Internacional

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O mar dos mortos
A violência do maremoto no Oceano Índico
mexeu até na rotação da Terra – e expôs o
medo sentido desde sempre pela humanidade
diante da face destruidora da natureza
Vilma Gryzinski
ADEUS, FILHO
Na Índia, pai chora sobre o corpo do filho de 8 anos
morto na tragédia: confrontados com grandes
calamidades, procuramos explicações
Como classificar um fenômeno que mudou o eixo de rotação da Terra? Que adjetivos
usar para um cataclismo que deslocou ilhas inteiras – e engoliu outras, para sempre?
Que matou em segundos mais de 100.000 pessoas em doze países? Que liberou uma
energia equivalente à de 1 milhão de bombas atômicas como a de Hiroshima? Que
começou, com impressionantes 9 graus na escala Richter, nas proximidades da ponta
superior do arquipélago indonésio, teve força para atravessar 6.500 quilômetros e
matar gente na costa oriental da África, além de alterar marés até no Chile? A ciranda
de números despejada sobre o planeta desde que começaram a chegar as primeiras
notícias da grande tragédia provocada pelo terremoto ocorrido nas profundezas do
Oceano Índico soa vazia, oca, diante da magnitude do desastre. Tem, no entanto, a
qualidade de funcionar quase que como um mecanismo de autopreservação
emocional, uma auto-ajuda instantânea. Confrontados com calamidades de grandes
dimensões, os seres humanos buscam explicações. Os números que procuram medir,
auscultar, perscrutar e, mesmo que pobremente, retratar a extensão do desastre são
uma teimosa manifestação da racionalidade humana em face do que, para nós,
limitados pela perspectiva de nossa brevíssima história neste planeta, parece ser a
irracionalidade da natureza.
Professor Yuri Sabóia
Outra forma de combater o medo primal provocado por tudo aquilo que se coloca sob
a bandeira genérica de ira da natureza é procurar, no vasto oceano da tragédia, as
pequenas ilhas de esperança, os gestos impensáveis de solidariedade, o triunfo sobre
as impossibilidades – os "milagres", enfim. Nisso, as ondas letais do Índico também
foram pródigas. O grande desastre teve a peculiaridade de afetar dois mundos que
normalmente pouco se cruzam: o dos turistas loiros, de bermuda, chinelos de dedo e
renda per capita entre as mais altas do planeta, e o dos locais, morenos, de sári ou
sarongue, os mais pobres entre os pobres da Terra. O pequeno Hannes, de 2 anos, foi
encontrado sozinho, sentado na beira de uma estrada, no meio da devastação de uma
das praias da Tailândia. Levado para um hospital, teve a foto colocada na internet – e
foi identificado do outro lado do mundo, na Suécia, por um tio. O pai estava vivo, a
mãe, desaparecida. A atriz italiana Ornella Muti, que já esteve entre as maiores
beldades do planeta, foi salva pelo namorado quando fazia mergulho nas Ilhas
Maldivas. Ao voltar para a localidade onde se hospedava, encontrou tudo
completamente varrido do mapa. No quadro de indescritível destruição do miserável
Sri Lanka, turistas holandeses contavam comovidos como moradores locais lhes
ofereciam a última garrafa de água mineral, o único pano que tinham sobre o corpo.
ILHA DA MALDIÇÃO
Corpos em Phi Phi, o paraíso conspurcado do
filme A Praia, com Leonardo DiCaprio: a
fragilidade da vida
A natureza que nos dá seus tesouros, seus frutos, seu regaço, sua delgada redoma de
oxigênio e sua beleza prodigiosa é humanizada desde sempre como a "mãe"
generosa, fonte de tudo, origem e destino final da grande corrente da vida. Para
enfrentar a outra face, a que nos manda os raios que nos incineram, as feras que nos
devoram, os dilúvios que nos engolem, a fúria aterrorizante dos terremotos, a espécie
humana fez muito mais. Construiu religiões e destruiu florestas, edificou mitos,
ergueu pontes, cavou abrigos, desbravou as fronteiras das ciências. Das cavernas
mais profundas habitadas por nossos ancestrais aos edifícios antiterremotos que
flutuam suavemente em Tóquio ou Los Angeles, tudo faz parte dessa história. Dessa
perspectiva, as grandes calamidades nos fazem melhores. Enquanto, porém, está vivo
demais o horror provocado por elas, contemplamos a insignificância e fragilidade da
vida humana. Desse ponto de vista, os desastres nos fazem ver que somos humildes
criaturas sobrevivendo no planeta por especial deferência e por delicadeza das
indomáveis forças naturais.
Professor Yuri Sabóia
Maré de destruição
A morte de mais de 100 000 pessoas por
ondas gigantes no Oceano Índico mostra
a incapacidade do homem de prever o ataque
do mais imprevisível dos desastres naturais
Diogo Schelp
AFP Photo/Roslan Rahman
PARAÍSO PERDIDO
Um resort atingido pela onda gigante em Phi Phi, uma ilha
turística no litoral da Tailândia: entre os mortos, turistas de
quarenta nacionalidades, entre eles brasileiros
É próprio do instinto da espécie buscar um sentido para desastres naturais diante dos
quais o homem se sente pequeno e indefeso. Na Antiguidade, terremotos, erupções
vulcânicas, furacões e pestes eram vistos como punições enviadas por divindades
iradas. Mais recentemente, a ciência estudou os mecanismos que estão na origem das
calamidades, a ponto de hoje já poder localizar sem erro o epicentro do terremoto
que levantou as ondas gigantes – os tsunamis, o nome japonês do fenômeno adotado
em todo o mundo – que varreram as praias do Oceano Índico e mataram mais de
100.000 pessoas em poucos minutos. O conhecimento científico de que a tragédia
teve origem em forças geológicas de poder difícil de dimensionar pelos padrões
humanos apenas reforça a emoção dolorosa ocasionada pela consciência do infortúnio
imerecido vivido por outros e que é definida como compaixão. O tsunami do domingo
26 foi excepcional pela extensão geográfica de sua devastação e pelo número de
países e pessoas afetados. As ondas gigantes causaram estragos no litoral de doze
países do Oceano Índico e terminaram por matar pescadores na costa da África, a
6.500 quilômetros de distância do epicentro do terremoto.
Tão vasto foi o estrago que é possível que nunca se saiba com certeza o número total
de vítimas. Na quinta-feira passada, a contagem oficial de mortos chegou a 112.000,
com 85.000 só na Índia, um dos países mais devastados. A contabilidade mórbida não
deve parar por aí. A Organização Mundial de Saúde prevê a erupção de epidemias de
cólera e dengue nos países atingidos, que podem multiplicar a quantidade de vítimas
nos próximos meses. O epicentro do terremoto que deu origem aos tsunamis foi no
fundo do mar, a 9.000 metros de profundidade, próximo à costa da Ilha de Sumatra,
Professor Yuri Sabóia
na Indonésia. Atingiu o grau de magnitude 9 na escala Richter, o que faz dele o mais
forte abalo sísmico dos últimos quarenta anos.
LUTA PELA VIDA
1. O momento em que o tsunami invade a praia de um hotel,
fotografado pelo turista alemão Hellmut Issels, que estava de
férias na ilha de Phuket, na Tailândia; 2. As águas arrastam
cadeiras e cabanas da praia; 3. Em poucos segundos, o gramado do
hotel ficou coberto pela água; 4. Um turista que estava olhando
para o mar, entre as árvores, não teve tempo de fugir e a onda o
levou; 5. Pouco depois desta foto, outro turista consegue puxá-lo
para a sacada do hotel; 6. O terreno do hotel ficou totalmente
inundado, mas por pouco tempo
O primeiro desastre natural a ganhar dimensões globais foi perto dali: a erupção do
Vulcão Krakatoa, no estreito entre Sumatra e Java, em 1883. Graças aos cabos
submarinos do telégrafo, então novidade, habitantes de locais distantes
acompanharam com interesse o fenômeno que provocou ondas de mais de 40 metros
e matou 36.000 pessoas. A calamidade da semana passada expôs um aspecto
inesperado da globalização: a distribuição do luto por todos os cantos do planeta.
Além da população local, turistas de pelo menos quarenta nacionalidades, entre eles
brasileiros, foram pegos de surpresa pela fúria das águas. Milhares deles morreram
ou estão desaparecidos. A catástrofe aconteceu justamente na alta temporada,
quando as praias e ilhas da região estavam lotadas de visitantes estrangeiros. Mesmo
quem não viaja para o exterior comoveu-se ao ver rostos conhecidos, de amigos,
parentes ou compatriotas, entre as vítimas. Graças ao milagre da telefonia móvel e da
internet, esse foi também o primeiro grande desastre em que vítimas e testemunhas
puderam relatar ao mundo, de forma direta e quase instantânea, os acontecimentos
em que estiveram envolvidas.
Professor Yuri Sabóia
Reuters
AP Photo/David Longstreath
SOZINHOS NO DESASTRE
Hannes Bergman, 2 anos, ao lado, foi encontrado
sentado em uma calçada, na Tailândia, sem os pais
e identificado por um tio, na Suécia, pela internet;
Karl Nilsson, 7 anos, também sueco, foi arrastado
pelas ondas e se perdeu da família
A pergunta óbvia nesse caso é como é possível ser pego de surpresa por uma onda
que viaja milhares de quilômetros pelo mar. A maioria das vítimas vivia em países
pobres, onde a tecnologia de previsão de catástrofes não é tão avançada, os
mecanismos para alertar a população não funcionam e a estrutura das construções é
frágil ou inadequada. O fato de todos os países atingidos serem pobres ajuda a
explicar a extensão da tragédia. Mas não é só isso. O tsunami é o mais imprevisível
dos desastres naturais. Uma das maneiras utilizadas para identificar a formação de
um tsunami com antecedência é, após localizar a origem de um terremoto submarino,
analisar o relevo da região e o padrão de comportamento de ondas gigantes no
passado. Na tragédia recente, o método esbarrou em dois problemas. O primeiro é
que não há uma relação direta entre a intensidade de um terremoto e a formação de
ondas gigantes. É preciso que o solo do oceano sofra uma deformação de proporção
suficiente para deslocar um grande volume de água. E isso só é possível descobrir
depois que já é tarde demais para alertar as populações litorâneas mais próximas. O
segundo problema é que, como os tsunamis são raros no Oceano Índico (um a cada
100 anos), praticamente não existem estudos sobre seu padrão de comportamento.
No Oceano Pacífico, onde as ondas gigantes são freqüentes, existe um complexo
sistema de rastreamento, que inclui sensores instalados no fundo do mar e uma rede
de alerta acionada via satélite. Estão interligados nessa rede 26 países, incluindo a
Tailândia e a Indonésia, que são banhados tanto pelo Oceano Índico quanto pelo
Pacífico. Mesmo sem disporem de equipamentos especiais na costa do Índico, os
cientistas americanos, baseados no Havaí, identificaram com poucos minutos de
atraso os tremores que causaram o tsunami do último domingo do ano. O alarme
alertando para a possibilidade de ondas gigantes foi acionado, mas os cientistas não
tinham como avisar a maioria dos países do sul da Ásia. As autoridades da Indonésia
e da Tailândia receberam o aviso, mas nada conseguiram fazer para alertar a
população. Isso porque a Indonésia foi atingida pelas ondas poucos minutos depois do
terremoto. Na Tailândia, algumas rádios locais chegaram a informar sobre a
possibilidade dos tsunamis, mas a notícia foi amenizada para não prejudicar o
turismo.
Os tsunamis são tão caprichosos que o sistema de monitoramento vive à beira da
desmoralização. Oito de cada dez alertas no Pacífico são alarmes falsos. A maneira
mais eficiente de impedir que um tsunami provoque muitas mortes é instruir a
população que vive nas áreas de risco. Os moradores do litoral precisam aprender
que, quando sentirem a terra tremer por um período mais prolongado, devem largar
tudo e correr para uma área alta ou para longe da praia. Isso já funcionou várias
vezes. Depois de um tsunami em Papua Nova Guiné, em 1998, que matou 2.200
Professor Yuri Sabóia
pessoas, uma equipe de especialistas foi enviada para instruir os moradores de
diversas ilhas do Pacífico. Um ano mais tarde, uma onda gigante varreu Vanuatu,
uma dessas ilhas, e provocou apenas cinco mortes. Outro indício de que uma onda
gigante está prestes a desabar é quando a água da praia recua alguns quilômetros
em pouco tempo. Nesse caso, a melhor atitude a tomar é fugir o mais rápido possível.
Infelizmente, o tsunami mais freqüente não é precedido do recuo do mar.
Os maremotos podem destruir uma região de duas formas. A mais comum é uma
inundação muito rápida, sem a formação de ondas. É como se a maré subisse muitos
metros em poucos segundos. Isso acontece quando o fundo do mar perto da costa é
liso e o aclive, suave. O tipo mais raro é o que forma um grande paredão de água,
que pode ultrapassar 30 metros de altura. Ocorre quando as ondas encontram
obstáculos no fundo do mar, como corais ou um aclive acentuado. A parte de baixo da
onda diminui de velocidade, mas o topo continua avançando no mesmo ritmo. "É
como se os últimos vagões de um trem viajassem a uma velocidade maior do que a
locomotiva. Em pouco tempo os vagões estariam todos empilhados uns sobre os
outros", diz Paulo Cesar Rosman, professor de engenharia costeira e oceanográfica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Terremotos, furacões, queimadas, vulcões e enchentes matam 70.000 pessoas por
ano, em média. O ano de 2004, que começou com um abalo que causou milhares de
mortos no Irã e terminou com a tragédia da semana passada, foi excepcional pela
quantidade de grandes terremotos. Qual a explicação para a fúria da terra? A tradição
chinesa diz que os tremores são típicos do ano do macaco. A resposta honesta é:
ninguém sabe. Os mecanismos que regem os movimentos da placas tectônicas,
responsáveis pelos terremotos, são estudados em detalhes há apenas quarenta anos.
Não se conhece a dinâmica que os rege. As tentativas de estabelecer um padrão de
repetição desses deslocamentos, que poderiam antecipar terremotos, também têm se
mostrado frustrantes. "É possível que o movimento entre as placas seja parte de um
enorme sistema dinâmico, com uma placa afetando, de um modo que ainda não se
conhece, toda a superfície do globo", especulou, na semana passada, o inglês Simon
Winchester, especialista em vulcões e autor de Krakatoa, o Dia em que o Mundo
Explodiu.
As placas tectônicas se movem porque estão flutuando sobre o manto da Terra,
formado por rochas em estado fluido. O magma quente tende a subir e empurrar as
placas. O atrito entre elas pode acontecer de três formas. O encontro chamado de
normal ocorre quando duas placas se movimentam em sentidos opostos, separandose e criando lagos e oceanos. É o que acontece entre a Placa Africana e a Sulamericana, que se afastam a uma velocidade de 5 centímetros por ano e que deram
origem ao Oceano Atlântico. Esse tipo de movimento causa abalos sísmicos menores,
o que ajuda a explicar a ausência de terremotos no Brasil. Um segundo tipo, chamado
de inverso, acontece quando duas placas de densidades diferentes se chocam,
fazendo com que a placa mais densa deslize para baixo da placa menos densa, dando
lugar a vulcões. Os piores terremotos já registrados são causados por placas que
interagem através desse processo. E são elas que causam os vulcões e tremores na
Indonésia, como o que criou o tsunami do Natal. A terceira forma, conhecida como
deslizante, tem como característica duas placas esfregando-se uma na outra. Até
pouco tempo atrás, acreditava-se que esse tipo de movimento não dava origem a
terremotos. Mas é um movimento desses que vai desencadear o Big One, o terremoto
que, não se sabe quando, pode atingir o estado da Califórnia, nos Estados Unidos.
Há milhares de quilômetros de encontros entre placas tectônicas no mundo todo.
Quando a placa se acomoda, o movimento brusco libera uma energia que faz a terra
tremer. Ou seja, o terremoto nada mais é do que a liberação brusca de energia em
Professor Yuri Sabóia
uma zona de contato entre duas placas. A tragédia causada pelas ondas gigantes em
doze países vai mobilizar nas próximas semanas a maior operação humanitária da
ONU em seus sessenta anos de existência. Se a operação for bem-sucedida, o mundo
pode vislumbrar um subproduto positivo da tragédia da semana passada. A
acomodação subterrânea de placas tectônicas e a descomunal energia que ela gerou
terão, ao fim e ao cabo, feito renascer um bem que andava escasso no planeta: a
solidariedade.
Fonte: Revista Veja
Professor Yuri Sabóia
Professor Yuri Sabóia
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