UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Problemas cotidianos e infarto agudo do miocárdio (IAM): conferindo sentido à experiência de enfermidade. Salvador, 2008 Jucy-Lêno Oliveira Problemas cotidianos e infarto agudo do miocárdio (IAM): conferindo sentido à experiência de enfermidade. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientação: Profa. Dra. Iara Souza. Salvador, 2008 2 AGRADECIMENTOS Sou grato pela oportunidade de estudar a: Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais Agradeço pela colaboração nesta pesquisa ao: Instituto do Coração da Bahia - INCOBA Centro de referência em doenças cardiovasculares Adriano Ponde – CRDC A todas as pessoas pós-IAM entrevistadas, inclusive as que não estão mais entre nós, minha estima e gratidão. Aos funcionários do INCOBA e do CRDC pela colaboração e disponibilidade que muito auxiliaram na concretização deste estudo. À FAPEX pela concessão da bolsa de estudo A todos os professores com os quais tive o privilégio de conviver Profa. Dra. Iara Souza, orientadora, minhas reverências são para sempre. Reverencio igualmente o grupo ECSAS – Núcleo de Estudos em Ciências Sociais e Saúde: professores Paulo César Alves, Miriam Rabelo, Iara Souza, Gabriela Hita, Mark Carvalho, Gessé, Luis Correia, bolsistas e participantes. Com todos vocês aprende-se a importância de exercitar cotidianamente a concentração intelectual, a seriedade de conduta e a tranquilidade emocional em um ambiente sensível e terno entre amigos. Obrigado pelo abrigo. E ao professor Igor Rossoni pela cuidadosa revisão do texto final deste trabalho. 3 RESUMO Esta investigação objetiva compreender como pessoas vitimadas por infarto agudo do miocárdio (IAM) conferem sentido à experiência da enfermidade. Especificamente, analisa-se – entre o adoecer e a vida cotidiana – algumas relações estabelecidas por pós-IAM, visando a evidenciar concepções de causas, descrições de crises cuidados e mudanças adotados, além de projetos futuros. Para atingir ao objetivo efetivou-se 33 entrevistas roteirizadas com pessoas em reabilitação junto ao Instituto do Coração da Bahia (INCOBA) e Centro de Referência em Doenças Cardiovasculares Adriano Pondé (CRDC) em Salvador, Bahia. ABSTRACT The objective of this dissertation is understand how the person after suffer a Cardiac Diseases (AIM) give an experience signification. It shows some relations established for the person after-AIM between the sick and normal life, detaching causes for sick, definition of AIM crisis, cares actions, besides changes and future projects of life. To obtain the purposely objective were realized 33 interviews with the people in hospital treatment at Bahia Heart Institute or at Reference Cardiac Diseases Center Adriano Pondé in Salvador, Bahia. 4 “Eu sou eu e minha circunstância” (Ortega & Casset apud MACHADO NETO, A. L. 1977, p 138) 5 SUMÁRIO Apresentação__________________________________________ 8 Introdução____________________________________________10 Capitulo I – Horizonte teórico_____________________________24 Capitulo II – Pesquisa e procedimentos metodológicos____________38 • Concepção da pesquisa____________________________________38 • Campos de pesquisa______________________________________ 39 • Instituto do Coração da Bahia (INCOBA)_______________________39 • Centro de Referência em DCV Adriano Pondé (CRDC)____________41 • Método de trabalho________________________________________43 • Pessoas, entrevistas e dinâmica de campo_____________________43 • Critérios de seleção de pessoas para entrevista__________________45 • Consentimento Livre e Esclarecido____________________________46 • Roteiro de entrevista_______________________________________47 • Modelo de organização dos relatos das entrevistas_______________49 Capitulo III: relatos de causas e crises de IAM____________________51 • Relato Sra. Analí__________________________________________54 • Relato Sr. Valdo__________________________________________57 • Relato Sr. Ubiracy_________________________________________61 • Relato Sr. Vieira Néri_______________________________________64 • Relato Sr. Marom_________________________________________67 • Relato Sr. Maragojipe______________________________________70 Relatos de crise de IAM_________________________________75 Capitulo IV: Relatos de cuidados, mudanças e projetos___________80 Prescrições de profilaxia-reabilitação ao IAM relatadas___________80 6 • Relato Sra. Leona________________________________________81 • Relato Sr. Félix__________________________________________81 • Relato Sra. Analí_________________________________________81 • Relato Sr. Valdo_________________________________________82 • Relato Sr. Maragojipe_____________________________________82 Cuidados, mudanças e projetos futuros______________________84 • Relato de cuidados, mudanças e projeto Sr. Félix_______________85 • Relato de cuidados, mudanças e projeto Sr. Maragojipe._________86 • Relato de cuidados, mudanças e projeto Sra. Leona_____________87 Capítulo V – Considerações finais_____________________________90 Anexos_____________________________________________________95 • Consentimento livre e esclarecido___________________________95 • Cadastro no SISNEP/MS__________________________________97 • Roteiro de entrevista_____________________________________99 Referências bibliográficas_____________________________________101 7 Apresentação O presente estudo “Problemas cotidianos e infarto agudo do miocárdio (IAM): conferindo sentido à experiência de enfermidade” vincula-se ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da UFBA e objetiva investigar como pessoas em reabilitação se relacionam com o adoecer e a nova realidade cotidiana que se obrigam a vivenciar, enfatizando-se causas, descrições de crises, cuidados, mudanças adotadas após o IAM e aventamentos de projetos futuros. Visando a concretizar o objetivo proposto, realizou-se entrevistas roteirizadas com pessoas – após alta hospitalar – em tratamento médico ambulatorial no Instituto do Coração da Bahia (INCOBA) e no Centro de Referência em Doenças Cardiovasculares Adriano Pondé (CRDC), em Salvador. Com o fito de ampliar os dados em análises ainda foram conferidas palestras e conversas entre os profissionais vinculados às referidas unidades municipais de saúde. Em termos operacionais, o trabalho de pesquisa desenvolve-se em cinco capítulos. Na introdução que os precedem, expõe-se um panorama quantitativo das doenças cardiovasculares (DCV) incluindo notas sobre fatores de risco; prescrições de reabilitação-profilaxia ao IAM; indicações médicas pré e pósoperatória, além de também apresentar considerações a respeito da ideia de adesão ao tratamento na área da saúde. 8 No primeiro capítulo – objetivado ao horizonte teórico – versa-se acerca da experiência de enfermidade; do cotidiano; das ações; do estoque de conhecimentos; de normalidades; projetos e práticas. No segundo, trata-se dos procedimentos metodológicos vinculados à concepção da pesquisa propriamente dita ao atentar-se para descrições dos campos de coleta de dados; critérios de seleção de pessoas entrevistadas; determinação de roteiro de entrevistas; consentimento livre e esclarecido; notas sobre o trabalho de campo e modelo de organização dos dados. No capítulo terceiro, apresentam-se relatos de causas e de descrições das crises de IAM. No quarto, apreciam-se os relatos de cuidados, mudanças e projetos futuros das pessoas pós-IAM. Todas, obviamente, terão nomes fictícios neste trabalho, visando salvaguardar as respectivas privacidades. Fecha-se o processo investigativo, no quinto capítulo, ao tecer-se considerações de natureza conclusiva a respeito do tema observado ao longo do estudo. Salienta-se, ainda, a inclusão de três textos em anexos: consentimento livre e esclarecido; cadastro do projeto no SISNEP/MS e roteiro de entrevista. 9 Introdução A Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde (OMS/OPAS, 2003) indicam as doenças crônicas não-transmissíveis como as maiores causadoras de mortes e inaptidão de pessoas no mundo. Elas representam 59% dos 56,6 milhões de mortes anuais e 45,9% da carga global de doenças. A OMS/OPAS categoriza como “agravos não-transmissíveis”: doenças cardiovasculares (DCV)1, diabetes, câncer, acidente vascular cerebral (AVC), doenças respiratórias e apontam como fatores de risco para tais enfermidades descontrole na taxa de colesterol;, HAS2; tabagismo; obesidade; consumo de álcool; estresse, entre outros. Portanto, uma das diretrizes da OMS/OPAS para reduzir a ocorrência refere-se às mudanças de hábitos das pessoas relativos aos fatores de risco. Em torno de 16,6 milhões de mortes anuais devem-se às DCV, com ênfase nas cardiopatias e nos AVC. A cada ano, infartos e derrames conduzem a óbito 12 milhões de pessoas, sendo 7 milhões por cardiopatias isquêmicas e 5 milhões por AVC. Porém, 80% das doenças coronárias, 90% de diabetes tipo 2 e 1/3 de cânceres seriam minimizados se houvesse mudanças de hábitos pessoais nos comportamentos tidos pela biomedicina como fatores de risco às DCV. 1 As DCV são doenças que alteram o funcionamento do sistema circulatório, constituído pelo coração, vasos sanguíneos (veias, artérias e capilares) e vasos linfáticos. O sangue é bombeado pelo coração e circula pelos vasos sanguíneos irrigando os tecidos do corpo. (Arquivos virtuais da SBC, 2003). Neste estudo, embora tendo-se ciência da diversidade de tipos das DCV, focaliza-se uma das mais abruptas e violentas: o infarto agudo do miocárdio (IAM). Nesse sentido, não se desprezam causas, severidade, sintomas e tratamentos para análise mais profunda e ampla dessas enfermidades. 2 A Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) é fator de risco determinante, vez que – de acordo com estudo do CNPq/UFRJ/92 - afeta de 11 a 20% dos adultos. Sabe-se que 85% dos pacientes com AVC e 40 a 60% dos pacientes com IAM apresentam HAS associado. 10 O quadro global de vítimas por doenças revela cifra de 56.554.00 milhões de óbitos no mundo (OMS/OPAS 2001). Referente a este montante, as doenças nãotransmissíveis perfazem 33,1 milhões; ou seja: 58,5% do total de mortes. Destas, as DCV são responsáveis por 16,6 milhões de óbitos/ano. Dado que representa aproximadamente 1/3 do total de mortes. Ademais, 80 a 86%, dos casos de DCV ocorrem em países com média ou baixa renda, estimando-se que em 2010 serão as primeiras causas de mortes nos países em desenvolvimento. Deste modo, a OMS/OPAS sugere constatar que não existem fronteiras geopolíticas, étnicas e de gênero para o crescimento das DCV. No caso do Brasil, quando se pensa em números de óbitos e taxas de mortalidade por tais causas, deve-se considerar a subenumeração de óbitos com a qual o Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM-MS) trabalha. Todavia, esse sistema abrange 82% dos registros de mortes ocorridos no país no ano de 1999. O “Anuário Estatístico de Saúde do Brasil de 2001” informa uma “transição epidemiológica” no perfil de mortalidade do brasileiro, constatando a diminuição da mortalidade infantil por doenças infecciosas e um aumento gradual de mortes por causas crônico-degenerativas. Indica – ainda para o ano de 1999 – 938.658 óbitos, ou seja, uma taxa bruta de 6,8 mortes por mil/hab. Ademais, tem de se considerar que a taxa de causas de mortes mal definidas é de 15%, com a região nordeste do Brasil apresentando 30%. Ainda sobre esta região, o estado o Maranhão apresenta uma taxa de 40% e Paraíba 53%. Algo que pode indicar que a subenumerção pode ocultar casos de DCV que não são contabilizados pelos órgãos oficiais. No Brasil a taxa de mortes por doenças do aparelho circulatório é de 32%, sendo 11 a primeira causa. As neoplasias com 15% e doenças do aparelho respiratório com 11%. Completa-se a transição com doenças infecciosas e parasitárias de 9% para 6%, e de 7% para 5% as afecções perinatal nas últimas duas décadas. Paralelamente, os números das DCV na população brasileira mostram em torno de 300 mil/ano no decorrer da década de noventa (SIM-MS, 200), evidenciando que os casos dessas doenças estão crescendo no Brasil e no mundo. A Secretária de Saúde do Estado da Bahia (SESAB) registra 6.122 infartos agudo do miocárdio (IAM)3, para os anos noventa. Conquanto, observando conjuntamente outras doenças do aparelho circulatório como hipertensão essencial primária, IAM, insuficiência cardíaca, doenças hipertensivas, AVC e arritmias – acrescentando-se as categorias estatísticas da SESAB denominadas “outras doenças do coração” e “outras doenças isquêmicas do coração” – aferese um total próximo de 55.863 casos de doenças relacionadas ao coração. (Anuário. SESAB, 1999). Conforme referido, a posição mais recente da biomedicina sobre as DCV, as define como um conjunto de doenças causadas – em grande medida – por “fatores de riscos” como a hipertensão sistêmica arterial (HAS), dislipidemia, colesterol alto, tabagismo, diabetes mellitus, sedentarismo, obesidade, hereditariedade e estresse. Contudo, Alves (1997, p. 4) observa que ...embora algumas vezes confundido com o conceito de ‘causa’, fator de risco é usualmente tomado ou comparado como ‘indicador’, isto é, como uma variável epidemiologicamente demonstrada. 3 O infarto agudo do miocárdio (IAM), primariamente, é a criação de necrose miocárdica, devido, comumente, a um desequilíbrio crítico entre provisão de oxigênio e demanda do miocárdio. Isto é resultado de placas que rompem e formam trombos em um vaso coronário resultando em redução de sangue para uma porção do miocárdio (Arquivos virtuais da SBC, 2003). 12 Assim, os estudos biomédicos (como a epidemiologia) tendem a evidenciar a prevalência da morbimortalidade dessas doenças relacionando-as a fatores como sexo, classes sociais etc; ou a investigações de casos modelos de controle, associando-os aos fatores de risco (Helman, 1994, apud ALVES, 1997). Nesse aspecto: a totalidade de vida, modos de existência, atitudes e comportamentos individuais” não são devidamente considerados nos estudos centrados em fatores de risco (Alves, 1997, p. 4). Prontamente, é de se esperar que o modelo biomédico de cuidado às DCV aponte alguns determinantes profiláticos e reabilitadores – como mudanças de atividades e comportamentos que possam contribuir para a ocorrência das DCV – no sentido de enfrentar essas patologias. Entretanto, as estatísticas oficiais mostram que os modelos de tais intervenções visando a diminuirem os casos dessas doenças não surtem os resultados esperados. Logo, OMS/OPAS (2003) recomenda que os modelos de estudos, à profilaxia, tratamento e reabilitação às DCV, abranjam as dimensões psicológicas, ambientais e sociais. Para isso, indica diretrizes de pesquisa acerca de como as DCV são entendidas pelos adoecidos e quais elementos consideram interveniências prejudiciais à saúde cardíaca. Nessa diretriz, compreender como pessoas pós-IAM conferem sentido à experiência de doença é tema de relevância investigativa. A medicina trabalha com a idéia de adesão ao tratamento para dar conta dos comportamentos das pessoas enfermas em reabilitação. A adesão ao tratamento4 4 A adesão ao tratamento de doença crônica pode ser esboçada em termos quantitativos gerais, da seguinte forma: 50% dos pacientes apresentam uma boa adesão, pois seguem as prescrições medicamentosas de maneira satisfatória em 80% do tempo de reabilitação. 20% seguem a medicação 50 a 80% do tempo e 30% dos pacientes seguem as prescrições em menos de 50% da reabilitação. (Vitória A. M. A. “Conceitos básicos e recomendações para melhorar a adesão ao tratamento”). Disponível em www.saude.gov.br 13 das DCV ancora-se nos conhecimentos da psicologia, indicando o nível de compromisso que a pessoa enferma tem com as prescrições de reabilitação. A submissão cotidiana às prescrições eleva o nível de adesão. Quanto mais elevada à adesão, maiores serão as probabilidades de resultados positivos na reabilitação, ou seja, quanto mais a pessoa enferma obedecer às prescrições, maior adesão e comprometimento empenhados. Deste modo, ampliam-se as possibilidades de plena reabilitação. Logo, o nível de adesão é construído considerando quantas, quais e por quanto tempo as pessoas enfermas se submetem às prescrições médicas. Para se ter uma adesão eficiente a totalidade das prescrições deve ser seguida em todo o tempo de reabilitação. Por outro lado, o nível de adesão pode ser baixo se; a doença for crônica, mas com cotidiano suportável, piorando progressivamente e aos poucos ao longo do tempo; requerer mudanças de estilo de vida e de valores culturais; não existir ainda, e a intervenção tiver caráter preventiva (HORNE, 1999, apud, Romano, 2001, p. 174). A adesão ao tratamento5 é multifatorial, sendo elementos sociais, biológicos, econômicos, subjetivos, a doença tratada, a relação com a equipe de saúde, os procedimentos médicos realizados, os tratamentos oferecidos e resultados obtidos, fatores a serem considerados para uma avaliação do nível de adesão do paciente às prescrições do tratamento. Em cardiologia, a reabilitação prescreve à pessoa enferma um controle de suas ações que apontam para mudanças no cotidiano. Pois, exigem adequações do cotidiano para se realizarem as medidas profiláticas e de reabilitação à doença, especialmente o IAM pelo caráter abrupto 5 Ver: NOBRE, F.“Adesão ao Tratamento: o Grande Desafio da Hipertensão”. 2001. Ed. Lemos Editorial. 14 da ocorrência. Nestes termos, a adesão ao tratamento de doença crônica é afetada pela complexidade das prescrições relativas a números de medicamentos, dosagens e quantidade de vezes diárias no uso dos mesmos. Ademais, há baixa adesão quando se verifica comunicação ineficaz entre médico e paciente, ou quando as prescrições interferem diretamente no cotidiano do paciente. Assim, mudanças no cotidiano e promoção de efeitos colaterais no paciente também baixam o nível de adesão à reabilitação. Deste modo, a aliança terapêutica (Nobre, 2001) entre médico e paciente é condição de exigência para se objetivar uma adesão eficiente. Os pacientes devem adotar cotidianamente as responsabilidades em relação aos respectivos tratamentos. Assim, aconselha-se aos profissionais de saúde exercerem estratégias de persuasão destinadas e aplicadas aos pacientes em reabilitação. A simplificação das prescrições é procedimento indicado, mediante a claras recomendações verbais e escritas: redução de dosagens e quantidades de remédios e identificação destes por cor, forma e nome. Além desses cuidados – de acordo com Nobre – mais ênfase nas limitações alimentares, hidratação, efeitos colaterais e interações medicamentosas devem ser enfatizados (Idem, p. 175-6). Em suma, as estratégias para adaptar as prescrições as atividades cotidianas dos pós-IAM devem ser efetivadas visando a relacionar – mais proximamente – o prescrito ao cotidiano. No entanto, o que se observa é situação inversa, ou seja, os afazeres diários necessitam serem ajustados às prescrições. É nesse sentido que ingestão de remédios, regimes alimentares, monitoramentos de sensações corporais, proibições de atividades, criação de diário de reabilitação e uso de 15 “beepers” para alertar sobre os horários das ingestões de medicamentos entre outras atividades prescritas, verificam-se como elementos complexos e desafiadores para as pessoas pós-IAM em reabilitação, pois modificar condutas, atividades e hábitos cotidianos derivam ações que incluem as redes de sociabilidades nas quais a pessoa adoecida está inserida. Deste modo, atividades corriqueiras e funcionais como, por exemplo, alimentar-se, banhar-se, adormecer, divertir-se, trabalhar etc vêem-se condicionadas a se moldarem à imposição das prescrições. Ao mesmo tempo em que o prescrito, na prática cotidiana das pessoas enfermas, vai sendo, paulatinamente, moldado às possibilidades e limites da dinâmica do cotidiano. Tais prescrições não se evidenciam apenas pelo concurso de médicos e outros profissionais da saúde no ato de consulta, mas também por encartes, folhetos e cartilhas elucidativas ou promocionais, como – por exemplo tópico – cartilha elaborada pela Bristol-Myers Squibb Brasil S.A (fábrica e distribuidora de medicamentos) com o fito de orientar pacientes pós-cirúrgicos em atividades de reabilitação. Essas cartilhas – por vezes de cunho informativo, por outras ampliadas com teor estético-publicitário – exploram tonalidades suaves e coloridas, expressões faciais sorridentes e saudáveis, rostos rosados em atividades que denotam bem-estar, ação e disposição. Os registros gráficos, por fim, expressam imagens elucidativas de pessoas saudáveis. Tais encartes aludem – de acordo com a medicina – acerca das etapas pelas quais o paciente pós-IAM, se devidamente ajustado à natureza ideal de recuperação, passa em sua reabilitação após alta hospitalar. Assim, objetiva colaborar na recondução do paciente ao cotidiano com dificuldade minimizada. 16 Em caso circunscrito ao universo desta pesquisa, mas não somente nele, tais informativos são disponibilizados aos pacientes pelos profissionais do CRDC e recebem a denominação de “Reabilitação no pós-infarto; Manual para recuperação no pós-infarto do miocárdio 1 e 26” (anexo). Apenas como referência elucidativa: vê-se na capa desenho de uma pessoa sorridente, de pijama, em uma cadeira de leitura com um banquinho para apoiar as pernas, maçãs do rosto cheias e rosadas, com um foco de luz para iluminar o livro a mão, com face feliz e tranquila. Em dada cartilha lê-se: “Este é um fascículo com orientação para as pessoas que sofreram infarto do miocárdio (ou ataque cardíaco) ou que estão em risco de vir a sofrê-lo. Seu objetivo é ajudá-lo no processo de reabilitação ou prevenção desse problema. Aqui estão apresentadas as atividades que devem ser feitas em casa até a sexta semana após a ocorrência do infarto e qual a importância de mudar alguns hábitos em sua vida, principalmente em relação à alimentação e ao sedentarismo.”. Em seguida, relaciona atividades para a segunda semana de tratamento, com um outro desenho de um homem com um avental, vassoura e balde de lixo à mão. Na sequência, orienta que voltem aos poucos às atividades do cotidiano. Explicam, ainda, aos familiares que os pacientes podem exercer atividades físicas contributivas à reabilitação, desde que suaves e rápidas, pois é importante à recuperação. Lê-se em letras grandes; “NÃO TENTE: levantar ou empurrar objetos pesados, trocar os pneus do carro, destampar frascos com a tampa travada ou abrir portas emperradas”. Seguem-se prescrições acerca da alimentação: tabelas nutricionais indicando quantidades e tipos de alimentos que podem ser ingeridos, tabela com “Características da dieta ideal”, sendo suficiência, adequabilidade, equilíbrio e variabilidade de alimentos, aspectos os quais toda dieta ideal tem de ter para satisfazer os parâmetros 6 Cartilhas cedidas pelo Dr. Kasman, cardiologista da equipe de atendimento do CRDC. 17 nutricionais exigidos na reabilitação de IAM. Para a terceira semana indica-se que as pessoas pós-IAM já podem fazer movimentos suaves, como agacharem-se e levantarem objetos leves. Caminhadas curtas e lentas em locais tranquilos e arborizados são aconselháveis. É nessa terceira semana que as atividades sexuais podem ser retomadas, estando ciente de que a “relação sexual requer o mesmo esforço físico despendido ao subir escadas e caminhar em ritmo acelerado”. Assim, evidenciam-se algumas condições para ter relação sexual após o IAM: em letras grandes – “conselhos para retomar a vida sexual sem problemas” 7. As relações devem ser por curto tempo, em locais agradáveis e em posições que as pessoas pós-IAM não sustente o peso da parceira/parceiro. Estes devem ter um papel ativo. As duchas frias ou quentes, saunas antes ou após a relação devem ser evitadas. O turno ideal é pela manhã. Fazer exercício, ingerir alimentos e álcool em excesso antes da relação é desaconselhável. As relações geradoras de tensão emocional devem ser evitadas. Prescreve interromper a relação caso a pessoa pós-IAM sinta algum sintoma da doença: pulsar acelerado do coração, taquicardia, tonteira, calafrios, falta de ar, fraquezas nos braços ou pernas, dores abdominais ou torácicas, vertigem, sensação de desmaio, visão embaçada e suor frio no rosto. Essas sensações valem também para cessar os exercícios físicos. Para a quarta semana prescreve-se que podem realizar ações que exigem “estados de alerta e alguma grau de tensão emocional”. Dirigir é uma delas, desde que acompanhadas. Levantar pesos com no máximo cinco quilos, mas lentamente e com respiração profunda e prolongada. Por fim, na sexta semana de “Volta à vida social”, exercícios 7 Para uma discussão mais detalhada na perspectiva psicológica a respeito do tema ver Romano, W. B. “Psicologia e Cardiologia: Encontros possíveis”. (2001). SP: Casa do Psicólogo, pps 154-170. _______________________________________________________________________________________ __ 18 aeróbicos (dançar, nadar, andar rápido, etc.) podem ser efetivados, pois “aumentam a freqüência cardíaca e a necessidade de oxigênio”. Prescreve-se ter agradáveis atividades junto a família e amigos, sem cigarro e álcool. Deste modo, a prescrição final é: Não esqueça de que você deve cumprir o tratamento estabelecido pelo seu médico e assumir a responsabilidade por sua saúde. Isto é, você deve comparecer pontualmente às consultas médicas e fazer corretamente os exames de laboratório. Deve também tomar seus medicamentos do modo como o médico os prescreve, observando a dose e o horário determinados. Nunca deve tomar remédios por conta própria Assim, se por um lado as prescrições objetivam que as pessoas pós-IAM adiram ao tratamento disciplinadamente, para que os resultados da reabilitação sejam alcançados, por outro, as prescrições demandam vigilância, controle e mudanças em suas atividades cotidianas para obterem resultados de excelência no tratamento ou convivência cômoda com a enfermidade. Isso conduz ao questionamento sobre como as pessoas lidam com tais exigências em seus cotidianos e à reflexão referente à ideia de adesão ao tratamento da medicina. Isso se dá, pois tal princípio exige que o enfermo seja o maior responsável pela reabilitação e profilaxia à doença. Daí se pondera como pessoas pós-IAM lidam com situações cotidianas ditas por elas como problemáticas, adjuntas às implicações da doença. Tais questionamentos começaram a ser ratificados quando se observou, nos trabalhos de campo desta pesquisa no CRDC, algumas palestras destinadas aos pacientes atendidos naquela unidade, visando a informá-los a respeito de que ações devem adotar para conviverem com o processo de reabilitação, entre outros assuntos tratados referente à situação de pós-IAM. 19 As palestras são realizadas no auditório do CRDC, mesmo local onde se realizaram as entrevistas desta pesquisa. Os pacientes são convidados pela assistente social da instituição para presenciarem conferências proferidas por psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, fisioterapeutas, enfermeiras e médicos. Os profissionais disponibilizam informações a respeito de procedimentos de ordem cirúrgica, condições e disposições de internação, constituição das salas de cirurgia e Unidade de Terapia Intensiva, além de informações a cerca de tempo médio de cirurgia, condições de recuperação na UTI e na enfermaria. Complementando o quadro de conscientização, especificam aos pacientes as condições necessárias para receberem alta hospitalar. Ademais, convidam-se pacientes recuperados para testemunharem sobre os próprios desdobramentos já vivenciados. As palestras observadas8 se fizeram em mescla de ambiente de interesse, pressa e receio do público, enquanto as palestrantes usavam imagens e palavras para mostrar aos presentes o que iria acontecer. Ao final das palestras o público – formado por pessoas com idade entre 40 a 60 anos – era menor que no início. As prescrições especificadas durante as sessões de palestras referem-se à condições, documentação e exames que os pacientes devem apresentar quando chamados para efetivarem o processo cirúrgico. Entretanto, como se trata de regime em fila de espera é necessário que estejam com toda documentação em ordem, pois a data sempre é função de surgimento de vaga nos dois únicos 8 Em uma palestra, o pesquisador observou um senhor de abdômen grande dormindo sentado em uma cadeira na primeira fila. Um outro, avisou que sairia antes do final, pois tinha um negócio a resolver. Uma mulher pediu para falar logo de sua experiência, pois tinha que ir pagar uma conta. 20 hospitais conveniados: Santa Isabel e Espanhol. Assim, por precaução, os pacientes devem manter os exames atualizados, o cotidiano organizado, acompanhantes definidos, familiares à disposição, doadores de sangue – de oito a dez – aptos ao exercício; para, a qualquer momento, responderem ao chamado do hospital para realização da cirurgia. O tempo de espera depende do número de pacientes inscritos no programa, podendo perdurar por ordem de mais de dois anos para concretizar a operação. Deste modo, a demora na fila de espera gera situações problemáticas e, por vezes, definitiva, ou seja, ocorrência de óbito antes da intervenção. Em casos de consequencialidade relativa, os exames pré-operatórios perdem a validade – geralmente em torno de trinta dias – causando transtorno para mantê-los sempre atualizados. Como a condição sócio-econômica dos pacientes é baixa, a grande maioria se vale dos recursos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ampliando-se assim a problemática, pela precariedade funcional do serviço. Ademais, os pacientes ainda se deparam com diversa ordem de entraves e indefinições durante o período de espera: clínica que não executa alguns exames, prazo longo para entrega de resultados, grande contingente de pessoas nas clínicas conveniadas; profissionais ausentes para assinarem requisições de exames; paciente que – por residirem no interior do Estado9 – carecem de se deslocarem a capital para cumprirem as demandas especificadas pelo processo. 9 Em conversa com mãe de uma paciente de aproximadamente oito anos de idade em processo de reabilitação no CRDC , o pesquisador foi informado de que ali permaneciam há horas, a espera de médico que não chegava para a consulta. Mencionara que viera de Santa Maria da Vitória, no oeste da Bahia, em carro emprestado pela Prefeitura Municipal da localidade, em 10 horas de viagem. Alimentavam-se de biscoito e água. Tentavam contato com o motorista pelo telefone público do CRDC e não conseguiam. A mãe não conhecia Salvador e não dispunha de recursos necessários para outra atitude, motivo pelo qual a induzia a esperar pela incerteza da consulta e tempo do motorista em aparecer para retornarem à cidade de origem. O caso fez-se premente para evidenciar situações e condições que vivencia o público de pacientes pré e pós-operatórios do CRDC. 21 Não sabendo o dia da cirurgia, as palestrantes explicam o pré, o operatório e o pós-operatório, na expectativa de que o dia chegue. Desse modo, as palestras enfatizam o que os pacientes pós-operados devem fazer quando retornarem ao cotidiano. As situações vistas em campo sugerem que os pacientes dão continuidade às atividades cotidianas considerando a incerteza de serem submetidos à cirurgia. Observar tais situações intensificaram um dos argumentos de pesquisa, segundo o qual as práticas cotidianas exercem força de interveniência na lida da pessoa pós-IAM em reabilitação. As prescrições de profilaxia-reabilitação de um IAM, em grande medida, apontam para mudanças no cotidiano, para que este se ajuste ao prescrito. Todavia, o cotidiano não está plenamente sob controle do enfermo e sim compartilhado com outras pessoas. Desse modo, faz-se como impositivo em alguns aspectos, organizado e organizador da dinâmica cotidiana constituída no tempo do viver em comunidade, o que exige negociações constantes entre as pessoas para compartilhar situações, sejam para suprir necessidades materiais ou mesmo satisfazer prazeres. Por outro lado, as prescrições, originadas no modelo biomédico, visam mudanças de comportamentos individuais entendidos pela ótica dos fatores de risco. Assim, evitar os fatores pode prevenir a ocorrência das DCV (Hopkins and Williams 1981; Ducan 1996, Dressler 1991; Lessa 1993 apud ALVES, p 7, 1997). Entretanto, o que se observa é o fato de que as taxas de incidência crescem proporcionalmente ao crescimento da população, apontando para a existência de discrepâncias entre o que o modelo determina como medidas profiláticas-reabilitativas eficazes, causas e formas de lidar com as prescrições e 22 o que os enfermos relacionam como interveniências no respectivo adoecer e na lida com as implicações advindas da doença. Daí, nesta pesquisa, se direcionar reflexões sociológicas às relações estabelecidas, pela pessoa pós-IAM, entre doença e vida cotidiana quando do retorno a esta após internação. Nesse sentido, busca-se destacar relações entre IAM e situações cotidianas problemáticas, como modos iniciais para conferir sentido à experiência de enfermidade. 23 Capítulo I – Horizonte teórico10 As Ciências Sociais em Saúde reconhecem que as condições sociais de vida tem relação com causalidade, desenvolvimento, controle e solução das doenças11. Essas ciências tendem a propor uma visão compreensiva do evento da doença concentrando análise no processo de enfermidade, no qual se articulam diferentes dimensões da realidade. Logo, dispõe objetivos mais prementes a compreensão da experiência cotidiana de enfermidade no que concerne às práticas e sentidos que a pessoa adoecida, e outras envolvidas, elaboram para a doença. Na compreensão sociológica da experiência de enfermidade as noções de disease, illness e sickness são essenciais. Disease é a evidência corporal da doença segundo o modelo biomédico moderno ocidental, que tende a “utilizar um tratamento físico (drogas ou cirurgia) para corrigir anormalidades subjacentes. (Helman,1994, p.104). Por seu turno, Illness refere-se à: resposta subjetiva do paciente, e de todos os que o cercam, ao seu mal-estar. Particularmente, é a maneira como ele – e eles – interpreta a origem e a importância do evento, o efeito deste sobre seu comportamento e relacionamento 10 Não tendo caráter exaustivo nem crítico, apresentam-se os principais construtos teóricos que orientam o desenvolvimento desta pesquisa. Expõem-se as ideias básicas a partir das quais se descrevem as relações entre doença e cotidiano, de acordo com menção das pessoas entrevistadas. 11 A relação doença-cultura especifica-se no inicio dos estudos da Antropologia Médica, a qual denomina-se, na atualidade, de Ciências Sociais da Saúde ou Sócioantropologia da Saúde. Rivers (1924, apud Langdon, 1996), investigou modelos de medicinas não-européias, as “primitivas” como designadas à época; caracterizando-as de acordo com formas de pensar: a mágica, a religiosa e a naturalista. Langdon (idem) diz: “As medicinas primitivas eram, então, manifestações de modos de pensamentos lógicos no qual o tratamento da doença logicamente seguiria a identificação da causa” (p.01). Em suma, o essencial na contribuição desses primeiros estudos foi demonstrar a estreita relação entre as instituições sociais das medicinas e as respectivas culturas em que se inseriam, vez que para se entender dado modelo biomédico é necessário considerar o respectivo contexto sociocultural em especificidade. (Helman,1994, p.104; Rivers 1924, Clements 1932, Ackerknecht 1943 apud Langdon, 1996). 24 com outras pessoas, e as diversas providências tomadas por ele para remediar a situação. Pela noção de illness entende-se que o enfermo é engajado à situação de enfermidade com todas suas feições biográficas, sejam limites, possibilidades presentes e projetos futuros, direcionado por modos segundo os quais ele atua na situação. Essas atuações dirigem-se para um mundo compartilhado com outros – enfermos ou não – em termos de ideias, valores, crenças e práticas. Como menciona RABELO E ALVES (1999, p. 171): Na lida com a enfermidade, o doente e aqueles que estão envolvidos na situação (como familiares, amigos, vizinhos e terapeutas) formulam, (re) produzem e transmitem um conjunto de soluções, receitas práticas e proposições genéricas, de acordo com o universo sociocultural do qual fazem parte. Neste sentido, descrever as maneiras pelas quais a pessoa pós-IAM atua na situação de enfermidade é – inclusive – atentar às indicações causais, modos de lidar com as implicações da doença e com o futuro projetado. Assim, os estudos que adotaram esse tipo de abordagem apontam para a insuficiência da definição orgânica da doença, pois evidenciam que os sentidos conferidos pela pessoa enferma à doença não são o centro de suas análises, uma vez que explica a doença como manifestação orgânica com natureza não alinhada diretamente aos engajamentos cotidianos. ALVES, RABELO & ALVES registram: não se pode pensar unicamente em isolar o risco de beber, de fumar, de comer determinados alimentos, pois pode ser eficaz para intervir na dimensão individual, mas anula o efeito compreensivo do problema e reduz a eficácia da intervenção 25 (...) conceito de experiência da enfermidade (...) se refere basicamente à forma pela qual os indivíduos situam-se perante ou assumem a situação de doença, conferindo-lhes significados e desenvolvendo modos rotineiros de lidar com a situação.(1997, p. 7). Nesta investigação propõe-se a atentar sobre as relações estabelecidas pelas pessoas pós-IAM em reabilitação entre situações consideradas por elas como problemas cotidianos e o adoecimento. Neste sentido, entende-se que o adoecer sucede em um mundo culturalmente dado, sendo a experiência de adoecer referenciada pelo arcabouço simbólico e material relativo a esse mundo. Pensamento desta ordem remete à ideia seminal de sickness, pois possibilita entender o adoecimento por IAM como um evento que ocorre abruptamente em um mundo compartilhado, exigindo dos envolvidos que ajustem mutuamente práticas cotidianas e implicações da doença à situação de enfermidade. Os ajustes impõem-se como amplos e profundos ou – de modo diverso – como parciais e temporários, a depender da natureza da doença e das situações problemáticas vivenciadas pelas pessoas pós-IAM em reabilitação e seus pares. Contudo, alguns ajustes devem ser feitos para que as pessoas possam lidar – simultaneamente – com ambas as circunstâncias. Neste sentido, sickness – talvez com maior intensidade – permite analisar as relações estabelecidas entre as situações e adoecimento por IAM, para que ajustes possam ser efetivados. Logo, BOEHS (2001), apoiado em LANGDON (1994), registra: Considera-se que, na doença, “illness”, há a conjugação de normas, valores e expectativas tanto individuais como coletivas e se expressa em formas específicas de pensar e agir. A doença (illness), nesta visão, é concebida como 26 uma experiência construída sócio-culturalmente, como um conjunto de experiências associadas à rede de significados e à interação social, assumindo um caráter local e não o universal da concepção biomédica de distúrbio (...) Refere também que “Sickness”...expressa particularidades dos indivíduos dentro da sociedade (p. 6-7). Adoecer, como sicknes, é mais denso de sentido que a sintomatologia, intervindo na subjetividade da pessoa adoecida que, tematizando o mal-estar que corporalmente sente, confere sentido às sensações, relacionando-as ao cotidiano. Entretanto, tais sentidos devem ser compartilhados com terceiros para conferirem legitimidade social à doença e assim agirem à procura de soluções. De tal modo, as pessoas intersubjetivamente conferem sentidos à doença, os quais podem indicar causas, maneiras de lidar com as implicações dela advindas e ajustar projetos futuros às circunstâncias12 do cotidiano. Então, saber como as pessoas criam explicações à doença é compreender como conferem sentidos à experiência, uma vez que esta ocorre relacionada a ações de outras pessoas no cotidiano. Isto firma o cotidiano como intersubjetivo, sendo que alguma interveniência pessoal atinge toda sua dinâmica. A vida cotidiana – de acordo com BERGER & LUCKMAN (2002) – pode ser entendida “como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente” (p.35). Trata-se de um conceito que vê o mundo com diversas dimensões intencionais de 12 Este termo é mencionado em M. de Certeau (2003), citando U. Eco “a circunstancia se apresenta como o conjunto da realidade que condiciona as escolhas dos códigos e dos subcódigos, ligando a decodificação à sua própria presença. O processo da comunicação, mesmo que não indique referencias, parece se desenrolar no referente. A circunstância é este conjunto de condicionamentos materiais, econômicos, biológicos e físicos em cujo interior nós nos comunicamos”. (“La Structure absente.” Paris, Mercure de France, 1972, p. 115. In: Certeau, M, de et all: “A invenção do cotidiano” (2003) Tomo 2, p. 349. Nota de fim número 3) 27 realidade, sendo a cotidiana a “realidade predominante” (idem, p. 38), por ser a mais imediata e envolvente, porquanto é no cotidiano que se promove o engajamento do fazer prático. A vida cotidiana é o lócus de ações práticas; é uma dimensão de realidade que nos toma ao tempo em que atuamos, uma vez que são as ações práticas intersubjetivas as marcas dessa realidade no conviver cotidiano com outras pessoas. É no viver compartilhado que se agenciam os sentidos das ações. O cotidiano impõe-se como dimensão de ação, uma vez que antes de tematizar, a pessoa exercita práticas que envolvem interpretações; assim, a dimensão cotidiana do mundo da vida é de ações operativas – Wirkwellt. (AlGARRA, 2005, p.89). Por sua vez, SCHUTZ13, (Apud ALGARRA 2005, pps, 64, 112-113) trata o cotidiano como uma dimensão do mundo da vida essencialmente de ação. Conceitua-o como uma das “províncias de significado” finito dentro do mundo da vida. Esta província cotidiana de significados tem “epoqué” própria que comporta modos típicos de atenção, os quais permitem que as experiências sejam coerentes ao interior dessa mesma província. É assim, a princípio, que se apresenta finita e evidencia a contradição de se referir a uma outra a partir de um modo de atenção específico de uma dada província. Logo, em cada província há 13 Foca análise fenomenológica nos estados práticos do mundo da vida. Visa a realizar uma fenomenologia da atitude natural, pois a fenomenologia em suas linhas filosóficas primeiras, volta atenção à esfera transcendental pensada por Husserl: “nos ocupamos de estados de coisas intencionais entre essências dentro do domínio da experiência, e não de nexos empíricos. Podemos dizer – afirma em ‘Life Forms’ – que a possibilidade objetiva da experiencia vem dada somente pelo ser da coisa. Este ser é sempre ser-em-simesmo”. Por outro lado, Schtuz em carta a Spiegelber em 1945 diz: “Tenho tomado como minha ocupação limitar-me à fenomenologia da atitude natural como ela se faz no mundo. Primeiro, porque creio que, nesta área, há muito por fazer em vista do não cuidado por muitos fenomenólogos profissionais. Segundo, porque estou cada vez mais convencido de que o social tem sua origem somente no natural e não no transcendental”. (idem2005). Por isso, redireciona fenomenologia ao mundo da vida, pondo as essências intencionais de lado temporariamente na compreensão da prática da experiencia mundana, já que a compreensão é experiencia engajada no cotidiano. 28 um modo de atenção – uma “epoqué” – peculiar que confere à realidade social14 uma ênfase de sentido distinto. Desse modo, o que fora coerente em certa realidade social pode não o ser quando se intercambia o modo de atenção, pois se altera a premissa de coerência da experiência. Logo, para cada província existem formas únicas de espontaneidade; de auto-experienciar-se e de sociabilidade; de engajamento. As pessoas no mundo da vida cotidiana, por vezes, não têm condições de escolherem com plena liberdade as situações nas quais se enquadram. Em grande medida, as situações do cotidiano são impositivas e ultrapassam as escolhas das pessoas em densidade de sentido e em extensões espacial e temporal, uma vez que essas situações são condicionantes parciais que as concentram em um mundo sócio-histórico dado. Schutz registra: Com isso só quero dizer que se trata de algo que simplesmente está aí em sua incompreensibilidade e que é somente esta função primordial – como o mundo da vida cotidiana – o que torna qualquer compreensão possível. (p. 212, apud ALGARRA, 2005, p.68). É nesse mundo dado que se fundamenta a “epoqué” da atitude natural, que se constitui na certeza da existência desse mundo e da presença das pessoas nele. Algo diverso da “epoqué” fenomenológica que é a suspensão dessa certeza refletindo acerca das essências constituintes da intencionalidade. Logo, na 14 Esse termo diz respeito à “soma total dos objetos e dos acontecimentos do mundo cultural e social, vivido pelo pensamento do senso comum dos homens no conjunto das numerosas relações de interação. É mundo dos objetos culturais e das instituições sociais nas quais nós nascemos, onde nós nos reconhecemos. (...). Nós, os atores na cena social, vivemos o mundo como um mundo ao mesmo tempo de cultura e de natureza, não como um mundo privado, mas intersubjetivo, isto é, que nos é comum, que nos é dado ou que é potencialmente acessível a cada um entre nós; isto implica a intercomunicação e a linguagem (Schutz, 1987, p. 66, apud Tedesco, 1999, p. 100. Nota de página) 29 “epoqué” da atitude cotidiana, as pessoas não questionam as condições de possibilidade do mundo – no qual estão engajadas – serem diferentes de como lhes são dadas circunstancialmente. Na atitude natural cotidiana as pessoas não fazem distinção entre o mundo por elas percebido, ou seja, intencionado pela percepção, e o dado mundo exterior (idem 2005, p.75). Deste modo, possibilita-se que as ações cotidianas estejam engajadas em processos de reciprocidades de perspectivas, mediante as quais se pressupõe que as outras pessoas entendam o mundo de maneira semelhante, ou seja, intersubjetivamente, perfazendo-se – assim – um “mundo de sentido comum”. Sobre o fato, menciona Schutz: O mundo de sentido comum é o mundo cotidiano, o mundo da vida, são expressões que indicam o mundo intersubjetivo experimentado pelos homens em mútua relação, entendendo-se consigo mesmo e com os outros. Mundo que existia antes de nós, o qual tem uma historia e que nos é dada de maneira organizada. É primordialmente o cenário de nossas ações sociais. Não é um mundo simplesmente físico, mas também um mundo sócio-cultural, o que confere a cada individuo uma ‘situação biográfica determinada’. (In: Wagner, 1979. p.17). Todo momento da vida de um homem é reflexo da situação biográfica em que se encontra, isto é, o ambiente físico e sócio-cultural conforme definido por ele, dentro do qual tem uma posição, não apenas em termos de espaço físico e tempo exterior, ou de ‘status’ dentro do sistema social, mas também moral e ideológica. (idem 1979, p.73)]. As ações, criadoras da intersubjetividade cotidiana, têm aspectos do passado da pessoa. A situação biográfica é um momento repleto de experiências já vivenciadas, presentes e projeções futuras. Permite umas e proíbe outras 30 elucidações sobre as ações no presente predominante, posto que se ancora em conhecimentos acerca de experiências passadas, na própria situação predominante e no futuro projetado. A situação biográfica é um momento cotidiano predominante que se alonga do passado, impõe-se no presente e indica um futuro em projeto. Este último “È esse propósito à mão que define que elementos, dentre todos os outros contidos numa dada situação, são relevantes para esse propósito” (wagner, 1979, p.76). Em sintonia com a disposição apresentada, atenta-se para o pensamento exposto por Jean-Paul Sartre ao mencionar que: A situação é o sujeito inteiro (ele não é nada mais do que sua situação) e é também a “coisa” inteira (não há jamais nada mais do que as coisas). Se quisermos, é o sujeito iluminando as coisas pelo seu próprio transcender, ou são as coisas remetendo sua imagem ao sujeito. É a facticidade, a contingência absoluta do mundo, de meu nascimento, de meu lugar, de meu passado, de meus arredores, do fato de meu próximo – e é minha liberdade sem limites enquanto aquilo que faz com que haja para mim uma facticidade. (1997, p.673). O cotidiano se impõe quanto mais se atua. É um atuar pragmático devido à sua ordenação e sentidos compartilhados. Nas atuações se ratifica o mundo cotidiano predominante no qual se está engajado. “É na ocupação que o ser-no-mundo é tomado pelo mundo de que se ocupa”, diz Salete Nery (2000, p. 45) citando Heidegger (1995, p.100). Logo, é no ocupar-se da vida cotidiana e concomitantemente ser ocupada por ela, que se dá o engajamento das pessoas em ações práticas intersubjetivas cotidianas. A ação constitui a dimensão cotidiana do mundo da vida mediante sua orientação às de outras pessoas que compartilham o mesmo cotidiano, indicando o aspecto 31 social da ação e uma das nuanças do engajamento. Daí, as afinidades entre fluxo de consciência e ação serem estabelecidas por intermédio dos motivos pragmáticos geradores do projeto da ação. Contudo, para realizar o projeto é necessário dominar um estoque de conhecimento compartilhado acerca da sociedade em que o enfermizado se insere. É claro que não se exige conhecimentos sociais precisos e plenos postos como possíveis de serem utilizados no projeto da ação, pois o engajamento os sintetiza na atuação e esses conhecimentos vão sendo precisados na medida em que satisfaçam o projeto. Assim sendo, os motivos são pragmáticos, pois visam atenderem às demandas do projeto mediante a elaboração de meios e fins no curso de realização da ação. O processo para elaborar meios e fins de um curso de ação expõe, na prática, o que é possível, referente ao atuar da pessoa, e o que provavelmente não o é; contudo, abrindo-se como possibilidade futura de sucesso. Indica-se, desse modo, um “mundo ao meu alcance” e “mundo potencialmente ao meu alcance”. Esse último aponta o que em dada circunstância cotidiana não é possível – pela atuação do sujeito – concretizar; contudo, devido à mudanças nas circunstâncias cotidianas presentes pode se tornar possível em um futuro projetado.Todavia, as delimitações entre esses mundos fazem-se por meio dos motivos pragmáticos geradores do projeto da ação no cotidiano presente. Por essa maneira, o presente é a estrutura temporal indelével da dimensão do “mundo ao meu alcance”, uma vez que é nessa estrutura que se processa uma síntese particular entre estoque de conhecimento, projeto e ação, a saber, no operar; sendo este um modo de vivência com grau máximo de atenção à vida por evidenciar o engajamento da pessoa em atuação no mundo da vida cotidiana. Por outro lado, o “mundo ao meu alcance potencial” – quanto à estrutura temporal – evidencia aspectos mais 32 intrincados, porque é relativo a um mundo que jamais esteve ao alcance, todavia poderá estar no futuro, fazendo com que o motivo pragmático da ação seja referenciado por uma idealização “e assim sucessivamente”, a qual indica o pressuposto de “normalidade percebida”. (Wagner, 1979, 126-127). Essa normalidade é “mundo da vida cotidiana”. O mundo rotineiro, dos afazeres diários, onde as pessoas atuam com razoável previsibilidade para assegurarem a coerência de condutas frente às outras e aos seus objetivos projetados. Assim: o mundo da vida cotidiana significa o mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso nascimento, vivenciado e interpretado por outros, nossos predecessores, como um mundo organizado. (Wagner, 1979, p.73). Ações realizadas sem questionamento é aspecto desse mundo cotidiano. É a “atitude natural15” que diz respeito à conduta de inquestionabilidade frente aos eventos do cotidiano. Conduta na qual tudo é não-problemático até o momento que um evento inédito se apresenta. Evento que não se tem conhecimentos delineados no estoque à disposição para se elaborar cursos de ações adequados às demandas predominantes. É o momento da “ruptura”, e exige a elaboração de cursos de ações ainda não realizados ou ajustes em cursos exercitados no decorrer do cotidiano.Eles devem ser elaborados considerando as impositividades cotidianas, o estoque de conhecimento, os motivos para ação e projeto, pois objetivam exercer mudanças circunscritas às metas preconcebidas no projetar. Portanto; 15 À ideia de “atitude natural” cotidiana registra-se: “A postura mental que uma pessoa toma no lidar espontâneo de rotina com seus afazeres diários; é à base de sua interpretação do mundo da vida com um todo e em seus vários aspectos. O mundo da vida é o mundo da atitude natural. Nele as coisas e situações são tidas com pressupostas”. (Wagner, 1979, p. 311) 33 ação é uma conduta previamente projetada e que pode ser interpretada em seu sentido subjetivo ao qual a pessoa confere na realização da ação (WAGNER, 1979, p.68;124-125; ALGARRA,2005, p.118). O estoque de conhecimento à mão resulta de compreensões legitimadas acerca de experiências sofridas na dinâmica cotidiana das próprias biografias. Nestes termos, os conhecimentos disponíveis são plásticos, parciais, diversos e efêmeros. Os conhecimentos oriundos de atuações em diferentes circunstâncias cotidianas são fragmentados e parcialmente coerentes. São os objetivos pragmáticos da ação os motivadores da atenção por específicos pontos dos conhecimentos, os quais são necessários para atenderem os fins da atuação. Schutz (Apud Wagner, 1997) os denominam de conhecimentos “abertos”, em constantes ajustes circunstanciais. Os objetivos pragmáticos da atuação tanto podem ser determinados cotidianamente pelos conhecimentos habituais quanto podem precisar de ajustes, o que ocorre quando o referido conhecimento habitual não é entendido pela pessoa como completamente satisfatório à atuação em dada circunstância. É o caso do adoecimento por IAM, que resulta em um delineamento do “estoque de conhecimento” em campos de relevância que tendem para a solução do problema. Isto é, campos com graus de clareza e ambiguidades, de preconceitos, de crenças e regiões ignoradas até o respectivo momento (Berger e Luckmam, 1978). Assim, do mesmo modo que a biografia de cada pessoa é peculiar, o estoque de conhecimento também o é, sendo fundamental na elaboração de meios e fins do projeto de ação. Projetar é conceber o curso de uma ação a realizar. No projeto, a pessoa considera as impositividades práticas do cotidiano, pois para tornar o projeto um 34 ato através da finalização da ação, precisa exercer os conhecimentos acerca dos vários momentos práticos do curso, sendo estes tomados como objetivos intermediários na realização do projeto. Daí, o projetar tem em si a conduta previamente planejada, a intenção de realizar a ação, a evidência16 da ação e os motivos geradores do projeto. Porém, os conhecimentos das impositividades que a pessoa terá de enfrentar no curso do projeto são centrais para tornar a ação, ato. A partir do estoque de conhecimentos a pessoa pode ter entendimentos menos opacos dos vários momentos futuros do curso da ação. Entretanto, não dispõe de conhecimentos plenos – como mencionado – de todo o curso da ação em que se engajará. Por isso a opacidade do futuro projetado. Deste modo, o que se tem “à mão”, no projetar, são: horizontes em aberto, que somente serão preenchidos através da materialização do evento antecipado; em conseqüência, para o ator, o significado do ato projetado tem, necessariamente, de diferir do significado do ato realizado. Assim, o projetar (e, além disso, desenvolver o projeto) fundamenta-se no estoque de conhecimento à mão, com sua estrutura particular, na ocasião do projetar. (Wagner, 1979, p. 139). A essência operativa do mundo da vida cotidiana impõe que o projeto esteja relacionado às possibilidades e limites práticos do cotidiano da pessoa que planeja realizá-lo. Não obstante, essa prática aponta para o modo de engajamento da pessoa ao cotidiano, na medida em que esse engajamento se dá mediante as diversas maneiras praticadas para realizar suas atuações na 16 O termo “Evidencia” é aqui empregado no sentido cunhado por Husserl: a experiencia específica desse ‘estar consciente de’. (Cf. Formole und Transzendetale Logik, pp 437 e segs, especialmente p. 144, apud. Wagner, 1979, p. 127) 35 dinâmica intersubjetiva cotidiana. A essência operativa do mundo da vida ancorase então, no processo prático do projeto, nas disponibilidades de conhecimentos intersubjetivos dispostos na sociedade e nas circunstâncias presentes de atuação. Desse modo, são os estilos mediante os quais cada pessoa lida cotidianamente com esses conhecimentos intersubjetivos à disposição que delineiam suas práticas para efetivar o projeto da ação. Assim: A reciprocidade de perspectiva é o que dá o caráter social da estrutura do mundo da vida de cada um (Tedesco, 1999, p. 100). As ações práticas cotidianas são marcadas pelos aspectos de “reflexividade”, que permite à pessoa elaborar descritivamente os estilos praticados ao realizar a ação. Pela “descriptibilidade” oportuniza a racionalização de diversos eventos, suprimindo a lacuna entre a prática da ação e o seu discurso para, assim, estabelecer relações entre as ações. Por sua vez, a “indexabilidade” possibilita a elaboração de sentidos das circunstâncias intrínsecos às respectivas práticas. Em conjunto, esses aspectos constituem as propriedades essenciais da prática cotidiana e expõem a estrutura do engajamento da pessoa em atuação no mundo da vida cotidiana. A prática – por fim – é ação em processo que sintetiza um “saber-fazer”, ou “procedimentos interpretativos”. Portanto: Os procedimentos interpretativos e seus traços reflexivos fornecem, em permanência, instruções aos participantes de tal modo que se possa dizer que os membros programam suas ações recíprocas na medida em que a ação se desenrola. (Cicourel, 1968, 1972, Coulon, 1987, apud. TEDESCO,1999, p. 103). É na realização das ações práticas imersas e referenciadas no cotidiano intersubjetivo que a realidade social se constitui para a pessoa em atuação, possibilitando a estruturação da experiência pessoal de cada um. Contudo, essa 36 experiência está voltada para um mundo em constante construção, mediante as ações práticas reciprocamente orientadas. Em síntese: a realidade social como uma construção coletiva de atores (indivíduos), que, conservando suas experiências pessoais, concordam tacitamente sobre uma definição subjetiva do mundo.(Berger e Luckman,1986, apud, TEDESCO,1999, pps.98-99). Referenciada nesse horizonte, a pesquisa descreve como e o que é mobilizado pela pessoa pós-IAM para ajustar as implicações advindas da doença ao cotidiano de vida, uma vez já estabelecido antes da crise de IAM; bem como o empenho para que o cotidiano ajuste-se às novas implicações. Logo, para analisar essa mútua mobilização como um dos modos práticos de conferir sentido à experiência de enfermidade, é necessário descrever as relações estabelecidas pela pessoa pós-IAM entre o adoecer e a vida cotidiana. 37 Capitulo II – Pesquisa e procedimentos metodológicos • Concepção da pesquisa O estudo “Problemas cotidianos e Infarto agudo do miocárdio (IAM); Conferindo sentido à experiência de enfermidade” 17 – sob orientação da Profa. Dra. Iara Souza/UFBA – advém de uma pesquisa de maior magnitude denominada “Reconstruindo a normalidade; mudanças e comportamentos em indivíduos enfartados”, coordenado pelo Prof. Dr. Paulo C. Alves/UFBA,. A ideia de base do presente estudo centra-se no fato de que a vítima de IAM estabelece relações entre a doença e situações cotidianas problemáticas vivenciadas. Consequentemente, o estudo se propõe a analisar relações e identificar procedimentos de lidar com as implicações advindas da doença quando, após o internamento, a pessoa pós-IAM retorna à vida habitual, posto que as relações indicam meios para se compreender modos de conferir sentido à experiência de enfermidade. Contudo, o processo investigativo depara-se com limitações uma vez que – pela imposição metodológica calcada na coleta de informações por meio de entrevistas, a experiência cotidiana certamente impõe transformações constantes na dinâmica do viver, provocando nuanças de perspectiva na pessoa pós-IAM. Nestes termos, analisam-se as relações tendo-as como modo de conferir sentido à experiência de enfermidade num dado tempo, sendo este o retorno ao cotidiano após internação hospitalar. 17 Certificado pelo Conselho Nacional de Saúde - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP, do Ministério da Saúde do Brasil, resolução 196/96 e 251/96, Folha de rosto 111618, Área de Conhecimento (7.00) Ciências humanas (7.02) Sociologia, Grupo III, Projeto: Problemas Cotidianos e infarto agudo do miocárdio, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética – CAAE - 0081.0.053.06. Entrega em 01-01-2006, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia – CEPSESAB, sob o parecer 77/2006, bem como pelo Comitê de Ética do Hospital Santa Isabel, sob parecer do relator Dr. Jedson Nascimento, e na diretoria cientifica do INCOBA, segundo anuência do coordenador Dr. Armênio Guimarães, e pelo coordenador médico do CRDC Dr. Marcus Andrade. 38 • Campos de pesquisa. Os campos de pesquisa concentram-se em duas unidades públicas de atendimento à saúde em Salvador: o Instituto do Coração da Bahia (INCOBA) do Hospital Ana Nery e o Centro de Referencia em Doenças Cardiovasculares Adriano Ponde (CRDC) e foram realizadas, respectivamente, às segundas-feiras à tarde, no período de 21/05/2007 a 31/03/ 2008 no INCOBA e às terças e quintas-feiras de 05/2007 a 03/2008 no CRDC. • Instituto do Coração da Bahia (INCOBA) O hospital Ana Nery18 pode ser considerado, em relação ao número de leitos, como de grande porte e localiza-se à Rua Saldanha Marinho, s/n, Caixa D’ Água, Salvador, Bahia. Disponibiliza – à clientela do SUS – serviços de Nefrologia, Centro Cirúrgico, Clínica Médica, UTI, Cirurgia, Cardiologia, Ambulatório, entre outras. O INCOBA dispõe de serviços de alta complexidade em cardiologia clínica e cirúrgica, emergência, UTI adulta, pediátrica e neonatal. Além de laboratórios, internação e unidade coronariana e ambulatório de cardiologia – local de realização de entrevistas da pesquisa – pronto atendimente, cirurgia cardiovascular adulto, intervencionista e endovasculares extracardíacos (Intranet, SESAB, 2007). O prédio do hospital Ana Nery ocupa uma quadra no bairro Caixa D’água. O trânsito diário de pessoas, carros e ambulâncias é intenso. O prédio possui duas alas com sete andares e, aproximadamente, vinte salas por andar. Ademais, 18 O hospital Ana Nery foi criado a partir do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas (IAPTEC), DL n°651/26/08/1938. Reorg. pelo DL 72/21/11/1966. Lei n° 6.439/01/09/1977. A Lei n° 8.080/19/09/1990, que criou o SUS, reestruturado pela Lei n° 6.074 de 22/05/ 1991. Doado à SESAB Via Termo de Cessão de uso MS/SESAB/21/08/1998, Publicado DOU/02/09/98. 39 constrói-se novo anexo, o segundo, constando de três andares com o fito de alocar o ambulatório do INCOBA, que ainda funciona provisoriamente em barracão pré-moldado de madeira no estacionamento, entre a lanchonete e a capela. Por isso, o espaço interno do ambulatório é exíguo, com corredores estreitos, salas e consultórios insatisfatórios e recepção diminuta para o contingente de pacientes a serem assistidos. Iniciou-se a pesquisa no ambulatório do INCOBA no ano de 2007, um pouco antes da mudança de gestão administrativa do Instituto Sócrates Guanes para a UFBA, gerando situação de instabilidades aos funcionários. No que tange ao universo da pesquisa de campo, o início da coleta de dados sofreu atraso de três meses, na medida em que a reorganização de turnos, dias e salas se fizera premente. Com o passar dos meses as decisões administrativas efetivaram-se e a gestão se estabilizou, fato que viabilizou a definição de sala, período e turno para a execução das entrevistas. Primeiramente, a pesquisa foi apresentada à equipe médica do INCOBA, oportunizando contribuições. Em seguida, iniciaram-se os trabalhos de entrevistas com pacientes pós-IAM subsequentes em tratamento ambulatorial, após alta hospitalar, como a equipe médica do INCOBA define as pessoas que sofreram IAM e estão em reabilitação. Estabeleceu-se o turno da tarde, às segundas-feiras, para efetivarem-se as entrevistas, uma vez que nessas datas, duas cardiologistas em atendimento instruiriam os pacientes sobre a necessidade de, após consulta regular, concederem depoimentos de suas vivências e convivências em relação aos 40 respectivos processos de reabilitação. Optou-se por executar as entrevistas após a ocorrência das consultas, pois eliminaria o receio dos pacientes em perde-las. Assim, as entrevistas iniciaram na metade do primeiro semestre de 2007, estendendo-se por 43 dias de atividades, das 14 às 18 horas, contabilizando-se, deste modo, 162 horas de trabalho de campo no INCOBA. • Centro de Referência em DCV Adriano Pondé (CRDC). O CRDC localiza-se na Rua Visconde de Itaboraí 1193, em Amaralina. Foi inaugurado em 07/05/2004 e pertence à jurisdição do Distrito Sanitário Barra/Rio Vermelho. É a única unidade municipal em DCV que oferece, exclusivamente aos clientes do SUS, tratamento especializado e acompanhamento multidisciplinar aos pacientes de HAS e outras espécies clínicas do aparelho cardiovascular. Os serviços ocorrem devido à parceria celebrada entre a Prefeitura Municipal de Salvador – através da Secretaria de Saúde – e o hospital Santa Isabel. Entretanto, o CRDC é conhecido pelos pacientes como “posto de Amaralina”, pois, é o modo como a secretária do setor multidisciplinar o identifica quando se comunica com os pacientes. De acordo com a gerente municipal, o objetivo do CRDC é: Prestar atendimento de qualidade e resolutivo em DCV, atendendo a população usuária com equidade, acessibilidade e universalidade, como preconizam os princípios do SU. Tendo como objetivos específicos o desenvolvimento de atividade de assistência, prevenção e educação em saúde para os pacientes encaminhados pela Rede-SUS-Salvador. E diminuir o quadro de morbimortalidade de DCV neste município. Desenvolver ações de saúde através da equipe multidisciplinar, com objetivo de acolher e abordar o indivíduo de forma integral e referenciá-lo para a rede básica de saúde, para rede especializada ou para a internação hospitalar. Ser ainda, observatório do sistema e da saúde da população. Com a meta de registrar casos de DCV e acumular subsídios à elaboração de estudos epidemiológicos e construção de indicadores de saúde e 41 de serviços que contribuam para a avaliação e planejamento da atenção integral de todo o sistema de saúde. Por fim, garantir quadro de recursos humanos qualificados compatíveis ao porte e aspecto desta unidade CRDC. (Protoc. de apres. do CRDC, 2008). Assim, o CRDC oferece aos pacientes19 especialidades de cardiologia adulta e pediátrica, endocrinologia, angiologia, nefrologia, ginecologia para gestação de alto risco, oftalmologia, odontologia, fisioterapia, enfermagem, nutrição, psicologia e assistência social. Em expediente de 07h00min as 19h00min, de segunda a sexta-feira. Com área de 800 metros quadrados, dispõe de um casarão central de dois andares, zoneado em três unidades de serviços. Sala de administração com call center, gerência, coordenação médica e de enfermagem, despensa, refeitório, três sanitários e arquivo médico com cerca de 20 mil prontuários de pacientes, em ordem numérica crescente. A anuência à pesquisa no CRDC foi concedida mediante parecer do comitê de ética do hospital Santa Isabel, seguindo-se reunião com os dirigentes visando a criar mecanismos administrativos que viabilizassem as entrevistas. Decidiu-se pelo local – o auditório – e os dias: as terças e quintas-feiras, durante todo o expediente; bem como a forma de condução dos pacientes pós-IAM ao pesquisador, após consulta com a equipe de saúde. 19 O perfil clínico dos pacientes do CRDC forma-se de diagnosticadas como hipertensos severo com PAS >170mmg e PAD>100, ICC grave com FE<40%, Arritmias, dislipidemia severa, usuários de marca passos/CDI, cardiopatas congênitos com suspeitas forte ou confirmada, valvulopatas, pericardiopatias e gestação de alto risco com critérios específicos (Protocolo de apresentação do CRDC). 42 Método de trabalho • Pessoas entrevistadas, entrevistas e dinâmica de campo. As pessoas entrevistadas sofreram ao menos um IAM no máximo há dois anos, contados do dia da entrevista. A pessoa que sofreu IAM mais recentemente vitimou-se três meses antes da entrevista e todas estão em reabilitação nos respectivos domicílios. Uma das entrevistadas sofrera seis IAM nos últimos dois anos e aguarda por cirurgia na fila de espera. Constatou-se que todas as pessoas pós-IAM já estiveram internadas. O grupo constituiu-se de 24 homens e 9 mulheres, com idades entre 43 a 67 anos. Os homens eram ou foram trabalhadores assalariados, alguns são aposentados ou desempregados, mas executam alguma forma de trabalho remunerado. Um deles com terceiro grau concluído e três não alfabetizadas. As mulheres, em grande parte, trabalham em afazeres domésticos. Duas são professoras, uma vendedora, e uma cabeleireira. As pessoas que trabalham estavam afastadas devido ao IAM. Enquanto que no INCOBA muitas moram no interior do estado; no CRDC, a maioria reside em Salvador. Apenas duas residem sozinhas e o restante com familiares: filhos, maridos, irmãs, sogras, entre outros. Constatou-se também que a maioria delas vale-se do SUS, pois as unidades atendem a esta clientela. As entrevistas ocorreram em salas reservadas a este fim, tanto no INCOBA quanto no CRDC. Embora houvesse resistência, as pessoas pós-IAM mostraramse dispostas a colaborar com a pesquisa. Nestas privilegiou-se a fala da pessoa, ou seja; o entrevistador interferiu o mínimo possível, possibilitando relatos amplos sobre a doença. No entanto, quando necessário, houve interferência do 43 pesquisador com o intuito de ampliar detalhes imprescindíveis aos manejo da pesquisa. As entrevistas no ambulatório do INCOBA revestiram-se de impressão mais biomédica do que as do CRDC, pois foram feitas em consultório. Isso pode ter feito a pessoa entrevistada pensar se tratar de mais um procedimento médico. Mesmo explicando a natureza da entrevista, o local não colaborou para desfazer a impressão. Entretanto, a pessoa, durante a entrevista, se tranquilizava, pois podia falar amplamente da própria experiência. No CRDC foi diferente devido ao princípio de atendimento ser multidisciplinar. Logo, os pacientes já têm alguma familiaridade com diversos profissionais além de médicos. Isso permitiu uma quantidade de entrevistas superior comparada ao INCOBA, apesar de se ter iniciado as entrevistas dois meses após o INCOBA. No CRDC, ademais, contou-se com o auxilio de assistentes sociais, médicos, enfermeiras, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos na identificação e condução à entrevista. As pessoas, de modo geral, se dispuseram a falar de aflições, problemas, dificuldades etc. Algumas reclamaram do atendimento, criticando membros da equipe médica que não se portaram como profissionais da saúde devem se portar. Outra pessoa entrevistada relatou que apesar de sentir crise de IAM negligenciou a ingestão de medicamentos, pois preferia morrer a enfrentar os problemas que vivenciava. Enfim, trata-se de vasto material coligido em que relatos acerca de experiências da doença se misturam a forte carga emocional 44 por espelharem a vidas se esvaindo em meio a problemas cotidianos práticos e projetos de futuro. • Critérios de seleção de pessoas para entrevista. As entrevistas foram realizadas com pessoas vitimadas por IAM no máximo há dois anos e que – após alta hospitalar – efetivam acompanhamento de reabilitação no INCOBA ou no CRDC, a partir dos seguintes critérios de seleção: 1. Para inclusão: pacientes que sofreram IAM nos últimos seis meses ou há, no máximo, dois anos; pacientes que estiveram internados; que estão em reabilitação; que realizam consulta de acompanhamento da saúde; que concordaram em participar da pesquisa como entrevistado. 2. De exclusão: pacientes usuários de qualquer tipo de equipamento, mecanismo ou instrumento na reabilitação; pacientes sem condições físicas e/ou psicológicas para participar da entrevista; que se recusaram a participar da entrevista; pacientes com transplante cardíaco; menores de idade; mudos e/ou surdos; deficientes mentais de qualquer espécie. Em ambos os casos, a entrevista foi feita no dia de consulta. A partir das entrevistas gravadas, transcreveram-se, literalmente, os relatos. Entretanto, mesmo com cuidados – organização do local, posicionamento do gravador para uma recepção eficiente20, solicitação aos funcionários do INCOBA e CRDC para não interromperem as entrevistas etc. – houve perdas: ruídos na gravação, recusa de pessoas em falar de certos assuntos, baixa intensidade da voz, interrupções, ansiedade do entrevistador, palavras e trechos ininteligíveis devido à dicção do entrevistado etc. Fatos, na medida do possível, atenuados 20 É comum certo grau de constrangimento do entrevistado frente ao aparelho de gravação. Visando a minimizar o fato, valeu-se do artifício de posicioná-lo em meio a outros objetos sobre mesa como canetas, bloco de notas, óculos, lápis, papéis com o fito de dispersar a atenção e favorecer o narrar das pessoas. 45 pela insistente repetição de audição visando a precisar relatos de prejudicada qualidade. • Consentimento Livre e Esclarecido O consentimento livre e esclarecido (anexo 01) foi disposto e explicado às pessoas convidadas à entrevista. Primou-se pela simplicidade e clareza da redação com o intuito de prontamente cientificar os participantes a respeito das razões e importância da entrevista. Compõe-se o consentimento dos tópicos: Título do estudo; onde se apresenta o nome da pesquisa. Informações e objetivos do estudo; com nomes e telefones de profissionais do INCOBA e CRDC, para esclarecimentos necessários. Explicamse os objetivos da pesquisa para que a pessoa possa sentir-se livre para participar ou não do empreendimento. Descrição do estudo e dos procedimentos; onde se esclarecem natureza do trabalho, data de ocorrência, procedimentos constitutivos e garantias de sigilo a respeito das informações recolhidas, acordando-se o compromisso de só ter acesso ao conteúdo nominal o próprio pesquisador e sua orientadora no Programa de Pós-Graduação em curso. Benefício; onde se deixa claro que – pela colaboração – estão contribuindo para que os conhecimentos gerados revertem em auxílio futuro a outras pessoas em similar situação. Riscos e desconfortos; onde se informa a ausência de risco para o entrevistado e que o mesmo, ao bel prazer, pode interromper a participação sem prejuízo de direitos quanto à assistência de que vem usufruindo. Confidencialidade; onde se garante sigilo absoluto da identidade. Por fim, o Consentimento livre e esclarecido é assinado pelo entrevistado – ou representante legal – e pelo pesquisador. 46 • Roteiro de entrevista O roteiro de entrevista (anexo 02) utilizado estrutura-se em quatros blocos de questões norteadoras aplicados de modo maleável, ou seja, para o desdobramento deles possibilita-se desenvolvimento flexível em relação ao espaço dialógico que se procurou criar junto aos entrevistados, disponibilizando espaço e tempo sem prévia definição para relatarem – de maneira ampla – suas experiências. Assim, denominaram-se os encontros com as pessoas pós-IAM de Entrevistas-Conversação Roteirizadas. Realizou-se, portanto, 33 entrevistas com duração média de 47minutos cada. Os quatros grandes blocos de questões do roteiro se constituem de: Apresentações e indicações biográficas; O IAM e o itinerário terapêutico; Tratamento e adesão; O retorno para casa e as maneiras de lida cotidianas. Esta organização visa a abranger situações anteriores à doença (Apresentações e indicações biográficas); a crise (O IAM e o itinerário terapêutico); as circunstâncias da reabilitação (Tratamento e adesão); e os momentos cotidianos posteriores à crise (O retorno para casa e as maneiras de lida cotidianas). Entretanto, salienta-se que os relatos vão além da organização do roteiro. Neste sentido, o roteiro é o instrumento que aponta os temas da entrevista-conversação. A partir deles as falas são dirigidas por intenções, desejos e projetos dos entrevistados. Enfim, o elemento visado nas conversações foi fazer com que as pessoas dirigissem os cursos de suas falas para o que elas consideram como relacionado ao adoecimento. Mais especificamente, o primeiro bloco do roteiro – Apresentações e indicações biográficas – versa sobre a identificação do entrevistado: nome, idade, sexo, 47 endereço, telefone etc. Ademais, solicitava-lhe que, na medida do possível, detalhasse um pouco da respectiva história de vida: onde morou, como foi a infância, estudos, trabalhos, família, filhos, problemas enfrentados etc. Enfim, informações que dispusessem à pesquisa dados de caráter biográfico. Deste modo, por intermédio de interjeições simples e abertas – “Conte um pouco como é sua vida” – oportunizou-se ao entrevistado discorrer sobre seu dia-a-dia e posicionar-se, mediante relato abrangente, sobre o que considerava naquele momento, a relação entre o passado sadio e o presente, uma vez vitimado pelo IAM. Fato que, de certo modo, demonstra que a segmentação do roteiro em blocos não forneceu respostas desconexas quanto ao fluxo biográfico dos assistidos, vez que elaboraram concatenações entre o passado vivido, o presente predominante e projetos futuros. Assim, as entrevistas evidenciaram ser esse bloco suficiente à abertura das conversações. O segundo bloco, O IAM e o itinerário terapêutico, centra-se na crise de IAM e procura por informações relacionadas a: período de ocorrência – quando?–; sensações físicas – o que sentiu –; pensamentos e expectativas – O que pensou que era? –; atitudes e experiências vivenciadas – Foi internada e como foi? –; avaliação de tratamentos recebidos – Quais os procedimentos médicos realizados em você? etc. Essas questões permitiram coletar informações à respeito do estado físico e mental de cada paciente e ainda oportunizou-lhes discorrer sobre o que pensaram e sentiram, sugerindo a internação como momento favorável para refletirem sobre o ocorrido, além de viabilizar a compreensão de que o internamento se constituiu no marco que especifica a ruptura que o IAM lhes impôs em relação ao cotidiano, permitindo-se evidenciar a relação cotidiano/doença; principal enfoque objetivado na aplicação deste bloco. 48 O terceiro bloco – Tratamento e adesão – é o lugar onde se possibilita aos pacientes discursarem sobre os modos cotidianos e particulares de lidarem com as implicações da doença. Evidencia-se que além de tentarem assentar o cotidiano às prescrições, buscam ajustar as prescrições ao cotidiano, mostrando como as prescrições são interveniências na vida cotidiana. O quarto bloco – O retorno para casa e as maneiras de lida cotidianas – procura investigar sobre quais as ações tomadas pelos pacientes após retornarem ao cotidiano. Quais os cuidados efetivados – por enfermos e familiares – no tocante a ajustes entre realidade cotidiana e a realidade de prescrições médicas, como período de descanso, ingestão de medicamentos, reeducação alimentar, agenciamento de consultas, mudanças de rotinas, hábitos etc. Este bloco foi fértil aos objetivos, pois viabilizou aos entrevistados estabelecerem relações entre adoecimento e as situações problemáticas. Por fim, embora ainda não mencionado, consta do roteiro o item “Informações complementares”, visando a recolher críticas sobre a conduta do pesquisador durante a efetivação das mesmas, registro de como o entrevistado foi encaminhado ao depoimento, quem a acompanhava etc. • Modelo de organização dos relatos das entrevistas As entrevistas foram orientadas por um roteiro que contém questões sobre os seguintes temas: história de vida, o IAM e o itinerário terapêutico, tratamento, o retorno para casa e as maneiras cotidianas de lidar com as prescrições. A análise das entrevistas apoiou-se em categorias criadas a partir dos relatos das pessoas entrevistadas, a saber: causas, crises, cuidados, mudanças e projetos futuros. 49 As categorias deram as bases para a análise dos tópicos apresentados e refletidos neste estudo, não se constituem eles em unidades estanques, por evidenciarem afinidade entre si; por exemplo: há nos relatos uma tendência a que se estabeleça uma relação entre situações cotidianas tidas como problemáticas e o adoecimento. Verifica-se que a natureza de tal relação se mantem constante nos 33 relatos coletados, embora – na conjuntura deste trabalho – concentre-se atenção de análise em nove relatos que apresentam maior detalhamento nessa relação. A articulação entre os diferentes tópicos efetuada pelos próprios entrevistados é crucial, pois confirma uma das hipóteses da pesquisa segundo a qual só se pode compreender a lida cotidiana das pessoas com o adoecimento ao se conhecer o horizonte da vida cotidiana e os acontecimentos que lhes são relevantes, evidenciada – de maneira mais clara – pelas relações que estabelecem e pelas conexões de sentido que são geradas a partir da dinâmica das respectivas experiências. 50 Capitulo III: relatos de causas e crises de IAM Como princípio metodológico de elaboração deste capítulo, num primeiro momento, apresenta-se relatos das pessoas pós-IAM enfatizando-se o estabelecimento de relações entre situações cotidianas por elas consideradas problemáticas e o processo do adoecimento. Em seguida, registram-se as descrições de crise de IAM. Pensar as concepções de causas ao IAM, na perspectiva da pessoa enferma, é seguir o que diz RABELO, ALVES e SOUZA (1999): Tal como contada, a história da doença é parte e produto de uma conjunção específica de situações ou relações fragilizantes que podem envolver outras pessoas, o ambiente natural e o mundo dos espíritos. Embora possamos traçar cada um destes domínios em separado, raramente a doença se apresenta nas narrativas como resultados de uma cadeia única de eventos ou causas. (p.53). Este estudo ate-se às maneiras pelas quais o adoecimento por IAM é relacionado às situações cotidianas consideradas como problemáticas, ou seja, tratar-se-á de “situações ou relações fragilizantes que podem envolver outras pessoas”. Analisar as relações entre situações problemáticas e adoecimento não significa que as concepções de causa – elaboradas pelas pessoas com IAM – negam as perspectivas da medicina sobre a doença. Por outro lado, os relatos sugerem que essas perspectivas comportam relações necessárias para se entender o cotidiano de adoecimento dessas pessoas, vez que os relatos indicam as situações intervindo como causa da deflagração do adoecimento. Neste sentido, menciona SOUZA (2004): 51 Em geral os aborrecimentos aos quais os entrevistados se referem envolvem duas ordens de problemas relacionados: as dificuldades financeiras e perturbações nas relações familiares. Por vezes são os problemas de dinheiro que surgem como causas de desarmonia e desestabilizam as relações familiares; em outros casos as dificuldades materiais resultam de contendas familiares em casos de separação, por exemplo, ou preocupação com os filhos que estão em dificuldades. (p.53). As situações problemáticas relatadas pela maioria dos entrevistados – por mera coincidência – referem-se às ordens familiar e financeira. Ainda em consonância ao excerto destacado, as fronteiras entre essas ordens de problemas são difíceis de serem demarcadas, já que se relacionam à prática cotidiana das pessoas. Nos relatos de pesquisa sugere-se que se dê atenção às concepções de causas da doença elaboradas pelas pessoas pós-IAM, porquanto ser uma maneira de evidenciar-lhes a lida diária – repleta de situações problemáticas – durante o adoecimento. Assim, refletir acerca de tais concepções pode ser uma maneira de compreender o labor dessas pessoas para ajustar cotidiano e adoecimento, pois o evento da doença ocorre relacionalmente àquelas situações, exigindo delas esforços para criarem ações práticas a fim de mediar o prescrito – como reabilitação do IAM – e as situações problemáticas cotidianas. Os entrevistados, em maioria, relataram que os problemas do dia-a-dia são causas da doença e, ao mesmo tempo, complicadoras da reabilitação; assim entende-se por tal consciência um primeiro esforço para gerar ações práticas afim de lidarem com a realidade do adoecimento. Deste modo, não é somente a nova realidade cotidiana que é parcialmente ajustada às prescrições; o prescrito também é ajustado aos limites e possibilidades de viabilização do cotidiano. 52 Entretanto, os esforços na criação de ações práticas não se centram tão-somente nos limites e nas possibilidades do mundo cotidiano. Durante o adoecimento o enfermo apreende conhecimentos de vários campos, sendo o mais influente o biomédico. Realidade que, mesmo assim, vai-se – paulatinamente – ajustando às atividades cotidianas. Evidencia-se, portanto, que apreende os conhecimentos sobre a doença de maneira ativa e prática. SOUZA (2004) registra: embora sejam encontradas discrepâncias entre a perspectiva do paciente e a visão biomédica, esses universos não são incomensuráveis, são mundos que se comunicam. (...) ainda que não esteja plenamente de acordo com a medicina, o paciente se apropria dela a partir de seu horizonte de vivencias e incorpora o oferecido pelo médico à sua compreensão da doença, quer isso signifique modificar ou não sua atitude cotidiana e seus hábitos. (p. 56). Como já referendado, essa apreensão pode ser perceptível atentando para as relações que as pessoas pós-IAM estabelecem entre situações cotidianas problemáticas e o adoecimento, uma vez que o estabelecimento dessas relações alude a como elas se exercitam – durante a reabilitação – no esforço prático para efetivarem os ajustes. Assim, além de considerar os fatores de risco relativos às DCV como causas do IAM sofrido, elas indicam causas outras a partir de suas vivências no mundo cotidiano. As concepções então, baseiam-se em relações de interveniências entre as situações e o adoecimento. De tal modo, fica indicado que analisando as relações a lida cotidiana dessas pessoas pode ser compreendida. Com a finalidade de observar mais atentamente algumas dessas relações, apresenta-se, a seguir, alguns relatos que – por delimitarem relações comuns 53 entre todos os relatos – aqui são apresentados como exemplos do conjunto, sendo selecionados devido a detalharem com maior acuidade tais relações. • Relato Sra. Analí. A paciente entrevistada tem 45 anos, é casada pela segunda vez e tem duas filhas adultas, também acometidas de DCV que, por várias vezes, também já foram internadas. Analí cuida da mãe, que apresenta problemas mentais, e do padrasto, diabético. Este teve o pé amputado em decorrência da referida enfermidade. Vive este cotidiano há anos, realizando sozinha todos os afazeres domésticos, pois o marido trabalha fora. Interrompeu a carreira de magistério para cuidar dos pais, trazendo-os para a pequena residência de dois quarto, onde já habitavam marido e as duas filhas. Relatou estar ficando “gorda, feia, sem vontade de fazer nada, nem cuidar de mim” (choro). Ademais, sofreu IAM seis meses antes da entrevista e relata essas situações cotidianas como relacionadas ao adoecer: Graças a Deus hoje ela tem 21 anos não dá mais crise. Já foi liberada do neurologista né? Já fiz dois eletros mês passado, porque o médico cuida direitinho de minha meninas. E ela tá boa. A Tetralogia de Falow ainda tem que fazer umas quatro cirurgias, mas ela por conta própria... disse que ainda não tá...Quando eu tô me reativando, saindo também da síndrome do medo do escuro. Porque eu fiz uma jogada comigo. Bem, se eu não posso dormir de noite eu faço tudo de noite e de dia eu vou dormir. Aí comecei a melhorar nesse sentido. Porque eu não dormia pelo fato de que elas eram menores e eu tinha que tomar conta e trabalhar. Aí crie esse hábito de não dormir direito. Só têm três ou quatro horas de sono e olhe lá. Foi que minha pressão piorou. Eu sei que eu tinha disparos assim. Parecia que o coração tava andado. Se movimentado nesse percurso (a região do tórax). Fiquei nervosa. Sei que coração não sai do lugar, mas dava a impressão que saía...Aí, tudo isso. Eu tô com eles cuidando até o fim. Eu vou fazer o que? Num posso me 54 separar de meus pais. Tenho muita compaixão deles. Mas só que esse problema todo, o que tá acontecendo; minha pressão só anda subindo, sinto falta de ar, eu num durmo. Aquela sensação parecendo que eu vou falecer!! Falecer quer dizer; num tem outra sensação pior do que a morte, mas uma sensação muito ruim. Como se eu tivesse medo de deitar e num me levantar mais... A Sra. Analí fala sobre as situações problemáticas enfrentadas cotidianamente, estabelecendo relações causais entre as situações e adoecer por IAM. Essas relações se apóiam no estoque de conhecimento biográfico de que ela dispõe acerca de como as situações causam mal-estar similar ao do infarto. Assim, o IAM sofrido por ela evidencia ter relação com tais situações cotidianas. Eu prefiro ficar agilizando, fazendo alguma coisa.Ou então meu marido quando ele deita, eu encosto minha barriga nas costas dele, eu sinto segurança. Fica aquele tremor assim, fico ali conversando, orando, vem minha filha, ver se eu pego no sono, as vez eu adormeço. Aí as horas vão passando e nada. Quando eu levanto parece que eu num dormi nada, acredita? Como ontem pra hoje, ontem de ontem. Eu fico com um tremor. Tem hora que me dá uma tosse, num sei o que é isso. Eu tô assim muito bem, aí meu coração parecendo que tá movimentando. Eu sei que num é o coração, deve ser nervoso. Mas aí vem aquela tosse. Uma tosse seca. Tosso, e....parecendo que aquilo tá saindo daqui, tá andando aqui (tórax). Um bolo, parecendo que o coração tá se movimentando. Aí vem aquela tosse seca. Aí eu paro. Respiro fundo e tal....Acho que é muita pressão. Falta de descanso. Estresse. Falta de lazer, que é não tenho lazer, entendeu. Falta de descanso, engordar. Eu já tive, também, peso. Já voltei. Já perdi uns seis quilos, já voltei de novo, entendeu. Hoje em dia.... eu já... as vezes...Depois que eu me casei melhorou um pouquinho na questão da alimentação...O que foi que houve; minha mãe tem condições com meu padrasto. Ele trabalhava no CEFET. Mas na época que me separei, já chegue a comer fubá de milho e cuscuz pra mim e minha duas filhas. Passava necessidade porque não tinha apoio dela. Então isso é muito doloroso, senti isso. Muito ruim. Mas o meu problema é lidar com essas emoções dos outros e ter que aceitá-las. Mas eu sempre tô aceitando, mas eu sei que o retorno por dentro vai me... sei lá. Eu vou aceitar até o fim, o que vou fazer com eles? 55 As situações cotidianas de cuidar dos familiares são obrigações que ela relata como possíveis causas do IAM sofrido. Além de obstáculos ao atendimento do prescrito pelos médicos visando à reabilitação, ainda não consegue criar ações práticas de mediação para ajustar, mutuamente, as situações problemáticas do cotidiano e prescrições, indicando que as situações cotidianas são relacionadas como causas do infarto e empecilhos à reabilitação da doença. Meu pai no Ana Nery puxou o nervo do pé amputado. Abriu uma cratera. Levei pro Ernesto Simões às pressas. Chegou lá mandou passar “xivastatina de prata”? E limpar com “fogo”? E enxugar, é o que eu tô fazendo, mas ainda não fechou. Já vou amanhã pro Ana Nery de manhã cedo, pra ver se Dr. Janilton atende porque tá formando um nervo assim. Um negócio branco. Ele é muito teimoso. Porquinho viu! Ele pega assim....Aí que horror! É essa lida minha Dr...Minha mãe já vem pro cardiologista agora. Já tem psicóloga aqui. Já tem Ana Nery, ortopedista. Já tem...porque ela tá com retinoplas...com é!? diabética. E eu não paro Dr. (a entrevistada intensifica o choro) Eu tô cansada. Se eu durmo tarde, eu quero petiscar. Muitas vez nem tem nada pra comer assim, mas...e pão num vai me fazer bem. Mas aí eu caio aí devagarinho, se tem a banana eu fico assim. Mas sinto fome, meu estomago começa a doer. Se vou botar a janta de meu marido, num posso jantar; Nãããõoo!!! vou jantar, porque eu tô sentindo fome. Eu já agilizei o dia todo, a tarde toda e...termino petiscando a comida dele. Só pra num botar pra mim num prato, mas eu petisque....E aí vai. Ás vez lembro de tomar o remédio, aí tomo. Eu sei que toda atrapalhada. Atrapalhada na minha vida sexual. Atrapalhada na minha vida...prá dar atenção as minhas filhas. Faço o que eu posso, mas ainda num dá. Atrapalhada comigo meeesmo...Agora com esse exame ergométrico que eu fiz eu num sei se...eu tenho que perder um pouquinho de peso pra puder caminhar. Porque eu caminhei ali e me senti mal, nem acelerou! E eu preciso caminhar. Mas como posso caminhar de manhã se num durmo de noite direito. Não tenho ânimo. E se tenho que caminhar cinco horas eu tô no hospital com meu pai. Tô numa emergência.Tô adiantando as coisas porque eu me atrasei pela manhã, porque tentar dormir a noite que eu perdi. Hooo! que atrapalhação! Tem saída doutor? A Sra. Analí, mesmo tendo noção da situação não sabe como ajustar seu cotidiano para que lhe seja possível cuidar de si como prescrito pelos médicos, 56 pois os ajustes também dependem das atuações de outros atores do cotidiano – pai, mãe, filhas, marido e irmã. Sem a participação deles nos ajustes, seguir as prescrições não é exequível, pois não depende unicamente da sua vontade ou necessidade individuais. São as atividades de cuidar dos familiares doentes, da casa e do marido que exercem força maior na escolha do que priorizar no dia; fato que a faz relacionar o descompasso da situação ao IAM sofrido. Eu agora tenho um padrasto que eu ganhei dela. É uma pessoa muito boa, tenho que cuidar como meu pai. O que vou fazer com aquele homem meu Deus? Vou abandonar? Ele vai morrer mais rápido. Minha mãe maltrata muito ele. Outra responsabilidade que eu num posso me separar dele, num posso. Até o animal (o cachorro da mãe) vomita bílis de fome, aí.. vou botar comida pro animal. E num quer que toque no animal, mas num cuida do animal. Eu queria deixar tudo de mão, mas minha consciência não permite. Acho que o maior crime é falta de amor. Só que eu tô sobrecarregada demais. Aí eu tô ultimamente...eu até já senti isso, eu nunca me importei, só que agora eu tô com mais medo, porque tá aumentando. É essa falta de ar, a pressão direto. Hoje eu tenho noção do que acontece comigo, eu tenho noção. Na fala da entrevistada percebe-se quais situações considera como problemáticas em virtude de seu cotidiano. Essas situações tanto são concebidas como causas do IAM sofrido quanto obstáculos ao seguimento disciplinado das prescrições. Assim, o cotidiano repleto de problemas antes da doença mantém-se como predominante na reabilitação. • Relato Sr. Valdo Sr. Valdo tem 50 anos de idade, diabético e espera a aposentadoria. Casado pela segunda vez, depois de sete anos separado da primeira esposa, reside com a atual esposa e com as duas filhas dela, em uma casa no bairro de Pernambués. No andar superior da residência reside a sogra com a qual vive situações problemáticas. Como espera se aposentar, passa muito tempo em casa. As 57 relações conflitantes que vivencia com a sogra se mantêm desde o princípio do atual relacionamento, vez que a sogra não lhe aceita como genro. As situações são relatadas por ele como problemas vividos cotidianamente, relacionando-os ao IAM sofrido no ano de 2006. Sr. Valdo relata: Os grandes problemas que eu passei pela vida num tenho muito não, hoje tenho. È porque...o problema é o seguinte; quando eu me separei e encontrei essa minha mulher atual, e ela também já foi casada e tem duas filhas. Ela tinha sete anos de separada...e tal. Só que chegando lá na casa dela, só eu e ela, era uma pessoa que morava com mãe e tornou-se uma pessoa dependente da mãe, né! E começou a ser uma pessoa teleguiada pela mãe. É a mãe que diz; ‘cuspa aqui, ande aqui’ e aí ela ficou. E quando eu chegue lá a velha começou logo a criar problema. Porque ela queria que nos fossemos pessoa de 18, 17 anos, né! Aí a mesma coisa, ela num quiria aceitar nossa experiencia, né! E com pouco, um belo dia eu..a gente saiu, tomamos um chopinho, demoramos assim umas meia hora. Eu sei que quando chegamos em casa era mais ou menos uma dez e cinco e como ela era acostumada a chegar seis horas, era caseira. Nesse dia pra ela foi uma eternidade, pra mãe dela. E quando eu cheguei em casa..a mãe dela já tava na porta com um fio, com Flexfio e num quis nem saber quem tava com ela. Ora, uma pessoa que tinha indo, uma pessoa que já tinha indo na casa dela, poxa! E queria me bater e chamando a mulher de vagabundo ‘sua vagabunda’ mesmo e jogando a fio por cima. Eu aí; vou deixar, fazer o que? Num vou bater em mulher, é covardia, deixa pra lá. Num vivo desmerecendo mulher. Daí pra cá começou, num nos acertamos mais nunca..E ela sempre me perseguindo, perseguindo. Rapaz! chegou ao ponto de ela dizer que foi pro dique do Tororó com arma pra me matar e tudo... O cotidiano do Sr. Valdo é problemático já que um dos atores de suas relações diverge de suas atuações como marido. Neste cotidiano as situações-problemas são recorrentes, pois as interferências da sogra na relação do casal são recursivas. Assim, o entrevistado relata o cotidiano como marcado por constantes ajustes nas relações entre ele, esposa e sogra, tentando evitar que as situações problemáticas findem em ocorrência grave. Ademais, o cotidiano tornara-se mais 58 problemático após o IAM pelo motivo de as prescrições lhe serem impostas como ações obrigatórias a cumprir. Para ele, agora, impõe-se a circunstância de ajustar as situações problemáticas com a sogra e o prescrito, como meio de reabilitação. Sr. Valdo tentou algumas maneiras para ajustar as situações com a sogra e assim evitar acréscimo de problemas. Relata que mudou de residência para ficar distante dela. Mas a medida não surtiu o resultado esperado, pois a sogra reclamou da distância da filha, solicitou que retornassem, teve o pedido acatado, entretanto, o entrevistado estava ciente de que as situações problemáticas poderiam voltar a acontecer: Aí pronto, pegue a mulher, umbora! pra Cajazeira, vamo. Aí fui morar em Cajazeira, ainda tava trabalhando. De Cajazeira, fui pra Valeria, porque minha irmã tinha um mercado e me chamou pra trabalhar lá. Porque eu me desempreguei já no final...engraçado,quando eu me desempreguei, fiquei doente com diabetes, hehehehe!!, aí minha irmã...Aí quando chegou lá em Valeria, lá vai, lá vai, e ela sempre...qual era a coisa, bom! ela tentou se aproximar, poxa! Se num posso com o inimigo vamo me juntar, né! A intenção dela é que depois que ela tivesse junto comigo e tivesse todo o apoio da filha, ela fazeria pra...eu que num sou besta nem nada. Aí ela resolveu chamar a mulher pra morar aqui no Pernambués; ‘Minha filha eu sou viúva, só tenho você - porque ela é filha única - e tal, você mora com sua filha mais velha lá em casa e tal - era filha da mulher - você mora dijunto de mim porque eu sempre preciso de uma pessoa pra me ajudar e tal. È muito bom à presença de um homem dentro de casa’ e tá, lá vai. Aí me mulher, tá. Como ela tinha me dado muito apoio, na minha doença. Eu digo; ‘É, eu vou com você, mas num vai dá certo’... A complicação no relacionamento com a sogra é apontada pelo entrevistado como relacionada ao IAM sofrido. São situações que Sr. Valdo não pode se apartar por vontade própria, nem mesmo em atender à prescrição quanto a ter uma vida calma. Ele sabe que para evitar reincidência do IAM, fora-lhe prescrito, 59 inclusive, a vivência em cotidiano tranquilo. No entanto, sua lida cotidiana de reabilitação vem marcada pelas tentativas de ajustar essas situações ao prescrito, fato que contunde o processo de reabilitação, uma vez que a sogra não fala e nem quer vê-lo. Aí começou. Aí quando ela viu que a força dela. Porque ela tinha o poder de fazer e desfazer. ‘O que vou fazer? Tenho que arrumar um jeito de jogar ela contra ele’. E qual é o caminha? USAR, as filhas. É esse que o problema que eu tenho..É um problema que eu tenho hoje que é mais crônico que minha diabetes..Aí continuo, pá,pá,pá. Arrumando uma coisa, arrumando uma coisa. E eu sinto que ela trabalhando e num conseguindo botar a mulher contra mim. Até hoje ela faz, mas num consegui botar a mulher contra mim, porque eu sei que hoje em dia que fica difícil pra minha mulher na situação, entendeu?! Porque chega uma pessoa falando, ‘fulano fez isso com sua filha’ e tem eu e ela num sabe quem defende, tem a mãe no meio. E a mãe dela começou a mal-tratar ela. Que num sei que, que num sei que. Que eu era velho, pobre, que ela tem de conseguir uma pessoa melhor.Uma mais moderna. E minha mulher; ‘eu num quero saber disso não minha mãe’. E que num me conhecia com marido dela, que o marido dela era o ex-marido. Tudo pra me..rapaz! Isso até hoje e o pior, o caso é tão sério que eu consegui tomar ódio da menina e que me atrapalha e é o motivo de eu tá qui. A situação problemática compartilhada com a sogra além de ser relatada como causa do adoecer por IAM, impõe limite para seguir as prescrições. Ajustar essa situação é necessidade para atender às prescrições. Enquanto não, a situação é concebida como causa. Daí, após veemente discussão com sua sogra, foi ao bar, ingeriu bebida alcoólica e, ao retornar para casa, foi acometido pelo infarto. O infarto tem. O infarto tem. Porque quando eu saia pra beber eu saia pra num ter problema, entendeu?! Porque eu era um cara assim, quando eu bebia eu num era de agredir, eu chegava em casa bêbado e ia dormir. Então as vez assim, a mulher nem se importava quando eu estava por lá, porque eu chegava dormia, num achava nada feio, num é?! Se tocasse uma pedra em minha cabeça, só ia sentir se batesse. Aí eu fui, fui me acostumando, que fui pra ir pro um seis a setes meses consecutivos só 60 na... (faz um gesto com a mão indicando o ato de beber), foi aí que...e já com Diabetes né!, Diabetes bebendo... • Relato Sr. Ubiracy Sr. Ubiracy é paraibano; após o falecimento dos pais – quando contava apenas dez anos de idade – criou-se pelas ruas de Ilhéus, sul da Bahia. Hoje, aos 62 anos de idade, apresenta estatura pequena e forte, aparentando ter menos idade. É homem áspero nos gestos e de poucas palavras. Estudou até o primário e trabalha desde pequeno. Aprendeu as profissões de serralheria, solda, marcenaria e pintura. Relata: ...sobrevive praticamente sozinho, maaasss, graças a Deus, pelo meus esforços consegui aprender alguma profissão, que é o que me mantém até hoje.”. “Euuu quando perdi meus pais comecei a morar na rua. Dormir em estação de trem”. Minha mãe, um ano depois que meu pai morreu, minha, mãe morreu. Meu pai era um homem analfabeto e o trabalho que ele conseguiu em ilhéus foi trabalhar com carvão. EEEEEE....depois que ele começou a trabalhar com carvão ele começou a sentir problema de saúde e morreu, só isso. Minha mãe morreu de doença normal. Minha mãe me chamou um dia de manhã, disse que ia embora. Tomou banho, vestiu um vestido dela, se deitou e morreu. Com a idade de dez anos foi morar nas ruas e fazer pequenos serviços em troca de algum dinheiro, como carregar bagagens na estação de trens, levar recados etc. Fora recolhido por uma irmandade assistencial até, aproximadamente, a idade de 18 anos: Tive uma vida....foi, sei lá, muito azarada pelo destino, porque quando eu tinha...19, 18 anos uma certa pessoa tentou contra minha vida em ilhéus e eu pra me defender tirei a vida. E fui condenado por isso. Porque se tratava de família abastarda em ilhéus. Cheguei a ser preso. Oito anos em ilhéus e aqui. Puxei três anos em ilhéus e cinco anos aqui, na penitenciária. 61 Na prisão aprendeu serralheria e saiu empregado, pois fora detento de bom comportamento: Quando sai de lá, trabalhar. Eu já saí da penitenciária empregado. E as outras eu aprende fora de lá. Eu por ter bom comportamento eu já sai de lá empregado pelo próprio diretor. Fui trabalhar na Brida turismo na época. Hoje nem existe mais foi extinta. Depois Elevadores Amoêdo e aí continuei. Me casei constitui família. Neste relato de vida – repleta de situações problemáticas –, uma foi enfatizada como possível causa do IAM: a separação conjugal. E....num sei não se esse infarte num foi provocado... porque a separação com a mãe dela foi um negocio...foi horrível. Quando ela (refere-se à filha pequena) teve a meningite nos vivíamos juntos ainda. Quatro meses. Quando nós nos separamos, ela ia fazer um ano. Faltava cinco dias pra ela fazer um aniversário. Primeiro aninho dela. Foi quando nos separamos. Aí véio né! Ela queria a menina e eu queria, entramos em atrito por causa disso. Conselho tutelar, poliça, foi um...foi um...E Aquilo foi me machucando muito, e eu seu lá! E num sei se foi isso também que provocou tudo isso. Aí ela foi pra São Paulo e deixou a menina comigo. Ela foi embora. Ela tinha mais dois filhos que não eram meus. Largou um menino na casa de um, outro na casa de outro. A mulher se desorientou. A mulher era evangélica. Nascida e criada dentro da igreja evangélica. Nunca bebeu na vida e um dia saiu pra ir pra igreja e voltou completamente embriagada. Ai ninguém segurou mais. Disse que ia trabalhar, batalhar a vida. O cara que ela vive hoje é de lá. Trabalhava de táxi aqui, ninguém sabe a procedência desse cara. Um cara que trabalha em porta de boate. Só anda com menininhas de programas dentro do carro entregando a um e a outro. Deixa o prego que o martelo chama, num é meu amigo!? A separação afetou o Sr. Ubiracy pois a mulher optou por viver com outro homem no estado de São Paulo, deixando a filha para ele criar. Contudo, relata que a filha adoecera: 62 Olha! Ela com quatro meses ela teve meningite. Teve aquela violenta, minigococega que chama. Ficou internada vinte dias no Couto Maia, saiu boa sem seqüela nenhuma. Admirou. Os médicos que trataram dela consideram um milagre, sabe. Ficou sendo acompanhada pela APAE. Neurologista garantiu que ela não tinha mais nada. A mãe conheceu um rapaz aí, foi embora pra São Paulo com ele e largou ela comigo. Oito dias depois que essa menina tava comigo, ela começou a chamar pela mãe, a sentir saudade da mãe. Eu liguei pra mãe; ‘Você precisa vir, porque Ana Clara da sentindo sua falta’. E nisso ela foi perdendo as coordenações motoras. Perdeu por completo. O pescoço mole, num ficava. Não pegava nada. Me desesperei, levei pro médico. Levei pro Roberto Santos...Levei primeiro pro um hospital em Cajazeira. O médico viu e disse que ela não tinha nada, que aquilo era manha. Que eu levasse pra casa, que eu num ia nem medicar. Em vez de eu levar pra casa, levei por Roberto Santos. Lá mesmo ficou e de lá pro cemitério. Após a morte da filha não se interessava em cuidar da saúde, não tomando remédio e nem se preocupando com as dores de infarto: Então em virtude disso eu parei de tomar remédio, eu me desenganei de tudo, eu queria morrer...A dor de infarto vinha. Inchava braço, eu sentia náusea e eu num tomava o remédio. Eu dizia; ‘eu quero que você venha entupa tudo aí e me leve. O relato, mesmo breve, ratifica a vivência de várias situações problemáticas. Além disso, ainda se depara com outras situações conflitantes. Atualmente reside, de favor, na casa de um filho, de índole violenta: Um filho achou por bem eu ir morar com ele, entendeu?! Fui pra casa dele. Eu já num podia pagar o aluguel lá no altos das Pombas, na Federação. A academia me abandonou, sabe e ...tô até hoje sem consegui fazer o cateterismo. Hoje eu dependo de morar em casa de filho, sabe. Não...filho...talvez por falta de recurso não pode ter aquele cuidado que o enfartado merece. É....num comer gordura...então, o que fazem lá pra comer eu tenho que comer, viu! Eu num tenho outra opção. Quando eu ganho um dinheirinho procuro uma alimentação adequada pra mim, mas quando num tenho vou comendo o que eles comem e seja lá o que Deus quiser, sabe. Sempre fui independente. Sempre ajudei eles. Até esse filho que me levou pra morar lá na casa dele...chegou a...até quase me agredir um dia 63 fisicamente porque eu fui dá um conselho a ele, sabe? Ele achou...sabe. E...tem esse filho que me levou pra morar na casa dele, já me deu um murro no meu rosto que partiu. É um cara extremamente violento. Ele ... é um negócio meio errado, aí eu chamei ele e disse; ‘rapaz pelo amor de deus, eu num tenho vergonha de nada em minha vida. Eu tenho medo de vocês um dia sentirem vergonha de mim. Então pára com isso, pára com isso. Porque a gente vive da maneira que pode. Num queira alcançar um padrão de vida que você num pode. Se você num pode e querer atingir, você vai fazer coisa errada’. Pra que eu falei isso...me chamou de banana, que eu era um banana e tal..Aí eu disse; ‘me respeite seu corno’; Corno é você seu sacana. Aí pêêêê pela cara....Agora! Agora! têm quatro, cinco meses. E é assim meu amigo. A vida é essa. A biografia degradada e o cotidiano carregado de situações problemáticas compartilhadas junto ao filho violento – concomitante a falta de recursos materiais para atender as prescrições de reabilitação do infarto sofrido no final de 2006 que o deixara internado por 21 dias –, impõe-se como circunstâncias marcantes de sua reabilitação, enquanto espera pelo cateterismo. O que se torna perceptível nesses relatos é que – apesar de demarcarem situações distintas – especificam mesma sorte de circunstância marcante, qual seja, a necessidade de os entrevistados terem se ajustar, mutuamente, situações problemáticas cotidianas e prescrições de reabilitação. Desse modo, as pessoas pós-IAM estabelecem relações entre as situações e o adoecer, ao indiciarem nessas concepções de causas, elementos que apontam para a dimensão do viver cotidiano compartilhado com outros. Vejamos outro relato para em seguida explanarmos alguns argumentos acerca dessas relações. • Relato Sr. Vieira Néri. Sr. Vieira Néri, de 60 anos, é aposentado. Vive com a esposa em casa própria num bairro popular de Salvador. As relações com a família não são 64 problemáticas. Ex-industriário, tem rendimento financeiro de aposentadoria que, razoavelmente, atende às necessidades materiais. Entretanto, problemas financeiros existem e são conferidos como “preocupação” vivida pouco tempo antes do IAM. Eu tive uma preocupação sobre um negoço que eu fiz que não deu certo. Rapaz, sinceramente, vou ser sincero, óei um homem, ele pode ser o que for, mas ele tem que tá dentro de casa pra resolver os pobrema dele. Porque se você num tiver dentro de casa, se você num tiver dentro de casa pra resolver, dizer sim ou não, num tem nada certo. Caia da onde cair, venha de onde vier. Porque se você tiver uma esposa de atitude, que ela assuma a responsabilidade por você, tudo bem. Porque se ela disser é isso, você vai chegar, vai analisar, não tem pobrema nenhum. Mas se achar que num deve fazer e ela disser qui faz aí... meu irmão, o negoço... Para o entrevistado o homem é o provedor da casa, com a ajuda da esposa. Os papeis familiares são bem definidos: o homem é o responsável pelo sustento material e o senhor das decisões nos problemas, os quais não existem se a mulher seguir as orientações do marido. Esta ideia lhe é cara, pois, pelo relato, sua vida sucedeu sem conflitos familiares maiores, já que a esposa o auxiliou na lida de provedor da família, criando os filhos e cuidando da casa: Não. Dentro de casa..é por isso que eu vivo até hoje, tranquilo porque..chegar...eu digo.. pode resolver esse pobrema diga aí..tem isso..Ela vai acompanha aquilo ali, manda fazer, tá tudo certo. Porque eu acho que a gente tem que andar todo mundo unido e saber o que é que tá acontecendo. Porque, se é nós dois que tamos vivendo e plantando a nossa família, então tem que viver unido. Que se você não tiver união dentro de casa, num tiver um pensamento de igual, marido e mulher, então num vai dar certo. Então, às vezes, quando eu tava na ativa trabalhando, eu cansei de chegar chumbado, bêbado..aí, ‘óie..vai resolver teu pobrema de teu mercado aí me deixa descansar.’ Aí, não tinha pobrema nenhum. Ela resolvia, dava o dinheiro a ela ia, não tinha pobrema de mercado, pagava o que tinha de pagar, água, luz, me deixava eu livre. Porque às vezes eu tava trabalhando de noite e, principalmente, o turno de 65 madrugada, cê num dorme quase nada, lá dentro do serviço num pode durmir mesmo. Ainda mais na boca de forno, tem que marcar tudo no relógio,você não pode vacilar. Então eu, quando chegava em casa, chegava despedaçado. Aí, eu dizia já pra ela: fim desse mês, recebia o dinheiro; ‘toma aqui o dinheiro aí vai resolver teus pobrema, me deixa em paz’. Pronto, ela aí já sabia, chamava os menino lá, os mais velho lá, e saía mais ela, ia pra feira, pra mercado, ia pagar a água, luz, resolvia os pobrema lá que tinha que resolver, comprava gás. Já me deixava eu descansar porque, se não o negoço, se a gente for entrar em atrito, discutir, nunca que dá certo. Não pode se fazer de andar um cum a cabeça na lua outra na terra. Tem que andar com os dois igual. O mesmo pensamento que um tá o outro tem que tá, analisar se tá certo ou errado. Pelo sustento da dimensão de pai, provedor e chefe de família, menciona quanto ficara transtornado com a necessidade de resolver certo problema de ordem financeira, atribuindo ao fato a possibilidade de desencadear a enfermidade: Já tinha mais ou menos um..quase um ano. E eu fiquei preocupado porque eu tinha que pegar um certo capital pra pagar o cara. E, nessa época, eu tive que fazer um empréstimo na mão de agiota. E agiota cê sabe como é agiota,ou você paga ou você fica complicado. Porque o cara... tudo bem...10%, mas todo mês cê tem que sempre cumprir aquela cota. E passou mais ou menos um ano e pouco...e eu aperreado pra ficar livre daquilo sem puder, por um lado, do outro ajeita...quando eu consegui a liberação de verba e... aí eu tive que recorrer ao banco, pra ficar pedindo ao banco e ficar livre do outro, do agiota. A minha preocupação foi isso, foi antes d’eu cair doente. Porque já tinha um ano, mais ou menos. Já tinha um ano, mais ou menos...óie: mil reais não é nada. E, na hora que a gente tá sem ele, cum ele no bolso, é uma coisa, mas você pensou mil reais que tem que pagar pra esse cara...de uma vez..mas tem que ter. Você fica agoniado, aquela agonia, paga, num paga, vai prum lado, vai pra outro. Quando você no dia que você não paga no mês, noutro, fica: “fulano por que...não sei o que”. As vez de brincadeira, você tá num lugar, ele chega e aí, lhe dá aquela beliscada..você fica agoniado...porra, passar vergonha...Eu desconfio...pra mim, foi isso. A situação problemática de dever dinheiro ao agiota, não dispondo de recursos suficientes para, prontamente, saldar a dívida, e de ter que se explicar à esposa, 66 dispôs o entrevistado a situação incompatível às suas referências morais como chefe de família. A repreensão da esposa, a cobrança em relação à responsabilidade como provedor do lar e a incapacidade momentânea de suprir materialmente a família foram razões destacadas pelo entrevistado como causadoras da crise de IAM, que o hospitalizou por 47 dias: Porque eu tava meio chateado...e a mulher num tava sabendo de nada, depois que eu falei cum ela. Ela conversando comigo...eu disse: ‘rapaz, cê vai lá..’. foi que ela foi lá, explicou tudo a ele...quando ele não me viu na área, ele me procurou, né!. Aí eu mandei ela conversar com ele. Porque você como pai de família, precisa dum dinheiro, aí você...o cara é amigo, conhecido...“eu tenho, eu lhe empresto pô, você me dá tanto”, mas quando você passa daquela data, de você..qui já tá pagando demais...passa daquela data, o cara lhe encontra...“porra! Cadê, fulano, num sei o quê...”. Aí, é nessa parte aí que começa a lhe esquentar sua cabeça. Aí você diz.. pô, eu vou receber dinheiro, aí eu disse: porra! dia 20 vai sair dinheiro, eu vou adiantar um lado, vou ver o que eu faço logo pra ficar livre. Aí, quando eu recebo o contracheque, tem um bocado de desconto, num adiantou nada, aí, você: ‘ô fulano, num sei quê, olhe tô cum isso aqui, isso aqui, você segura aí, qui eu vou resolver isso aqui’. Aí o cara fica, assim, botando uma pilha da porra na sua cabeça. É complicado. Aí você tá cum dinheiro suficiente, qui vai resolver aquilo ali, chega em casa cê diz pra esposa: ‘olha, fulana, eu tô...vou pagar um débito, assim, assim, assim, o dinheiro vai ser esse aqui, nóis vai resolver esse pobrema aí do mercado, água, luz, telefone...’ E esse dinheiro vou resolver um pobrema aí...qui eu tô devendo isso, isso e isso...às vez é uma prestação...qui você...de carro, sei lá...uma bagulho qualquer que cê comprou. Ela as vez num tá sabendo, mas quando ela vem saber aí, o negoço engrossa, porque ela começa a pegar em seu pé.. “e porque você fez isso, e porque cê fez aquilo, e porque você tem dinheiro na rua” e você fica retado, qui num quer que chegue aquele extremo ali dentro de casa, pra num ficar discutindo na frente dos filho, dos parente. Aí, pronto, começa aquela agonia danada. • Relato Sr. Marom. O entrevistado tem 57 anos e trabalha, atualmente, realizando serviços informais. O trabalho fixo era de percursionista em shows de música. Não tem família própria, entretanto, possui uma irmã que mora em outra casa e o auxilia nas 67 despesas diárias. Após o IAM, não o chamam para shows, pois temem agravarlhe a doença. Relata: Porque as vez acho que minha doença é mais problema assim...de eu parado. Sempre trabalhei. Sempre banquei a mim mesmo assim,..dependia de alguém, mas já viu alguém, sabe! sua pessoa. O senhor me ajudar. Tá precisando de alguma coisa e tal. Chegou ao ponto de meus patrões dizer que é dando que se recebe. Eles me deu um presente. Um presente muito alto, eu ignorei aquilo. Eu num posso aceitar...conversaram comigo e tal...Porque esse problema parado num é? Eu já botei balaio na cabeça e tudo, ne!, na infância. Quando tava com dez anos. Quando eu tava com dez anos, onze anos tal. Hoje não tenho condições, num vou mentir não tenho condições, principalmente a tendinite que eu tenho. Agora mesmo fui até com meu colega, num vou à médica. Tem horas que as dores aperta. Num disse aos meus amigos também, porque quando pintar, eles me ligam e eu tenho que...ir. Sr. Marom vive sozinho num quarto alugado, na Baixa dos Sapateiros, pago pela irmã. Esta o ajuda com as despesas cotidianas como almoço, lanche, remédios etc. Ajuda sem a qual não atenderia as necessidades básicas. É certo todo mês, todo mês...as vez vem até antecipado, entendeu? Eu tenho até o dia seis pra pagar e...quando chega no dia dois, dia três ela dá o cheque. Vou no banco, as vez dou ao cara o cheque e tal. Nãããoo, quando ela me da, as vez ela me dá dez reais, me dá vinte pra eu passar o mês.Porque...eu acho que só Deus mesmo sabe o que que faz, porque, não ter alguém, hoje em dia, pra ter alguém você tem que ter uma estrutura financeira. Uma casa, é porque a figura pergunta o que você tem o que pra mim dar?. Trata-se de uma pessoa com a qual se pode contar para fazer pequenos serviços. Lavar um carro, comprar alguma mercadoria, consertar lâmpada, portão, janela, porta etc. Mencionou que gosta de trabalhar em sítios, lidar com a terra, mas que nunca o fizera. 68 ...eu sinto falta, as vez as pessoas de idade que tinha um sítio. Eu queria tá num sítio, pegando na enxada, esse negocio desses movimento. Rapaz! Acho que tô parado. Quero uma atividade que eu tenha dinheiro todo mês. Quero salário mínimo, que eu venha a manter a alimentação que num tenho. Em 2007 trabalhou para um médico candidato a vereador em Feira de Santana. Reuniu 80 pessoas para colar cartazes, pichações etc. Em troca o médico lhe cuidaria da catarata. No entanto, na data da cirurgia – por falta de acompanhante – ela não se realizou. Aborrecido, relata: Ele realmente disse, a equipe médica, disse que foi problema de aborrecimento. Porque eu era pra ir, um parente nosso, num foi. O problema da catarata cum falei pro senhor. Por isso aconteceu esse negocio. Eu lutei pra conseguir isso. Eu fiz um trabalho pro médico. O médico tava sendo político, eu fiz um trabalho. Envolveu oitenta pessoas, entendeu. Nesse trabalho pra puder candidatar ele, só que não deu, num dei pra todo mundo. Trabalho correto, tudo bem. Fomo em Feira, ele é de feira. Eu fui e o acompanhante num foi. Ai num da pra fazer, certo? Só que hoje em dia tem que ter um acompanhante. Eu fui na data, mas o acompanhante não foi. Foi na quinta-feira. Quando chegou na sexta de manhã, seis horas da manhã, antes de seis horas da manhã. Eu gosto de acordar cedo. Descia pra limpar e tal, porque é uma avenida, às vez maluco entrava, urinava e tudo. Aí eu limpava e tal aí aconteceu esse negocio. (O IAM). O IAM sofrido é relatado como um evento relacionado ao seu cotidiano. Menciona o fato de que não ter realizado a cirurgia o aborrecera por ver a esperada cura escapar-lhe das mãos por motivo alheio às suas expectativas: a ausência do acompanhante. Neste sentido, percebe-se ser esta a situação problemática indicada como interveniência causal no adoecer. Desse modo, quando relata o IAM sofrido o faz relacionando-o à situação enfrentada. 69 Ao relatar sobre as ínfimas condições materiais, as limitações físicas impostas pela Catarata, pela Tendinite, pelo IAM e o cotidiano sem ninguém para compartilhar os infortúnios, desperta atenção sobre o fato de que no processo de reabilitação estabelece-se relações entre o adoecer por IAM e as situações problemáticas enfrentadas no cotidiano em virtude de uma vida solitária. É neste estabelecimento de relações entre a doença e as situações problemáticas vividas cotidianamente que as pessoas enfermas vão conferindo sentido à experiência de enfermidade por IAM. • Relato Sr. Maragojipe Este entrevistado tem 53 anos, nasceu no interior. Veio para Salvador há 37 anos, constituiu família e hoje é proprietário de pequeno comércio no andar térreo da residência. A família compõe-se de esposa e três filhas, sendo uma casada. Relata que o lucro do comércio de bebidas atende à certas necessidades básicas, mas não as de lazer, bem como não supre a totalidade das despesas com o estudo das filhas e – pela imprevisibilidade de faturamento – por vezes, não consegue equalizar despesas relativas à manutenção do empreendimento. Relata: Um barzinho com mercearia, mas às vez é alto e baixa. As vez eu tô com uma situação boa, mas as vez tá lá embaixo. Tive em situação difícil, finho estudando, estudava. Agora melhorou mais, tem uma formada já, mas num se empregou ainda. E a luta dia-a-dia dá sempre negativo. Problema com Coelba, com EMBASA, com fiscal, IPTU, entendeu?! E só adquirindo mesmo de se alimentar e de se vestir, lazer num tem nem eu nem ninguém da família, num vou dizer que tem. As meninas que ainda estão namorando e tem, as vez, umas viagenzinhas pra casa dos parentes. Pro interior, Maragojipe, Mangabeira, elas saem, mas eu mesmo e a patroa é difícil. É difícil não, a gente num sai. E ai essa vida agitada, dura, dura e difícil.... 70 As ações cotidianas de cuidar do comércio ocupam todos os dias do Sr. Maragojipe: de manhã à noite, enquanto houver cliente, de domingo a domingo. Mas o cotidiano não se resume apenas em servir a clientela, pois necessita administrar compra e estoque de mercadorias a serem comercializadas no estabelecimento. Uma vida de trabalhos continuados, exercida desde os quinze anos de idade quando veio para Salvador: Há!!! Eu comecei a trabalhar desde a idade de oitos anos na roça (...). Com quinze anos eu vim pra qui. E aqui eu comecei na feira de São Joaquim. De ciiiinnnnco da manhã, morava na baizinha de Santo Antonio, as condições de há...,há....há...o,o,o aposento. O dormitório era péssimo, nunca tive uma boa...vida.. Aí pam, fique um ano e pouco por aí. Aí fui morar em Cosme de Farias e trabalhar em...engenho Velho de Brotas. Na mesma atividade, comercio. Aí eu pegava saco de farinha de 70, 80 quilos assim nas pernas e botava no lugar. Ia pra feira de manhã comprar, na Sete Portas. Porque eu era um gerente entendeu? Comprar tomate, cebola, pimentão, já tinha lugar de pegar lá. Botava no carro, botava no comercio pra vender, porque o patrão tinha outra atividade e eu levei cinco anos”. “Daí em 1975, sai desse local e fui morar em Itapoan. Isso foi ligeiramente, num deu certo, vim me bora. Aí trabalhei quatro ano e meio no hospital Espanhol. Eu entrei como servente, aí...trabalhei dois anos, um ano e meio com servente e passei a trabalhar no quadro da portaria, como auxiliar de portaria. Dei plantão noturno, entendeu!? Aí sempre dinheiro pouco e querendo ter uma moradia, como eu tenho uma casinha pequena própria hoje, que eu fiz em 76, entendeu. E aí vem, trabalhei até 79 sai, mas num arranjei mais emprego, aí fique nesse comércio.O comércio deu até certo, mas depois me envolvi com família e tal. Foi em... em..80. Já tava no comércio. É com o rendimento advindo do pequeno comércio que sustenta a família, trabalhando todos os dias ininterruptamente. Ele carregava os produtos e os levava de ônibus ao comércio. Esse cotidiano durou cerca de vinte anos, aliado as outras situações problemáticas como se aborrecer com clientes bêbados, familiares, pai doente, impostos, fornecedores, energia elétrica, água etc. Em 71 certa oportunidade, ao voltar da feira, pelo esforço físico empreendido, após avisos médicos sobre a saúde não observados, sofreu IAM na rua: E...com é que se diz, e aí chegou a ponto de eu, eu... estava num médico cardiologista, o médico me avisou que eu estaria, com a, com a glicemia alta e colesterol e me passou um remédio e me passou uns exames. Eu nem tomei os remédios nem fiz os exames. Isso no ano de 2007, abril a maio, nesse período. E aí num levei a sério. Dei mais..., trabalhando, trabalhando, trabalhando, trabalhando, quando foi no dia 31 de dezembro que eu tava todo animado pra, pra...é,é,é passagem do ano e inclusive eu tenho uma filha que faz aniversário no dia 31, uma que é casada. Que ela vinha do interior, ela mora no interior, pra qui, pra qui, passar o ano conosco. Foi quando eu fui em São Joaquim comprar uns objetos, que quando eu botei no ônibus...todo a jeito, o, o, estou na situação a qual me encontro, passei a sofre a,a....ter o infarto... Os exemplos do conjunto apresentados conferem a noção de como as pessoas pós-IAM em reabilitação estabelecem suas relações causais entre situações problemáticas cotidianas e o adoecimento. Tais situações exigem dessas pessoas dedicarem-se quase que a totalidade do tempo cotidiano às ações de atendimento, deixando poucos meios para atentarem às consequências prejudiciais à saúde e adotarem ações e hábitos saudáveis, pois – como se pode verificar – os problemas são prioridade nas ações cotidianas. Assim, quando os informantes relatam que o adoecer por IAM relaciona-se às tais situações, indicam que elas podem atuar como causadoras da doença. Indicam ainda que à dimensão do viver compartilhado com outros pode ser um elemento considerado como interveniente no adoecer. Os relatos também sugerem que as situações problemáticas cotidianas são relacionadas ao IAM de maneira que a pessoa tenha meios de indicar os ajustes mútuos a serem feitos entre o abrupto adoecer e aquelas situações. Isto se 72 evidencia ao notar-se que os relatos tratam de cotidiano compartilhado com outros atores, e aquelas situações são – ao mesmo tempo – vividas e intervenientes no adoecer por IAM, especificando-se como marca comum entre os relatos coligidos na pesquisa. Ou seja, todos concebem que situações problemáticas vividas no cotidiano se apresentam como possíveis causas de deflagração do IAM. Deste modo, possibilita-se o entendimento de que – pelas citadas situações – o enfermo se posiciona no cotidiano como um ator social a mais, orientado pelas possibilidades e limites práticos das situações compartilhadas vivenciadas. Pelos relatos observa-se que os informantes não dispõem de condições de exercerem, por si, o poder de decidirem plenamente sobre os próprios cursos de suas ações. Relatam que as possibilidades de ações são limitadas, em alguma medida, pela prática do cotidiano repleto de situações problemáticas. Até que um evento com poder de efetuar uma ruptura, mesmo que temporária e parcial em muitos casos, nesse cotidiano, se fizesse predominante; o adoecer por IAM. Assim, com as limitações e imposições consequentes da doença e do processo reabilitativo, esse cotidiano precisa ser repensado e, se possível, re-organizado. Adoecer por IAM impõe ruptura contingente em relação ao cotidiano vivenciado. Entretanto, não implica necessariamente na possibilidade exata do enfermo exercer um poder maior sobre as práticas cotidianas, e sim – quando em estado de reabilitação – em avaliar o cotidiano problemático como provável causador do adoecimento. Pelo duplo movimento consequencial – por um lado – se não se garante que as atitudes cotidianas mudem completamente; por outro, alguns ajustes são projetados em decorrência das prescrições médicas que implicam em 73 adaptações no cotidiano para viabilizar a nova situação. Entretanto, a realidade constatada é a de que o cotidiano prático não possibilita as mesmas referências de ação que o biomédico destina aos pacientes internados. Nesse sentido, o que o cotidiano dispõe aos pacientes em reabilitação são ajustes parciais, desde que contem com a participação efetiva de outros atores presentes na lida diária, tornando-os problemas de ordem compartilhada. As pessoas entrevistadas indicam ter essa noção, já que os relatos dizem respeito às situações problemáticas cotidianas partilhadas com seus pares; entretanto, como apresentado, tal circunstância também é apontada como possível causadora do adoecimento, bem como limite ao pleno seguimento das prescrições. Logo, as situações problemáticas só ampliam de extensão com a presença da pessoa adoecida por IAM, pondo em risco21 a reabilitação da própria pessoa pós-IAM. 21 A idéia de risco tem provocado inúmeros estudos nas últimas três décadas. Discute-se desde os pressupostos probabilísticos da epidemiologia, passando por aspectos cognitivos no campo da psicologia e por explanações de cunho estruturais as quais coloca risco como característica de sociedades capitalistas. Contudo, a seara atual, além das já mencionadas, está entre risco e vulnerabilidade. Sobre risco ver; Beck, Lash e Giddens no livro; “Modernização reflexiva; Política, tradição e estética na ordem social capitalista”, 1995. ed: Unesp. E os artigos; “Causalidade, contingência, complexidade: o futuro do conceito de risco” de Naomar de Almeida– . Filho; Denise Coutinho In: Revista de Saúde Coletiva. Vol.17 no.1 RJ Jan./Apr. 2007 e; ”Ciência, técnica e cultura: relações entre risco e práticas de saúde” de Dina Czeresnia. In; Cadernos de Saúde Pública; Cad. Saúde Pública vol.20 no.2 Rio de Janeiro Mar./Apr. 2004. 74 Relatos de crise de IAM. O mal-estar corporal sentido no infarto é interpretado de diferentes maneiras dependendo do saber cultural e da biografia da pessoa vitimada. Neste sentido, a interpretação dos sintomas indica um desassossego no corpo. Victora (1995) registra: a identificação das percepções corporais é resultado de comparações com a condição normal do indivíduo, que faz da experiência cotidiana o eixo integrador dos sintomas e sinais. Por outro lado, a representação que a pessoa faz do seu corpo tem como referencia a construção coletiva, embora cada um possua uma percepção única do seu corpo;(Apud. Maruyama, 2004 p. 79). As crises de IAM foram relatadas como experiências dolorosas em que a vítima não dispunha de informações adequadas para lidar como o abrupto mal-estar corporal experimentado. Assim, os relatos que seguem destinam a descrever o sofrimento da pessoa enfartada, bem como para aludir a medidas e ações de socorro. Vejamos alguns excertos de relatos; Quando foi fevereiro de 2007 eu tava em casa, bem, próximo ao almoço, aí eu fui almoçar, quando eu botei a primeira garfada na boca, eu senti. Leno!!. Senti uma dor!!! Leno, nas costa, uma dor parecendo que me deram um murro e não tiraram à mão. Digo: ‘ai meu Deus, num tô conseguindo mais almoçar, aí comecei chorando cum a do..Eu só senti, Leno, essa dor nas costa. Aí essa dor vinha pra’qui, né! Aquela dor nas costa, uma dor assim,.eu disse: ‘meu Deus, meu Deus, eu comecei a chora, meu Jesus.. Ah! é uma dor muito forte. É uma dor assim, parecendo que a pessoa deu um murro e a mão encaixou assim, você fica com aquela dor presa e gritando sem poder ter socorro (Relato Sra. Leona) ...eu tava assim sentada olhando assim pra ela e disse, ‘Nina?’. ‘Eu tô me sentindo mal, mal, tô me sentindo mal’. Eu sei que quando ela olhou assim pra mim ela não viu 75 a menina do meu olho. Ela: ‘oxe, oxe’. Ela disse que viu tudo branco. Eu só vi ela me arrastando, eu me lembro disso, me furando aqui pelo braço, me arrastando. Me deixando assim sentada, encostada, me arrastando pelo braço, me encostando no portão, é a lembrança que eu tenho. Eu toda mole assim, eu só me lembro assim...Eu defecava muito, era escuro, urinava muito..... (Relato Sra. Analí) ah! Do coração...eu sei que...fui piorando...subindo ladeira pra ir ver ele no sanatório São Paulo, no Ana Néri também quando tava...subia a ladeira, pra ir ver ele, ficava no meio do caminho...cansando. Um dia...de primeira, oxi! Quando tomava qualquer raiva as parte do corpo roxa, depois parou...e aí ficava cansada, uma dor aqui assim...aí, subindo a Lapa, me deu aquela dor...foi a primeira vez. Eu gritei, gritei, arroxiei...aí veio um...‘bebe água...respire fundo, respire fundo’, deu água,...aí, tomei água...e toda roxa...sem respirar direito. Aquele abafamento, e aquela dor, aquela dor...aí ele: ‘respire fundo.’. Aí..aaiihhh. E eu fui levando...aí o carro me levou pra o Ernesto Simões...chegou lá deu batimento mínimo...aí, tirou o eletro, né! botou o remédio na língua...,eu fui logo me recuperando (Relatos Sra. Ilza) Aí eu sei que, depois com...jantei uma quiabada em casa. Não era nem tarde, daqui a pouco, me sentindo mal, vomitei, vomitei e fiquei roxa. Então, comecei a vomitar a quiabada que eu comi aí, o vizinho, eu arroxiei toda e suando, suando, e toda roxa, a, o vizinho veio, ‘vum’bora logo pro Caribé’. (????) Desde casa que eu tava me sentindo mal... mas eu disse:‘ó Mon eu tô me sentindo mal, mas eu vou assim mesmo. Tá marcado aí, tá’. Quando eu cheguei na Calçada, aquela dor, abafamento, abafamento aí, comecei a roxiar e o suor, e aquela dor,eu gritava, gritava que tem que gritar, porque se não gritar morre abafado... (???) Mas no outro dia, a pressão deu aquela coisa, só foi a cabeça...qui eu senti uma coisa muito estranha...eu fiquei no sofá, daqui a pouco veio aquele estado de nervo. Aí o coração ta, tá tá, ta, tá, batendo forte...aí eu senti ‘meu Deus, o qui é isso?’ aí eu botei a mão aqui, ele acelerado, botei a mão aqui no pulso eu disse: ‘meu Deus, o que é isso?’ aí levantei...aí eu tô querendo andar e as perna num queria obedecer...aí eu fiquei parado assim. Foi daí qui eu, quando eu cheguei lá, a pressão tava 16 por 10, as minhas perna amarrou, aquela coisa diferente aquele negoço.’ (Relato Sr.Félix) 76 É razoável considerar que os sentidos possíveis a serem conferidos à dor são gerados em situações compartilhadas pelos atores envolvidos na situação de quem sofre. SARTIR (2001) alerta: Se a dor se constitui culturalmente, em qualquer caso, é necessário tomar como referência todos os atores na cena: o doente, sua família e os profissionais. Todos atuam numa realidade social, tecendo a trama das relações que fazem da dor uma experiência com um significado a ser buscado (p. 11). Os relatos falam da crise de infarto como um evento doloroso e relacionado ao cotidiano. Diferentemente de entender a crise de IAM como efeito de situações problemáticas, é preciso voltar atenção para como essas pessoas relacionam o adoecer à suas práticas diárias. Assim, não há polarização nas descrições; põese de um lado as práticas das situações problemáticas nas quais as pessoas estão enredadas cotidianamente; e de outro, a crise de IAM, uma vez que os relatos indicam causas e crises relacionadas ao cotidiano. A crise é descrita adjunta às práticas cotidianas e evidenciada como uma situação problema relacionada a outras do dia-a-dia. Ademais, a crise se manifesta como evento contingente em que os enfermos se vêem – parcial ou temporariamente – livres de deveres cotidianos. No entanto, o que se observa pela análise dos relatos é a predominância da tentativa de retomarem as ações cotidianas que antes realizavam. Nota-se que os relatos de causa apontam para aquelas situações problemáticas relacionadas ao cotidiano. E os de crise para o mal-estar corporal sentido, as ações de socorro e as condutas da pessoa sofredora. Logo, estes relatos se 77 dirigem às pessoas que sentem corporalmente o mal-estar da doença. Consequentemente, enquanto as causas foram relatas aludindo à situações compartilhadas, ou seja, à dimensão do viver coletivo; as crises foram expressas mediante descrições do sofrimento corporal de modo individualizado, sugerindo – genericamente – a dimensão da experiência pessoal. Deste modo, a experiência pessoal de crise de infarto é marcada por sensações dolorosas. Contudo, é sabido que tal experiência não é unicamente subjetiva e individual, pois está eivada por códigos culturalmente compartilhados entre atores sociais. Assim sendo, os entrevistados relatam a dor experienciada na crise de IAM mediante metáforas que apontam para um modo de expressar um mal-estar corporal até então não experimentado. Para isso utilizam metáforas valendo-se de elementos vivenciados no cotidiano. RABELO, ALVES e SOUZA (1999) orientam o entendimento das metáforas de experiência de enfermidade ao mencionarem: No entanto, é também verdade que se utilizam as metáforas para expressar e comunicar a aflição a outros. Os enunciados metafóricos tanto revelam imagens próximas da experiência encarnada da aflição, quanto trazem essas experiências para o domínio dos afazeres cotidianos, práticas e conversações dos sujeitos, transformando-a em algo sobre o qual se pode falar e agir ao aproximar diferentes domínios da experiência humana, criam um campo de significação aberto ao diálogo: não só permitem a expressão do incoativo, como também oferecem possibilidades de movimento ou ressignificação. As metáforas comovem, enfurecem, persuadem – incitam à ação. Assim, contribuem para o reconhecimento das experiências de aflição vividas por outros, para sua transformação em objeto de conhecimento e intervenção segundo modos socialmente legitimados. Entretanto, antes de constituir um tropo puramente a serviço da reflexão, as metáforas situam-se e operam em um domínio próximo à experiência dos sujeitos, articulando-as no seu transcurso e trazendo alguns de seus elementos para situações de interlocução e ação coletiva (p. 184).. 78 Os modos práticos pelos quais as pessoas se mobilizam para trazerem suas experiências do mal-estar encarnado à dimensão do viver compartilhado com outros aclara-se mediante o estabelecimento de relações entre IAM e situações cotidianas consideradas por elas como problemáticas. Nesse ínterim, os relatos de crise mostram como a experiência de dor também está atrelada ao vivenciamento do cotidiano. É preciso saber como pode se indicar uma mediação entre a dimensão individualizada da dor corporal e a dimensão do viver compartilhado durante a experiência de adoecer por IAM, uma vez que não existem como pólos no mundo da vida cotidiana. Para isso, descreve-se, a seguir, como algumas situações práticas cotidianas vividas pelas pessoas em reabilitação são relacionadas com o adoecer. Nesta via explana-se como as pessoas lidam com as prescrições, cuidados e mudanças, e projeções de atitudes e atividades futuros. Logo após, esboça-se como se desenvolve o processo de conferir sentido à experiência de enfermidade por IAM. 79 Capítulo IV: Relatos de cuidados, mudanças e projetos. No primeiro momento deste capítulo apresentam-se algumas das prescrições médicas relatadas pelos em entrevistados nesta pesquisa. É necessário reafirmar que os relatos não se alinham completamente com o prescrito pelos profissionais de saúde. Entretanto, o que interessa observar neste estudo é – precisamente – como essas prescrições são praticadas cotidianamente pelas pessoas em reabilitação. No segundo momento, descreve-se cuidados, mudanças e projetos relatados com o objetivo de ponderar-se a respeito das práticas cotidianas pelas quais essas pessoas dão curso à projetos de vida, relacionando-as às implicações da doença. • Prescrições de profilaxia-reabilitação ao IAM relatadas As prescrições de reabilitação-profilaxia ao IAM aqui relatadas, em geral, baseiam-se nos fatores de riscos às DCV, sendo estes as bases das prescrições destinadas às pessoas pós-IAM em reabilitação no INCOBA ou CRDC22. Em consequência, muito do prescrito às pessoas como medidas de reabilitação dizerem respeito à terapêutica medicamentosa, exames regulares de controle da evolução da doença, dietas alimentares, consumo excessivo de bebidas alcoólicas, fim do tabagismo, práticas de exercícios físicos, descanso e evitar situações problemáticas, entre outras. Vejamos alguns relatos sobre as prescrições: 22 Ressalva aos casos extra-ordinários e suas especificidades de diagnostico e tratamento, pois podem constituir um quadro de doença além dos parâmetros firmados aqui e que são tratados pela medicina. Todavia, as pessoas dessa pesquisa não se inserem nesse quadro, sendo sofredoras de IAM sem complicações extra-ordinárias ou que mereçam diagnostico e tratamento diferenciados dos padrões estabelecidos pela medicina. Nestes termos, os casos de IAM das pessoas entrevistadas podem ser tratados a partir das prescrições de profilaxia-reabilitação padronizadas no modelo de conhecimento biomédico atual.. Salienta-se que as prescrições aqui expostas dizem respeito ao que as pessoas pós-IAM relataram, sendo possível haver discrepâncias em relação ao que os profissionais da saúde prescreveram quando às atenderam. Contudo, é esse entendimento e a lida cotidiana dessas pessoas com as prescrições que interessa nesta pesquisa. 80 • Relatos Sra. Leona eu tomo cacsotril, sustrate, metilformina, AAS... eu até suspendi o AAS porque dizem que ele é anti-coagulante. Então, se eu vou me operar, é anticoagulante...pra eu num ter um problema na cirurgia...eu aí fico com medo num tomo AAS. E tomo remédio pra o câncer. (...) Não, o médico qui botou horário. Eu tomo o de pressão. Aí quando dá meia hora, eu tomo o da... o de diabetes, nove horas eu tomo o do combate ao câncer... • Relatos Sr. Félix doutor...ela me deu uns remédio, disse qui era pra fazer todos os exame de novo, pra num parar o remédio de pressão, qui minha pressão...eu disse a ela qui tava ruim...como da bexiga ela disse que tava um pouco coisa, os rins que num sei quê...que eu faça outro exame... (...) ...mas pra eu acompanhar a minha alimentação e pra saber sem ir na rua..porque também, tem batida cardíaca qui vê aí já mede a pressão aí umas vez diz qui é 75 outras diz qui é 80 aí, sei lá. As vez deu 100 ou 90 aí eu num saía, cum medo. Qui eu achei qui eu parado meu coração num pode tá batendo a 100. Qui ela disse qui até 75 tava boa. • Relatos Sra. Analí Agora com esse exame ergométrico que eu fiz eu num sei se...eu tenho que perder um pouquinho de peso pra puder caminhar. Porque eu caminhei ali e me senti mal, nem acelerou! (Na esteira ergométrica). E eu preciso caminhar. Mas como posso caminhar de manhã se num durmo de noite direito. Não tenho ânimo. (...) Quando eu saí, ela mandou tomar o remédio da pressão e procurasse um cardiologista. Só que pelo SUS é uma coisa muito difícil. Abençoado é o Adriano Pondé que eu encontrei, que eu fui no posto de saúde ne! Aí manda. É que toda vez que eu vou a pressão tá alta, aí manda. Mas tava muito difícil. Pra fazer uma consulta eu até podia fazer um esforço, mas aí coincidiu nesse mesmo tempo que entrou meu pai na jogada. Quando eu tô tentando me adaptar, indo pro clínico, me ajeitando. Aí chega meu pai lá mancando, quando olho meu pai tá necrosando o dedo. Aí vou interno meu pai no Ernesto Simões. Aí fico nove dias... 81 • Relatos Sr. Valdo O de lá num me disse nada, me deu alta e mandou.., quer dizer, mandou que eu seguisse as ordens. Que é minha cardiologista. Ela disse que eu não podia subir ladeira, que eu não podia forçar muito, não podia correr muito, entendeu? Num podia jogar bola, num podia beber mais, num podia fumar, que eu fumo, compreendeu? (...) Depois que cheguei em casa....foiiiii, bem, normal, evitei esforços físicos com ela pediu. Segui a dieta dos remédios certo, alimentação...quer dizer; até hoje eu sinto, sinto... aquele.....aquele, sinto aquele, de vez em quando, queimor, mas eu tenho um comprimido em casa que ela me deu, que quando atacar, atacar eu tomo e pronto e, acabou. Eu venho aqui..do dia dois. A depender de quando eu sair daí da sala da Dra. quando ela marcar, eu tenho dia dois. È constante de mês em mês. Eu venho faço a consulta, ela marca exame. Tem também a Dra.. a endogrinologista?...Ela conversa comigo, ver se eu tô tomando os remédios corretamente, vai olhar meus exames anteriores, pra saber se precisa outros. Vai ver o glicemia no momento pra ver se ta regular e tirar a pressão. • Relatos Sr. Maragojipe Agora no final do resguardo que a médica me avisando que tem que ter muito resguardo, que é uma cirurgia interna. Eu recebi um “Stem”. O coração num tinha nada, agora tem uma proteção, um negocio, que ela, mas ela passou um remédio. Um calmante assim. Porque eu tô tomando uma serie de remédio. Tô me sentido até melhor, mas eu sinto dor nos braços, aqui dentro (nos bíceps). Sinto peso, senti às vez uma quentura interna. Mas como ela me orientou como era, eu tô confiante. Deus em primeiro lugar em segundo os médicos, né?! (...) Tô tomando...seis remédios, sete remédios. Ela até passou um calmante. Eu tava com problema aqui (Refere-se à região do tórax) isso tava me trazendo mais...mas ela me deu um calmante que eu relaxei um pouco. Então eu tô me sentindo...bem e vou continuar os remédios. E no caso o médico da, de cima disse que era pra eu andar no futuro, mas isso é depois dos noventas dias. A eficiência das prescrições é massivamente reconhecida no atual momento de desenvolvimento da medicina. Por outro lado, o que se faz neste trabalho é um deslocamento da atenção para condições práticas relacionais na medida em que, 82 dos enfermizados, exige-se o seguir de tais prescrições, no sentido de empenhar esforços para ajustarem mutuamente prescrições e cotidiano repleto de situações problemáticas. Assim, quando se pensa sobre as prescrições, pondera-se acerca das ações práticas que a pessoa pós-IAM em reabilitação pode realizar para segui-las, considerando limites e possibilidades do cotidiano. A prática cotidiana, principalmente pelas situações problemáticas vivenciadas, indica a complexidade de atitude e posicionamento frente à nova realidade. Paralelamente, expõe que as implicações advindas da doença extrapolam à lida com as prescrições, atingindo as relações sociais entre os atores do cotidiano compartilhado. Por conseguinte, as prescrições não são relatadas como exigências isoladas das situações problemáticas vividas no cotidiano, mas como intimamente relacionadas a essas situações práticas. Esse modo de conviver com as prescrições é marca importante no processo cotidiano prático de lidar com a reabilitação. Em suma, as prescrições de reabilitação do IAM necessitam ajustar-se às possibilidades e limites do cotidiano prático, bem como este também precisa ser adequado às prescrições. Desse modo, as ações para acordar mutuamente prescrições e cotidiano verificam-se como exigências práticas para as pessoas pós-IAM. Neste sentido, o processo de reabilitação, na perspectiva desta pesquisa, evidencia um aspecto de relacionalidade quando volta atenção aos diversos e particularizados ajustes práticos relacionais que essas pessoas são obrigadas a realizar para tentarem reconduzir razoavelmente os respectivos cotidianos. No entanto, os ajustes e recondução apresentam marcas e sinas delimitadas, como se verá. 83 Cuidados, mudanças e projetos futuros. Para entender como os entrevistados lidam cotidianamente com as prescrições de reabilitação-profilaxia é necessário vislumbrar os limites e possibilidades enfrentados no dia-a-dia, concomitante à relação que estabelecem entre a atual situação e o adoecimento. No tópico anterior descreveu-se algumas possibilidades e limites cotidianos relatados como interveniência no seguimento adequado do prescrito pelos médicos. Contudo, enfatizou-se, em maior amplitude, situações problemáticas práticas para evidenciar a complexidade dos ajustes que as pessoas carecem efetivar nos respectivos cotidianos. Isto se deve ainda e em grande medida, à natureza do material empírico coletado, porque muitos dos relatos expressam as situações como interveniência prática no adoecer e no atendimento das prescrições; fato este que pode indicar a centralidade dessas situações nas biográficas das pessoas entrevistadas. Neste momento, então, destacam-se algumas maneiras práticas segundo as quais os entrevistados executam – ou buscam viabilizar – as prescrições de reabilitação. Os relatos de cuidados, mudanças e projetos apontam, à principio, para as prescrições médicas. Porém, essas não são executadas por todo o tempo, no cotidiano pessoal. O que os relatos indicam como cuidados e mudanças adotados pela pessoa pós-IAM em reabilitação, são ajustes mútuos entre prescrições e cotidiano. Desse modo, envolvem as maneiras pelas quais a pessoa estabelece relações com os outros atores e consigo no cotidiano. Isso requer transformações em seus papeis sociais e identitários. Então, pensar por esse ângulo, é prestar 84 atenção às mudanças ocorridas nessas relações, sem perder de vista os projetos futuros da pessoa. Porquanto suas atuações, relações e identidade, estão eivadas pela ideia de projeto com a qual referencia seus cursos de ações na vida cotidiana prática. • Relato de cuidados, mudanças e projeto, Sr. Félix Eu..eu...eu num..eu pensei muito pouco em dinheiro. Eu sempre pensei na felicidade. Eu nunca pensei em dinheiro, pensei sempre em ser feliz, qui eu sou uma pessoa...eu sempre fui alegre, gostava de brincar...mas me bateu uma tristeza já, umas tristeza é....de eu num puder fazer aquilo qui eu fazia mais, aquela coisa toda...eu...eu...e num posso fazer um esforço mais...quer dizer, num é demais qui de já leve eu sinto. É mais qui ele, ele falou a verdade, qui ele é médico, mas ele me travou minhas perna, assim, no momento. E eu tô começando a soltar as minhas pernas hoje, andando. Há uns meses atrás eu comecei a andar, qui eu num andava. Sintia um medo de andar, de cair, cum medo de andar só. Ainda sinto um pouco, mas num tá como antigamente mais não...eu dançava, sou brincalhão, sou muito alegre. Aí o qui eu mais...cê bota o meu swing? Eu tô sentindo um pouco alegre de novo, já tô brincalhão, dançarino..dançava, gostava de dançar, swingar muito, sambar, samba de roda, né. Sambar muito. A última sambada qui eu dei foi em Itacaré, parecia qui eu tava me despedindo, sei lá, tenho medo de fazer muito esforço e...,.dançava, brincava, me divertia cum a turma. Tomava uma cerveja. A turma chegava no bar, dizia assim: “Fé, vem tomar uma cerveja aí..e eu bebia junto cum eles, divertia, aquela coisa toda, é uma vida de diversão..também, depois do pobrema fiquei sem ser homem, sem ter vontade de nada. Levei uns três mês e tanto, sei lá, qui num era homi pra nada. Depois qui eu fui na... conversando com a psicóloga...qui eu voltei a ser homi, qui eu sou homi hoje normal, num me afetou nada não...“Eu num penso mais nada não, doutor...Poxa! eu num tenho assim...Eu..eu num sei mais... depois disso.. eu, eu num tive.. pra você ver...o forte de um homem, da maior parte deles é o dinheiro, é a coisa do dinheiro, é ganhar dinheiro. De ter isso, aquilo. E eu num penso nada, se eu disser...eu num penso em ter um carro, eu num penso em ter uma moto, eu num penso em ter nada. Eu tenho minha bicicletazinha qui nem posso montar mais, o médico proibiu de eu andar, qui dirá montar de bicicleta...eu tomei medo...eu fiquei... num posso ter uma bicicleta, num posso montar...quer dizer, desde quando falou isso...é..eu num sei mais...eu fiquei..eu num penso em riqueza, eu num penso em nada, então, pra mim...tá bom pra conviver, essa parte pra mim porque eu num sou 85 um homem ambicioso..eu tenho uma ambição própria de dar uma melhor vida a meu filho, meus filhos, a ter uma alimentação dentro de casa, né. Num é qui seje pouco, (trecho indiscernível) mas eu sempre pensei em minha felicidade. A minha vida toda de ser feliz. Então, é por isso qui essa parte eu num, num, num...me agride muito, num sinto muito coisa qui eu num sou um homem ganancioso, assim... Para o entrevistado, adoecer por IAM impôs-lhe circunstância cotidiana diversa da que vivia. Para ele conviver com as limitações advindas da doença tem como consequência prática não realizar as mesmas ações habituais. Isso ultrapassa as possíveis formas de se adaptar às prescrições. Nesse sentido, quando relata como vive o processo da reabilitação após o IAM o que fica indicado é o seu exílio circunstancial do cotidiano em relação à contingência da vida antes da doença. Seus esforços se dirigem, então, para gerar maneiras práticas para reconduzir-se ao cotidiano; sustentáculo de suas atuações sociais. • Relato de cuidados, mudanças e projeto; Sr. Maragojipe Eu num tô trabalhando! A minha patroa que ta...Eu acordo de manhã, tomo um café..Sete horas. Aí fico assistindo um pouco de televisão. Aí as vez eu descanso um pouco umas nove horas deito. As vez fico até umas onze, duas horas, uma hora, meia hora de descanso. Levanto onze e meia, meio dia, almoço. As vez eu fico assistindo uma televisão...“As vez descanso um pouco, as vez num descanso, mas quando dá oito horas eu deito vou dormir. A noite, as seis horas eu janto,não tomo café. E aí eu fico por ali, quando dá oito horas eu deito, pego no sono direto. È, mais ou menos. Num é assim constantemente, mas a maioria dos dias é assim, num é? Agora eu tenho vontade de voltar a trabaiar. Minha rotina era eu abria a casa sete horas e fechava as dez horas da noite...Eu achei que diminuiu enfraqueceu o peso do guerreiro, enfrentava as coisas. Porque na minha família em sou quase uma liderança. Tem meu pai doente em cima da cama. E.devido a esse problema que eu senti, tive esse infarto. Pelo que me consta eu num tô aquele homem de pegar um peso de acordar e ir fazer determinadas coisas. È porque.eu num tenho um...aquela firmeza. Coragem de...num sei viu!. Que eu atenda a mim e os outros, meu coração é bom, viu...“Eu tava com os planos tão bom, né. E eu tô todo parado...eu as vez eu fico 86 na janela assim e fico olhando, mais idosos que eu. Eu penso em me recuperar e voltar a minha atividade. Não 100%, mas 40, 60% do que eu era, daquela maneira. Com menos compromisso, quando eu quiser dar uma viajada, quiser ir numa praia, certo. Quiser ir num aniversário de um parente, numa formatura, eu teja disponível. Porque eu levei um período pra que ir num aniversario, num casamento, numa festinha, eu tinha que me programar dois messes antes...Era porque se parasse o dinheiro ia atrasar tudo. Eu tava devendo a você, a ela, e outro, e a outro e a outro, e a outro e ai embananava e eu num quero isso. Quero uma vida mais tranqüila. Na espera de se reconduzir ao cotidiano, o Sr. Maragojipe se imbui da ideia de ajustar algumas de suas ações às limitações que a doença lhe impingiu. Tem ciência de que o retorno não se verificará nas mesmas condições anteriores à crise de IAM. Além disso, mostra-se consciente de que a sua dedicação intensa, durante anos, ao trabalho no comércio resultou no agravamento da saúde, culminando no infarto. Assim, o que projeta para o futuro é retomar o trabalho, entretanto, com devidas precauções, visando a edificar uma relação menos intensa com as atividades profissionais, permitindo-se tempo ao descanso e à diversão com a família. A participação da família como gestora dos negócios é uma situação circunstancial que ele desconhecia, pois nunca esteve apartado do trabalho. Circunstância que lhe possibilita projetar ações de ajuste mútuo entre necessidades individuais e exigências coletivas do seu cotidiano. • Relato de cuidados, mudanças e projeto; Sra. Leona ...mudou a alimentação, mudou tudo meu, tá entendendo? Ói Lêno, eu sou de uma forma que meus filhos me dizem pra sair com eles, toda a vida foi isso. Aí, eu digo: eu não vou. Porque eu não posso comer...porque que eu vou prum restaurante que eu num posso comer tudo qui tá ali?.,..Mas, tô fazendo das tripa coração, mas tô fazendo. Ah! Como eu gostava de carne de sertão, de fato, de mocotó, dessas comida boa, mas é boa e é ruim, né, Leno?...mas eu gostava de um chupa molho gordo, de um, dessas comida assim eu sempre gostei de comida. Eu num...eu num gosto de carne de bife, qui num tem uma gordura, qui num tinha nada...Hoje, 87 só...assar e grelhar...tô comendo, boto no forninho..não é? Ai a vida mudou muito, meu Deus! mudou meu ritmo de vida, né, Leno. Porque eu tinha essa vida assim, agora...comendo tudo limitado, tudo..além do diabete e coração. Aí, fica pesado pra mim, mas eu quero viver....A minha teoria é assim, é eu era muito..agora, eu tô controlando mais mesmo as coisas e vou me segurando..Me seguro em não falar, em não fazer...pra não dar problema comigo, né? Se é que eu quero viver, enquanto há vida, há esperança, né...não faço. Num dô importância aquilo qui tá ocorrendo e, aí...fazendo do coração, assim...papel, mas, é muito melhor ser assim do que antes...é mais tranqüila. Minha família toda, irmão, irmã, quem decidia tudo era eu, só procurava a mim. E hoje ninguém mais ta fazendo isso. É, era a vida toda assim. Agora tão tendo mais cautela. Escondem as coisas de mim, num me participa, entendeu?...é, fizeram um complô, Leno (risos)...“Eu...eles me proíbem... é um controle...tem uma pessoa em casa pra limpar a casa, mas a minha cozinha, é minha, tá entendendo? Porque eu mesmo vou me sentir inútil, né..num fazer nada...mas acho que o coração num dá pra fazer alguma coisa de mal a mim porque eu faço uma comida não, né! E tô levando a vida.Tô vendo que eu agindo menos tá melhor do que antes, né..“ô, Leno, eu quero que Deus me dê essa força que ele me dá, que eu acho que eu vou viver, que vou ver meus neto crescido, fazendo uma faculdade, né. E...ter um futuro brilhante deles, um futuro brilhante. É o que eu espero na vida. Acho assim, que se for de morrer, eu vou morrer dormindo, num vou ver nada, né... tô anestesiada.. que eu num vejo nada. Mas, tô com a fé que vai ser tudo bem. Para a entrevistada, a prescrição é uma exigência que lhe impõe criar práticas para se adaptar à circunstância da reabilitação. Neste caso, a ruptura no cotidiano, causada pela doença, apresenta marcas características, pois a recondução às atividades rotineiras pode ser referenciada pelo reassumir os papeis de mãe e dona de casa, sendo estes as bases de suas atuações, similar, portanto, às de antes da crise de IAM. As prescrições são interveniências em suas atuações de mulher disposta a resolver os problemas, atuando como mãe e dona de casa; desempenho que agora carece de comedimento devido às limitações físicas advindas da doença. Nesta medida, a expectativa de futuro lhe vem com o projeto de dar continuidade 88 aos afazeres de antes, ainda no período de reabilitação. Todavia, para continuar a atuar como antes da ocorrência do IAM, os ajustes mútuos entre reabilitação e realidade se impõem como circunstância marcante no cotidiano. Como se observou, tem-se por cuidados, mudanças e projetos da pessoa pósIAM esforços práticos que visam a ajustar reciprocamente as prescrições médicas de reabilitação e a nova realidade, uma vez que estão estreitamente relacionadas ao cotidiano das pessoas em reabilitação de infarto. Nesse sentido, a elas cabem criar e gerenciar ações práticas que atendam – o quanto possível – a nova circunstância do cotidiano vivido. Ademais, não seguir as coordenadas prescritas pelo corpo médico implica tanto no aumento do risco de reincidência de IAM quanto na iminência de óbito. Assim, é deste grau de implicabilidade que se constitui o desafio primordial a ser enfrentado pelo pós-IAM em reabilitação, coadunar – satisfatoriamente – ações práticas de mediação entre prescrições e vida cotidiana. 89 Capítulo V – Considerações finais Neste trabalho buscou-se compreender como pessoas vitimadas por infarto agudo do miocárdio (IAM) conferem sentido à experiência da enfermidade. Especificamente, analisou-se algumas relações estabelecidas pelas pessoas pósIAM entre o adoecer e vida cotidiana enfatizando concepções de causas, descrições da crise de IAM, cuidados, mudanças adotadas e projetos futuros. As concepções de causas são aqui entendidas como modos de indicar o que necessita ser ajustado no cotidiano dos enfermizados visando a minimizar o risco de reincidência da doença; pois os informantes apontam como possíveis causas do adoecer as situações problemáticas vividas cotidianamente. Essas situações encerram o aspecto de serem coletivamente compartilhadas com outros atores componentes das relações rotineiras. Sugerindo – assim – que a dimensão do viver coletivo é considerada por elas como elemento causal importante no adoecimento por IAM. E, ao mesmo tempo, como possíveis fontes de problemas, os quais, de acordo com os relatos coletados deste trabalho, estão estreitamente relacionados com o adoecer e complicadores do processo de reabilitação. Diferentemente dos relatos de causas, os relatos de crise se direcionam para a dimensão da experiência corporal da dor, manifestando-se por jogos metafóricos para expressar o mal-estar experimentado quando do ataque cardíaco. Nesta medida, percebe-se, inicialmente, que a vivência da enfermidade por IAM carrega consigo duas dimensões experienciais: a dimensão do viver cotidiano compartilhado e a experiência particular da dor corporal sofrida. 90 A mediação entre as dimensões da experiência pode ser apontada voltando-se atenção às maneiras prática pelas quais as pessoas enfermas criam ações com o intuito de lidarem com a circunstância marcante da reabilitação. Deste modo, tal circunstância exige da pessoa pós-IAM atender dois conjuntos de exigência; as prescrições médicas de reabilitação, que impõem alterações nas rotinas diárias e, em consequência, a necessidade de participação e empenho de outros atores nas relações cotidianas com quem está em reabilitação. Nesse sentido, é que se situa o enfrentamento das situações problemáticas relacionais, estabelecidas no cotidiano anterior à doença. Para lidar com essa circunstância, a pessoa em reabilitação necessita gerar ações práticas que mediem prescrições e situações problemáticas visando a propiciar um processo reabilitativo que permita, paulatinamente, reconduzir às atividades cotidianas anteriores a doença. As ações de mediação exigem que a pessoa enferma enfrente as situações cotidianas problemáticas vividas e estabelecidas antes da doença. Ademais, com a imposição das prescrições no cotidiano da pessoa pós-IAM, expõe-se a complexa circunstância em que ela se vê engajada por se obrigar a ajustar e ajustar-se às novas e predominantes referências de ação. As prescrições extrapolam a lida com o prescrito pelos médicos, pois exige que no processo de reabilitação se criem ações inéditas referenciadas pelas próprias prescrições e pelos limites e possibilidades práticas, estabelecidas no cotidiano de vida. Abre-se, deste modo, o campo de enfrentamento dessa circunstância impositiva para que se reconduza ao cotidiano similar vivenciado anteriormente à doença. 91 As ações têm a função de reconduzir a pessoa à dinâmica cotidiana. Já que, quando relatadas, percebem-se os inúmeros ajustes práticos que elas realizam no cotidiano de reabilitação. Talvez por isso, nos relatos, privilegiem as ações originadas pela presença das prescrições no cotidiano. As exigências das prescrições dizem respeito à necessidade da pessoa de revigorar a saúde. Logo, apontam para a dimensão da experiência pessoal e corporal do adoecer. Já as procedentes do cotidiano provêm do viver coletivo. Ou seja, a circunstância imposta à pessoa pós-IAM caracteriza-se pela necessidade de criar ações para mediar as diferentes exigências, as quais têm como intersecção o curso do projeto de vida da pessoa. Os relatos sugerem que o paciente não dispõe de poder para – por si – orientar, em grande medida, o curso do cotidiano. Ele se vê entregue às condições determinadas ante as situações práticas problemáticas, até que o evento de IAM lhe impõe brusca ruptura – mesmo que contingente nesse cotidiano – facultandolhe tão somente ocasiões de ajustes. Daí, certas ações inéditas serem realizadas. Entretanto, a ruptura não implica conferir-lhe um poder maior – sobre si e sobre a nova situação – do que o já estabelecido antes da doença. A recondução ao cotidiano é marcada por alguns ajustes projetados como necessários e possíveis de serem realizados, uma vez que as prescrições de reabilitação exigem algum nível de mudança para evitar a reincidência da doença. O seguimento do prescrito pelos profissionais da saúde como normas para a reabilitação, será ou não cumprido considerando-se os limites e possibilidades práticas do cotidiano. De tal modo, as prescrições serão executadas mediante as 92 ações de mediação. Estas viabilizam os ajustes práticos entre o prescrito e as possibilidades e limites do cotidiano. Ademais, esses ajustes tornar-se-ão exequíveis desde que se disponha da colaboração participativa de outros atores que compartilhem a lida diária da reabilitação com a pessoa pós-IAM, conferindolhes aspectos de relacionalidade inerente ao viver coletivo. Os entrevistados demonstram ter esta noção na medida em que os relatos apontam para as situações problemáticas cotidianas como causas do adoecer e como obstáculos à reabilitação, demonstrando todo o arco de interveniência do cotidiano problemático na experiência de enfermidade por IAM, estendendo-se desde as causas concebidas para a doença até a experiência da reabilitação. Como registrado, a experiência de enfermidade por IAM é descrita de modo relacional, evidenciando como a pessoa vive a prática da experiência adjunta às situações problemáticas do cotidiano. Desse modo, enfatizam-se as relações entre os problemas e a doença como um meio de ajustar o adoecer às práticas do dia-a-dia. Daí indica-se que as relações estabelecidas sugerem ser um primeiro movimento no processo de conferir sentido à experiência de enfermidade por IAM. Consequentemente, pode-se pensar que para a compreensão do referido processo é necessário conhecer alguns eventos cotidianos vividos e considerados pela pessoa como problemáticos e relacionados à doença, pois é apoiado nessas relações que o processo começa a ser mobilizado. Esse movimento prático pode indicar ainda que a pessoa se esforça para criar um espaço para si em meio às circunstâncias da nova realidade, pois se vê obrigada a mobilizar um projeto de ações mediadoras para dar continuidade ao curso de vida e, concomitantemente, atender ao prescrito na reabilitação. No curso de 93 mobilizar o projeto, a criação de modos para relacionar as causa da doença, a crise e as implicações – fatores importantes na experiência de enfermidade por IAM – mostram-se como tentativas de constituir um espaço de ações viáveis e atenuantes que possibilitem atuar satisfatoriamente na nova e impositiva circunstância biográfica. Como desfecho, depois do trabalho de coleta de dados, descrições e análises, mais uma vez, cita-se Ortega & Casset (apud. A. L. Machado ,1977, p. 138): “Eu sou eu e minha circunstancia”; complementada pela reflexão de Cóssio; “Se ‘eu sou eu e minha circunstancia’ uma parte da circunstância é minha.” (p. 144). 94 ANEXOS 01 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO TÍTULO DO ESTUDO PROBLEMAS COTIDIANOS E INFARTO AGUDO DO MIOCÁRDIO INFORMAÇÕES E OBJETIVO DO ESTUDO Você está sendo convidado a participar de um estudo que tem como objetivo identificar as maneiras como os indivíduos se comportam depois de terem um infarto agudo do miocárdio, como eles retomam a vida normal e se adotou novos hábitos e quais são estes. DESCRIÇÃO DO ESTUDO E DOS PROCEDIMENTOS O estudo prevê a realização de entrevistas com pacientes. Se você desejar participar do estudo será feita uma entrevista no dia em que você for para o ambulatório, logo antes ou depois do atendimento. Somente terão acesso as identidades das pessoas entrevistadas o pesquisador que realiza a pesquisa com você e a professora orientadora da pesquisa. BENEFÍCIO Você não terá nenhum benefício direto com o estudo, mas o conhecimento obtido com ele pode nos permitir compreender melhor quais são as principais dificuldades vividas pelas pessoas que tiveram infarto agudo do miocárdio em adotar comportamentos considerados preventivos para doenças cardiovasculares. O estudo nos ajudará também a esclarecer quais são os problemas que impedem uma boa comunicação entre o médico e o paciente. Disso pode resultar uma melhor compreensão entre pacientes e médicos. Estes últimos estando bem informados sobre os modos cotidianos como os pacientes lidam com seus problemas de saúde e quais os empecilhos à compreensão do paciente podem prestar um serviço de qualidade superior. RISCOS E DESCONFORTO Você não enfrentará nenhum risco de saúde derivado desta pesquisa e receberá um atendimento normal no INCOBA, independente de consentir ou não em participar do estudo. Se você se sentir constrangido ou sentir a sua privacidade violada pela pesquisa, posto que sejam as entrevistas gravadas, pode solicitar a reversão do consentimento, deixando, então, de fazer parte do grupo de pessoas que cooperam com o estudo. 95 CONFIDENCIALIDADE Terão acesso aos dados pesquisa apenas os pesquisadores envolvidos no projeto. Na divulgação de qualquer artigo ou apresentação de trabalhos com dados relativos à pesquisa os nomes dos envolvidos serão mantidos ocultos ou trocados por outros para que sua identificação por terceiros não seja possível. Também endereço e outras informações confidenciais serão conservados de forma sigilosa. DECLARAÇÃO VOLUNTÁRIA DE ENTENDIMENTO E ANUÊNCIA Eu entendo que fazer parte de um estudo é voluntário. Posso me recusar a participar do estudo ou retirar-me dele sem perda de quaisquer benefícios que eu poderia receber em outra situação. O estudo e procedimentos foram explicados a mim. Estou livre para deixar de participar do estudo em quaisquer momentos se for de meu interesse. Qualquer alteração no projeto que possa envolver a mim deve ser comunicado a mim, a meu representante ou ao meu médico. Eu sei que o estudo foi revisado e aprovado pelo Comitê de Ética. Ao assinar esse formulário eu não abro mão de nenhum dos meus direitos legais que eu teria de outro modo como paciente. Eu autorizo a gravação das minhas entrevistas realizadas no INCOBA e em meu domicílio. Tive a oportunidade de discutir todas as dúvidas que tive e recebi respostas, que foram por mim entendidas. Foi-me dito que deverei contatar Jucy-lêno Oliveira no telefone 7191786091(inclusive a cobrar) ou o coordenador do estudo pelo telefone 7191267591 a qualquer momento durante ou depois do estudo se eu tiver mais alguma dúvida. Poderei também contatar Dr. Armênio Guimarães, representante do hospital para assuntos de proteção dos direitos do paciente, através do telefone 32348262 referentes aos meus direitos como paciente na pesquisa. Nome do paciente: _______________________________________________________________ Assinatura do paciente: ___________________________________________________________ Data: __________________________ Nome do representante legal do paciente: ____________________________________________ Assinatura do representante legal do paciente: ________________________________________ Nome da pessoa que obteve o consentimento: _________________________________________ Assinatura da pessoa que obteve o consentimento: _____________________________________ 96 MINISTÉRIO DA SAÚDE Conselho Nacional de Saúde Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP FOLHA DE ROSTO PARA PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS Projeto de Pesquisa PROBLEMAS COTIDIANOS E INFARTO AGUDO DO MIOCÁRDIO Área de Conhecimento 7.00 - Ciências Humanas - 7.02 - Sociologia Área(s) Temática(s) Especial(s) 02 FR - 146034 Grupo Grupo III Nível Fase Não se Aplica Unitermos PROBLEMA, COTIDIANO, INFARTO. Sujeitos na Pesquisa Nº de Sujeitos no Total Brasil Nº de Sujeitos Centro 50 Total 50 50 Placebo Medicamentos Wash-out NAO HIV / AIDS NÃO NÃO Grupos Especiais Sem Tratamento Específico Banco de Materiais NÃO Biológicos NÃO Pesquisador Responsável Pesquisador Responsável CPF Identidade JUCYLÊNO OLIVEIRA DA SILVA 128.906.318-42 0298691884 Área de Especialização Maior Titulação Nacionalidade CIENCIAS SOCIAIS LICENCIATURA BRASILEIRA Endereço Bairro Cidade RUA PARÁ NÚMERO 673 PITUBA SALVADOR - BA Código Postal Telefone Fax Email [email protected] 41927-070 7191786091 / 7132405339 7132354635 Termo de Compromisso Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas complementares. Comprometo-me a utilizar os materiais e dados coletados exclusivamente para os fins previstos no protocolo e publicar os resultados sejam eles favoráveis ou não. Aceito as responsabilidades pela condução científica do projeto acima. _________________________________________ Data: _______/_______/______________ Assinatura Instituição Onde Será Realizado Nome Santa Casa de Misericórdia da Bahia/Hospital Santa Izabel Unidade/Órgão crdc Endereço Praça Coselheiro Almeida Couto nº 500 Código Postal Telefone 40050410 71 3268214 CNPJ 15.153.745/0002-49 Participação Estrangeira NÃO Bairro Nararé Fax 71 3263256 Nacional/Internacional Nacional Projeto Multicêntrico NÃO Cidade Salvador - BA Email [email protected] 97 Termo de Compromisso Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas complementares e como esta instituição tem condições para o desenvolvimento deste projeto, autorizo sua execução. Nome: __________________________________________________ _________________________________________ Data: _______/_______/______________ Assinatura Vinculada Nome Universidade Federal da Bahia - UFBA CNPJ ../- Nacional/Internacional Nacional Unidade/Órgão Participação Projeto FACULDADE DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS Estrangeira Multicêntrico PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM CIENCIAS SOCIAIS NÃO NÃO Endereço Bairro Cidade Avenida Ademar de Barros s/n - Campus Universitário Ondina Salvador - BA de Ondina Código Postal Telefone Fax Email 40170-110 71 32636824 71 32636383 [email protected] Termo de Compromisso Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas complementares. Nome: __________________________________________________ _________________________________________ Data: _______/_______/______________ Assinatura O Projeto deverá ser entregue no CEP em até 30 dias a partir de 04/07/2007. Não ocorrendo a entrega nesse prazo esta Folha de Rosto será INVALIDADA. 98 03 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia – FFCH Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - PPGCS Número da entrevista:_____Data da entrevista: ____/____/____Local/Hospital: ____________Tempo de entrevista: Início: _______Fim: __________ Entrevistado: ______________________________________tel_________________ Entrevistador: ___________________________________________________________ Roteiro de entrevista Módulo primeiro: Apresentação e indicações biográficas •Nome; Idade; Estado Civil; Mora onde? Com quem? Telefone para contato? •Conte um pouco como foi sua infância? Morou sempre em Salvador? •Estudou? Até quando? •E trabalho? Quando e como começou a trabalhar? Trabalhou em que? Se for aposentado em que trabalhou? Ainda trabalha e em que? •Casou? Teve filhos? •Como é sua rotina de vida? Módulo segundo: O IAM e o itinerário terapêutico •Quando teve o infarto? Ficou internado? •Sentiu o que? Quanto tempo ficou no hospital? •O que pensou que era? Como era a rotina no hospital? •O que fez imediatamente? Quais exames fizeram com você •Procurou ajuda? Que tratamento foi feito no Hospital •Alguém socorreu? Tinha acompanhante? Quem? •Você sabia qual era o problema? Quem disse? Recebeu orientação quando saiu? Quais? •Já sentia alguma coisa antes? •Achava que era o que? 99 Módulo terceiro: Tratamento e adesão E depois da saída do hospital passou a ir ao médico? •Como é o tratamento? •Vem ao CRDC desde quando? •Conte como é a consulta? •Faz tudo que o médico recomendou? •O que ele diz para fazer? •E quando não faz conta para ele? •Por que não faz? •O que acha mais difícil seguir no tratamento? • Faz alguma outra coisa a mais, chás, etc. Módulo quarto: O retorno para casa e as maneiras cotidianas de lidar com as prescrições •Como foi quando voltou para casa? •O que mudou no dia a dia? •Ficou de repouso? •Como foi esse processo? •Voltou à rotina, às atividades normais? • Como sua família está agindo nesta situação? •Como fez com o trabalho? •O que você fazia para se divertir? E agora? Mudou? •Quais os principais problemas que você enfrentou em sua vida? •E agora com estão esses problemas? •Como você “encara” o seu futuro? INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES DO ENTREVISTADOR 10 Referências bibliográficas. ALGARRA, Manuel, M. “La comunicacion em la vida cotidiana; La Fenomenologia de Alfred Schutz”. Eunasa ediciones, Universidad de Navarra, S. A – Pamplona. 2005. ALVES, Paulo C. “Reconstruindo a Normalidade: Mudanças de Comportamentos em Indivíduos Infartados”. Projeto de pesquisa UFBA-FFCHECSAS/CNPq/CAPES 1997. _______, P.C. e RABELO. C. Miriam (orgs) “Antropologia da Saúde; Traçando identidades e Explorando Fronteiras”. Ed. Fiocruz/Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1998. BERGER, P. & LUCKMAN, Thomas. A Construção Social da Realidade. Ed.Vozes, Petrópolis, Rio de janeiro, 1978. BOEHS, Astrid Eggert. “Os movimentos de aproximação e distanciamento entre os sistemas de cuidado familiar e profissional.” Teste (Doutorado em Filosofia de Enfermagem) – PPósGE, UFSC, Florianópolis. 2001, p. 6. 261f. COULON, Alain. Etnometodologia. Trad. Ephfraim Ferreira Alves. Vozes, Petrópolis, 1995. HELMAN, C. 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