é a maneira como ele – e eles – interpreta a origem e a
importância do evento, o efeito deste sobre seu comportamento e relacionamento
10
Não tendo caráter exaustivo nem crítico, apresentam-se os principais construtos teóricos que
orientam o desenvolvimento desta pesquisa. Expõem-se as ideias básicas a partir das quais se descrevem as
relações entre doença e cotidiano, de acordo com menção das pessoas entrevistadas.
11
A relação doença-cultura especifica-se no inicio dos estudos da Antropologia Médica, a qual
denomina-se, na atualidade, de Ciências Sociais da Saúde ou Sócioantropologia da Saúde. Rivers (1924,
apud Langdon, 1996), investigou modelos de medicinas não-européias, as “primitivas” como designadas à
época; caracterizando-as de acordo com formas de pensar: a mágica, a religiosa e a naturalista. Langdon
(idem) diz: “As medicinas primitivas eram, então, manifestações de modos de pensamentos lógicos no qual o
tratamento da doença logicamente seguiria a identificação da causa” (p.01). Em suma, o essencial na
contribuição desses primeiros estudos foi demonstrar a estreita relação entre as instituições sociais das
medicinas e as respectivas culturas em que se inseriam, vez que para se entender dado modelo biomédico é
necessário considerar o respectivo contexto sociocultural em especificidade. (Helman,1994, p.104; Rivers
1924, Clements 1932, Ackerknecht 1943 apud Langdon, 1996).
24
com outras pessoas, e as diversas providências tomadas por ele para remediar a
situação.
Pela noção de illness entende-se que o enfermo é engajado à situação de
enfermidade com todas suas feições biográficas, sejam limites, possibilidades
presentes e projetos futuros, direcionado por modos segundo os quais ele atua na
situação. Essas atuações dirigem-se para um mundo compartilhado com outros –
enfermos ou não – em termos de ideias, valores, crenças e práticas. Como
menciona RABELO E ALVES (1999, p. 171):
Na lida com a enfermidade, o doente e aqueles que estão envolvidos na
situação (como familiares, amigos, vizinhos e terapeutas) formulam, (re)
produzem e transmitem um conjunto de soluções, receitas práticas e
proposições genéricas, de acordo com o universo sociocultural do qual fazem
parte.
Neste sentido, descrever as maneiras pelas quais a pessoa pós-IAM atua na
situação de enfermidade é – inclusive – atentar às indicações causais, modos de
lidar com as implicações da doença e com o futuro projetado. Assim, os estudos
que adotaram esse tipo de abordagem apontam para a insuficiência da definição
orgânica da doença, pois evidenciam que os sentidos conferidos pela pessoa
enferma à doença não são o centro de suas análises, uma vez que explica a
doença como manifestação orgânica com natureza não alinhada diretamente aos
engajamentos cotidianos. ALVES, RABELO & ALVES registram:
não se pode pensar unicamente em isolar o risco de beber, de fumar, de comer
determinados alimentos, pois pode ser eficaz para intervir na dimensão
individual, mas anula o efeito compreensivo do problema e reduz a eficácia da
intervenção
25
(...)
conceito de experiência da enfermidade (...) se refere basicamente à forma pela
qual os indivíduos situam-se perante ou assumem a situação de doença,
conferindo-lhes significados e desenvolvendo modos rotineiros de lidar com a
situação.(1997, p. 7).
Nesta investigação propõe-se a atentar sobre as relações estabelecidas pelas
pessoas pós-IAM em reabilitação entre situações consideradas por elas como
problemas cotidianos e o adoecimento. Neste sentido, entende-se que o adoecer
sucede em um mundo culturalmente dado, sendo a experiência de adoecer
referenciada pelo arcabouço simbólico e material relativo a esse mundo.
Pensamento desta ordem remete à ideia seminal de sickness, pois possibilita
entender o adoecimento por IAM como um evento que ocorre abruptamente em
um mundo compartilhado, exigindo dos envolvidos que ajustem mutuamente
práticas cotidianas e implicações da doença à situação de enfermidade.
Os ajustes impõem-se como amplos e profundos ou – de modo diverso – como
parciais e temporários, a depender da natureza da doença e das situações
problemáticas vivenciadas pelas pessoas pós-IAM em reabilitação e seus pares.
Contudo, alguns ajustes devem ser feitos para que as pessoas possam lidar –
simultaneamente – com ambas as circunstâncias. Neste sentido, sickness –
talvez com maior intensidade – permite analisar as relações estabelecidas entre
as situações e adoecimento por IAM, para que ajustes possam ser efetivados.
Logo, BOEHS (2001), apoiado em LANGDON (1994), registra:
Considera-se que, na doença, “illness”, há a conjugação de normas, valores e
expectativas tanto individuais como coletivas e se expressa em formas
específicas de pensar e agir. A doença (illness), nesta visão, é concebida como
26
uma experiência construída sócio-culturalmente, como um conjunto de
experiências associadas à rede de significados e à interação social, assumindo
um caráter local e não o universal da concepção biomédica de distúrbio (...)
Refere também que “Sickness”...expressa particularidades dos indivíduos dentro
da sociedade (p. 6-7).
Adoecer, como sicknes, é mais denso de sentido que a sintomatologia, intervindo
na subjetividade da pessoa adoecida que, tematizando o mal-estar que
corporalmente sente, confere sentido às sensações, relacionando-as ao cotidiano.
Entretanto, tais sentidos devem ser compartilhados com terceiros para conferirem
legitimidade social à doença e assim agirem à procura de soluções. De tal modo,
as pessoas intersubjetivamente conferem sentidos à doença, os quais podem
indicar causas, maneiras de lidar com as implicações dela advindas e ajustar
projetos futuros às circunstâncias12 do cotidiano. Então, saber como as pessoas
criam explicações à doença é compreender como conferem sentidos à
experiência, uma vez que esta ocorre relacionada a ações de outras pessoas no
cotidiano. Isto firma o cotidiano como intersubjetivo, sendo que alguma
interveniência pessoal atinge toda sua dinâmica.
A vida cotidiana – de acordo com BERGER & LUCKMAN (2002) – pode ser
entendida “como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente
dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente” (p.35).
Trata-se de um conceito que vê o mundo com diversas dimensões intencionais de
12
Este termo é mencionado em M. de Certeau (2003), citando U. Eco “a circunstancia se apresenta
como o conjunto da realidade que condiciona as escolhas dos códigos e dos subcódigos, ligando a
decodificação à sua própria presença. O processo da comunicação, mesmo que não indique referencias,
parece se desenrolar no referente. A circunstância é este conjunto de condicionamentos materiais,
econômicos, biológicos e físicos em cujo interior nós nos comunicamos”. (“La Structure absente.” Paris,
Mercure de France, 1972, p. 115. In: Certeau, M, de et all: “A invenção do cotidiano” (2003) Tomo 2, p.
349. Nota de fim número 3)
27
realidade, sendo a cotidiana a “realidade predominante” (idem, p. 38), por ser a
mais imediata e envolvente, porquanto é no cotidiano que se promove o
engajamento do fazer prático. A vida cotidiana é o lócus de ações práticas; é uma
dimensão de realidade que nos toma ao tempo em que atuamos, uma vez que
são as ações práticas intersubjetivas as marcas dessa realidade no conviver
cotidiano com outras pessoas. É no viver compartilhado que se agenciam os
sentidos das ações. O cotidiano impõe-se como dimensão de ação, uma vez que
antes de tematizar, a pessoa exercita práticas que envolvem interpretações;
assim, a dimensão cotidiana do mundo da vida é de ações operativas – Wirkwellt.
(AlGARRA, 2005, p.89).
Por sua vez, SCHUTZ13, (Apud ALGARRA 2005, pps, 64, 112-113) trata o
cotidiano como uma dimensão do mundo da vida essencialmente de ação.
Conceitua-o como uma das “províncias de significado” finito dentro do mundo da
vida. Esta província cotidiana de significados tem “epoqué” própria que comporta
modos típicos de atenção, os quais permitem que as experiências sejam
coerentes ao interior dessa mesma província.
É assim, a princípio, que se
apresenta finita e evidencia a contradição de se referir a uma outra a partir de um
modo de atenção específico de uma dada província. Logo, em cada província há
13
Foca análise fenomenológica nos estados práticos do mundo da vida. Visa a realizar uma
fenomenologia da atitude natural, pois a fenomenologia em suas linhas filosóficas primeiras, volta atenção à
esfera transcendental pensada por Husserl: “nos ocupamos de estados de coisas intencionais entre essências
dentro do domínio da experiência, e não de nexos empíricos. Podemos dizer – afirma em ‘Life Forms’ – que
a possibilidade objetiva da experiencia vem dada somente pelo ser da coisa. Este ser é sempre ser-em-simesmo”. Por outro lado, Schtuz em carta a Spiegelber em 1945 diz: “Tenho tomado como minha ocupação
limitar-me à fenomenologia da atitude natural como ela se faz no mundo. Primeiro, porque creio que, nesta
área, há muito por fazer em vista do não cuidado por muitos fenomenólogos profissionais. Segundo, porque
estou cada vez mais convencido de que o social tem sua origem somente no natural e não no
transcendental”. (idem2005). Por isso, redireciona fenomenologia ao mundo da vida, pondo as essências
intencionais de lado temporariamente na compreensão da prática da experiencia mundana, já que a
compreensão é experiencia engajada no cotidiano.
28
um modo de atenção – uma “epoqué” – peculiar que confere à realidade social14
uma ênfase de sentido distinto. Desse modo, o que fora coerente em certa
realidade social pode não o ser quando se intercambia o modo de atenção, pois
se altera a premissa de coerência da experiência. Logo, para cada província
existem formas únicas de espontaneidade; de auto-experienciar-se e de
sociabilidade; de engajamento.
As pessoas no mundo da vida cotidiana, por vezes, não têm condições de
escolherem com plena liberdade as situações nas quais se enquadram. Em
grande medida, as situações do cotidiano são impositivas e ultrapassam as
escolhas das pessoas em densidade de sentido e em extensões espacial e
temporal, uma vez que essas situações são condicionantes parciais que as
concentram em um mundo sócio-histórico dado. Schutz registra:
Com isso só quero dizer que se trata de algo que simplesmente está aí em sua
incompreensibilidade e que é somente esta função primordial – como o mundo da
vida cotidiana – o que torna qualquer compreensão possível. (p. 212, apud
ALGARRA, 2005, p.68).
É nesse mundo dado que se fundamenta a “epoqué” da atitude natural, que se
constitui na certeza da existência desse mundo e da presença das pessoas nele.
Algo diverso da “epoqué” fenomenológica que é a suspensão dessa certeza
refletindo acerca das essências constituintes da intencionalidade. Logo, na
14
Esse termo diz respeito à “soma total dos objetos e dos acontecimentos do mundo cultural e social,
vivido pelo pensamento do senso comum dos homens no conjunto das numerosas relações de interação. É
mundo dos objetos culturais e das instituições sociais nas quais nós nascemos, onde nós nos reconhecemos.
(...). Nós, os atores na cena social, vivemos o mundo como um mundo ao mesmo tempo de cultura e de
natureza, não como um mundo privado, mas intersubjetivo, isto é, que nos é comum, que nos é dado ou que é
potencialmente acessível a cada um entre nós; isto implica a intercomunicação e a linguagem (Schutz, 1987,
p. 66, apud Tedesco, 1999, p. 100. Nota de página)
29
“epoqué” da atitude cotidiana, as pessoas não questionam as condições de
possibilidade do mundo – no qual estão engajadas – serem diferentes de como
lhes são dadas circunstancialmente.
Na atitude natural cotidiana as pessoas não fazem distinção entre o mundo por
elas percebido, ou seja, intencionado pela percepção, e o dado mundo exterior
(idem 2005, p.75). Deste modo, possibilita-se que as ações cotidianas estejam
engajadas em processos de reciprocidades de perspectivas, mediante as quais se
pressupõe que as outras pessoas entendam o mundo de maneira semelhante, ou
seja, intersubjetivamente, perfazendo-se – assim – um “mundo de sentido
comum”. Sobre o fato, menciona Schutz:
O mundo de sentido comum é o mundo cotidiano, o mundo da vida, são
expressões que indicam o mundo intersubjetivo experimentado pelos homens
em mútua relação, entendendo-se consigo mesmo e com os outros. Mundo que
existia antes de nós, o qual tem uma historia e que nos é dada de maneira
organizada. É primordialmente o cenário de nossas ações sociais. Não é um
mundo simplesmente físico, mas também um mundo sócio-cultural, o que
confere a cada individuo uma ‘situação biográfica determinada’. (In: Wagner,
1979. p.17).
Todo momento da vida de um homem é reflexo da situação biográfica em que
se encontra, isto é, o ambiente físico e sócio-cultural conforme definido por ele,
dentro do qual tem uma posição, não apenas em termos de espaço físico e
tempo exterior, ou de ‘status’ dentro do sistema social, mas também moral e
ideológica. (idem 1979, p.73)].
As ações, criadoras da intersubjetividade cotidiana, têm aspectos do passado da
pessoa. A situação biográfica é um momento repleto de experiências já
vivenciadas, presentes e projeções futuras. Permite umas e proíbe outras
30
elucidações sobre as ações no presente predominante, posto que se ancora em
conhecimentos
acerca
de
experiências
passadas,
na
própria
situação
predominante e no futuro projetado.
A situação biográfica é um momento cotidiano predominante que se alonga do
passado, impõe-se no presente e indica um futuro em projeto. Este último “È
esse propósito à mão que define que elementos, dentre todos os outros
contidos numa dada situação, são relevantes para esse propósito” (wagner,
1979, p.76).
Em sintonia com a disposição apresentada, atenta-se para o pensamento exposto
por Jean-Paul Sartre ao mencionar que:
A situação é o sujeito inteiro (ele não é nada mais do que sua situação) e é
também a “coisa” inteira (não há jamais nada mais do que as coisas). Se
quisermos, é o sujeito iluminando as coisas pelo seu próprio transcender, ou
são as coisas remetendo sua imagem ao sujeito. É a facticidade, a contingência
absoluta do mundo, de meu nascimento, de meu lugar, de meu passado, de
meus arredores, do fato de meu próximo – e é minha liberdade sem limites
enquanto aquilo que faz com que haja para mim uma facticidade. (1997, p.673).
O cotidiano se impõe quanto mais se atua. É um atuar pragmático devido à sua
ordenação e sentidos compartilhados. Nas atuações se ratifica o mundo cotidiano
predominante no qual se está engajado. “É na ocupação que o ser-no-mundo é
tomado pelo mundo de que se ocupa”, diz Salete Nery (2000, p. 45) citando
Heidegger (1995, p.100). Logo, é no ocupar-se da vida cotidiana e
concomitantemente ser ocupada por ela, que se dá o engajamento das pessoas
em ações práticas intersubjetivas cotidianas.
A ação constitui a dimensão cotidiana do mundo da vida mediante sua orientação
às de outras pessoas que compartilham o mesmo cotidiano, indicando o aspecto
31
social da ação e uma das nuanças do engajamento. Daí, as afinidades entre fluxo
de consciência e ação serem estabelecidas por intermédio dos motivos
pragmáticos geradores do projeto da ação. Contudo, para realizar o projeto é
necessário dominar um estoque de conhecimento compartilhado acerca da
sociedade em que o enfermizado se insere. É claro que não se exige
conhecimentos sociais precisos e plenos postos como possíveis de serem
utilizados no projeto da ação, pois o engajamento os sintetiza na atuação e esses
conhecimentos vão sendo precisados na medida em que satisfaçam o projeto.
Assim sendo, os motivos são pragmáticos, pois visam atenderem às demandas
do projeto mediante a elaboração de meios e fins no curso de realização da ação.
O processo para elaborar meios e fins de um curso de ação expõe, na prática, o
que é possível, referente ao atuar da pessoa, e o que provavelmente não o é;
contudo, abrindo-se como possibilidade futura de sucesso. Indica-se, desse
modo, um “mundo ao meu alcance” e “mundo potencialmente ao meu alcance”.
Esse último aponta o que em dada circunstância cotidiana não é possível – pela
atuação do sujeito – concretizar; contudo, devido à mudanças nas circunstâncias
cotidianas presentes pode se tornar possível em um futuro projetado.Todavia, as
delimitações entre esses mundos fazem-se por meio dos motivos pragmáticos
geradores do projeto da ação no cotidiano presente. Por essa maneira, o presente
é a estrutura temporal indelével da dimensão do “mundo ao meu alcance”, uma
vez que é nessa estrutura que se processa uma síntese particular entre estoque
de conhecimento, projeto e ação, a saber, no operar; sendo este um modo de
vivência com grau máximo de atenção à vida por evidenciar o engajamento da
pessoa em atuação no mundo da vida cotidiana. Por outro lado, o “mundo ao meu
alcance potencial” – quanto à estrutura temporal – evidencia aspectos mais
32
intrincados, porque é relativo a um mundo que jamais esteve ao alcance, todavia
poderá estar no futuro, fazendo com que o motivo pragmático da ação seja
referenciado por uma idealização “e assim sucessivamente”, a qual indica o
pressuposto de “normalidade percebida”. (Wagner, 1979, 126-127).
Essa normalidade é “mundo da vida cotidiana”. O mundo rotineiro, dos afazeres
diários, onde as pessoas atuam com razoável previsibilidade para assegurarem a
coerência de condutas frente às outras e aos seus objetivos projetados. Assim:
o mundo da vida cotidiana significa o mundo intersubjetivo que existia muito
antes do nosso nascimento, vivenciado e interpretado por outros, nossos
predecessores, como um mundo organizado. (Wagner, 1979, p.73).
Ações realizadas sem questionamento é aspecto desse mundo cotidiano. É a
“atitude natural15” que diz respeito à conduta de inquestionabilidade frente aos
eventos do cotidiano. Conduta na qual tudo é não-problemático até o momento
que um evento inédito se apresenta. Evento que não se tem conhecimentos
delineados no estoque à disposição para se elaborar cursos de ações adequados
às demandas predominantes. É o momento da “ruptura”, e exige a elaboração de
cursos de ações ainda não realizados ou ajustes em cursos exercitados no
decorrer do cotidiano.Eles devem ser elaborados considerando as impositividades
cotidianas, o estoque de conhecimento, os motivos para ação e projeto, pois
objetivam exercer mudanças circunscritas às metas preconcebidas no projetar.
Portanto;
15
À ideia de “atitude natural” cotidiana registra-se: “A postura mental que uma pessoa toma no lidar
espontâneo de rotina com seus afazeres diários; é à base de sua interpretação do mundo da vida com um todo
e em seus vários aspectos. O mundo da vida é o mundo da atitude natural. Nele as coisas e situações são tidas
com pressupostas”. (Wagner, 1979, p. 311)
33
ação é uma conduta previamente projetada e que pode ser interpretada em seu
sentido subjetivo ao qual a pessoa confere na realização da ação (WAGNER, 1979,
p.68;124-125; ALGARRA,2005, p.118).
O estoque de conhecimento à mão resulta de compreensões legitimadas acerca
de experiências sofridas na dinâmica cotidiana das próprias biografias. Nestes
termos, os conhecimentos disponíveis são plásticos, parciais, diversos e
efêmeros. Os conhecimentos oriundos de atuações em diferentes circunstâncias
cotidianas são fragmentados e parcialmente coerentes. São os objetivos
pragmáticos da ação os motivadores da atenção por específicos pontos dos
conhecimentos, os quais são necessários para atenderem os fins da atuação.
Schutz (Apud Wagner, 1997) os denominam de conhecimentos “abertos”, em
constantes ajustes circunstanciais. Os objetivos pragmáticos da atuação tanto
podem ser determinados cotidianamente pelos conhecimentos habituais quanto
podem precisar de ajustes, o que ocorre quando o referido conhecimento habitual
não é entendido pela pessoa como completamente satisfatório à atuação em
dada circunstância. É o caso do adoecimento por IAM, que resulta em um
delineamento do “estoque de conhecimento” em campos de relevância que
tendem para a solução do problema. Isto é, campos com graus de clareza e
ambiguidades, de preconceitos, de crenças e regiões ignoradas até o respectivo
momento (Berger e Luckmam, 1978). Assim, do mesmo modo que a biografia de
cada pessoa é peculiar, o estoque de conhecimento também o é, sendo
fundamental na elaboração de meios e fins do projeto de ação.
Projetar é conceber o curso de uma ação a realizar. No projeto, a pessoa
considera as impositividades práticas do cotidiano, pois para tornar o projeto um
34
ato através da finalização da ação, precisa exercer os conhecimentos acerca dos
vários momentos práticos do curso, sendo estes tomados como objetivos
intermediários na realização do projeto. Daí, o projetar tem em si a conduta
previamente planejada, a intenção de realizar a ação, a evidência16 da ação e os
motivos geradores do projeto. Porém, os conhecimentos das impositividades que
a pessoa terá de enfrentar no curso do projeto são centrais para tornar a ação,
ato.
A partir do estoque de conhecimentos a pessoa pode ter entendimentos menos
opacos dos vários momentos futuros do curso da ação. Entretanto, não dispõe de
conhecimentos plenos – como mencionado – de todo o curso da ação em que se
engajará. Por isso a opacidade do futuro projetado. Deste modo, o que se tem “à
mão”, no projetar, são:
horizontes
em
aberto,
que
somente
serão
preenchidos
através
da
materialização do evento antecipado; em conseqüência, para o ator, o
significado do ato projetado tem, necessariamente, de diferir do significado do
ato realizado. Assim, o projetar (e, além disso, desenvolver o projeto)
fundamenta-se no estoque de conhecimento à mão, com sua estrutura
particular, na ocasião do projetar. (Wagner, 1979, p. 139).
A essência operativa do mundo da vida cotidiana impõe que o projeto esteja
relacionado às possibilidades e limites práticos do cotidiano da pessoa que
planeja realizá-lo. Não obstante, essa prática aponta para o modo de
engajamento da pessoa ao cotidiano, na medida em que esse engajamento se dá
mediante as diversas maneiras praticadas para realizar suas atuações na
16
O termo “Evidencia” é aqui empregado no sentido cunhado por Husserl: a experiencia específica
desse ‘estar consciente de’. (Cf. Formole und Transzendetale Logik, pp 437 e segs, especialmente p. 144,
apud. Wagner, 1979, p. 127)
35
dinâmica intersubjetiva cotidiana. A essência operativa do mundo da vida ancorase então, no processo prático do projeto, nas disponibilidades de conhecimentos
intersubjetivos dispostos na sociedade e nas circunstâncias presentes de
atuação. Desse modo, são os estilos mediante os quais cada pessoa lida
cotidianamente com esses conhecimentos intersubjetivos à disposição que
delineiam suas práticas para efetivar o projeto da ação. Assim:
A reciprocidade de perspectiva é o que dá o caráter social da estrutura do mundo
da vida de cada um (Tedesco, 1999, p. 100).
As ações práticas cotidianas são marcadas pelos aspectos de “reflexividade”, que
permite à pessoa elaborar descritivamente os estilos praticados ao realizar a
ação. Pela “descriptibilidade” oportuniza a racionalização de diversos eventos,
suprimindo a lacuna entre a prática da ação e o seu discurso para, assim,
estabelecer relações entre as ações. Por sua vez, a “indexabilidade” possibilita a
elaboração de sentidos das circunstâncias intrínsecos às respectivas práticas. Em
conjunto, esses aspectos constituem as propriedades essenciais da prática
cotidiana e expõem a estrutura do engajamento da pessoa em atuação no mundo
da vida cotidiana. A prática – por fim – é ação em processo que sintetiza um
“saber-fazer”, ou “procedimentos interpretativos”. Portanto:
Os procedimentos interpretativos e seus traços reflexivos fornecem, em
permanência, instruções aos participantes de tal modo que se possa dizer que
os membros programam suas ações recíprocas na medida em que a ação se
desenrola. (Cicourel, 1968, 1972, Coulon, 1987, apud. TEDESCO,1999, p. 103).
É na realização das ações práticas imersas e referenciadas no cotidiano
intersubjetivo que a realidade social se constitui para a pessoa em atuação,
possibilitando a estruturação da experiência pessoal de cada um. Contudo, essa
36
experiência está voltada para um mundo em constante construção, mediante as
ações práticas reciprocamente orientadas. Em síntese:
a realidade social como uma construção coletiva de atores (indivíduos), que,
conservando suas experiências pessoais, concordam tacitamente sobre uma
definição subjetiva do mundo.(Berger e Luckman,1986, apud, TEDESCO,1999,
pps.98-99).
Referenciada nesse horizonte, a pesquisa descreve como e o que é mobilizado
pela pessoa pós-IAM para ajustar as implicações advindas da doença ao
cotidiano de vida, uma vez já estabelecido antes da crise de IAM; bem como o
empenho para que o cotidiano ajuste-se às novas implicações. Logo, para
analisar essa mútua mobilização como um dos modos práticos de conferir sentido
à experiência de enfermidade, é necessário descrever as relações estabelecidas
pela pessoa pós-IAM entre o adoecer e a vida cotidiana.
37
Capitulo II – Pesquisa e procedimentos metodológicos
•
Concepção da pesquisa
O estudo “Problemas cotidianos e Infarto agudo do miocárdio (IAM); Conferindo
sentido à experiência de enfermidade”
17 –
sob orientação da Profa. Dra. Iara
Souza/UFBA – advém de uma pesquisa de maior magnitude denominada
“Reconstruindo a normalidade; mudanças e comportamentos em indivíduos
enfartados”, coordenado pelo Prof. Dr. Paulo C. Alves/UFBA,.
A ideia de base do presente estudo centra-se no fato de que a vítima de IAM
estabelece relações entre a doença e situações cotidianas problemáticas
vivenciadas. Consequentemente, o estudo se propõe a analisar relações e
identificar procedimentos de lidar com as implicações advindas da doença
quando, após o internamento, a pessoa pós-IAM retorna à vida habitual, posto
que as relações indicam meios para se compreender modos de conferir sentido à
experiência de enfermidade. Contudo, o processo investigativo depara-se com
limitações uma vez que – pela imposição metodológica calcada na coleta de
informações por meio de entrevistas, a experiência cotidiana certamente impõe
transformações constantes na dinâmica do viver, provocando nuanças de
perspectiva na pessoa pós-IAM. Nestes termos, analisam-se as relações tendo-as
como modo de conferir sentido à experiência de enfermidade num dado tempo,
sendo este o retorno ao cotidiano após internação hospitalar.
17
Certificado pelo Conselho Nacional de Saúde - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP,
do Ministério da Saúde do Brasil, resolução 196/96 e 251/96, Folha de rosto 111618, Área de
Conhecimento (7.00) Ciências humanas (7.02) Sociologia, Grupo III, Projeto: Problemas Cotidianos e
infarto agudo do miocárdio, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética – CAAE - 0081.0.053.06.
Entrega em 01-01-2006, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado da
Bahia – CEPSESAB, sob o parecer 77/2006, bem como pelo Comitê de Ética do Hospital Santa Isabel, sob
parecer do relator Dr. Jedson Nascimento, e na diretoria cientifica do INCOBA, segundo anuência do
coordenador Dr. Armênio Guimarães, e pelo coordenador médico do CRDC Dr. Marcus Andrade.
38
•
Campos de pesquisa.
Os campos de pesquisa concentram-se em duas unidades públicas de
atendimento à saúde em Salvador: o Instituto do Coração da Bahia (INCOBA) do
Hospital Ana Nery e o Centro de Referencia em Doenças
Cardiovasculares
Adriano Ponde (CRDC) e foram realizadas, respectivamente, às segundas-feiras
à tarde, no período de 21/05/2007 a 31/03/ 2008 no INCOBA e às
terças e
quintas-feiras de 05/2007 a 03/2008 no CRDC.
•
Instituto do Coração da Bahia (INCOBA)
O hospital Ana Nery18 pode ser considerado, em relação ao número de leitos,
como de grande porte e localiza-se à Rua Saldanha Marinho, s/n, Caixa D’ Água,
Salvador, Bahia. Disponibiliza – à clientela do SUS – serviços de Nefrologia,
Centro Cirúrgico, Clínica Médica, UTI, Cirurgia, Cardiologia, Ambulatório, entre
outras. O INCOBA dispõe de serviços de alta complexidade em cardiologia clínica
e cirúrgica, emergência, UTI adulta, pediátrica e neonatal. Além de laboratórios,
internação e unidade coronariana e ambulatório de cardiologia – local de
realização
de
entrevistas
da
pesquisa
–
pronto
atendimente,
cirurgia
cardiovascular adulto, intervencionista e endovasculares extracardíacos (Intranet,
SESAB, 2007).
O prédio do hospital Ana Nery ocupa uma quadra no bairro Caixa D’água. O
trânsito diário de pessoas, carros e ambulâncias é intenso. O prédio possui duas
alas com sete andares e, aproximadamente, vinte salas por andar. Ademais,
18
O hospital Ana Nery foi criado a partir do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados
em Transportes e Cargas (IAPTEC), DL n°651/26/08/1938. Reorg. pelo DL 72/21/11/1966. Lei n°
6.439/01/09/1977. A Lei n° 8.080/19/09/1990, que criou o SUS, reestruturado pela Lei n° 6.074 de 22/05/
1991. Doado à SESAB Via Termo de Cessão de uso MS/SESAB/21/08/1998, Publicado DOU/02/09/98.
39
constrói-se novo anexo, o segundo, constando de três andares com o fito de
alocar o ambulatório do INCOBA, que ainda funciona provisoriamente em
barracão pré-moldado de madeira no estacionamento, entre a lanchonete e a
capela. Por isso, o espaço interno do ambulatório é exíguo, com corredores
estreitos, salas e consultórios insatisfatórios e recepção diminuta para o
contingente de pacientes a serem assistidos.
Iniciou-se a pesquisa no ambulatório do INCOBA no ano de 2007, um pouco
antes da mudança de gestão administrativa do Instituto Sócrates Guanes para a
UFBA, gerando situação de instabilidades aos funcionários. No que tange ao
universo da pesquisa de campo, o início da coleta de dados sofreu atraso de três
meses, na medida em que a reorganização de turnos, dias e salas se fizera
premente.
Com o passar dos meses as decisões administrativas efetivaram-se e a gestão se
estabilizou, fato que viabilizou a definição de sala, período e
turno para a
execução das entrevistas. Primeiramente, a pesquisa foi apresentada à equipe
médica do INCOBA, oportunizando contribuições. Em seguida, iniciaram-se os
trabalhos de entrevistas com pacientes pós-IAM subsequentes em tratamento
ambulatorial, após alta hospitalar, como a equipe médica do INCOBA define as
pessoas que sofreram IAM e estão em reabilitação.
Estabeleceu-se o turno da tarde, às segundas-feiras, para efetivarem-se as
entrevistas, uma vez que nessas datas, duas cardiologistas em atendimento
instruiriam os pacientes sobre a necessidade de, após consulta regular,
concederem depoimentos de suas vivências e convivências em relação aos
40
respectivos processos de reabilitação. Optou-se por executar as entrevistas após
a ocorrência das consultas, pois eliminaria o receio dos pacientes em perde-las.
Assim, as entrevistas iniciaram na metade do primeiro semestre de 2007,
estendendo-se por 43 dias de atividades, das 14 às 18 horas, contabilizando-se,
deste modo, 162 horas de trabalho de campo no INCOBA.
•
Centro de Referência em DCV Adriano Pondé (CRDC).
O CRDC localiza-se na Rua Visconde de Itaboraí 1193, em
Amaralina. Foi
inaugurado em 07/05/2004 e pertence à jurisdição do Distrito Sanitário Barra/Rio
Vermelho. É a única unidade municipal em DCV que oferece, exclusivamente aos
clientes do SUS, tratamento especializado e acompanhamento multidisciplinar
aos pacientes de HAS e outras espécies clínicas do aparelho cardiovascular. Os
serviços ocorrem devido à parceria celebrada entre a Prefeitura Municipal de
Salvador – através da Secretaria de Saúde – e o hospital Santa Isabel.
Entretanto, o CRDC é conhecido pelos pacientes como “posto de Amaralina”,
pois, é o modo como a secretária do setor multidisciplinar o identifica quando se
comunica com os pacientes. De acordo com a gerente municipal, o objetivo do
CRDC é:
Prestar atendimento de qualidade e resolutivo em DCV, atendendo a população
usuária com equidade, acessibilidade e universalidade, como preconizam os
princípios do SU. Tendo como objetivos específicos o desenvolvimento de
atividade de assistência, prevenção e educação em saúde para os pacientes
encaminhados pela Rede-SUS-Salvador. E diminuir o quadro de morbimortalidade de DCV neste município. Desenvolver ações de saúde através da
equipe multidisciplinar, com objetivo de acolher e abordar o indivíduo de forma
integral e referenciá-lo para a rede básica de saúde, para rede especializada ou
para a internação hospitalar. Ser ainda, observatório do sistema e da saúde da
população. Com a meta de registrar casos de DCV e acumular subsídios à
elaboração de estudos epidemiológicos e construção de indicadores de saúde e
41
de serviços que contribuam para a avaliação e planejamento da atenção integral
de todo o sistema de saúde. Por fim, garantir quadro de recursos humanos
qualificados compatíveis ao porte e aspecto desta unidade CRDC. (Protoc. de
apres. do CRDC, 2008).
Assim, o CRDC oferece aos pacientes19 especialidades de cardiologia adulta e
pediátrica, endocrinologia, angiologia, nefrologia, ginecologia para gestação de
alto risco, oftalmologia, odontologia, fisioterapia, enfermagem, nutrição, psicologia
e assistência social. Em expediente de 07h00min as 19h00min, de segunda a
sexta-feira. Com área de 800 metros quadrados, dispõe de um casarão central de
dois andares, zoneado em três unidades de serviços. Sala de administração com
call center, gerência, coordenação médica e de enfermagem, despensa, refeitório,
três sanitários e arquivo médico com cerca de 20 mil prontuários de pacientes, em
ordem numérica crescente.
A anuência à pesquisa no CRDC foi concedida mediante parecer do comitê de
ética do hospital Santa Isabel, seguindo-se reunião com os dirigentes visando a
criar mecanismos administrativos que viabilizassem as entrevistas. Decidiu-se
pelo local – o auditório – e os dias: as terças e quintas-feiras, durante todo o
expediente; bem como a forma de condução dos pacientes pós-IAM ao
pesquisador, após consulta com a equipe de saúde.
19
O perfil clínico dos pacientes do CRDC forma-se de diagnosticadas como hipertensos severo com
PAS >170mmg e PAD>100, ICC grave com FE<40%, Arritmias, dislipidemia severa, usuários de marca
passos/CDI, cardiopatas congênitos com suspeitas forte ou confirmada, valvulopatas, pericardiopatias e
gestação de alto risco com critérios específicos (Protocolo de apresentação do CRDC).
42
Método de trabalho
•
Pessoas entrevistadas, entrevistas e dinâmica de campo.
As pessoas entrevistadas sofreram ao menos um IAM no máximo há dois anos,
contados do dia da entrevista. A pessoa que sofreu IAM mais recentemente
vitimou-se três meses antes da entrevista e todas estão em reabilitação nos
respectivos domicílios. Uma das entrevistadas sofrera seis IAM nos últimos dois
anos e aguarda por cirurgia na fila de espera. Constatou-se que todas as pessoas
pós-IAM já estiveram internadas. O grupo constituiu-se de 24 homens e 9
mulheres, com idades entre 43 a 67 anos. Os homens eram ou foram
trabalhadores assalariados, alguns são aposentados ou desempregados, mas
executam alguma forma de trabalho remunerado. Um deles com terceiro grau
concluído e três não alfabetizadas. As mulheres, em grande parte, trabalham em
afazeres domésticos. Duas são professoras, uma vendedora, e uma cabeleireira.
As pessoas que trabalham estavam afastadas devido ao IAM. Enquanto que no
INCOBA muitas moram no interior do estado; no CRDC, a maioria reside em
Salvador. Apenas duas residem sozinhas e o restante com familiares: filhos,
maridos, irmãs, sogras, entre outros. Constatou-se também que a maioria delas
vale-se do SUS, pois as unidades atendem a esta clientela.
As entrevistas ocorreram em salas reservadas a este fim, tanto no INCOBA
quanto no CRDC. Embora houvesse resistência, as pessoas pós-IAM mostraramse dispostas a colaborar com a pesquisa. Nestas privilegiou-se a fala da pessoa,
ou seja; o entrevistador interferiu o mínimo possível, possibilitando relatos amplos
sobre a doença. No entanto, quando necessário, houve interferência do
43
pesquisador com o intuito de ampliar detalhes imprescindíveis aos manejo da
pesquisa.
As entrevistas no ambulatório do INCOBA revestiram-se de impressão mais
biomédica do que as do CRDC, pois foram feitas em consultório. Isso pode ter
feito a pessoa entrevistada pensar se tratar de mais um procedimento médico.
Mesmo explicando a natureza da entrevista, o local não colaborou para desfazer
a impressão. Entretanto, a pessoa, durante a entrevista, se tranquilizava, pois
podia falar amplamente da própria experiência.
No CRDC foi diferente devido ao princípio de atendimento ser multidisciplinar.
Logo, os pacientes já têm alguma familiaridade com diversos profissionais além
de médicos. Isso permitiu uma quantidade de entrevistas superior comparada ao
INCOBA, apesar de se ter iniciado as entrevistas dois meses após o INCOBA. No
CRDC, ademais, contou-se com o auxilio de assistentes sociais, médicos,
enfermeiras, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos na identificação e
condução à entrevista.
As pessoas, de modo geral, se dispuseram a falar de aflições, problemas,
dificuldades etc. Algumas reclamaram do atendimento, criticando membros da
equipe médica que não se portaram como profissionais da saúde devem se
portar. Outra pessoa entrevistada relatou que apesar de sentir crise de IAM
negligenciou a ingestão de medicamentos, pois preferia morrer a enfrentar os
problemas que vivenciava. Enfim, trata-se de vasto material coligido em que
relatos acerca de experiências da doença se misturam a forte carga emocional
44
por espelharem a vidas se esvaindo em meio a problemas cotidianos práticos e
projetos de futuro.
•
Critérios de seleção de pessoas para entrevista.
As entrevistas foram realizadas com pessoas vitimadas por IAM no máximo há
dois anos e que – após alta hospitalar – efetivam acompanhamento de
reabilitação no INCOBA ou no CRDC, a partir dos seguintes critérios de seleção:
1. Para inclusão: pacientes que sofreram IAM nos últimos seis meses ou há, no
máximo, dois anos; pacientes que estiveram internados; que estão em
reabilitação; que realizam consulta de acompanhamento da saúde; que
concordaram em participar da pesquisa como entrevistado. 2. De exclusão:
pacientes usuários de qualquer tipo de equipamento, mecanismo ou instrumento
na reabilitação; pacientes sem condições físicas e/ou psicológicas para participar
da entrevista; que se recusaram a participar da entrevista; pacientes com
transplante cardíaco; menores de idade; mudos e/ou surdos; deficientes mentais
de qualquer espécie. Em ambos os casos, a entrevista foi feita no dia de consulta.
A partir das entrevistas gravadas, transcreveram-se, literalmente, os relatos.
Entretanto, mesmo com cuidados – organização do local, posicionamento do
gravador para uma recepção eficiente20, solicitação aos funcionários do INCOBA
e CRDC para não interromperem as entrevistas etc. – houve perdas: ruídos na
gravação, recusa de pessoas em falar de certos assuntos, baixa intensidade da
voz, interrupções, ansiedade do entrevistador, palavras e trechos ininteligíveis
devido à dicção do entrevistado etc. Fatos, na medida do possível, atenuados
20
É comum certo grau de constrangimento do entrevistado frente ao aparelho de gravação. Visando a
minimizar o fato, valeu-se do artifício de posicioná-lo em meio a outros objetos sobre mesa como canetas,
bloco de notas, óculos, lápis, papéis com o fito de dispersar a atenção e favorecer o narrar das pessoas.
45
pela insistente repetição de audição visando a precisar relatos de prejudicada
qualidade.
•
Consentimento Livre e Esclarecido
O consentimento livre e esclarecido (anexo 01) foi disposto e explicado às
pessoas convidadas à entrevista. Primou-se pela simplicidade e clareza da
redação com o intuito de prontamente cientificar os participantes a respeito das
razões e importância da entrevista.
Compõe-se o consentimento dos tópicos: Título do estudo; onde se apresenta o
nome da pesquisa. Informações e objetivos do estudo; com nomes e telefones de
profissionais do INCOBA e CRDC, para esclarecimentos necessários. Explicamse os objetivos da pesquisa para que a pessoa possa sentir-se livre para
participar ou não do empreendimento. Descrição do estudo e dos procedimentos;
onde se esclarecem natureza do trabalho, data de ocorrência, procedimentos
constitutivos e garantias de sigilo a respeito das informações recolhidas,
acordando-se o compromisso de só ter acesso ao conteúdo nominal o próprio
pesquisador e sua orientadora no Programa de Pós-Graduação em curso.
Benefício; onde se deixa claro que – pela colaboração – estão contribuindo para
que os conhecimentos gerados revertem em auxílio futuro a outras pessoas em
similar situação. Riscos e desconfortos; onde se informa a ausência de risco para
o entrevistado e que o mesmo, ao bel prazer, pode interromper a participação
sem prejuízo de direitos quanto à assistência de que vem usufruindo.
Confidencialidade; onde se garante sigilo absoluto da identidade. Por fim, o
Consentimento livre e esclarecido é assinado pelo entrevistado – ou
representante legal – e pelo pesquisador.
46
•
Roteiro de entrevista
O roteiro de entrevista (anexo 02) utilizado estrutura-se em quatros blocos de
questões
norteadoras
aplicados
de
modo
maleável,
ou
seja,
para
o
desdobramento deles possibilita-se desenvolvimento flexível em relação ao
espaço dialógico que se procurou criar junto aos entrevistados, disponibilizando
espaço e tempo sem prévia definição para relatarem – de maneira ampla – suas
experiências. Assim, denominaram-se os encontros com as pessoas pós-IAM de
Entrevistas-Conversação Roteirizadas. Realizou-se, portanto, 33 entrevistas com
duração média de 47minutos cada.
Os quatros grandes blocos de questões do roteiro se constituem de:
Apresentações e indicações biográficas; O IAM e o itinerário terapêutico;
Tratamento e adesão; O retorno para casa e as maneiras de lida cotidianas. Esta
organização visa a abranger situações anteriores à doença (Apresentações e
indicações biográficas); a crise (O IAM e o itinerário terapêutico); as
circunstâncias da reabilitação (Tratamento e adesão); e os momentos cotidianos
posteriores à crise (O retorno para casa e as maneiras de lida cotidianas).
Entretanto, salienta-se que os relatos vão além da organização do roteiro. Neste
sentido, o roteiro é o instrumento que aponta os temas da entrevista-conversação.
A partir deles as falas são dirigidas por intenções, desejos e projetos dos
entrevistados. Enfim, o elemento visado nas conversações foi fazer com que as
pessoas dirigissem os cursos de suas falas para o que elas consideram como
relacionado ao adoecimento.
Mais especificamente, o primeiro bloco do roteiro – Apresentações e indicações
biográficas – versa sobre a identificação do entrevistado: nome, idade, sexo,
47
endereço, telefone etc. Ademais, solicitava-lhe que, na medida do possível,
detalhasse um pouco da respectiva história de vida: onde morou, como foi a
infância, estudos, trabalhos, família, filhos, problemas enfrentados etc. Enfim,
informações que dispusessem à pesquisa dados de caráter biográfico. Deste
modo, por intermédio de interjeições simples e abertas – “Conte um pouco como
é sua vida” – oportunizou-se ao entrevistado discorrer sobre seu dia-a-dia e
posicionar-se, mediante relato abrangente, sobre o que considerava naquele
momento, a relação entre o passado sadio e o presente, uma vez vitimado pelo
IAM. Fato que, de certo modo, demonstra que a segmentação do roteiro em
blocos não forneceu respostas desconexas quanto ao fluxo biográfico dos
assistidos, vez que elaboraram concatenações entre o passado vivido, o presente
predominante e projetos futuros. Assim, as entrevistas evidenciaram ser esse
bloco suficiente à abertura das conversações.
O segundo bloco, O IAM e o itinerário terapêutico, centra-se na crise de IAM e
procura por informações relacionadas a: período de ocorrência – quando?–;
sensações físicas – o que sentiu –; pensamentos e expectativas – O que pensou
que era? –; atitudes e experiências vivenciadas – Foi internada e como foi? –;
avaliação de tratamentos recebidos – Quais os procedimentos médicos realizados
em você?
etc. Essas questões permitiram coletar informações à respeito do
estado físico e mental de cada paciente e ainda oportunizou-lhes discorrer sobre
o que pensaram e sentiram, sugerindo a internação como momento favorável
para refletirem sobre o ocorrido, além de viabilizar a compreensão de que o
internamento se constituiu no marco que especifica a ruptura que o IAM lhes
impôs
em
relação
ao
cotidiano,
permitindo-se
evidenciar
a
relação
cotidiano/doença; principal enfoque objetivado na aplicação deste bloco.
48
O terceiro bloco – Tratamento e adesão – é o lugar onde se possibilita aos
pacientes discursarem sobre os modos cotidianos e particulares de lidarem com
as implicações da doença. Evidencia-se que além de tentarem assentar o
cotidiano às prescrições, buscam ajustar as prescrições ao cotidiano, mostrando
como as prescrições são interveniências na vida cotidiana.
O quarto bloco – O retorno para casa e as maneiras de lida cotidianas – procura
investigar sobre quais as ações tomadas pelos pacientes após retornarem ao
cotidiano. Quais os cuidados efetivados – por enfermos e familiares – no tocante
a ajustes entre realidade cotidiana e a realidade de prescrições médicas, como
período de descanso, ingestão de medicamentos, reeducação alimentar,
agenciamento de consultas, mudanças de rotinas, hábitos etc. Este bloco foi fértil
aos objetivos, pois viabilizou aos entrevistados estabelecerem relações entre
adoecimento e as situações problemáticas.
Por fim, embora ainda não mencionado, consta do roteiro o item “Informações
complementares”, visando a recolher críticas sobre a conduta do pesquisador
durante a efetivação das mesmas, registro de como o entrevistado foi
encaminhado ao depoimento, quem a acompanhava etc.
•
Modelo de organização dos relatos das entrevistas
As entrevistas foram orientadas por um roteiro que contém questões sobre os
seguintes temas: história de vida, o IAM e o itinerário terapêutico, tratamento, o
retorno para casa e as maneiras cotidianas de lidar com as prescrições. A análise
das entrevistas apoiou-se em categorias criadas a partir dos relatos das pessoas
entrevistadas, a saber: causas, crises, cuidados, mudanças e projetos futuros.
49
As categorias deram as bases para a análise dos tópicos apresentados e
refletidos neste estudo, não se constituem eles em unidades estanques, por
evidenciarem afinidade entre si; por exemplo: há nos relatos uma tendência a que
se estabeleça uma relação entre situações cotidianas tidas como problemáticas e
o adoecimento. Verifica-se que a natureza de tal relação se mantem constante
nos 33 relatos coletados, embora – na conjuntura deste trabalho – concentre-se
atenção de análise em nove relatos que apresentam maior detalhamento nessa
relação.
A articulação entre os diferentes tópicos efetuada pelos próprios entrevistados é
crucial, pois confirma uma das hipóteses da pesquisa segundo a qual só se pode
compreender a lida cotidiana das pessoas com o adoecimento ao se conhecer o
horizonte da vida cotidiana e os acontecimentos que lhes são relevantes,
evidenciada – de maneira mais clara – pelas relações que estabelecem e pelas
conexões de sentido que são geradas a partir da dinâmica das respectivas
experiências.
50
Capitulo III: relatos de causas e crises de IAM
Como princípio metodológico de elaboração deste capítulo, num primeiro
momento,
apresenta-se
relatos
das
pessoas
pós-IAM
enfatizando-se
o
estabelecimento de relações entre situações cotidianas por elas consideradas
problemáticas e o processo do adoecimento. Em seguida, registram-se as
descrições de crise de IAM.
Pensar as concepções de causas ao IAM, na perspectiva da pessoa enferma, é
seguir o que diz RABELO, ALVES e SOUZA (1999):
Tal como contada, a história da doença é parte e produto de uma conjunção
específica de situações ou relações fragilizantes que podem envolver outras
pessoas, o ambiente natural e o mundo dos espíritos. Embora possamos traçar
cada um destes domínios em separado, raramente a doença se apresenta nas
narrativas como resultados de uma cadeia única de eventos ou causas. (p.53).
Este estudo ate-se às maneiras pelas quais o adoecimento por IAM é relacionado
às situações cotidianas consideradas como problemáticas, ou seja, tratar-se-á de
“situações ou relações fragilizantes que podem envolver outras pessoas”.
Analisar as relações entre situações problemáticas e adoecimento não significa
que as concepções de causa – elaboradas pelas pessoas com IAM – negam as
perspectivas da medicina sobre a doença. Por outro lado, os relatos sugerem que
essas perspectivas comportam relações necessárias para se entender o cotidiano
de adoecimento dessas pessoas, vez que os relatos indicam as situações
intervindo como causa da deflagração do adoecimento. Neste sentido, menciona
SOUZA (2004):
51
Em geral os aborrecimentos aos quais os entrevistados se referem envolvem
duas ordens de problemas relacionados: as dificuldades financeiras e
perturbações nas relações familiares. Por vezes são os problemas de dinheiro
que surgem como causas de desarmonia e desestabilizam as relações
familiares; em outros casos as dificuldades materiais resultam de contendas
familiares em casos de separação, por exemplo, ou preocupação com os filhos
que estão em dificuldades. (p.53).
As situações problemáticas relatadas pela maioria dos entrevistados – por mera
coincidência – referem-se às ordens familiar e financeira. Ainda em consonância
ao excerto destacado, as fronteiras entre essas ordens de problemas são difíceis
de serem demarcadas, já que se relacionam à prática cotidiana das pessoas.
Nos relatos de pesquisa sugere-se que se dê atenção às concepções de causas
da doença elaboradas pelas pessoas pós-IAM, porquanto ser uma maneira de
evidenciar-lhes a lida diária – repleta de situações problemáticas – durante o
adoecimento. Assim, refletir acerca de tais concepções pode ser uma maneira de
compreender o labor dessas pessoas para ajustar cotidiano e adoecimento, pois o
evento da doença ocorre relacionalmente àquelas situações, exigindo delas
esforços para criarem ações práticas a fim de mediar o prescrito – como
reabilitação do IAM – e as situações problemáticas cotidianas.
Os entrevistados, em maioria, relataram que os problemas do dia-a-dia são
causas da doença e, ao mesmo tempo, complicadoras da reabilitação; assim
entende-se por tal consciência um primeiro esforço para gerar ações práticas afim
de lidarem com a realidade do adoecimento. Deste modo, não é somente a nova
realidade cotidiana que é parcialmente ajustada às prescrições; o prescrito
também é ajustado aos limites e possibilidades de viabilização do cotidiano.
52
Entretanto, os esforços na criação de ações práticas não se centram tão-somente
nos limites e nas possibilidades do mundo cotidiano. Durante o adoecimento o
enfermo apreende conhecimentos de vários campos, sendo o mais influente o
biomédico. Realidade que, mesmo assim, vai-se – paulatinamente – ajustando às
atividades cotidianas. Evidencia-se, portanto, que apreende os conhecimentos
sobre a doença de maneira ativa e prática. SOUZA (2004) registra:
embora sejam encontradas discrepâncias entre a perspectiva do paciente e a
visão biomédica, esses universos não são incomensuráveis, são mundos que se
comunicam. (...) ainda que não esteja plenamente de acordo com a medicina, o
paciente se apropria dela a partir de seu horizonte de vivencias e incorpora o
oferecido pelo médico à sua compreensão da doença, quer isso signifique
modificar ou não sua atitude cotidiana e seus hábitos. (p. 56).
Como já referendado, essa apreensão pode ser perceptível atentando para as
relações que as pessoas pós-IAM estabelecem entre situações cotidianas
problemáticas e o adoecimento, uma vez que o estabelecimento dessas relações
alude a como elas se exercitam – durante a reabilitação – no esforço prático para
efetivarem os ajustes. Assim, além de considerar os fatores de risco relativos às
DCV como causas do IAM sofrido, elas indicam causas outras a partir de suas
vivências no mundo cotidiano. As concepções então, baseiam-se em relações de
interveniências entre as situações e o adoecimento. De tal modo, fica indicado
que analisando as relações a lida cotidiana dessas pessoas pode ser
compreendida.
Com a finalidade de observar mais atentamente algumas dessas relações,
apresenta-se, a seguir, alguns relatos que – por delimitarem relações comuns
53
entre todos os relatos – aqui são apresentados como exemplos do conjunto,
sendo selecionados devido a detalharem com maior acuidade tais relações.
•
Relato Sra. Analí.
A paciente entrevistada tem 45 anos, é casada pela segunda vez e tem duas
filhas adultas, também acometidas de DCV que, por várias vezes, também já
foram internadas. Analí cuida da mãe, que apresenta problemas mentais, e do
padrasto, diabético. Este teve o pé amputado em decorrência da referida
enfermidade. Vive este cotidiano há anos, realizando sozinha todos os afazeres
domésticos, pois o marido trabalha fora. Interrompeu a carreira de magistério para
cuidar dos pais, trazendo-os para a pequena residência de dois quarto, onde já
habitavam marido e as duas filhas. Relatou estar ficando “gorda, feia, sem
vontade de fazer nada, nem cuidar de mim” (choro). Ademais, sofreu IAM seis
meses antes da entrevista e relata essas situações cotidianas como relacionadas
ao adoecer:
Graças a Deus hoje ela tem 21 anos não dá mais crise. Já foi liberada do
neurologista né? Já fiz dois eletros mês passado, porque o médico cuida direitinho
de minha meninas. E ela tá boa. A Tetralogia de Falow ainda tem que fazer umas
quatro cirurgias, mas ela por conta própria... disse que ainda não tá...Quando eu
tô me reativando, saindo também da síndrome do medo do escuro. Porque eu fiz
uma jogada comigo. Bem, se eu não posso dormir de noite eu faço tudo de noite e
de dia eu vou dormir. Aí comecei a melhorar nesse sentido. Porque eu não dormia
pelo fato de que elas eram menores e eu tinha que tomar conta e trabalhar. Aí crie
esse hábito de não dormir direito. Só têm três ou quatro horas de sono e olhe lá.
Foi que minha pressão piorou. Eu sei que eu tinha disparos assim. Parecia que o
coração tava andado. Se movimentado nesse percurso (a região do tórax). Fiquei
nervosa. Sei que coração não sai do lugar, mas dava a impressão que saía...Aí,
tudo isso. Eu tô com eles cuidando até o fim. Eu vou fazer o que? Num posso me
54
separar de meus pais. Tenho muita compaixão deles. Mas só que esse problema
todo, o que tá acontecendo; minha pressão só anda subindo, sinto falta de ar, eu
num durmo. Aquela sensação parecendo que eu vou falecer!! Falecer quer dizer;
num tem outra sensação pior do que a morte, mas uma sensação muito ruim.
Como se eu tivesse medo de deitar e num me levantar mais...
A Sra. Analí fala sobre as situações problemáticas enfrentadas cotidianamente,
estabelecendo relações causais entre as situações e adoecer por IAM. Essas
relações se apóiam no estoque de conhecimento biográfico de que ela dispõe
acerca de como as situações causam mal-estar similar ao do infarto. Assim, o
IAM sofrido por ela evidencia ter relação com tais situações cotidianas.
Eu prefiro ficar agilizando, fazendo alguma coisa.Ou então meu marido quando ele
deita, eu encosto minha barriga nas costas dele, eu sinto segurança. Fica aquele
tremor assim, fico ali conversando, orando, vem minha filha, ver se eu pego no sono,
as vez eu adormeço. Aí as horas vão passando e nada. Quando eu levanto parece
que eu num dormi nada, acredita? Como ontem pra hoje, ontem de ontem. Eu fico
com um tremor. Tem hora que me dá uma tosse, num sei o que é isso. Eu tô assim
muito bem, aí meu coração parecendo que tá movimentando. Eu sei que num é o
coração, deve ser nervoso. Mas aí vem aquela tosse. Uma tosse seca. Tosso,
e....parecendo que aquilo tá saindo daqui, tá andando aqui (tórax). Um bolo,
parecendo que o coração tá se movimentando. Aí vem aquela tosse seca. Aí eu paro.
Respiro fundo e tal....Acho que é muita pressão. Falta de descanso. Estresse. Falta
de lazer, que é não tenho lazer, entendeu. Falta de descanso, engordar. Eu já tive,
também, peso. Já voltei. Já perdi uns seis quilos, já voltei de novo, entendeu. Hoje em
dia.... eu já... as vezes...Depois que eu me casei melhorou um pouquinho na questão
da alimentação...O que foi que houve; minha mãe tem condições com meu padrasto.
Ele trabalhava no CEFET. Mas na época que me separei, já chegue a comer fubá de
milho e cuscuz pra mim e minha duas filhas. Passava necessidade porque não tinha
apoio dela. Então isso é muito doloroso, senti isso. Muito ruim. Mas o meu problema é
lidar com essas emoções dos outros e ter que aceitá-las. Mas eu sempre tô
aceitando, mas eu sei que o retorno por dentro vai me... sei lá. Eu vou aceitar até o
fim, o que vou fazer com eles?
55
As situações cotidianas de cuidar dos familiares são obrigações que ela relata
como possíveis causas do IAM sofrido. Além de obstáculos ao atendimento do
prescrito pelos médicos visando à reabilitação, ainda não consegue criar ações
práticas de mediação para ajustar, mutuamente, as situações problemáticas do
cotidiano e prescrições, indicando que as situações cotidianas são relacionadas
como causas do infarto e empecilhos à reabilitação da doença.
Meu pai no Ana Nery puxou o nervo do pé amputado. Abriu uma cratera. Levei pro
Ernesto Simões às pressas. Chegou lá mandou passar “xivastatina de prata”? E
limpar com “fogo”? E enxugar, é o que eu tô fazendo, mas ainda não fechou. Já vou
amanhã pro Ana Nery de manhã cedo, pra ver se Dr. Janilton atende porque tá
formando um nervo assim. Um negócio branco. Ele é muito teimoso. Porquinho viu!
Ele pega assim....Aí que horror! É essa lida minha Dr...Minha mãe já vem pro
cardiologista agora. Já tem psicóloga aqui. Já tem Ana Nery, ortopedista. Já
tem...porque ela tá com retinoplas...com é!? diabética. E eu não paro Dr. (a
entrevistada intensifica o choro) Eu tô cansada. Se eu durmo tarde, eu quero petiscar.
Muitas vez nem tem nada pra comer assim, mas...e pão num vai me fazer bem. Mas
aí eu caio aí devagarinho, se tem a banana eu fico assim. Mas sinto fome, meu
estomago começa a doer. Se vou botar a janta de meu marido, num posso jantar;
Nãããõoo!!! vou jantar, porque eu tô sentindo fome. Eu já agilizei o dia todo, a tarde
toda e...termino petiscando a comida dele. Só pra num botar pra mim num prato, mas
eu petisque....E aí vai. Ás vez lembro de tomar o remédio, aí tomo. Eu sei que toda
atrapalhada. Atrapalhada na minha vida sexual. Atrapalhada na minha vida...prá dar
atenção as minhas filhas. Faço o que eu posso, mas ainda num dá. Atrapalhada
comigo meeesmo...Agora com esse exame ergométrico que eu fiz eu num sei se...eu
tenho que perder um pouquinho de peso pra puder caminhar. Porque eu caminhei ali
e me senti mal, nem acelerou! E eu preciso caminhar. Mas como posso caminhar de
manhã se num durmo de noite direito. Não tenho ânimo. E se tenho que caminhar
cinco horas eu tô no hospital com meu pai. Tô numa emergência.Tô adiantando as
coisas porque eu me atrasei pela manhã, porque tentar dormir a noite que eu perdi.
Hooo! que atrapalhação! Tem saída doutor?
A Sra. Analí, mesmo tendo noção da situação não sabe como ajustar seu
cotidiano para que lhe seja possível cuidar de si como prescrito pelos médicos,
56
pois os ajustes também dependem das atuações de outros atores do cotidiano –
pai, mãe, filhas, marido e irmã. Sem a participação deles nos ajustes, seguir as
prescrições não é exequível, pois não depende unicamente da sua vontade ou
necessidade individuais. São as atividades de cuidar dos familiares doentes, da
casa e do marido que exercem força maior na escolha do que priorizar no dia; fato
que a faz relacionar o descompasso da situação ao IAM sofrido.
Eu agora tenho um padrasto que eu ganhei dela. É uma pessoa muito boa, tenho que
cuidar como meu pai. O que vou fazer com aquele homem meu Deus? Vou
abandonar? Ele vai morrer mais rápido. Minha mãe maltrata muito ele. Outra
responsabilidade que eu num posso me separar dele, num posso. Até o animal (o
cachorro da mãe) vomita bílis de fome, aí.. vou botar comida pro animal. E num quer
que toque no animal, mas num cuida do animal. Eu queria deixar tudo de mão, mas
minha consciência não permite. Acho que o maior crime é falta de amor. Só que eu tô
sobrecarregada demais. Aí eu tô ultimamente...eu até já senti isso, eu nunca me
importei, só que agora eu tô com mais medo, porque tá aumentando. É essa falta de
ar, a pressão direto. Hoje eu tenho noção do que acontece comigo, eu tenho noção.
Na fala da entrevistada percebe-se quais situações considera como problemáticas
em virtude de seu cotidiano. Essas situações tanto são concebidas como causas
do IAM sofrido quanto obstáculos ao seguimento disciplinado das prescrições.
Assim, o cotidiano repleto de problemas antes da doença mantém-se como
predominante na reabilitação.
•
Relato Sr. Valdo
Sr. Valdo tem 50 anos de idade, diabético e espera a aposentadoria. Casado pela
segunda vez, depois de sete anos separado da primeira esposa, reside com a
atual esposa e com as duas filhas dela, em uma casa no bairro de Pernambués.
No andar superior da residência reside a sogra com a qual vive situações
problemáticas. Como espera se aposentar, passa muito tempo em casa. As
57
relações conflitantes que vivencia com a sogra se mantêm desde o princípio do
atual relacionamento, vez que a sogra não lhe aceita como genro. As situações
são relatadas por ele como problemas vividos cotidianamente, relacionando-os ao
IAM sofrido no ano de 2006. Sr. Valdo relata:
Os grandes problemas que eu passei pela vida num tenho muito não, hoje tenho. È
porque...o problema é o seguinte; quando eu me separei e encontrei essa minha
mulher atual, e ela também já foi casada e tem duas filhas. Ela tinha sete anos de
separada...e tal. Só que chegando lá na casa dela, só eu e ela, era uma pessoa que
morava com mãe e tornou-se uma pessoa dependente da mãe, né! E começou a
ser uma pessoa teleguiada pela mãe. É a mãe que diz; ‘cuspa aqui, ande aqui’ e aí
ela ficou. E quando eu chegue lá a velha começou logo a criar problema. Porque ela
queria que nos fossemos pessoa de 18, 17 anos, né! Aí a mesma coisa, ela num
quiria aceitar nossa experiencia, né! E com pouco, um belo dia eu..a gente saiu,
tomamos um chopinho, demoramos assim umas meia hora. Eu sei que quando
chegamos em casa era mais ou menos uma dez e cinco e como ela era
acostumada a chegar seis horas, era caseira. Nesse dia pra ela foi uma eternidade,
pra mãe dela. E quando eu cheguei em casa..a mãe dela já tava na porta com um
fio, com Flexfio e num quis nem saber quem tava com ela. Ora, uma pessoa que
tinha indo, uma pessoa que já tinha indo na casa dela, poxa! E queria me bater e
chamando a mulher de vagabundo ‘sua vagabunda’ mesmo e jogando a fio por
cima. Eu aí; vou deixar, fazer o que? Num vou bater em mulher, é covardia, deixa
pra lá. Num vivo desmerecendo mulher. Daí pra cá começou, num nos acertamos
mais nunca..E ela sempre me perseguindo, perseguindo. Rapaz! chegou ao ponto
de ela dizer que foi pro dique do Tororó com arma pra me matar e tudo...
O cotidiano do Sr. Valdo é problemático já que um dos atores de suas relações
diverge de suas atuações como marido. Neste cotidiano as situações-problemas
são recorrentes, pois as interferências da sogra na relação do casal são
recursivas. Assim, o entrevistado relata o cotidiano como marcado por constantes
ajustes nas relações entre ele, esposa e sogra, tentando evitar que as situações
problemáticas findem em ocorrência grave. Ademais, o cotidiano tornara-se mais
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problemático após o IAM pelo motivo de as prescrições lhe serem impostas como
ações obrigatórias a cumprir. Para ele, agora, impõe-se a circunstância de ajustar
as situações problemáticas com a sogra e o prescrito, como meio de reabilitação.
Sr. Valdo tentou algumas maneiras para ajustar as situações com a sogra e assim
evitar acréscimo de problemas. Relata que mudou de residência para ficar
distante dela. Mas a medida não surtiu o resultado esperado, pois a sogra
reclamou da distância da filha, solicitou que retornassem, teve o pedido acatado,
entretanto, o entrevistado estava ciente de que as situações problemáticas
poderiam voltar a acontecer:
Aí pronto, pegue a mulher, umbora! pra Cajazeira, vamo. Aí fui morar em Cajazeira,
ainda tava trabalhando. De Cajazeira, fui pra Valeria, porque minha irmã tinha um
mercado e me chamou pra trabalhar lá. Porque eu me desempreguei já no
final...engraçado,quando eu me desempreguei, fiquei doente com diabetes,
hehehehe!!, aí minha irmã...Aí quando chegou lá em Valeria, lá vai, lá vai, e ela
sempre...qual era a coisa, bom! ela tentou se aproximar, poxa! Se num posso com o
inimigo vamo me juntar, né! A intenção dela é que depois que ela tivesse junto
comigo e tivesse todo o apoio da filha, ela fazeria pra...eu que num sou besta nem
nada. Aí ela resolveu chamar a mulher pra morar aqui no Pernambués; ‘Minha filha eu
sou viúva, só tenho você - porque ela é filha única - e tal, você mora com sua filha
mais velha lá em casa e tal - era filha da mulher - você mora dijunto de mim porque
eu sempre preciso de uma pessoa pra me ajudar e tal. È muito bom à presença de
um homem dentro de casa’ e tá, lá vai. Aí me mulher, tá. Como ela tinha me dado
muito apoio, na minha doença. Eu digo; ‘É, eu vou com você, mas num vai dá certo’...
A complicação no relacionamento com a sogra é apontada pelo entrevistado
como relacionada ao IAM sofrido. São situações que Sr. Valdo não pode se
apartar por vontade própria, nem mesmo em atender à prescrição quanto a ter
uma vida calma. Ele sabe que para evitar reincidência do IAM, fora-lhe prescrito,
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inclusive, a vivência em cotidiano tranquilo. No entanto, sua lida cotidiana de
reabilitação vem marcada pelas tentativas de ajustar essas situações ao prescrito,
fato que contunde o processo de reabilitação, uma vez que a sogra não fala e
nem quer vê-lo.
Aí começou. Aí quando ela viu que a força dela. Porque ela tinha o poder de fazer e
desfazer. ‘O que vou fazer? Tenho que arrumar um jeito de jogar ela contra ele’. E
qual é o caminha? USAR, as filhas. É esse que o problema que eu tenho..É um
problema que eu tenho hoje que é mais crônico que minha diabetes..Aí continuo,
pá,pá,pá. Arrumando uma coisa, arrumando uma coisa. E eu sinto que ela
trabalhando e num conseguindo botar a mulher contra mim. Até hoje ela faz, mas
num consegui botar a mulher contra mim, porque eu sei que hoje em dia que fica
difícil pra minha mulher na situação, entendeu?! Porque chega uma pessoa falando,
‘fulano fez isso com sua filha’ e tem eu e ela num sabe quem defende, tem a mãe no
meio. E a mãe dela começou a mal-tratar ela. Que num sei que, que num sei que.
Que eu era velho, pobre, que ela tem de conseguir uma pessoa melhor.Uma mais
moderna. E minha mulher; ‘eu num quero saber disso não minha mãe’. E que num me
conhecia com marido dela, que o marido dela era o ex-marido. Tudo pra me..rapaz!
Isso até hoje e o pior, o caso é tão sério que eu consegui tomar ódio da menina e que
me atrapalha e é o motivo de eu tá qui.
A situação problemática compartilhada com a sogra além de ser relatada como
causa do adoecer por IAM, impõe limite para seguir as prescrições. Ajustar essa
situação é necessidade para atender às prescrições. Enquanto não, a situação é
concebida como causa. Daí, após veemente discussão com sua sogra, foi ao bar,
ingeriu bebida alcoólica e, ao retornar para casa, foi acometido pelo infarto.
O infarto tem. O infarto tem. Porque quando eu saia pra beber eu saia pra num ter
problema, entendeu?! Porque eu era um cara assim, quando eu bebia eu num era de
agredir, eu chegava em casa bêbado e ia dormir. Então as vez assim, a mulher nem
se importava quando eu estava por lá, porque eu chegava dormia, num achava nada
feio, num é?! Se tocasse uma pedra em minha cabeça, só ia sentir se batesse. Aí eu
fui, fui me acostumando, que fui pra ir pro um seis a setes meses consecutivos só
60
na... (faz um gesto com a mão indicando o ato de beber), foi aí que...e já com
Diabetes né!, Diabetes bebendo...
•
Relato Sr. Ubiracy
Sr. Ubiracy é paraibano; após o falecimento dos pais – quando contava apenas
dez anos de idade – criou-se pelas ruas de Ilhéus, sul da Bahia. Hoje, aos 62
anos de idade, apresenta estatura pequena e forte, aparentando ter menos idade.
É homem áspero nos gestos e de poucas palavras. Estudou até o primário e
trabalha desde pequeno. Aprendeu as profissões de serralheria, solda,
marcenaria e pintura. Relata:
...sobrevive praticamente sozinho, maaasss, graças a Deus, pelo meus esforços
consegui aprender alguma profissão, que é o que me mantém até hoje.”. “Euuu
quando perdi meus pais comecei a morar na rua. Dormir em estação de trem”.
Minha mãe, um ano depois que meu pai morreu, minha, mãe morreu. Meu pai era
um homem analfabeto e o trabalho que ele conseguiu em ilhéus foi trabalhar com
carvão. EEEEEE....depois que ele começou a trabalhar com carvão ele começou a
sentir problema de saúde e morreu, só isso. Minha mãe morreu de doença normal.
Minha mãe me chamou um dia de manhã, disse que ia embora. Tomou banho,
vestiu um vestido dela, se deitou e morreu.
Com a idade de dez anos foi morar nas ruas e fazer pequenos serviços em troca
de algum dinheiro, como carregar bagagens na estação de trens, levar recados
etc. Fora recolhido por uma irmandade assistencial até, aproximadamente, a
idade de 18 anos:
Tive uma vida....foi, sei lá, muito azarada pelo destino, porque quando eu tinha...19,
18 anos uma certa pessoa tentou contra minha vida em ilhéus e eu pra me defender
tirei a vida. E fui condenado por isso. Porque se tratava de família abastarda em
ilhéus. Cheguei a ser preso. Oito anos em ilhéus e aqui. Puxei três anos em ilhéus e
cinco anos aqui, na penitenciária.
61
Na prisão aprendeu serralheria e saiu empregado, pois fora detento de bom
comportamento:
Quando sai de lá, trabalhar. Eu já saí da penitenciária empregado. E as outras eu
aprende fora de lá. Eu por ter bom comportamento eu já sai de lá empregado pelo
próprio diretor. Fui trabalhar na Brida turismo na época. Hoje nem existe mais foi
extinta. Depois Elevadores Amoêdo e aí continuei. Me casei constitui família.
Neste relato de vida – repleta de situações problemáticas –, uma foi enfatizada
como possível causa do IAM: a separação conjugal.
E....num sei não se esse infarte num foi provocado... porque a separação com a mãe
dela foi um negocio...foi horrível. Quando ela (refere-se à filha pequena) teve a
meningite nos vivíamos juntos ainda. Quatro meses. Quando nós nos separamos, ela
ia fazer um ano. Faltava cinco dias pra ela fazer um aniversário. Primeiro aninho dela.
Foi quando nos separamos. Aí véio né! Ela queria a menina e eu queria, entramos em
atrito por causa disso. Conselho tutelar, poliça, foi um...foi um...E Aquilo foi me
machucando muito, e eu seu lá! E num sei se foi isso também que provocou tudo
isso. Aí ela foi pra São Paulo e deixou a menina comigo. Ela foi embora. Ela tinha
mais dois filhos que não eram meus. Largou um menino na casa de um, outro na
casa de outro. A mulher se desorientou. A mulher era evangélica. Nascida e criada
dentro da igreja evangélica. Nunca bebeu na vida e um dia saiu pra ir pra igreja e
voltou completamente embriagada. Ai ninguém segurou mais. Disse que ia trabalhar,
batalhar a vida. O cara que ela vive hoje é de lá. Trabalhava de táxi aqui, ninguém
sabe a procedência desse cara. Um cara que trabalha em porta de boate. Só anda
com menininhas de programas dentro do carro entregando a um e a outro. Deixa o
prego que o martelo chama, num é meu amigo!?
A separação afetou o Sr. Ubiracy pois a mulher optou por viver com outro homem
no estado de São Paulo, deixando a filha para ele criar. Contudo, relata que a
filha adoecera:
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Olha! Ela com quatro meses ela teve meningite. Teve aquela violenta,
minigococega que chama. Ficou internada vinte dias no Couto Maia, saiu boa sem
seqüela nenhuma. Admirou. Os médicos que trataram dela consideram um milagre,
sabe. Ficou sendo acompanhada pela APAE. Neurologista garantiu que ela não
tinha mais nada. A mãe conheceu um rapaz aí, foi embora pra São Paulo com ele e
largou ela comigo. Oito dias depois que essa menina tava comigo, ela começou a
chamar pela mãe, a sentir saudade da mãe. Eu liguei pra mãe; ‘Você precisa vir,
porque Ana Clara da sentindo sua falta’. E nisso ela foi perdendo as coordenações
motoras. Perdeu por completo. O pescoço mole, num ficava. Não pegava nada. Me
desesperei, levei pro médico. Levei pro Roberto Santos...Levei primeiro pro um
hospital em Cajazeira. O médico viu e disse que ela não tinha nada, que aquilo era
manha. Que eu levasse pra casa, que eu num ia nem medicar. Em vez de eu levar
pra casa, levei por Roberto Santos. Lá mesmo ficou e de lá pro cemitério.
Após a morte da filha não se interessava em cuidar da saúde, não tomando
remédio e nem se preocupando com as dores de infarto:
Então em virtude disso eu parei de tomar remédio, eu me desenganei de tudo, eu
queria morrer...A dor de infarto vinha. Inchava braço, eu sentia náusea e eu num
tomava o remédio. Eu dizia; ‘eu quero que você venha entupa tudo aí e me leve.
O relato, mesmo breve, ratifica a vivência de várias situações problemáticas.
Além disso, ainda se depara com outras situações conflitantes. Atualmente
reside, de favor, na casa de um filho, de índole violenta:
Um filho achou por bem eu ir morar com ele, entendeu?! Fui pra casa dele. Eu já
num podia pagar o aluguel lá no altos das Pombas, na Federação. A academia me
abandonou, sabe e ...tô até hoje sem consegui fazer o cateterismo. Hoje eu
dependo de morar em casa de filho, sabe. Não...filho...talvez por falta de recurso
não pode ter aquele cuidado que o enfartado merece. É....num comer
gordura...então, o que fazem lá pra comer eu tenho que comer, viu! Eu num tenho
outra opção. Quando eu ganho um dinheirinho procuro uma alimentação adequada
pra mim, mas quando num tenho vou comendo o que eles comem e seja lá o que
Deus quiser, sabe. Sempre fui independente. Sempre ajudei eles. Até esse filho que
me levou pra morar lá na casa dele...chegou a...até quase me agredir um dia
63
fisicamente porque eu fui dá um conselho a ele, sabe? Ele achou...sabe. E...tem
esse filho que me levou pra morar na casa dele, já me deu um murro no meu rosto
que partiu. É um cara extremamente violento. Ele ... é um negócio meio errado, aí
eu chamei ele e disse; ‘rapaz pelo amor de deus, eu num tenho vergonha de nada
em minha vida. Eu tenho medo de vocês um dia sentirem vergonha de mim. Então
pára com isso, pára com isso. Porque a gente vive da maneira que pode. Num
queira alcançar um padrão de vida que você num pode. Se você num pode e querer
atingir, você vai fazer coisa errada’. Pra que eu falei isso...me chamou de banana,
que eu era um banana e tal..Aí eu disse; ‘me respeite seu corno’; Corno é você seu
sacana. Aí pêêêê pela cara....Agora! Agora! têm quatro, cinco meses. E é assim
meu amigo. A vida é essa.
A biografia degradada e o cotidiano carregado de situações problemáticas
compartilhadas junto ao filho violento – concomitante a falta de recursos materiais
para atender as prescrições de reabilitação do infarto sofrido no final de 2006 que
o deixara internado por 21 dias –, impõe-se como circunstâncias marcantes de
sua reabilitação, enquanto espera pelo cateterismo.
O que se torna perceptível nesses relatos é que – apesar de demarcarem
situações distintas – especificam mesma sorte de circunstância marcante, qual
seja, a necessidade de os entrevistados terem se ajustar, mutuamente, situações
problemáticas cotidianas e prescrições de reabilitação. Desse modo, as pessoas
pós-IAM estabelecem relações entre as situações e o adoecer, ao indiciarem
nessas concepções de causas, elementos que apontam para a dimensão do viver
cotidiano compartilhado com outros. Vejamos outro relato para em seguida
explanarmos alguns argumentos acerca dessas relações.
• Relato Sr. Vieira Néri.
Sr. Vieira Néri, de 60 anos, é aposentado. Vive com a esposa em casa própria
num bairro popular de Salvador. As relações com a família não são
64
problemáticas. Ex-industriário, tem rendimento financeiro de aposentadoria que,
razoavelmente, atende às necessidades materiais. Entretanto, problemas
financeiros existem e são conferidos como “preocupação” vivida pouco tempo
antes do IAM.
Eu tive uma preocupação sobre um negoço que eu fiz que não deu certo. Rapaz,
sinceramente, vou ser sincero, óei um homem, ele pode ser o que for, mas ele tem
que tá dentro de casa pra resolver os pobrema dele. Porque se você num tiver dentro
de casa, se você num tiver dentro de casa pra resolver, dizer sim ou não, num tem
nada certo. Caia da onde cair, venha de onde vier. Porque se você tiver uma esposa
de atitude, que ela assuma a responsabilidade por você, tudo bem. Porque se ela
disser é isso, você vai chegar, vai analisar, não tem pobrema nenhum. Mas se achar
que num deve fazer e ela disser qui faz aí... meu irmão, o negoço...
Para o entrevistado o homem é o provedor da casa, com a ajuda da esposa. Os
papeis familiares são bem definidos: o homem é o responsável pelo sustento
material e o senhor das decisões nos problemas, os quais não existem se a
mulher seguir as orientações do marido. Esta ideia lhe é cara, pois, pelo relato,
sua vida sucedeu sem conflitos familiares maiores, já que a esposa o auxiliou na
lida de provedor da família, criando os filhos e cuidando da casa:
Não. Dentro de casa..é por isso que eu vivo até hoje, tranquilo porque..chegar...eu
digo.. pode resolver esse pobrema diga aí..tem isso..Ela vai acompanha aquilo ali,
manda fazer, tá tudo certo. Porque eu acho que a gente tem que andar todo mundo
unido e saber o que é que tá acontecendo. Porque, se é nós dois que tamos vivendo
e plantando a nossa família, então tem que viver unido. Que se você não tiver união
dentro de casa, num tiver um pensamento de igual, marido e mulher, então num vai
dar certo. Então, às vezes, quando eu tava na ativa trabalhando, eu cansei de chegar
chumbado, bêbado..aí, ‘óie..vai resolver teu pobrema de teu mercado aí me deixa
descansar.’ Aí, não tinha pobrema nenhum. Ela resolvia, dava o dinheiro a ela ia, não
tinha pobrema de mercado, pagava o que tinha de pagar, água, luz, me deixava eu
livre. Porque às vezes eu tava trabalhando de noite e, principalmente, o turno de
65
madrugada, cê num dorme quase nada, lá dentro do serviço num pode durmir
mesmo. Ainda mais na boca de forno, tem que marcar tudo no relógio,você não pode
vacilar. Então eu, quando chegava em casa, chegava despedaçado. Aí, eu dizia já
pra ela: fim desse mês, recebia o dinheiro; ‘toma aqui o dinheiro aí vai resolver teus
pobrema, me deixa em paz’. Pronto, ela aí já sabia, chamava os menino lá, os mais
velho lá, e saía mais ela, ia pra feira, pra mercado, ia pagar a água, luz, resolvia os
pobrema lá que tinha que resolver, comprava gás. Já me deixava eu descansar
porque, se não o negoço, se a gente for entrar em atrito, discutir, nunca que dá certo.
Não pode se fazer de andar um cum a cabeça na lua outra na terra. Tem que andar
com os dois igual. O mesmo pensamento que um tá o outro tem que tá, analisar se tá
certo ou errado.
Pelo sustento da dimensão de pai, provedor e chefe de família, menciona quanto
ficara transtornado com a necessidade de resolver certo problema de ordem
financeira, atribuindo ao fato a possibilidade de desencadear a enfermidade:
Já tinha mais ou menos um..quase um ano. E eu fiquei preocupado porque eu tinha
que pegar um certo capital pra pagar o cara. E, nessa época, eu tive que fazer um
empréstimo na mão de agiota. E agiota cê sabe como é agiota,ou você paga ou você
fica complicado. Porque o cara... tudo bem...10%, mas todo mês cê tem que sempre
cumprir aquela cota. E passou mais ou menos um ano e pouco...e eu aperreado pra
ficar livre daquilo sem puder, por um lado, do outro ajeita...quando eu consegui a
liberação de verba e... aí eu tive que recorrer ao banco, pra ficar pedindo ao banco e
ficar livre do outro, do agiota. A minha preocupação foi isso, foi antes d’eu cair doente.
Porque já tinha um ano, mais ou menos. Já tinha um ano, mais ou menos...óie: mil
reais não é nada. E, na hora que a gente tá sem ele, cum ele no bolso, é uma coisa,
mas você pensou mil reais que tem que pagar pra esse cara...de uma vez..mas tem
que ter. Você fica agoniado, aquela agonia, paga, num paga, vai prum lado, vai pra
outro. Quando você no dia que você não paga no mês, noutro, fica: “fulano por
que...não sei o que”. As vez de brincadeira, você tá num lugar, ele chega e aí, lhe dá
aquela beliscada..você fica agoniado...porra, passar vergonha...Eu desconfio...pra
mim, foi isso.
A situação problemática de dever dinheiro ao agiota, não dispondo de recursos
suficientes para, prontamente, saldar a dívida, e de ter que se explicar à esposa,
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dispôs o entrevistado a situação incompatível às suas referências morais como
chefe de família. A repreensão da esposa, a cobrança em relação à
responsabilidade como provedor do lar e a incapacidade momentânea de suprir
materialmente a família foram razões destacadas pelo entrevistado como
causadoras da crise de IAM, que o hospitalizou por 47 dias:
Porque eu tava meio chateado...e a mulher num tava sabendo de nada, depois que
eu falei cum ela. Ela conversando comigo...eu disse: ‘rapaz, cê vai lá..’. foi que ela foi
lá, explicou tudo a ele...quando ele não me viu na área, ele me procurou, né!. Aí eu
mandei ela conversar com ele. Porque você como pai de família, precisa dum
dinheiro, aí você...o cara é amigo, conhecido...“eu tenho, eu lhe empresto pô, você
me dá tanto”, mas quando você passa daquela data, de você..qui já tá pagando
demais...passa daquela data, o cara lhe encontra...“porra! Cadê, fulano, num sei o
quê...”. Aí, é nessa parte aí que começa a lhe esquentar sua cabeça. Aí você diz.. pô,
eu vou receber dinheiro, aí eu disse: porra! dia 20 vai sair dinheiro, eu vou adiantar
um lado, vou ver o que eu faço logo pra ficar livre. Aí, quando eu recebo o contracheque, tem um bocado de desconto, num adiantou nada, aí, você: ‘ô fulano, num sei
quê, olhe tô cum isso aqui, isso aqui, você segura aí, qui eu vou resolver isso aqui’. Aí
o cara fica, assim, botando uma pilha da porra na sua cabeça. É complicado. Aí você
tá cum dinheiro suficiente, qui vai resolver aquilo ali, chega em casa cê diz pra
esposa: ‘olha, fulana, eu tô...vou pagar um débito, assim, assim, assim, o dinheiro vai
ser esse aqui, nóis vai resolver esse pobrema aí do mercado, água, luz, telefone...’ E
esse dinheiro vou resolver um pobrema aí...qui eu tô devendo isso, isso e isso...às
vez é uma prestação...qui você...de carro, sei lá...uma bagulho qualquer que cê
comprou. Ela as vez num tá sabendo, mas quando ela vem saber aí, o negoço
engrossa, porque ela começa a pegar em seu pé.. “e porque você fez isso, e porque
cê fez aquilo, e porque você tem dinheiro na rua” e você fica retado, qui num quer que
chegue aquele extremo ali dentro de casa, pra num ficar discutindo na frente dos
filho, dos parente. Aí, pronto, começa aquela agonia danada.
•
Relato Sr. Marom.
O entrevistado tem 57 anos e trabalha, atualmente, realizando serviços informais.
O trabalho fixo era de percursionista em shows de música. Não tem família
própria, entretanto, possui uma irmã que mora em outra casa e o auxilia nas
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despesas diárias. Após o IAM, não o chamam para shows, pois temem agravarlhe a doença. Relata:
Porque as vez acho que minha doença é mais problema assim...de eu parado.
Sempre trabalhei. Sempre banquei a mim mesmo assim,..dependia de alguém, mas
já viu alguém, sabe! sua pessoa. O senhor me ajudar. Tá precisando de alguma coisa
e tal. Chegou ao ponto de meus patrões dizer que é dando que se recebe. Eles me
deu um presente. Um presente muito alto, eu ignorei aquilo. Eu num posso
aceitar...conversaram comigo e tal...Porque esse problema parado num é? Eu já botei
balaio na cabeça e tudo, ne!, na infância. Quando tava com dez anos. Quando eu
tava com dez anos, onze anos tal. Hoje não tenho condições, num vou mentir não
tenho condições, principalmente a tendinite que eu tenho. Agora mesmo fui até com
meu colega, num vou à médica. Tem horas que as dores aperta. Num disse aos meus
amigos também, porque quando pintar, eles me ligam e eu tenho que...ir.
Sr. Marom vive sozinho num quarto alugado, na Baixa dos Sapateiros, pago pela
irmã. Esta o ajuda com as despesas cotidianas como almoço, lanche, remédios
etc. Ajuda sem a qual não atenderia as necessidades básicas.
É certo todo mês, todo mês...as vez vem até antecipado, entendeu? Eu tenho até o
dia seis pra pagar e...quando chega no dia dois, dia três ela dá o cheque. Vou no
banco, as vez dou ao cara o cheque e tal. Nãããoo, quando ela me da, as vez ela me
dá dez reais, me dá vinte pra eu passar o mês.Porque...eu acho que só Deus mesmo
sabe o que que faz, porque, não ter alguém, hoje em dia, pra ter alguém você tem
que ter uma estrutura financeira. Uma casa, é porque a figura pergunta o que você
tem o que pra mim dar?.
Trata-se de uma pessoa com a qual se pode contar para fazer pequenos serviços.
Lavar um carro, comprar alguma mercadoria, consertar lâmpada, portão, janela,
porta etc. Mencionou que gosta de trabalhar em sítios, lidar com a terra, mas que
nunca o fizera.
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...eu sinto falta, as vez as pessoas de idade que tinha um sítio. Eu queria tá num
sítio, pegando na enxada, esse negocio desses movimento. Rapaz! Acho que tô
parado. Quero uma atividade que eu tenha dinheiro todo mês. Quero salário mínimo,
que eu venha a manter a alimentação que num tenho.
Em 2007 trabalhou para um médico candidato a vereador em Feira de Santana.
Reuniu 80 pessoas para colar cartazes, pichações etc. Em troca o médico lhe
cuidaria da catarata. No entanto, na data da cirurgia – por falta de
acompanhante – ela não se realizou. Aborrecido, relata:
Ele realmente disse, a equipe médica, disse que foi problema de aborrecimento.
Porque eu era pra ir, um parente nosso, num foi. O problema da catarata cum falei
pro senhor. Por isso aconteceu esse negocio. Eu lutei pra conseguir isso. Eu fiz um
trabalho pro médico. O médico tava sendo político, eu fiz um trabalho. Envolveu
oitenta pessoas, entendeu. Nesse trabalho pra puder candidatar ele, só que não deu,
num dei pra todo mundo. Trabalho correto, tudo bem. Fomo em Feira, ele é de feira.
Eu fui e o acompanhante num foi. Ai num da pra fazer, certo? Só que hoje em dia tem
que ter um acompanhante. Eu fui na data, mas o acompanhante não foi. Foi na
quinta-feira. Quando chegou na sexta de manhã, seis horas da manhã, antes de seis
horas da manhã. Eu gosto de acordar cedo. Descia pra limpar e tal, porque é uma
avenida, às vez maluco entrava, urinava e tudo. Aí eu limpava e tal aí aconteceu
esse negocio. (O IAM).
O IAM sofrido é relatado como um evento relacionado ao seu cotidiano. Menciona
o fato de que não ter realizado a cirurgia o aborrecera por ver a esperada cura
escapar-lhe das mãos por motivo alheio às suas expectativas: a ausência do
acompanhante. Neste sentido, percebe-se ser esta a situação problemática
indicada como interveniência causal no adoecer. Desse modo, quando relata o
IAM sofrido o faz relacionando-o à situação enfrentada.
69
Ao relatar sobre as ínfimas condições materiais, as limitações físicas impostas
pela Catarata, pela Tendinite, pelo IAM e o cotidiano sem ninguém para
compartilhar os infortúnios, desperta atenção sobre o fato de que no processo de
reabilitação estabelece-se relações entre o adoecer por IAM e as situações
problemáticas enfrentadas no cotidiano em virtude de uma vida solitária. É neste
estabelecimento de relações entre a doença e as situações problemáticas vividas
cotidianamente que as pessoas enfermas vão conferindo sentido à experiência de
enfermidade por IAM.
•
Relato Sr. Maragojipe
Este entrevistado tem 53 anos, nasceu no interior. Veio para Salvador há 37 anos,
constituiu família e hoje é proprietário de pequeno comércio no andar térreo da
residência. A família compõe-se de esposa e três filhas, sendo uma casada.
Relata que o lucro do comércio de bebidas atende à certas necessidades básicas,
mas não as de lazer, bem como não supre a totalidade das despesas com o
estudo das filhas e – pela imprevisibilidade de faturamento – por vezes, não
consegue equalizar despesas relativas à manutenção do empreendimento.
Relata:
Um barzinho com mercearia, mas às vez é alto e baixa. As vez eu tô com uma
situação boa, mas as vez tá lá embaixo. Tive em situação difícil, finho estudando,
estudava. Agora melhorou mais, tem uma formada já, mas num se empregou ainda. E
a luta dia-a-dia dá sempre negativo. Problema com Coelba, com EMBASA, com fiscal,
IPTU, entendeu?! E só adquirindo mesmo de se alimentar e de se vestir, lazer num
tem nem eu nem ninguém da família, num vou dizer que tem. As meninas que ainda
estão namorando e tem, as vez, umas viagenzinhas pra casa dos parentes. Pro
interior, Maragojipe, Mangabeira, elas saem, mas eu mesmo e a patroa é difícil. É
difícil não, a gente num sai. E ai essa vida agitada, dura, dura e difícil....
70
As ações cotidianas de cuidar do comércio ocupam todos os dias do Sr.
Maragojipe: de manhã à noite, enquanto houver cliente, de domingo a domingo.
Mas o cotidiano não se resume apenas em servir a clientela, pois necessita
administrar compra e estoque de mercadorias a serem comercializadas no
estabelecimento. Uma vida de trabalhos continuados, exercida desde os quinze
anos de idade quando veio para Salvador:
Há!!! Eu comecei a trabalhar desde a idade de oitos anos na roça (...). Com quinze
anos eu vim pra qui. E aqui eu comecei na feira de São Joaquim. De ciiiinnnnco da
manhã, morava na baizinha de Santo Antonio, as condições de há...,há....há...o,o,o
aposento. O dormitório era péssimo, nunca tive uma boa...vida.. Aí pam, fique um ano
e pouco por aí. Aí fui morar em Cosme de Farias e trabalhar em...engenho Velho de
Brotas. Na mesma atividade, comercio. Aí eu pegava saco de farinha de 70, 80 quilos
assim nas pernas e botava no lugar. Ia pra feira de manhã comprar, na Sete Portas.
Porque eu era um gerente entendeu? Comprar tomate, cebola, pimentão, já tinha
lugar de pegar lá. Botava no carro, botava no comercio pra vender, porque o patrão
tinha outra atividade e eu levei cinco anos”. “Daí em 1975, sai desse local e fui morar
em Itapoan. Isso foi ligeiramente, num deu certo, vim me bora. Aí trabalhei quatro ano
e meio no hospital Espanhol. Eu entrei como servente, aí...trabalhei dois anos, um
ano e meio com servente e passei a trabalhar no quadro da portaria, como auxiliar de
portaria. Dei plantão noturno, entendeu!? Aí sempre dinheiro pouco e querendo ter
uma moradia, como eu tenho uma casinha pequena própria hoje, que eu fiz em 76,
entendeu. E aí vem, trabalhei até 79 sai, mas num arranjei mais emprego, aí fique
nesse comércio.O comércio deu até certo, mas depois me envolvi com família e tal.
Foi em... em..80. Já tava no comércio.
É com o rendimento advindo do pequeno comércio que sustenta a família,
trabalhando todos os dias ininterruptamente. Ele carregava os produtos e os
levava de ônibus ao comércio. Esse cotidiano durou cerca de vinte anos, aliado
as outras situações problemáticas como se aborrecer com clientes bêbados,
familiares, pai doente, impostos, fornecedores, energia elétrica, água etc. Em
71
certa oportunidade, ao voltar da feira, pelo esforço físico empreendido, após
avisos médicos sobre a saúde não observados, sofreu IAM na rua:
E...com é que se diz, e aí chegou a ponto de eu, eu... estava num médico
cardiologista, o médico me avisou que eu estaria, com a, com a glicemia alta e
colesterol e me passou um remédio e me passou uns exames. Eu nem tomei os
remédios nem fiz os exames. Isso no ano de 2007, abril a maio, nesse período. E aí
num levei a sério. Dei mais..., trabalhando, trabalhando, trabalhando, trabalhando,
quando foi no dia 31 de dezembro que eu tava todo animado pra, pra...é,é,é
passagem do ano e inclusive eu tenho uma filha que faz aniversário no dia 31, uma
que é casada. Que ela vinha do interior, ela mora no interior, pra qui, pra qui, passar o
ano conosco. Foi quando eu fui em São Joaquim comprar uns objetos, que quando eu
botei no ônibus...todo a jeito, o, o, estou na situação a qual me encontro, passei a
sofre a,a....ter o infarto...
Os exemplos do conjunto apresentados conferem a noção de como as pessoas
pós-IAM em reabilitação estabelecem suas relações causais entre situações
problemáticas cotidianas e o adoecimento. Tais situações exigem dessas pessoas
dedicarem-se quase que a totalidade do tempo cotidiano às ações de
atendimento, deixando poucos meios para atentarem às consequências
prejudiciais à saúde e adotarem ações e hábitos saudáveis, pois – como se pode
verificar – os problemas são prioridade nas ações cotidianas. Assim, quando os
informantes relatam que o adoecer por IAM relaciona-se às tais situações,
indicam que elas podem atuar como causadoras da doença. Indicam ainda que à
dimensão do viver compartilhado com outros pode ser um elemento considerado
como interveniente no adoecer.
Os relatos também sugerem que as situações problemáticas cotidianas são
relacionadas ao IAM de maneira que a pessoa tenha meios de indicar os ajustes
mútuos a serem feitos entre o abrupto adoecer e aquelas situações. Isto se
72
evidencia ao notar-se que os relatos tratam de cotidiano compartilhado com
outros atores, e aquelas situações são – ao mesmo tempo – vividas e
intervenientes no adoecer por IAM, especificando-se como marca comum entre os
relatos coligidos na pesquisa. Ou seja, todos concebem que situações
problemáticas vividas no cotidiano se apresentam como possíveis causas de
deflagração do IAM. Deste modo, possibilita-se o entendimento de que – pelas
citadas situações – o enfermo se posiciona no cotidiano como um ator social a
mais,
orientado
pelas
possibilidades
e
limites
práticos
das
situações
compartilhadas vivenciadas.
Pelos relatos observa-se que os informantes não dispõem de condições de
exercerem, por si, o poder de decidirem plenamente sobre os próprios cursos de
suas ações. Relatam que as possibilidades de ações são limitadas, em alguma
medida, pela prática do cotidiano repleto de situações problemáticas. Até que um
evento com poder de efetuar uma ruptura, mesmo que temporária e parcial em
muitos casos, nesse cotidiano, se fizesse predominante; o adoecer por IAM.
Assim, com as limitações e imposições consequentes da doença e do processo
reabilitativo, esse cotidiano precisa ser repensado e, se possível, re-organizado.
Adoecer por IAM impõe ruptura contingente em relação ao cotidiano vivenciado.
Entretanto, não implica necessariamente na possibilidade exata do enfermo
exercer um poder maior sobre as práticas cotidianas, e sim – quando em estado
de reabilitação – em avaliar o cotidiano problemático como provável causador do
adoecimento. Pelo duplo movimento consequencial – por um lado – se não se
garante que as atitudes cotidianas mudem completamente; por outro, alguns
ajustes são projetados em decorrência das prescrições médicas que implicam em
73
adaptações no cotidiano para viabilizar a nova situação. Entretanto, a realidade
constatada é a de que o cotidiano prático não possibilita as mesmas referências
de ação que o biomédico destina aos pacientes internados.
Nesse sentido, o que o cotidiano dispõe aos pacientes em reabilitação são ajustes
parciais, desde que contem com a participação efetiva de outros atores presentes
na lida diária, tornando-os problemas de ordem compartilhada.
As pessoas entrevistadas indicam ter essa noção, já que os relatos dizem
respeito às situações problemáticas cotidianas partilhadas com seus pares;
entretanto, como apresentado, tal circunstância também é apontada como
possível causadora do adoecimento, bem como limite ao pleno seguimento das
prescrições. Logo, as situações problemáticas só ampliam de extensão com a
presença da pessoa adoecida por IAM, pondo em risco21 a reabilitação da própria
pessoa pós-IAM.
21
A idéia de risco tem provocado inúmeros estudos nas últimas três décadas. Discute-se
desde os pressupostos probabilísticos da epidemiologia, passando por aspectos cognitivos no
campo da psicologia e por explanações de cunho estruturais as quais coloca risco como
característica de sociedades capitalistas. Contudo, a seara atual, além das já mencionadas, está
entre risco e vulnerabilidade. Sobre risco ver; Beck, Lash e Giddens no livro; “Modernização
reflexiva; Política, tradição e estética na ordem social capitalista”, 1995. ed: Unesp. E os artigos;
“Causalidade, contingência, complexidade: o futuro do conceito de risco” de Naomar de Almeida–
.
Filho; Denise Coutinho In: Revista de Saúde Coletiva. Vol.17 no.1 RJ Jan./Apr. 2007 e; ”Ciência,
técnica e cultura: relações entre risco e práticas de saúde” de Dina Czeresnia. In; Cadernos de
Saúde Pública; Cad. Saúde Pública vol.20 no.2 Rio de Janeiro Mar./Apr. 2004.
74
Relatos de crise de IAM.
O mal-estar corporal sentido no infarto é interpretado de diferentes maneiras
dependendo do saber cultural e da biografia da pessoa vitimada. Neste sentido, a
interpretação dos sintomas indica um desassossego no corpo. Victora (1995)
registra:
a identificação das percepções corporais é resultado de comparações com a
condição normal do indivíduo, que faz da experiência cotidiana o eixo integrador
dos sintomas e sinais. Por outro lado, a representação que a pessoa faz do seu
corpo tem como referencia a construção coletiva, embora cada um possua uma
percepção única do seu corpo;(Apud. Maruyama, 2004 p. 79).
As crises de IAM foram relatadas como experiências dolorosas em que a vítima
não dispunha de informações adequadas para lidar como o abrupto mal-estar
corporal experimentado. Assim, os relatos que seguem destinam a descrever o
sofrimento da pessoa enfartada, bem como para aludir a medidas e ações de
socorro. Vejamos alguns excertos de relatos;
Quando foi fevereiro de 2007 eu tava em casa, bem, próximo ao almoço, aí eu fui
almoçar, quando eu botei a primeira garfada na boca, eu senti. Leno!!. Senti uma
dor!!! Leno, nas costa, uma dor parecendo que me deram um murro e não tiraram à
mão. Digo: ‘ai meu Deus, num tô conseguindo mais almoçar, aí comecei chorando
cum a do..Eu só senti, Leno, essa dor nas costa. Aí essa dor vinha pra’qui, né! Aquela
dor nas costa, uma dor assim,.eu disse: ‘meu Deus, meu Deus, eu comecei a chora,
meu Jesus.. Ah! é uma dor muito forte. É uma dor assim, parecendo que a pessoa
deu um murro e a mão encaixou assim, você fica com aquela dor presa e gritando
sem poder ter socorro (Relato Sra. Leona)
...eu tava assim sentada olhando assim pra ela e disse, ‘Nina?’. ‘Eu tô me sentindo
mal, mal, tô me sentindo mal’. Eu sei que quando ela olhou assim pra mim ela não viu
75
a menina do meu olho. Ela: ‘oxe, oxe’. Ela disse que viu tudo branco. Eu só vi ela me
arrastando, eu me lembro disso, me furando aqui pelo braço, me arrastando. Me
deixando assim sentada, encostada, me arrastando pelo braço, me encostando no
portão, é a lembrança que eu tenho. Eu toda mole assim, eu só me lembro assim...Eu
defecava muito, era escuro, urinava muito..... (Relato Sra. Analí)
ah! Do coração...eu sei que...fui piorando...subindo ladeira pra ir ver ele no sanatório
São Paulo, no Ana Néri também quando tava...subia a ladeira, pra ir ver ele, ficava no
meio do caminho...cansando. Um dia...de primeira, oxi! Quando tomava qualquer
raiva as parte do corpo roxa, depois parou...e aí ficava cansada, uma dor aqui
assim...aí, subindo a Lapa, me deu aquela dor...foi a primeira vez. Eu gritei, gritei,
arroxiei...aí veio um...‘bebe água...respire fundo, respire fundo’, deu água,...aí, tomei
água...e toda roxa...sem respirar direito. Aquele abafamento, e aquela dor, aquela
dor...aí ele: ‘respire fundo.’. Aí..aaiihhh. E eu fui levando...aí o carro me levou pra o
Ernesto Simões...chegou lá deu batimento mínimo...aí, tirou o eletro, né! botou o
remédio na língua...,eu fui logo me recuperando (Relatos Sra. Ilza)
Aí eu sei que, depois com...jantei uma quiabada em casa. Não era nem tarde, daqui a
pouco, me sentindo mal, vomitei, vomitei e fiquei roxa. Então, comecei a vomitar a
quiabada que eu comi aí, o vizinho, eu arroxiei toda e suando, suando, e toda roxa, a,
o vizinho veio, ‘vum’bora logo pro Caribé’. (????)
Desde casa que eu tava me sentindo mal... mas eu disse:‘ó Mon eu tô me sentindo
mal, mas eu vou assim mesmo. Tá marcado aí, tá’. Quando eu cheguei na Calçada,
aquela dor, abafamento, abafamento aí, comecei a roxiar e o suor, e aquela dor,eu
gritava, gritava que tem que gritar, porque se não gritar morre abafado... (???)
Mas no outro dia, a pressão deu aquela coisa, só foi a cabeça...qui eu senti uma coisa
muito estranha...eu fiquei no sofá, daqui a pouco veio aquele estado de nervo. Aí o
coração ta, tá tá, ta, tá, batendo forte...aí eu senti ‘meu Deus, o qui é isso?’ aí eu botei
a mão aqui, ele acelerado, botei a mão aqui no pulso eu disse: ‘meu Deus, o que é
isso?’ aí levantei...aí eu tô querendo andar e as perna num queria obedecer...aí eu
fiquei parado assim. Foi daí qui eu, quando eu cheguei lá, a pressão tava 16 por 10,
as minhas perna amarrou, aquela coisa diferente aquele negoço.’ (Relato Sr.Félix)
76
É razoável considerar que os sentidos possíveis a serem conferidos à dor são
gerados em situações compartilhadas pelos atores envolvidos na situação de
quem sofre. SARTIR (2001) alerta:
Se a dor se constitui culturalmente, em qualquer caso, é necessário tomar como
referência todos os atores na cena: o doente, sua família e os profissionais. Todos
atuam numa realidade social, tecendo a trama das relações que fazem da dor uma
experiência com um significado a ser buscado (p. 11).
Os relatos falam da crise de infarto como um evento doloroso e relacionado ao
cotidiano. Diferentemente de entender a crise de IAM como efeito de situações
problemáticas, é preciso voltar atenção para como essas pessoas relacionam o
adoecer à suas práticas diárias. Assim, não há polarização nas descrições; põese de um lado as práticas das situações problemáticas nas quais as pessoas
estão enredadas cotidianamente; e de outro, a crise de IAM, uma vez que os
relatos indicam causas e crises relacionadas ao cotidiano.
A crise é descrita adjunta às práticas cotidianas e evidenciada como uma situação
problema relacionada a outras do dia-a-dia. Ademais, a crise se manifesta como
evento contingente em que os enfermos se vêem – parcial ou temporariamente –
livres de deveres cotidianos. No entanto, o que se observa pela análise dos
relatos é a predominância da tentativa de retomarem as ações cotidianas que
antes realizavam.
Nota-se que os relatos de causa apontam para aquelas situações problemáticas
relacionadas ao cotidiano. E os de crise para o mal-estar corporal sentido, as
ações de socorro e as condutas da pessoa sofredora. Logo, estes relatos se
77
dirigem às pessoas que sentem corporalmente o mal-estar da doença.
Consequentemente, enquanto as causas foram relatas aludindo à situações
compartilhadas, ou seja, à dimensão do viver coletivo; as crises foram expressas
mediante descrições do sofrimento corporal de modo individualizado, sugerindo –
genericamente – a dimensão da experiência pessoal.
Deste modo, a experiência pessoal de crise de infarto é marcada por sensações
dolorosas. Contudo, é sabido que tal experiência não é unicamente subjetiva e
individual, pois está eivada por códigos culturalmente compartilhados entre atores
sociais. Assim sendo, os entrevistados relatam a dor experienciada na crise de
IAM mediante metáforas que apontam para um modo de expressar um mal-estar
corporal até então não experimentado. Para isso utilizam metáforas valendo-se de
elementos vivenciados no cotidiano. RABELO, ALVES e SOUZA (1999) orientam
o entendimento das metáforas de experiência de enfermidade ao mencionarem:
No entanto, é também verdade que se utilizam as metáforas para expressar e
comunicar a aflição a outros. Os enunciados metafóricos tanto revelam imagens
próximas da experiência encarnada da aflição, quanto trazem essas
experiências para o domínio dos afazeres cotidianos, práticas e conversações
dos sujeitos, transformando-a em algo sobre o qual se pode falar e agir ao
aproximar diferentes domínios da experiência humana, criam um campo de
significação aberto ao diálogo: não só permitem a expressão do incoativo, como
também oferecem possibilidades de movimento ou ressignificação. As
metáforas comovem, enfurecem, persuadem – incitam à ação. Assim,
contribuem para o reconhecimento das experiências de aflição vividas por
outros, para sua transformação em objeto de conhecimento e intervenção
segundo modos socialmente legitimados. Entretanto, antes de constituir um
tropo puramente a serviço da reflexão, as metáforas situam-se e operam em um
domínio próximo à experiência dos sujeitos, articulando-as no seu transcurso e
trazendo alguns de seus elementos para situações de interlocução e ação
coletiva (p. 184)..
78
Os modos práticos pelos quais as pessoas se mobilizam para trazerem suas
experiências do mal-estar encarnado à dimensão do viver compartilhado com
outros aclara-se mediante o estabelecimento de relações entre IAM e situações
cotidianas consideradas por elas como problemáticas. Nesse ínterim, os relatos
de crise mostram como a experiência de dor também está atrelada ao
vivenciamento do cotidiano.
É preciso saber como pode se indicar uma mediação entre a dimensão
individualizada da dor corporal e a dimensão do viver compartilhado durante a
experiência de adoecer por IAM, uma vez que não existem como pólos no mundo
da vida cotidiana. Para isso, descreve-se, a seguir, como algumas situações
práticas cotidianas vividas pelas pessoas em reabilitação são relacionadas com o
adoecer. Nesta via explana-se como as pessoas lidam com as prescrições,
cuidados e mudanças, e projeções de atitudes e atividades futuros. Logo após,
esboça-se como se desenvolve o processo de conferir sentido à experiência de
enfermidade por IAM.
79
Capítulo IV: Relatos de cuidados, mudanças e projetos.
No primeiro momento deste capítulo apresentam-se algumas das prescrições
médicas relatadas pelos em entrevistados nesta pesquisa. É necessário reafirmar
que os relatos não se alinham completamente com o prescrito pelos profissionais
de saúde. Entretanto, o que interessa observar neste estudo é – precisamente –
como essas prescrições são praticadas cotidianamente pelas pessoas em
reabilitação. No segundo momento, descreve-se cuidados, mudanças e projetos
relatados com o objetivo de ponderar-se a respeito das práticas cotidianas pelas
quais essas pessoas dão curso à projetos de vida, relacionando-as às
implicações da doença.
•
Prescrições de profilaxia-reabilitação ao IAM relatadas
As prescrições de reabilitação-profilaxia ao IAM aqui relatadas, em geral,
baseiam-se nos fatores de riscos às DCV, sendo estes as bases das prescrições
destinadas às pessoas pós-IAM em reabilitação no INCOBA ou CRDC22. Em
consequência, muito do prescrito às pessoas como medidas de reabilitação
dizerem respeito à terapêutica medicamentosa, exames regulares de controle da
evolução da doença, dietas alimentares, consumo excessivo de bebidas
alcoólicas, fim do tabagismo, práticas de exercícios físicos, descanso e evitar
situações problemáticas, entre outras. Vejamos alguns relatos sobre as
prescrições:
22
Ressalva aos casos extra-ordinários e suas especificidades de diagnostico e tratamento, pois podem
constituir um quadro de doença além dos parâmetros firmados aqui e que são tratados pela medicina.
Todavia, as pessoas dessa pesquisa não se inserem nesse quadro, sendo sofredoras de IAM sem complicações
extra-ordinárias ou que mereçam diagnostico e tratamento diferenciados dos padrões estabelecidos pela
medicina. Nestes termos, os casos de IAM das pessoas entrevistadas podem ser tratados a partir das
prescrições de profilaxia-reabilitação padronizadas no modelo de conhecimento biomédico atual.. Salienta-se
que as prescrições aqui expostas dizem respeito ao que as pessoas pós-IAM relataram, sendo possível haver
discrepâncias em relação ao que os profissionais da saúde prescreveram quando às atenderam. Contudo, é
esse entendimento e a lida cotidiana dessas pessoas com as prescrições que interessa nesta pesquisa.
80
•
Relatos Sra. Leona
eu tomo cacsotril, sustrate, metilformina, AAS... eu até suspendi o AAS porque
dizem que ele é anti-coagulante. Então, se eu vou me operar, é anticoagulante...pra eu num ter um problema na cirurgia...eu aí fico com medo num
tomo AAS. E tomo remédio pra o câncer.
(...)
Não, o médico qui botou horário. Eu tomo o de pressão. Aí quando dá meia hora,
eu tomo o da... o de diabetes, nove horas eu tomo o do combate ao câncer...
•
Relatos Sr. Félix
doutor...ela me deu uns remédio, disse qui era pra fazer todos os exame de novo,
pra num parar o remédio de pressão, qui minha pressão...eu disse a ela qui tava
ruim...como da bexiga ela disse que tava um pouco coisa, os rins que num sei
quê...que eu faça outro exame...
(...)
...mas pra eu acompanhar a minha alimentação e pra saber sem ir na rua..porque
também, tem batida cardíaca qui vê aí já mede a pressão aí umas vez diz qui é 75
outras diz qui é 80 aí, sei lá. As vez deu 100 ou 90 aí eu num saía, cum medo. Qui
eu achei qui eu parado meu coração num pode tá batendo a 100. Qui ela disse
qui até 75 tava boa.
•
Relatos Sra. Analí
Agora com esse exame ergométrico que eu fiz eu num sei se...eu tenho que
perder um pouquinho de peso pra puder caminhar. Porque eu caminhei ali e me
senti mal, nem acelerou! (Na esteira ergométrica). E eu preciso caminhar. Mas
como posso caminhar de manhã se num durmo de noite direito. Não tenho ânimo.
(...)
Quando eu saí, ela mandou tomar o remédio da pressão e procurasse um
cardiologista. Só que pelo SUS é uma coisa muito difícil. Abençoado é o Adriano
Pondé que eu encontrei, que eu fui no posto de saúde ne! Aí manda. É que toda
vez que eu vou a pressão tá alta, aí manda. Mas tava muito difícil. Pra fazer uma
consulta eu até podia fazer um esforço, mas aí coincidiu nesse mesmo tempo que
entrou meu pai na jogada. Quando eu tô tentando me adaptar, indo pro clínico,
me ajeitando. Aí chega meu pai lá mancando, quando olho meu pai tá necrosando
o dedo. Aí vou interno meu pai no Ernesto Simões. Aí fico nove dias...
81
•
Relatos Sr. Valdo
O de lá num me disse nada, me deu alta e mandou.., quer dizer, mandou que eu
seguisse as ordens. Que é minha cardiologista. Ela disse que eu não podia subir
ladeira, que eu não podia forçar muito, não podia correr muito, entendeu? Num
podia jogar bola, num podia beber mais, num podia fumar, que eu fumo,
compreendeu?
(...)
Depois que cheguei em casa....foiiiii, bem, normal, evitei esforços físicos com ela
pediu. Segui a dieta dos remédios certo, alimentação...quer dizer; até hoje eu
sinto, sinto... aquele.....aquele, sinto aquele, de vez em quando, queimor, mas eu
tenho um comprimido em casa que ela me deu, que quando atacar, atacar eu
tomo e pronto e, acabou. Eu venho aqui..do dia dois. A depender de quando eu
sair daí da sala da Dra. quando ela marcar, eu tenho dia dois. È constante de mês
em mês. Eu venho faço a consulta, ela marca exame. Tem também a Dra.. a
endogrinologista?...Ela conversa comigo, ver se eu tô tomando os remédios
corretamente, vai olhar meus exames anteriores, pra saber se precisa outros. Vai
ver o glicemia no momento pra ver se ta regular e tirar a pressão.
•
Relatos Sr. Maragojipe
Agora no final do resguardo que a médica me avisando que tem que ter muito
resguardo, que é uma cirurgia interna. Eu recebi um “Stem”. O coração num tinha
nada, agora tem uma proteção, um negocio, que ela, mas ela passou um remédio.
Um calmante assim. Porque eu tô tomando uma serie de remédio. Tô me sentido
até melhor, mas eu sinto dor nos braços, aqui dentro (nos bíceps). Sinto peso,
senti às vez uma quentura interna. Mas como ela me orientou como era, eu tô
confiante. Deus em primeiro lugar em segundo os médicos, né?!
(...)
Tô tomando...seis remédios, sete remédios. Ela até passou um calmante. Eu tava
com problema aqui (Refere-se à região do tórax) isso tava me trazendo
mais...mas ela me deu um calmante que eu relaxei um pouco. Então eu tô me
sentindo...bem e vou continuar os remédios. E no caso o médico da, de cima
disse que era pra eu andar no futuro, mas isso é depois dos noventas dias.
A eficiência das prescrições é massivamente reconhecida no atual momento de
desenvolvimento da medicina. Por outro lado, o que se faz neste trabalho é um
deslocamento da atenção para condições práticas relacionais na medida em que,
82
dos enfermizados, exige-se o seguir de tais prescrições, no sentido de empenhar
esforços para ajustarem mutuamente prescrições e cotidiano repleto de situações
problemáticas. Assim, quando se pensa sobre as prescrições, pondera-se acerca
das ações práticas que a pessoa pós-IAM em reabilitação pode realizar para
segui-las, considerando limites e possibilidades do cotidiano.
A prática cotidiana, principalmente pelas situações problemáticas vivenciadas,
indica a complexidade de atitude e posicionamento frente à nova realidade.
Paralelamente, expõe que as implicações advindas da doença extrapolam à lida
com as prescrições, atingindo as relações sociais entre os atores do cotidiano
compartilhado. Por conseguinte, as prescrições não são relatadas como
exigências isoladas das situações problemáticas vividas no cotidiano, mas como
intimamente relacionadas a essas situações práticas. Esse modo de conviver com
as prescrições é marca importante no processo cotidiano prático de lidar com a
reabilitação.
Em suma, as prescrições de reabilitação do IAM necessitam ajustar-se às
possibilidades e limites do cotidiano prático, bem como este também precisa ser
adequado às prescrições. Desse modo, as ações para acordar mutuamente
prescrições e cotidiano verificam-se como exigências práticas para as pessoas
pós-IAM. Neste sentido, o processo de reabilitação, na perspectiva desta
pesquisa, evidencia um aspecto de relacionalidade quando volta atenção aos
diversos e particularizados ajustes práticos relacionais que essas pessoas são
obrigadas a realizar para tentarem reconduzir razoavelmente os respectivos
cotidianos. No entanto, os ajustes e recondução apresentam marcas e sinas
delimitadas, como se verá.
83
Cuidados, mudanças e projetos futuros.
Para entender como os entrevistados lidam cotidianamente com as prescrições
de reabilitação-profilaxia é necessário vislumbrar os limites e possibilidades
enfrentados no dia-a-dia, concomitante à relação que estabelecem entre a atual
situação e o adoecimento.
No tópico anterior descreveu-se algumas possibilidades e limites cotidianos
relatados como interveniência no seguimento adequado do prescrito pelos
médicos. Contudo, enfatizou-se, em maior amplitude, situações problemáticas
práticas para evidenciar a complexidade dos ajustes que as pessoas carecem
efetivar nos respectivos cotidianos. Isto se deve ainda e em grande medida, à
natureza do material empírico coletado, porque muitos dos relatos expressam as
situações como interveniência prática no adoecer e no atendimento das
prescrições; fato este que pode indicar a centralidade dessas situações nas
biográficas das pessoas entrevistadas. Neste momento, então, destacam-se
algumas maneiras práticas segundo as quais os entrevistados executam – ou
buscam viabilizar – as prescrições de reabilitação.
Os relatos de cuidados, mudanças e projetos apontam, à principio, para as
prescrições médicas. Porém, essas não são executadas por todo o tempo, no
cotidiano pessoal. O que os relatos indicam como cuidados e mudanças adotados
pela pessoa pós-IAM em reabilitação, são ajustes mútuos entre prescrições e
cotidiano. Desse modo, envolvem as maneiras pelas quais a pessoa estabelece
relações com os outros atores e consigo no cotidiano. Isso requer transformações
em seus papeis sociais e identitários. Então, pensar por esse ângulo, é prestar
84
atenção às mudanças ocorridas nessas relações, sem perder de vista os projetos
futuros da pessoa. Porquanto suas atuações, relações e identidade, estão
eivadas pela ideia de projeto com a qual referencia seus cursos de ações na vida
cotidiana prática.
•
Relato de cuidados, mudanças e projeto, Sr. Félix
Eu..eu...eu num..eu pensei muito pouco em dinheiro. Eu sempre pensei na felicidade.
Eu nunca pensei em dinheiro, pensei sempre em ser feliz, qui eu sou uma pessoa...eu
sempre fui alegre, gostava de brincar...mas me bateu uma tristeza já, umas tristeza
é....de eu num puder fazer aquilo qui eu fazia mais, aquela coisa toda...eu...eu...e
num posso fazer um esforço mais...quer dizer, num é demais qui de já leve eu sinto. É
mais qui ele, ele falou a verdade, qui ele é médico, mas ele me travou minhas perna,
assim, no momento. E eu tô começando a soltar as minhas pernas hoje, andando. Há
uns meses atrás eu comecei a andar, qui eu num andava. Sintia um medo de andar,
de cair, cum medo de andar só. Ainda sinto um pouco, mas num tá como antigamente
mais não...eu dançava, sou brincalhão, sou muito alegre. Aí o qui eu mais...cê bota o
meu swing? Eu tô sentindo um pouco alegre de novo, já tô brincalhão,
dançarino..dançava, gostava de dançar, swingar muito, sambar, samba de roda, né.
Sambar muito. A última sambada qui eu dei foi em Itacaré, parecia qui eu tava me
despedindo, sei lá, tenho medo de fazer muito esforço e...,.dançava, brincava, me
divertia cum a turma. Tomava uma cerveja. A turma chegava no bar, dizia assim: “Fé,
vem tomar uma cerveja aí..e eu bebia junto cum eles, divertia, aquela coisa toda, é
uma vida de diversão..também, depois do pobrema fiquei sem ser homem, sem ter
vontade de nada. Levei uns três mês e tanto, sei lá, qui num era homi pra nada.
Depois qui eu fui na... conversando com a psicóloga...qui eu voltei a ser homi, qui eu
sou homi hoje normal, num me afetou nada não...“Eu num penso mais nada não,
doutor...Poxa! eu num tenho assim...Eu..eu num sei mais... depois disso.. eu, eu num
tive.. pra você ver...o forte de um homem, da maior parte deles é o dinheiro, é a coisa
do dinheiro, é ganhar dinheiro. De ter isso, aquilo. E eu num penso nada, se eu
disser...eu num penso em ter um carro, eu num penso em ter uma moto, eu num
penso em ter nada. Eu tenho minha bicicletazinha qui nem posso montar mais, o
médico proibiu de eu andar, qui dirá montar de bicicleta...eu tomei medo...eu fiquei...
num posso ter uma bicicleta, num posso montar...quer dizer, desde quando falou
isso...é..eu num sei mais...eu fiquei..eu num penso em riqueza, eu num penso em
nada, então, pra mim...tá bom pra conviver, essa parte pra mim porque eu num sou
85
um homem ambicioso..eu tenho uma ambição própria de dar uma melhor vida a meu
filho, meus filhos, a ter uma alimentação dentro de casa, né. Num é qui seje pouco,
(trecho indiscernível) mas eu sempre pensei em minha felicidade. A minha vida toda
de ser feliz. Então, é por isso qui essa parte eu num, num, num...me agride muito,
num sinto muito coisa qui eu num sou um homem ganancioso, assim...
Para o entrevistado, adoecer por IAM impôs-lhe circunstância cotidiana diversa da
que vivia. Para ele conviver com as limitações advindas da doença tem como
consequência prática não realizar as mesmas ações habituais. Isso ultrapassa as
possíveis formas de se adaptar às prescrições. Nesse sentido, quando relata
como vive o processo da reabilitação após o IAM o que fica indicado é o seu exílio
circunstancial do cotidiano em relação à contingência da vida antes da doença.
Seus esforços se dirigem, então, para gerar maneiras práticas para reconduzir-se
ao cotidiano; sustentáculo de suas atuações sociais.
•
Relato de cuidados, mudanças e projeto; Sr. Maragojipe
Eu num tô trabalhando! A minha patroa que ta...Eu acordo de manhã, tomo um
café..Sete horas. Aí fico assistindo um pouco de televisão. Aí as vez eu descanso um
pouco umas nove horas deito. As vez fico até umas onze, duas horas, uma hora,
meia hora de descanso. Levanto onze e meia, meio dia, almoço. As vez eu fico
assistindo uma televisão...“As vez descanso um pouco, as vez num descanso, mas
quando dá oito horas eu deito vou dormir. A noite, as seis horas eu janto,não tomo
café. E aí eu fico por ali, quando dá oito horas eu deito, pego no sono direto. È, mais
ou menos. Num é assim constantemente, mas a maioria dos dias é assim, num é?
Agora eu tenho vontade de voltar a trabaiar. Minha rotina era eu abria a casa sete
horas e fechava as dez horas da noite...Eu achei que diminuiu enfraqueceu o peso do
guerreiro, enfrentava as coisas. Porque na minha família em sou quase uma
liderança. Tem meu pai doente em cima da cama. E.devido a esse problema que eu
senti, tive esse infarto. Pelo que me consta eu num tô aquele homem de pegar um
peso de acordar e ir fazer determinadas coisas. È porque.eu num tenho um...aquela
firmeza. Coragem de...num sei viu!. Que eu atenda a mim e os outros, meu coração é
bom, viu...“Eu tava com os planos tão bom, né. E eu tô todo parado...eu as vez eu fico
86
na janela assim e fico olhando, mais idosos que eu. Eu penso em me recuperar e
voltar a minha atividade. Não 100%, mas 40, 60% do que eu era, daquela maneira.
Com menos compromisso, quando eu quiser dar uma viajada, quiser ir numa praia,
certo. Quiser ir num aniversário de um parente, numa formatura, eu teja disponível.
Porque eu levei um período pra que ir num aniversario, num casamento, numa
festinha, eu tinha que me programar dois messes antes...Era porque se parasse o
dinheiro ia atrasar tudo. Eu tava devendo a você, a ela, e outro, e a outro e a outro, e
a outro e ai embananava e eu num quero isso. Quero uma vida mais tranqüila.
Na espera de se reconduzir ao cotidiano, o Sr. Maragojipe se imbui da ideia de
ajustar algumas de suas ações às limitações que a doença lhe impingiu. Tem
ciência de que o retorno não se verificará nas mesmas condições anteriores à
crise de IAM. Além disso, mostra-se consciente de que a sua dedicação intensa,
durante anos, ao trabalho no comércio resultou no agravamento da saúde,
culminando no infarto. Assim, o que projeta para o futuro é retomar o trabalho,
entretanto, com devidas precauções, visando a edificar uma relação menos
intensa com as atividades profissionais, permitindo-se tempo ao descanso e à
diversão com a família. A participação da família como gestora dos negócios é
uma situação circunstancial que ele desconhecia, pois nunca esteve apartado do
trabalho. Circunstância que lhe possibilita projetar ações de ajuste mútuo entre
necessidades individuais e exigências coletivas do seu cotidiano.
•
Relato de cuidados, mudanças e projeto; Sra. Leona
...mudou a alimentação, mudou tudo meu, tá entendendo? Ói Lêno, eu sou de uma
forma que meus filhos me dizem pra sair com eles, toda a vida foi isso. Aí, eu digo: eu
não vou. Porque eu não posso comer...porque que eu vou prum restaurante que eu
num posso comer tudo qui tá ali?.,..Mas, tô fazendo das tripa coração, mas tô
fazendo. Ah! Como eu gostava de carne de sertão, de fato, de mocotó, dessas
comida boa, mas é boa e é ruim, né, Leno?...mas eu gostava de um chupa molho
gordo, de um, dessas comida assim eu sempre gostei de comida. Eu num...eu num
gosto de carne de bife, qui num tem uma gordura, qui num tinha nada...Hoje,
87
só...assar e grelhar...tô comendo, boto no forninho..não é? Ai a vida mudou muito,
meu Deus! mudou meu ritmo de vida, né, Leno. Porque eu tinha essa vida assim,
agora...comendo tudo limitado, tudo..além do diabete e coração. Aí, fica pesado pra
mim, mas eu quero viver....A minha teoria é assim, é eu era muito..agora, eu tô
controlando mais mesmo as coisas e vou me segurando..Me seguro em não falar, em
não fazer...pra não dar problema comigo, né? Se é que eu quero viver, enquanto há
vida, há esperança, né...não faço. Num dô importância aquilo qui tá ocorrendo e,
aí...fazendo do coração, assim...papel, mas, é muito melhor ser assim do que
antes...é mais tranqüila. Minha família toda, irmão, irmã, quem decidia tudo era eu, só
procurava a mim. E hoje ninguém mais ta fazendo isso. É, era a vida toda assim.
Agora tão tendo mais cautela. Escondem as coisas de mim, num me participa,
entendeu?...é, fizeram um complô, Leno (risos)...“Eu...eles me proíbem... é um
controle...tem uma pessoa em casa pra limpar a casa, mas a minha cozinha, é minha,
tá entendendo? Porque eu mesmo vou me sentir inútil, né..num fazer nada...mas
acho que o coração num dá pra fazer alguma coisa de mal a mim porque eu faço uma
comida não, né! E tô levando a vida.Tô vendo que eu agindo menos tá melhor do que
antes, né..“ô, Leno, eu quero que Deus me dê essa força que ele me dá, que eu acho
que eu vou viver, que vou ver meus neto crescido, fazendo uma faculdade, né. E...ter
um futuro brilhante deles, um futuro brilhante. É o que eu espero na vida. Acho assim,
que se for de morrer, eu vou morrer dormindo, num vou ver nada, né... tô
anestesiada.. que eu num vejo nada. Mas, tô com a fé que vai ser tudo bem.
Para a entrevistada, a prescrição é uma exigência que lhe impõe criar práticas
para se adaptar à circunstância da reabilitação. Neste caso, a ruptura no
cotidiano, causada pela doença, apresenta marcas características, pois a
recondução às atividades rotineiras pode ser referenciada pelo reassumir os
papeis de mãe e dona de casa, sendo estes as bases de suas atuações, similar,
portanto, às de antes da crise de IAM.
As prescrições são interveniências em suas atuações de mulher disposta a
resolver os problemas, atuando como mãe e dona de casa; desempenho que
agora carece de comedimento devido às limitações físicas advindas da doença.
Nesta medida, a expectativa de futuro lhe vem com o projeto de dar continuidade
88
aos afazeres de antes, ainda no período de reabilitação. Todavia, para continuar a
atuar como antes da ocorrência do IAM, os ajustes mútuos entre reabilitação e
realidade se impõem como circunstância marcante no cotidiano.
Como se observou, tem-se por cuidados, mudanças e projetos da pessoa pósIAM esforços práticos que visam a ajustar reciprocamente as prescrições médicas
de reabilitação e a nova realidade, uma vez que estão estreitamente relacionadas
ao cotidiano das pessoas em reabilitação de infarto. Nesse sentido, a elas cabem
criar e gerenciar ações práticas que atendam – o quanto possível – a nova
circunstância do cotidiano vivido. Ademais, não seguir as coordenadas prescritas
pelo corpo médico implica tanto no aumento do risco de reincidência de IAM
quanto na iminência de óbito.
Assim, é deste grau de implicabilidade que se constitui o desafio primordial a ser
enfrentado pelo pós-IAM em reabilitação, coadunar – satisfatoriamente – ações
práticas de mediação entre prescrições e vida cotidiana.
89
Capítulo V – Considerações finais
Neste trabalho buscou-se compreender como pessoas vitimadas por infarto
agudo do miocárdio (IAM) conferem sentido à experiência da enfermidade.
Especificamente, analisou-se algumas relações estabelecidas pelas pessoas pósIAM entre o adoecer e vida cotidiana enfatizando concepções de causas,
descrições da crise de IAM, cuidados, mudanças adotadas e projetos futuros.
As concepções de causas são aqui entendidas como modos de indicar o que
necessita ser ajustado no cotidiano dos enfermizados visando a minimizar o risco
de reincidência da doença; pois os informantes apontam como possíveis causas
do adoecer as situações problemáticas vividas cotidianamente. Essas situações
encerram o aspecto de serem coletivamente compartilhadas com outros atores
componentes das relações rotineiras. Sugerindo – assim – que a dimensão do
viver coletivo é considerada por elas como elemento causal importante no
adoecimento por IAM. E, ao mesmo tempo, como possíveis fontes de problemas,
os quais, de acordo com os relatos coletados deste trabalho, estão estreitamente
relacionados com o adoecer e complicadores do processo de reabilitação.
Diferentemente dos relatos de causas, os relatos de crise se direcionam para a
dimensão da experiência corporal da dor, manifestando-se por jogos metafóricos
para expressar o mal-estar experimentado quando do ataque cardíaco. Nesta
medida, percebe-se, inicialmente, que a vivência da enfermidade por IAM carrega
consigo duas dimensões experienciais: a dimensão do viver cotidiano
compartilhado e a experiência particular da dor corporal sofrida.
90
A mediação entre as dimensões da experiência pode ser apontada voltando-se
atenção às maneiras prática pelas quais as pessoas enfermas criam ações com o
intuito de lidarem com a circunstância marcante da reabilitação. Deste modo, tal
circunstância exige da pessoa pós-IAM atender dois conjuntos de exigência; as
prescrições médicas de reabilitação, que impõem alterações nas rotinas diárias e,
em consequência, a necessidade de participação e empenho de outros atores nas
relações cotidianas com quem está em reabilitação. Nesse sentido, é que se situa
o enfrentamento das situações problemáticas relacionais, estabelecidas no
cotidiano anterior à doença. Para lidar com essa circunstância, a pessoa em
reabilitação necessita gerar ações práticas que mediem prescrições e situações
problemáticas visando a propiciar um processo reabilitativo que permita,
paulatinamente, reconduzir às atividades cotidianas anteriores a doença.
As ações de mediação exigem que a pessoa enferma enfrente as situações
cotidianas problemáticas vividas e estabelecidas antes da doença. Ademais, com
a imposição das prescrições no cotidiano da pessoa pós-IAM, expõe-se a
complexa circunstância em que ela se vê engajada por se obrigar a ajustar e
ajustar-se às novas e predominantes referências de ação.
As prescrições extrapolam a lida com o prescrito pelos médicos, pois exige que
no processo de reabilitação se criem ações inéditas referenciadas pelas próprias
prescrições e pelos limites e possibilidades práticas, estabelecidas no cotidiano
de vida. Abre-se, deste modo, o campo de enfrentamento dessa circunstância
impositiva para que se reconduza ao cotidiano similar vivenciado anteriormente à
doença.
91
As ações têm a função de reconduzir a pessoa à dinâmica cotidiana. Já que,
quando relatadas, percebem-se os inúmeros ajustes práticos que elas realizam no
cotidiano de reabilitação. Talvez por isso, nos relatos, privilegiem as ações
originadas pela presença das prescrições no cotidiano.
As exigências das prescrições dizem respeito à necessidade da pessoa de
revigorar a saúde. Logo, apontam para a dimensão da experiência pessoal e
corporal do adoecer. Já as procedentes do cotidiano provêm do viver coletivo. Ou
seja, a circunstância imposta à pessoa pós-IAM caracteriza-se pela necessidade
de criar ações para mediar as diferentes exigências, as quais têm como
intersecção o curso do projeto de vida da pessoa.
Os relatos sugerem que o paciente não dispõe de poder para – por si – orientar,
em grande medida, o curso do cotidiano. Ele se vê entregue às condições
determinadas ante as situações práticas problemáticas, até que o evento de IAM
lhe impõe brusca ruptura – mesmo que contingente nesse cotidiano – facultandolhe tão somente ocasiões de ajustes. Daí, certas ações inéditas serem realizadas.
Entretanto, a ruptura não implica conferir-lhe um poder maior – sobre si e sobre a
nova situação – do que o já estabelecido antes da doença.
A recondução ao cotidiano é marcada por alguns ajustes projetados como
necessários e possíveis de serem realizados, uma vez que as prescrições de
reabilitação exigem algum nível de mudança para evitar a reincidência da doença.
O seguimento do prescrito pelos profissionais da saúde como normas para a
reabilitação, será ou não cumprido considerando-se os limites e possibilidades
práticas do cotidiano. De tal modo, as prescrições serão executadas mediante as
92
ações de mediação. Estas viabilizam os ajustes práticos entre o prescrito e as
possibilidades e limites do cotidiano. Ademais, esses ajustes tornar-se-ão
exequíveis desde que se disponha da colaboração participativa de outros atores
que compartilhem a lida diária da reabilitação com a pessoa pós-IAM, conferindolhes aspectos de relacionalidade inerente ao viver coletivo. Os entrevistados
demonstram ter esta noção na medida em que os relatos apontam para as
situações problemáticas cotidianas como causas do adoecer e como obstáculos à
reabilitação,
demonstrando todo o
arco de
interveniência do
cotidiano
problemático na experiência de enfermidade por IAM, estendendo-se desde as
causas concebidas para a doença até a experiência da reabilitação.
Como registrado, a experiência de enfermidade por IAM é descrita de modo
relacional, evidenciando como a pessoa vive a prática da experiência adjunta às
situações problemáticas do cotidiano. Desse modo, enfatizam-se as relações
entre os problemas e a doença como um meio de ajustar o adoecer às práticas do
dia-a-dia. Daí indica-se que as relações estabelecidas sugerem ser um primeiro
movimento no processo de conferir sentido à experiência de enfermidade por
IAM. Consequentemente, pode-se pensar que para a compreensão do referido
processo é necessário conhecer alguns eventos cotidianos vividos e considerados
pela pessoa como problemáticos e relacionados à doença, pois é apoiado nessas
relações que o processo começa a ser mobilizado.
Esse movimento prático pode indicar ainda que a pessoa se esforça para criar um
espaço para si em meio às circunstâncias da nova realidade, pois se vê obrigada
a mobilizar um projeto de ações mediadoras para dar continuidade ao curso de
vida e, concomitantemente, atender ao prescrito na reabilitação. No curso de
93
mobilizar o projeto, a criação de modos para relacionar as causa da doença, a
crise e as implicações – fatores importantes na experiência de enfermidade por
IAM – mostram-se como tentativas de constituir um espaço de ações viáveis e
atenuantes que possibilitem atuar satisfatoriamente na nova e impositiva
circunstância biográfica.
Como desfecho, depois do trabalho de coleta de dados, descrições e análises,
mais uma vez, cita-se Ortega & Casset (apud. A. L. Machado ,1977, p. 138):
“Eu sou eu e minha circunstancia”; complementada pela reflexão de Cóssio; “Se ‘eu
sou eu e minha circunstancia’ uma parte da circunstância é minha.” (p. 144).
94
ANEXOS
01
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
TÍTULO DO ESTUDO
PROBLEMAS COTIDIANOS E INFARTO AGUDO DO MIOCÁRDIO
INFORMAÇÕES E OBJETIVO DO ESTUDO
Você está sendo convidado a participar de um estudo que tem como objetivo
identificar as maneiras como os indivíduos se comportam depois de terem um
infarto agudo do miocárdio, como eles retomam a vida normal e se adotou novos
hábitos e quais são estes.
DESCRIÇÃO DO ESTUDO E DOS PROCEDIMENTOS
O estudo prevê a realização de entrevistas com pacientes. Se você desejar
participar do estudo será feita uma entrevista no dia em que você for para o
ambulatório, logo antes ou depois do atendimento. Somente terão acesso as
identidades das pessoas entrevistadas o pesquisador que realiza a pesquisa com
você e a professora orientadora da pesquisa.
BENEFÍCIO
Você não terá nenhum benefício direto com o estudo, mas o conhecimento obtido
com ele pode nos permitir compreender melhor quais são as principais
dificuldades vividas pelas pessoas que tiveram infarto agudo do miocárdio em
adotar comportamentos considerados preventivos para doenças cardiovasculares.
O estudo nos ajudará também a esclarecer quais são os problemas que impedem
uma boa comunicação entre o médico e o paciente. Disso pode resultar uma
melhor compreensão entre pacientes e médicos. Estes últimos estando bem
informados sobre os modos cotidianos como os pacientes lidam com seus
problemas de saúde e quais os empecilhos à compreensão do paciente podem
prestar um serviço de qualidade superior.
RISCOS E DESCONFORTO
Você não enfrentará nenhum risco de saúde derivado desta pesquisa e receberá
um atendimento normal no INCOBA, independente de consentir ou não em
participar do estudo. Se você se sentir constrangido ou sentir a sua privacidade
violada pela pesquisa, posto que sejam as entrevistas gravadas, pode solicitar a
reversão do consentimento, deixando, então, de fazer parte do grupo de pessoas
que cooperam com o estudo.
95
CONFIDENCIALIDADE
Terão acesso aos dados pesquisa apenas os pesquisadores envolvidos no
projeto. Na divulgação de qualquer artigo ou apresentação de trabalhos com
dados relativos à pesquisa os nomes dos envolvidos serão mantidos ocultos ou
trocados por outros para que sua identificação por terceiros não seja possível.
Também endereço e outras informações confidenciais serão conservados de
forma sigilosa.
DECLARAÇÃO VOLUNTÁRIA DE ENTENDIMENTO E ANUÊNCIA
Eu entendo que fazer parte de um estudo é voluntário. Posso me recusar a
participar do estudo ou retirar-me dele sem perda de quaisquer benefícios que eu
poderia receber em outra situação. O estudo e procedimentos foram explicados a
mim. Estou livre para deixar de participar do estudo em quaisquer momentos se
for de meu interesse. Qualquer alteração no projeto que possa envolver a mim
deve ser comunicado a mim, a meu representante ou ao meu médico. Eu sei que
o estudo foi revisado e aprovado pelo Comitê de Ética. Ao assinar esse formulário
eu não abro mão de nenhum dos meus direitos legais que eu teria de outro modo
como paciente. Eu autorizo a gravação das minhas entrevistas realizadas no
INCOBA e em meu domicílio. Tive a oportunidade de discutir todas as dúvidas
que tive e recebi respostas, que foram por mim entendidas. Foi-me dito que
deverei contatar Jucy-lêno Oliveira no telefone 7191786091(inclusive a cobrar) ou
o coordenador do estudo pelo telefone 7191267591 a qualquer momento durante
ou depois do estudo se eu tiver mais alguma dúvida. Poderei também contatar Dr.
Armênio Guimarães, representante do hospital para assuntos de proteção dos
direitos do paciente, através do telefone 32348262 referentes aos meus direitos
como paciente na pesquisa.
Nome do paciente:
_______________________________________________________________
Assinatura do paciente:
___________________________________________________________
Data: __________________________
Nome do representante legal do paciente:
____________________________________________
Assinatura do representante legal do paciente:
________________________________________
Nome da pessoa que obteve o consentimento:
_________________________________________
Assinatura da pessoa que obteve o consentimento:
_____________________________________
96
MINISTÉRIO DA SAÚDE
Conselho Nacional de Saúde
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP
FOLHA DE ROSTO PARA PESQUISA ENVOLVENDO SERES
HUMANOS
Projeto de Pesquisa
PROBLEMAS COTIDIANOS E INFARTO AGUDO DO MIOCÁRDIO
Área de Conhecimento
7.00 - Ciências Humanas - 7.02 - Sociologia
Área(s) Temática(s) Especial(s)
02
FR - 146034
Grupo
Grupo III
Nível
Fase
Não se Aplica
Unitermos
PROBLEMA, COTIDIANO, INFARTO.
Sujeitos na Pesquisa
Nº de Sujeitos no
Total Brasil
Nº de Sujeitos
Centro
50
Total
50
50
Placebo
Medicamentos Wash-out
NAO
HIV / AIDS
NÃO
NÃO
Grupos Especiais
Sem Tratamento Específico Banco de Materiais
NÃO
Biológicos
NÃO
Pesquisador Responsável
Pesquisador Responsável
CPF
Identidade
JUCYLÊNO OLIVEIRA DA SILVA
128.906.318-42
0298691884
Área de Especialização
Maior Titulação
Nacionalidade
CIENCIAS SOCIAIS
LICENCIATURA BRASILEIRA
Endereço
Bairro
Cidade
RUA PARÁ NÚMERO 673
PITUBA
SALVADOR - BA
Código Postal
Telefone
Fax
Email
[email protected]
41927-070
7191786091 / 7132405339
7132354635
Termo de Compromisso
Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas complementares. Comprometo-me a
utilizar os materiais e dados coletados exclusivamente para os fins previstos no protocolo e publicar os resultados
sejam eles favoráveis ou não.
Aceito as responsabilidades pela condução científica do projeto acima.
_________________________________________
Data: _______/_______/______________
Assinatura
Instituição Onde Será Realizado
Nome
Santa Casa de Misericórdia da Bahia/Hospital Santa Izabel
Unidade/Órgão
crdc
Endereço
Praça Coselheiro Almeida Couto nº 500
Código Postal
Telefone
40050410
71 3268214
CNPJ
15.153.745/0002-49
Participação
Estrangeira
NÃO
Bairro
Nararé
Fax
71 3263256
Nacional/Internacional
Nacional
Projeto
Multicêntrico
NÃO
Cidade
Salvador - BA
Email
[email protected]
97
Termo de Compromisso
Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas complementares e como esta instituição tem
condições para o desenvolvimento deste projeto, autorizo sua execução.
Nome:
__________________________________________________
_________________________________________
Data: _______/_______/______________
Assinatura
Vinculada
Nome
Universidade Federal da Bahia - UFBA
CNPJ
../-
Nacional/Internacional
Nacional
Unidade/Órgão
Participação
Projeto
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS Estrangeira
Multicêntrico
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM CIENCIAS SOCIAIS
NÃO
NÃO
Endereço
Bairro
Cidade
Avenida Ademar de Barros s/n - Campus Universitário
Ondina
Salvador - BA
de Ondina
Código Postal
Telefone
Fax
Email
40170-110
71 32636824
71 32636383
[email protected]
Termo de Compromisso
Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas complementares.
Nome:
__________________________________________________
_________________________________________
Data: _______/_______/______________
Assinatura
O Projeto deverá ser entregue no CEP em até 30 dias a partir de 04/07/2007. Não ocorrendo a entrega
nesse prazo esta Folha de Rosto será INVALIDADA.
98
03
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia – FFCH
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - PPGCS
Número da entrevista:_____Data da entrevista: ____/____/____Local/Hospital:
____________Tempo de entrevista: Início: _______Fim: __________
Entrevistado: ______________________________________tel_________________
Entrevistador: ___________________________________________________________
Roteiro de entrevista
Módulo primeiro: Apresentação e indicações biográficas
•Nome; Idade; Estado Civil; Mora onde? Com quem? Telefone para contato?
•Conte um pouco como foi sua infância? Morou sempre em Salvador?
•Estudou? Até quando?
•E trabalho? Quando e como começou a trabalhar? Trabalhou em que? Se for aposentado
em que trabalhou? Ainda trabalha e em que?
•Casou? Teve filhos?
•Como é sua rotina de vida?
Módulo segundo: O IAM e o itinerário terapêutico
•Quando teve o infarto?
Ficou internado?
•Sentiu o que?
Quanto tempo ficou no hospital?
•O que pensou que era?
Como era a rotina no hospital?
•O que fez imediatamente?
Quais exames fizeram com você
•Procurou ajuda?
Que tratamento foi feito no Hospital
•Alguém socorreu?
Tinha acompanhante? Quem?
•Você sabia qual era o problema? Quem disse?
Recebeu orientação quando saiu?
Quais?
•Já sentia alguma coisa antes?
•Achava que era o que?
99
Módulo terceiro: Tratamento e adesão
E depois da saída do hospital passou a ir ao médico?
•Como é o tratamento?
•Vem ao CRDC desde quando?
•Conte como é a consulta?
•Faz tudo que o médico recomendou?
•O que ele diz para fazer?
•E quando não faz conta para ele?
•Por que não faz?
•O que acha mais difícil seguir no tratamento?
• Faz alguma outra coisa a mais, chás, etc.
Módulo quarto: O retorno para casa e as maneiras cotidianas de lidar com as
prescrições
•Como foi quando voltou para casa?
•O que mudou no dia a dia?
•Ficou de repouso?
•Como foi esse processo?
•Voltou à rotina, às atividades normais?
• Como sua família está agindo nesta situação?
•Como fez com o trabalho?
•O que você fazia para se divertir? E agora? Mudou?
•Quais os principais problemas que você enfrentou em sua vida?
•E agora com estão esses problemas?
•Como você “encara” o seu futuro?
INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES DO ENTREVISTADOR
10
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