Marcelo Rangel Lennertz Agências Reguladoras

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Marcelo Rangel Lennertz
Agências
Reguladoras
Democracia
no
Brasil:
e
entre
Facticidade e Validade
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestre pelo Programa de PósGraduação em Direito da PUC-Rio.
Orientador: José Maria Gómez
Rio de Janeiro
Junho de 2008
Marcelo Rangel Lennertz
Agências Reguladoras e Democracia
no
Brasil:
Entre
Facticidade
e
Validade
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Direito do Departamento de
Direito da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para a obtenção do título de Mestre
em Direito.
Prof. José Maria Gómez
Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio
Profª. Gisele Guimarães Cittadino
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Paulo Todescan Lessa Mattos
Escola de Direito do Rio de Janeiro – FGV DIREITO RIO
Prof. Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 12 de junho de 2008.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, do autor e do orientador.
Marcelo Rangel Lennertz
Graduou-se em Direito na PUC-Rio em 2004. Advogado.
Pesquisador da Escola de Direito do Rio de Janeiro da
Fundação Getulio Vargas – FGV DIREITO RIO.
Ficha catalográfica
Lennertz, Marcelo Rangel
Agências Reguladoras e Democracia no Brasil:
Entre Facticidade e Validade / Marcelo Rangel
Lennertz; orientador: José Maria Gómez. – Rio de
Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2008.
175fl 29,7 cm
1. Dissertação
(mestrado)
Universidade
Católica
do
Rio
Departamento de Direito.
–
Pontifícia
de
Janeiro,
Inclui referências bibliográficas.
1. Direito – Teses. 2. Democracia; 3. Estado
Regulador; 4. Agências Reguladoras; 5. Participação
Popular; 6. Legitimidade democrática; 7. Esfera
pública; 8. Teoria discursiva do Direito e da
democracia; 9. Jürgen Habermas; I. Gómez, José
Maria. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.
CDD: 340
Para Ingrid, meu amor.
Agradecimentos
Agradeço, como tudo e como sempre, à minha família pelo apoio em mais
esta conquista.
À Ingrid, sou grato, sobretudo, por seu companheirismo nos momentos
mais difíceis dessa trajetória.
Também não poderia deixar de agradecer a José Maria Gómez, pela
orientação paciente e atenciosa, e aos membros da banca, Paulo Todescan Lessa
Mattos e Gisele Guimarães Cittadino, pela disponibilidade e interesse em avaliar o
presente trabalho.
Por fim, gostaria de registrar minha gratidão a todos os professores que
fizeram parte de minha formação no programa de mestrado, em especial Gisele
Cittadino, Adriano Pilatti, Ralph Ings Bannel, Adrian Sgarbi e Márcia Nina
Bernardes; aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação do Departamento de
Direito da PUC-Rio, Anderson Torres Almeida e Carmen Barreto Rezende; a
meus colegas de turma; a todos da FGV DIREITO RIO, em especial aos
professores Guilherme Leite, Leandro Molhano, Luís Fernando Schuartz e
Joaquim Falcão, e ao pesquisador Pedro Cantisano; e à CAPES pelo
financiamento de minha atividade acadêmica durante esse período.
Sem a contribuição de todos, este trabalho não teria se concretizado.
Resumo
Lennertz, Marcelo Rangel; Gómez, José Maria (Orientador). Agências
Reguladoras e Democracia no Brasil: entre Facticidade e Validade.
Rio de Janeiro, 2008. 175 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de
Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O presente estudo tem como objetivo investigar o problema da
legitimidade democrática da atuação normativa das agências reguladoras no Brasil
a partir da seguinte questão: Como pensar a legitimação da atividade de produção
de normas dessas entidades administrativas brasileiras a partir da teoria discursiva
do Direito e da democracia de Jürgen Habermas? O foco da análise são os
desafios que uma teoria que explica os processos de integração e reprodução da
sociedade a partir de um conceito de racionalidade situado entre a facticidade e a
validade das ações sociais deve enfrentar, quando aplicada a realidades distintas
daquela a partir da qual foi elaborada. Para tanto, assume-se, como ponto de
referência, a obra de Paulo Todescan Lessa Mattos, que, em relação às agências
reguladoras, é o principal representante de uma corrente analítica que enxerga, no
modelo habermasiano de legitimação pelo procedimento discursivamente
estruturado, uma saída teórica capaz de oferecer parâmetros normativos para a
legitimação democrática da atuação normativa dessas entidades. O diálogo com a
posição de Mattos e suas conclusões sobre o tema é constante ao longo do
trabalho e estabelece a base sobre a qual são levantados alguns pontos
problemáticos da tentativa de identificar, a partir da teoria de Habermas,
potenciais de legitimação democrática nos espaços de participação popular
institucionalizados no interior dos processos de tomada de decisão das agências
reguladoras brasileiras.
Palavras-chave
Estado regulador; agências reguladoras; democracia; participação popular;
legitimidade democrática; separação dos poderes; esfera pública; teoria discursiva
do Direito e da democracia; Jürgen Habermas.
Abstract
Lennertz, Marcelo Rangel; Gómez, José Maria (Orientador). Regulatory
Agencies and Democracy in Brazil: between Facts and Norms. Rio de
Janeiro, 2008. 175p. Master of Arts Dissertation – Law Department,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The main purpose of this work is to analyze the issue of democratic
legitimacy of regulatory norms produced by independent agencies in Brazil,
considering the following question: How to think about legitimating the lawmaking activity of these administrative entities according to Jürgen Habermas’
discourse theory of democracy and the law? The analysis focuses on the
challenges that a theory which explains the integration and reproduction processes
of modern societies through a concept of rationality situated between the facts and
norms of social action must face, when applied to a reality that is different from
the one that inspired its development. Thus, I take the work of Paulo Todescan
Lessa Mattos, an authority in the topic of regulatory agencies, as a reference of an
analytical perspective that sees in Habermas’ discursive model of procedural
legitimation a way to find normative parameters to legitimate the norms of these
entities. The dialog with Mattos’ argument and his conclusions is constant in this
work, and it sets the basis for developing several problematic issues related to
identifying, through Habermas’ theory, potentials of democratic legitimation in
the institutionalized spaces of public participation within the decision-making
processes of Brazilian regulatory agencies.
Keywords
Regulatory State; regulatory agency; democracy; public participation;
democratic legitimacy; separation of powers; public sphere; discourse theory of
law and democracy; Jürgen Habermas.
Sumário
1. Introdução
2. Agências reguladoras no Brasil: os juristas e a legitimidade
9
15
democrática
2.1. O Estado brasileiro contemporâneo e as agências reguladoras
15
2.1.1. A construção do Estado Regulador brasileiro
19
2.1.2. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado como
28
marco para o Estado Regulador no Brasil
2.1.3. As agências reguladoras e o novo modelo de Estado
33
2.2 Agências reguladoras independentes e legitimidade
36
2.3. O debate no meio jurídico brasileiro
42
3. Fundamentos normativos para um novo modelo de análise
50
3.1. Ação comunicativa e ética discursiva
53
3.2. Entre mundo da vida e realidade sistêmica: O Direito como
68
medium
3.3. A legitimação do Direito e do poder político no Estado de Direito
76
3.3.1. Reconstrução do sistema de direitos
78
3.3.2. Reconstrução dos princípios do Estado de Direito
87
3.3.3. A circulação do poder político legítimo nas sociedades
102
modernas
4. Teoria do discurso, participação e agências reguladoras no Brasil
115
4.1. O modelo habermasiano e as agências reguladoras brasileiras
117
4.2. Vantagens analíticas da proposta de Mattos
133
4.3. Aspectos problemáticos da proposta de Mattos
134
4.3.1. Legitimação, separação dos poderes e participação popular
135
4.3.2. Legitimidade e circulação do poder político: rotina e crise
145
4.3.3. O conceito de esfera pública no Brasil
149
5. Conclusão
167
6. Referências bibliográficas
170
1
Introdução
Ao longo da década de 1990, assistiu-se no Brasil à implementação de
uma série de transformações institucionais que se convencionou chamar de
“Reforma do Estado”. O discurso que inspirou esse conjunto de reformas
defendia, como seu objetivo mais geral, reforçar a governança do Estado
brasileiro através da superação de sua grave crise fiscal e da instauração de um
modelo “gerencial” de Administração Pública, que superasse os “anéis
burocráticos” característicos do modelo anterior e fosse capaz de atender às
exigências de flexibilidade e eficiência impostas pela globalização econômica, a
fim de aperfeiçoar os serviços públicos prestados aos cidadãos.
Nesse sentido, os programas de “privatização” e “desestatização” das
denominadas “atividades não-exclusivas do Estado” figuravam como pontos
essenciais da reforma. A idéia era aumentar a participação do setor privado nessas
atividades e, desse modo, “desinchar” o aparelho estatal, reduzindo os gastos
públicos. Sustentava-se, porém, que a atração do setor privado – principalmente o
capital internacional – para o investimento nessas atividades demandava o
estabelecimento de uma moldura regulatória estável e sua execução técnica por
órgãos reguladores independentes, a fim de garantir as regras do jogo – e,
portanto, a previsibilidade – nas relações entre investidores e poder público.
A criação das agências reguladoras no Brasil se enquadra nesse contexto
mais amplo de reforma do Estado. A elas caberia a função de normatizar,
disciplinar e fiscalizar a atuação de agentes privados em setores da atividade
econômica que o Poder Legislativo optou por entregar à regulamentação
tecnicamente especializada e politicamente autônoma. Por meio dessa autonomia
política das agências reguladoras se buscava, por um lado, corrigir as chamadas
“falhas de mercado”, e, por outro, assegurar aos investidores que as decisões
estatais às quais estariam submetidos seriam pautadas por critérios técnicos e,
portanto, imunes a interferências políticas indevidas.
Porém, se, do ponto de vista econômico, essa “blindagem” parecia estar
justificada, do ponto de vista político, ela suscitava dúvidas quanto à legitimidade
democrática da atuação das agências. De maneira geral, a questão que se colocava
10
era a seguinte: Como justificar politicamente a atuação normativa de uma entidade
administrativa cujos dirigentes não são eleitos e cujas decisões não estão sujeitas à
revisão por parte dos agentes políticos eleitos no processo democrático?
No projeto de reforma do Estado, a solução proposta para esse problema
estava ligada à criação de instrumentos de controle da atuação das agências
reguladoras e à institucionalização de espaços para a participação popular em seus
processos decisórios. Assim, destacavam-se, de um lado, os limites impostos à
atuação das agências reguladoras em função de suas relações com os Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário e órgãos como o CADE e os tribunais de
contas, e, de outro, instrumentos como as audiências públicas e as consultas
públicas, que visavam a tornar sua atuação permeável à participação popular.
A grande maioria dos juristas, no entanto, concentrou suas análises sobre a
questão da legitimidade democrática da atuação normativa das agências
reguladoras no plano estritamente jurídico-formal. Ou seja, entre os principais
autores de Direito administrativo e econômico no Brasil, a legitimidade ou
ilegitimidade da atuação dessas entidades administrativas são normalmente
defendidas com base numa lógica jurídico-formal de adequação de suas decisões
aos princípios constitucionais da legalidade e da separação dos poderes.
Paralelamente, é possível perceber, desde a institucionalização, em 2001,
do subgrupo “Reforma do Estado e Democracia”, do Núcleo de Direito e
Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP (criado
em 1999), o início de um novo tipo de análise sobre o tema, fruto das pesquisas
desenvolvidas a partir do projeto temático “Moral, Política e Direito: uma
investigação a partir da obra de Jürgen Habermas”. O objetivo do projeto era
entender a atividade reguladora do Estado – e a tensão por ela gerada entre
eficiência econômica e legitimidade democrática – para além do conceito lógicoformal de legitimidade, característico de grande parte do pensamento jurídico
brasileiro.
Nessa nova perspectiva de análise – informada, normativamente, pela
teoria de Jürgen Habermas – foram postos em evidência fatores ligados ao
funcionamento, na prática, desse novo modelo estatal, como, por exemplo, o
modo através do qual se desenvolve o processo decisório sobre a definição do
conteúdo da regulação e a avaliação dos efeitos desses processos decisórios sobre
os interesses dos atores sociais. No Direito, destacam-se, como autores
11
representantes dessa corrente, Paulo Todescan Lessa Mattos, no que diz respeito
às agências reguladoras, e Jean Paul Cabral Veiga da Rocha, quanto à regulação
do sistema financeiro.
O presente estudo tem como objetivo geral investigar o tema da
legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras. Entretanto, em razão
de limites de tempo e espaço, optei por recorte analítico bastante específico.
Pretendo problematizar a possibilidade de aplicação do modelo teórico de
legitimação procedimental proposto por Habermas às agências reguladoras
brasileiras. Justamente por isso, assumo, como interlocutora principal, a corrente
analítica fundada pelo Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP, que enxerga
no modelo habermasiano de legitimação pelo procedimento discursivamente
estruturado uma saída teórica capaz de oferecer parâmetros normativos na busca
por soluções para os problemas gerados pela tensão entre, de um lado, a
descentralização do poder estatal e o surgimento de núcleos decisórios
autônomos, e, de outro, a necessidade de legitimação democrática da atuação
dessas entidades. E, dado que o tema restringe-se à legitimidade das agências
reguladoras, a obra de Mattos, principal representante da referida linha de
pesquisa “cebrapeana” em relação a essas entidades administrativas, foi adotada
como principal ponto de referência.
O diálogo com a posição de Mattos e suas conclusões sobre o tema é
constante ao longo do trabalho e fornece a base sobre a qual são levantados alguns
pontos problemáticos dessa aplicação da teoria de Habermas às agências
reguladoras. Mais especificamente, da tentativa de identificar, nos espaços de
participação popular institucionalizados nos processos de tomada de decisão das
agências reguladoras, potenciais de legitimação democrática da atuação normativa
dessas entidades.
Importante ressaltar que tais críticas não se referem à proposta
habermasiana em si, mas sim ao modo pelo qual ela tem sido aplicada à realidade
das agências reguladoras brasileiras. O que, por outro lado, não implica dizer,
necessariamente, que uma tal aplicação da teoria de Habermas é inviável, mas
apenas que qualquer conclusão, positiva ou negativa, sobre sua viabilidade
demanda o enfrentamento prévio de algumas questões fundamentais.
Assim, se tenta afastar o risco de inserção num círculo vicioso, comum no
cenário acadêmico jurídico no Brasil, no qual qualquer tentativa de aplicação de
12
teorias desenvolvidas nos países centrais aos problemas brasileiros é logo taxada
de “colonialismo intelectual”, ou de “idéia fora do lugar”, e acaba,
conseqüentemente, descartada. A superficialidade das razões que, muitas vezes,
justificam a tentativa de “importação” dessas teorias parece ser diretamente
proporcional à superficialidade das razões que justificam seu abandono. Daí
porque há quem se refira a esse processo de valorização acrítica de modelos
teóricos concebidos alhures como um fenômeno de “legitimação pelo
deslumbramento”, que – acrescento eu – encontraria seu correlato no processo
oposto de “rejeição pelo desconhecimento”.
A intenção, aqui, é outra. Não se nega que o intercâmbio acadêmico entre
centro e periferia pressupõe a adoção de uma perspectiva crítica acerca de teorias
que são pensadas e desenvolvidas a partir de outra realidade e, portanto, a partir
de problemas muitas vezes também distintos. Porém, isso não implica,
necessariamente, o descarte dessas teorias. Tentativas teóricas responsáveis de
adaptação e aplicação de idéias oriundas de outros países – como é o caso –
devem ser levadas a sério e problematizadas a partir de suas próprias proposições.
O confronto de experiências, a apresentação de novos problemas e,
eventualmente, a demonstração das insuficiências e as conseqüentes propostas de
alteração fazem parte do processo de construção e consolidação de uma teoria que
pretenda produzir algum tipo de conhecimento sobre a realidade. Nesse sentido,
para aqueles que desejam aplicar a teoria pensada por Habermas à realidade das
agências reguladoras no Brasil, o questionamento prévio acerca da possibilidade
de sua compatibilização às particularidades do cenário regulatório brasileiro me
parece etapa indispensável a ser percorrida.
A exposição do tema foi dividida da seguinte maneira: No primeiro
capítulo, apresento o processo histórico de criação das primeiras agências
reguladoras no Brasil, bem como o problema que sua criação suscitou em termos
de legitimidade e a maneira como esse problema tem sido enfrentado no meio
jurídico brasileiro. Esse capítulo inicial é importante para a compreensão do
contexto no qual se insere a proposta de aplicação do pensamento de Habermas
aos processos decisórios das agências reguladoras brasileiras. Devido a este
caráter acessório, optou-se por uma narrativa linear e simplificadora dos eventos
que marcaram esse processo histórico, privilegiando a dimensão institucional-
13
legal de investigação em detrimento da profundidade e da complexidade analítica
que uma reconstrução histórica comporta.
No segundo capítulo, apresento o modelo teórico de legitimação
procedimental desenvolvido por Jürgen Habermas, destacando, evidentemente, os
aspectos que julgo relevantes para a compreensão da proposta teórica de Mattos e
para o desenvolvimento das críticas que a ela dirijo no capítulo seguinte.
O terceiro capítulo representa, pois, o núcleo do presente trabalho. Nele,
exponho minha interpretação sobre o modelo de análise proposto por Mattos com
base na teoria discursiva do Direito e da democracia de Habermas para a
investigação da legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras, e
aponto aquelas que são, a meu ver, as vantagens analíticas proporcionadas pela
adoção dessa perspectiva para o estudo do tema. No mesmo capítulo,
problematizo a proposta de Mattos a partir de três críticas que têm sua origem nos
desafios que uma teoria – como a de Habermas – que explica os processos de
integração e reprodução da sociedade a partir de um conceito de racionalidade
situado entre a facticidade e a validade das ações sociais deve enfrentar quando
aplicada a realidades distintas daquela a partir da qual foi elaborada. A primeira se
relaciona com a aplicação dessa teoria à atividade regulatória. São explorados,
principalmente,
os
pontos
problemáticos
da
aplicação
das
conclusões
habermasianas sobre o princípio da separação dos Poderes do Estado à estrutura
institucional do modelo regulador de Estado. A segunda diz respeito à
operacionalização do conceito habermasiano de legitimidade para a construção de
um modelo de análise empírica. A terceira está relacionada à aplicação do modelo
teórico de Habermas à realidade sócio-política brasileira. Nela, o foco da análise
são as dificuldades que a realidade brasileira apresenta à acomodação de um
conceito essencial ao modelo habermasiano de legitimação procedimental: o
conceito discursivo de esfera pública. Nesse sentido, aponto estudos que têm
procurado identificar as peculiaridades da esfera pública na América Latina e,
especificamente, no Brasil, sustentando que os mesmos devem ser levados em
conta nas pesquisas que visam a investigar a legitimidade do poder administrativo
no âmbito das agências reguladoras.
Ao final, em sede de conclusão, procuro explicitar a linha condutora do
presente trabalho e, em caráter especulativo, formulo algumas impressões sobre os
caminhos a serem percorridos por aqueles que pretendem utilizar a teoria de
14
Habermas para compreender os problemas relacionados à realidade sócio-política
brasileira.
2
Agências
reguladoras
no
Brasil:
os
juristas
e
a
legitimidade democrática
Neste capítulo inicial, procurarei delimitar o contexto em meio ao qual
surgiram os questionamentos sobre a legitimidade da atuação normativa das
agências reguladoras e, posteriormente, a proposta de aplicação da teoria de
Habermas como possível solução para este problema. Na primeira seção, (1) será
desenhado o cenário no qual se insere o problema de pesquisa. Para tanto,
reconstruirei o processo de criação das agências reguladoras no Brasil, que se
insere no processo mais amplo de reforma do Estado na década de 1990. Em
seguida, (2) destacarei os questionamentos sobre legitimidade democrática das
agências reguladoras, que permanecem latentes desde o momento da criação
dessas entidades no cenário administrativo brasileiro. Ao final, (3) apontarei,
brevemente, as principais correntes jurídico-doutrinárias sobre o tema, procurando
demonstrar suas insuficiências.
2.1
O Estado brasileiro contemporâneo e as agências reguladoras
A ordem econômica prevista na Constituição de 1988
1
evidencia a
influência, no Brasil, de uma certa concepção acerca das funções do Estado e da
forma de sua intervenção na economia que ganhou força mundialmente a partir da
1
Como analisa Sérgio Guerra: “É de notar-se que os arts. 173, 174, 176 e 177 da Constituição
Federal definiram, expressamente, o que compete ao Estado no ordenamento econômico. Por
esses dispositivos constitucionais, o desempenho estatal deve se concentrar nas funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, permitindo-se, contudo, a sua atuação direta mediante a
exploração de atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou
relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, bem como nos casos de monopólio
estatal”. Assim, conclui o autor que: “Esse novo papel do Estado está subsumido ao princípio da
subsidiariedade, pelo qual a iniciativa privada tem primazia sobre a iniciativa estatal. Vale dizer, o
Estado deve abster-se de exercer qualquer atividade que compete à livre iniciativa, cabendo a este
o fomento, a coordenação e a fiscalização das atividades desenvolvidas pelo particular”
(GUERRA, Sérgio. Introdução ao Direito das Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 2004, p. 6). Note-se, por outro lado, que, embora o título sobre a ordem econômica e
financeira da Constituição de 1988, se comparado com o do regime anterior, revele a opção por
um Estado dotado de novas funções e de instrumentos diferentes de intervenção na economia, a
estrutura da administração pública nela disposta representava, de fato, uma barreira para a
implementação desse novo modelo de Estado. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado foi elaborado em 1995 justamente com o objetivo de adequar a estrutura da administração
pública brasileira às exigências desse novo modelo de Estado.
16
década de 1980. O modelo de Estado construído a partir dessa concepção tem sido
representado entre os juristas brasileiros pela fórmula “Estado Regulador”.
É importante ressaltar que sob o título de “Estado Regulador” se
encontram experiências de Estado que possuem diferenças significativas entre si.
Ou seja, embora as funções e forma de intervenção na economia desses Estados
sejam semelhantes – justamente por isso, são denominados “Estados
Reguladores” – o contexto de seu surgimento e, conseqüentemente, os problemas
para os quais pretendem oferecer soluções, são bastante distintos.
Nesse sentido, pode-se, por exemplo, distinguir o atual Estado Regulador
brasileiro do Estado Regulador implementado nos E.U.A. durante o período do
New Deal
2
(1933-1940). O Estado Regulador do New Deal surgiu como uma
resposta à crise gerada pelo Estado capitalista liberal do laissez-faire, nãointervencionista, que se baseava “na auto-regulação das relações econômicas pelo
mercado, segundo a lógica do equilíbrio de preços dada pelo mercado
concorrencial puro (...), e que funcionaria segundo o pressuposto de que o homem
age racionalmente buscando a maximização de seus interesses individuais” 3. A
concentração do capital gerada por esse sistema, associada à superprodução e à
especulação financeira, levou à depressão econômica do início do séc. XX, nos
E.U.A., que teve seu apse com a quebra da bolsa de valores de Nova York, em
1929.
Diante desse quadro, defendia-se como necessário um conjunto de
mudanças institucionais que permitissem ao Governo federal enfrentar os
2
Embora nos E.U.A. a primeira agência reguladora tenha surgido ainda no séc. XIX, o Estado
Regulador tal como o entendemos só surge, de fato, com a implementação do New Deal. Como
explica MATTOS: “Nos Estados Unidos, a regulação de mercados tem início no final do século
XIX, com a criação de órgãos de regulação estaduais. A primeira agência de regulação estadual a
ter relevância no cenário econômico norte-americano é a Massachussets Noard of Railroad
Commissioners, criada em 1869 para regular o transporte por meio de estradas de ferro na região.
Contudo, a regulação por meio de agências independentes começa a se desenvolver efetivamente
nos Estados Unidos com a criação da primeira agência de regulação setorial federal, em 1887: a
Interstate Commerce Comission. No entanto, nesse momento, além das preocupações relativas a
controle de tarifas, segurança e qualidade dos serviços, outras se colocam no horizonte. Em 1890 é
editado pelo Congresso o Sherman Antitrust Act, e em 1914 são editados o Clayton Act e o
Federal Trade Comission Act, que reforçam o aparato jurídico-institucional para a defesa da
concorrência e para a regulação de mercados nos Estados Unidos. Porém, as agências de regulação
se tornam importantes como mecanismos jurídico-institucionais de intervenção do Estado sobre a
economia” (MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Regulação Econômica e Democracia: Contexto e
Perspectivas na Compreensão das Agências de Regulação no Brasil, in: FARIA, José Eduardo
(org.), Regulação, Direito e Democracia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002, pp.
45-46).
3
Cf. MATTOS, Paulo. O Novo Estado Regulador no Brasil: Eficiência e Legitimidade. São Paulo:
Editora Singular, 2006, p. 70.
17
inúmeros problemas econômicos e sociais que surgiram no rastro da depressão 4.
O Estado assumia, assim, o dever de sair de sua inércia não-intervencionista para
atuar no mercado visando, principalmente, a controlar os monopólios e a
concorrência destrutiva, e a planejar o desenvolvimento econômico norteamericano através da elaboração de estratégias de crescimento dirigidas ao setor
industrial 5.
O contexto da construção do Estado Regulador brasileiro na década de 90,
porém, é bem diferente e se insere num quadro mais amplo de mudanças na forma
de intervenção do Estado na Economia, no qual estão compreendidos, também, os
fenômenos da desestatização dos Estados capitalistas europeus e da deregulation
nos E.U.A.. Certo é que, até a década de 1980, a intervenção estatal na economia
encontrava seu fundamento nas teorias que defendiam um rígido controle do
desenvolvimento econômico por parte do Estado, o que se traduziu nas políticas
econômicas de nacionalização, na Europa, e regulação, como vimos, nos Estados
Unidos 6. Este panorama se alterou, porém, nas últimas décadas do século XX.
Nos E.U.A., a idéia de regulação que inspirou o New Deal passou por
grandes transformações ao longo dos anos. A mais significativa tem como marco
fundamental o movimento regulatório que se convencionou chamar de New Social
Regulation (1965-1980), que tinha sua base ideológica na New Left
7
norte-
americana. Se o discurso que fundamentava o Estado Regulador do New Deal
tinha como objetivo principal corrigir as falhas do mercado econômico, o discurso
defensor do Estado pós New Social Regulation buscava proteger os indivíduos
não apenas contra os interesses do grande capital, mas contra os interesses de um
Estado no qual o poder decisório estaria profundamente centralizado 8. A principal
crítica da New Left ao New Deal se dirigia ao insulamento burocrático gerado por
suas medidas, que afastavam a participação dos indivíduos na formulação de
políticas públicas, delegando o poder de decisão acerca de seu conteúdo a um
4
Cf. SUNSTEIN, Cass. O Constitucionalismo após o The New Deal, in: MATTOS, Paulo
Todescan Lessa (coord). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Norte-Americano. São
Paulo: Editora 34, 2004, p. 132.
5
Cf. MATTOS, O Novo Estado Regulador no Brasil..., p. 86.
6
Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., p. 44.
7
“(...) a força dessa segunda onda regulatória nos Estados Unidos nasce nos movimentos políticos
que serão qualificados depois como a New Left norte-americana. A organização de movimentos de
ativistas políticos favoráveis à radicalização da democracia na década de 1960 – os civil rights
movements – permitiu o desenvolvimento das bases teóricas que iriam dar suporte à New Social
Regulation” (Cf. MATTOS, O Novo Estado Regulador no Brasil..., pp. 86-87).
8
Cf. Ibid, p. 87.
18
grupo de especialistas. O movimento do New Social Regulation acrescentou aos
objetivos regulatórios do New Deal, portanto, a preocupação “em corrigir os
problemas de informação imperfeita aos consumidores e a pequenos acionistas,
além dos relativos à segurança dos produtos, proteção do meio ambiente, certeza
dos resultados da ação regulatória e maior eqüidade distributiva” 9. Essas
mudanças resultaram numa “redução do poder ou do grau de intervenção das
agências de regulação sobre os entes privados”
10
, gerando um movimento de
desregulação (deregulation) 11 da economia americana nos anos 1980.
No caso europeu, as mudanças na forma de intervenção do Estado na
economia ocorridas na década de 1980 têm como pano de fundo um cenário
diverso do norte-americano
12
. A crise fiscal do Welfare State fez surgir nos
Estados capitalistas europeus o discurso sobre a necessidade de reformar sua
estrutura jurídico-administrativa, de modo a diminuí-la para reduzir custos. Somese a isso a concretização do projeto da União Européia em sua vertente
econômica, que se fundava nos princípios da livre iniciativa e da concorrência, e,
desse modo, não poderia admitir monopólios estatais
13
. A solução adotada por
esses países foi a introdução, em suas ordens jurídicas, de instrumentos de
fiscalização e regulação da ordem econômica, “que deram condições
institucionais para o processo de privatização das empresas estatais e para a
quebra de monopólios com a introdução de concorrência em vários setores da
economia européia” 14.
9
Cf. MATTOS, O Novo Estado Regulador no Brasil..., p. 86; Ver também: MATTOS, Regulação
Econômica e Democracia..., p. 46.
10
Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., p. 50.
11
Explica Paulo Mattos que: “Nos Estados Unidos, a chamada desregulação da economia
(deregulation) pode ser compreendida como uma redução do poder ou do grau de intervenção das
agências de regulação sobre os entes privados. No entanto, podemos também definir desregulação
como redução ou flexibilização das próprias normas existentes (desregulação em sentido amplo).
Tais processos de desregulação passam a ganhar força nos Estados Unidos fundamentalmente a
partir das seguintes críticas ao controle do desenvolvimento econômico com base em agências de
regulação: captura das agências por parte dos interesses dos administrados; restrições ao ingresso
de novas empresas no mercado; desincentivo à inovação; instrumentos regulatórios ineficientes
com custo de aplicação excessivo; dificuldade de coordenação entre os programas de regulação;
dificuldades no controle das agências; criação de distorções na concorrência” (Cf. MATTOS,
Regulação Econômica e Democracia..., pp. 50-51).
12
Para um panorama dos debates relacionados à implantação do Estado Regulador nos países
capitalistas europeus nos anos 80, ver: MATTOS, Paulo Todescan Lessa (Coord.). Regulação
Econômica e Democracia: O Debate Europeu. São Paulo: Eitora Singular, 2006.
13
Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., pp. 48-49.
14
Cf. Ibid., p. 49.
19
Ou seja, se a crise do mercado foi responsável pelo surgimento do Estado
Regulador do New Deal e a defesa de uma maior participação da população com
vistas à limitação da atuação desse novo Estado resultou nas reformas da New
Social Regulation, serão a crise fiscal do Estado de bem-estar social e a integração
econômica proporcionada pela criação da União Européia as principais causas da
defesa da construção do modelo regulador de Estado nos países capitalistas
europeus nos anos 80.
O surgimento do Estado brasileiro contemporâneo insere-se, pois, num
contexto mais amplo de reformas regulatórias – no qual se inserem, também, os
casos norte-americano e europeu – e dele recebeu influências claras. Com efeito,
em que pese suas especificidades jurídico-institucionais e o contexto
macroeconômico de sua implantação, o discurso que acompanhou a criação do
Estado Regulador brasileiro se caracterizava, basicamente, pela busca em corrigir
a sua crise fiscal, diminuindo o tamanho do aparelho do Estado e criando novos
entes administrativos dotados de independência e competência técnica para
decidir – como ocorreu entre os países capitalistas europeus – e pelo aumento da
eficiência no controle social dos atos da administração pública – tal qual
verificado ao longo dos anos 80 nos E.U.A..
A seguir, (a) apresentaremos o processo de implementação desse modelo
de Estado no Brasil, para, então, (b) identificarmos as principais diretrizes do
projeto governamental que o viabilizou institucionalmente – o Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE). Ao final, (c) destacaremos a
importância do papel atribuído às agências reguladoras pelo PDRAE no processo
de reforma do Estado brasileiro.
2.1.1
A construção do Estado Regulador brasileiro
No meio jurídico, o denominado “Estado Regulador brasileiro” é,
normalmente, definido como um modelo de Estado que intervém na economia de
forma indireta, fixando, através de entidades administrativas dotadas de alto grau
de autonomia e tecnicamente especializadas, certos parâmetros para o mercado,
com o objetivo de aumentar a competitividade entre os agentes produtivos e
20
assegurar uma coordenação eficiente – do ponto de vista do bem-estar social – das
atividades econômicas.
É, precisamente, com relação a estes dois aspectos, ou seja, a concepção
acerca das funções que cabem ao Estado desempenhar e, principalmente, a
maneira como este deve se relacionar com a economia e com a sociedade, que se
diferencia o modelo regulador de Estado dos modelos liberal e socialdesenvolvimentista, que o precederam historicamente no Brasil.
O modelo liberal de Estado, previsto pela Constituição de 1891
15
, foi
construído a partir dos ideais burgueses que inspiraram a formação dos E.U.A. 16 e
a Revolução Francesa. Duas seriam suas características principais: A limitação do
seu poder e a limitação de suas funções
17
. A conjugação dessas duas idéias
básicas tem como conseqüência o reconhecimento de uma esfera de liberdade dos
indivíduos frente ao poder do Estado, constituída pelos chamados direitos
fundamentais18. E a atividade econômica faz parte dessa esfera de liberdade
inviolável ao poder estatal.
Assim, sob o ângulo da atividade econômica privada, os principais
fundamentos do Estado Liberal, sobre os quais não cabia ao Estado intervir, eram
a propriedade e os contratos
19
. De fato, defendia-se que um mercado livre, que
funcionasse segundo os interesses individualistas dos atores econômicos, traria
benefícios para todo o conjunto da sociedade. Competia ao Estado apenas garantir
o direito de propriedade e o cumprimento dos contratos.
15
Não ignoramos que o próprio fato de haver existido, realmente, um Estado liberal no Brasil é
tema bastante controverso. Como escreveu José Afonso da Silva acerca da Constituição de 1891:
“Constituíra-se formoso arcabouço formal.(...) Faltara-lhe, porém, vinculação com a realidade do
país. Por isso não teve eficácia social, não regeu os fatos que previra, não fora cumprida” (SILVA,
José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 79).
Baseamos nossa análise dos modelos de Estado experimentados no Brasil, portanto, no modelo
institucional-legal sobre o qual os mesmo se fundavam.
16
É notória a influência que a Constituição norte-americana e os ideais que a inspiraram
exerceram sobre o processo de elaboração da Constituição brasileira de 1891, através de Rui
Barbosa, revisor do projeto de Constituição apresentado à Assembléia Constituinte de 1890. Ver a
respeito: BARRETO, Vicente (org.). O Liberalismo e a Constituição de 1988. Textos selecionados
de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1991.
17
No mesmo sentido, Norberto Bobbio, para quem “por ‘liberalismo’ entende-se uma determinada
concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e como tal se contrapõe
tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de social” (BOBBIO, Norberto.
Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 7).
18
Ver a respeito: SCHMITT, Carl. Los Principios del Estado de Derecho Liberal, in: Teoría de la
Constitución. Madrid: Alianza, 1992.
19
Cf. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Novo Direito
Administrativo Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 49.
21
O processo de construção do Estado Social
20
-Desenvolvimentista
21
brasileiro, por sua vez, somente poderia ser compreendido se inserido no contexto
político e social vivido pelo país à época da promulgação da Constituição de
1934. A rigor, desde a década de 1920 já se criticava o “idealismo” da
Constituição de 1891, cujo texto, dizia-se, parecia ignorar os problemas e as
estruturas de poder existentes na sociedade brasileira 22. Assim, a Constituição de
1934 reflete o programa vitorioso na Revolução de 1930, cujo objetivo principal
era modificar o regime instituído pela Constituição de 1891. Sua elaboração teria
se dado, portanto, em um momento histórico de considerável incerteza no Brasil,
tanto em razão de fatores internos quanto externos 23.
Diante deste cenário, procurou-se, através da Constituição de 1934, criar
novas instituições políticas, judiciais, econômicas, culturais e educacionais, além
20
Conforme já ressaltado, a classificação que adotamos tem como critério não apenas a concepção
acerca das funções do Estado, mas também a forma de sua intervenção na economia. Nesse
sentido, decidimos especificar o modelo de Estado Social do Brasil com o adjetivo
“desenvolvimentista” para, de um lado, diferenciá-lo do modelo de Estado Social instituído nos
E.U.A. durante o período denominado new deal – que, pela forma de sua intervenção na economia,
pode ser considerado um modelo de Estado Regulador –, e, de outro, ressaltar a característica
marcante do modelo de Estado Social adotado pelos chamados países “em desenvolvimento”
latino-americanos durante o século XX, que, no caso brasileiro, tinha como base de sua estratégia
econômica, principalmente, a substituição das importações e a intervenção direta na economia
através de empresas estatais. Voltaremos ao tema adiante.
21
Como explica Luiz Carlos Bresser Pereira: “O desenvolvimentismo não era uma teoria
econômica, mas uma estratégia nacional de desenvolvimento. Usava teorias econômicas
disponíveis para formular, para cada país em desenvolvimento da periferia capitalista, a estratégia
que permitisse alcançar gradualmente o nível de desenvolvimento dos países centrais. Teorias
baseadas no mercado, porque não há teoria econômica que não parta dos mercados, mas teorias de
economia política que atribuíam ao Estado e a suas instituições um papel central na coordenação
da economia” (BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Macroeconomia da Estagnação e Novo
Desenvolvimentismo, in: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos (org.). Nação, Câmbio e
Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2007, p. 3.)
22
Ver a respeito: VIANNA, Oliveira. O Idealismo da Constituição - 2a edição. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1939. O maior exemplo dessa inadequação entre o texto
constitucional e a realidade se encontrava nos dispositivos sobre o exercício dos direitos políticos.
Isso porque o sistema eleitoral era completamente viciado, de modo a privilegiar apenas as
oligarquias de certas regiões do país, a saber, São Paulo e Minas Gerais, dando origem ao que
ficou conhecido como a política “café-com-leite”.
23
Isso porque, no âmbito econômico, “a crise mundial trazia como conseqüência uma produção
agrícola sem mercado, a ruína de fazendeiros, o desemprego nas grandes cidades. As dificuldades
financeiras cresciam: caía a receita das exportações e a moeda conversível se evaporara”
(FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, Imprensa Oficial do Estado,
2002, p. 185). Já no plano político, “as oligarquias dos Estados vitoriosos em 1930 procuravam
reconstruir o Estado nos velhos moldes. Os ‘tenentes’ se opunham a essa perspectiva e apoiavam
Getúlio em seu propósito de reforçar o poder central” (Ibid., p. 186). Ao mesmo tempo, porém,
esses mesmos tenentes “representavam uma corrente difícil de controlar, que colocava em risco a
hierarquia no interior do Exército” (Ibid., loc. cit.). Some-se a esses fatores internos o apoio da
Igreja e, conseqüentemente, da massa da população católica ao novo governo (Ibid., loc. cit.).
Externamente, desde o advento da Revolução Russa, em 1917, aumentava a pressão sobre os
regimes capitalistas no sentido de se atender aos anseios de justiça social de sua população como
forma de afastar o risco de uma possível revolução comunista.
22
de aperfeiçoar as já existentes
24
. Um dos pontos mais relevantes da nova
Constituição dizia respeito à ordem econômica e social, incluída pela primeira vez
na história brasileira num texto constitucional. Declarava-se que a ordem
econômica deveria ser organizada conforme os princípios da justiça e as
necessidades da vida nacional, de modo que possibilitasse a todos uma existência
digna. Dentro desses limites era garantida a liberdade econômica 25.
Nesse aspecto, a Constituição de 1934 se identifica com uma tendência
verificada nas constituições do pós-guerra nos países ocidentais. Esse “sentido
social de direito”, nela presente, pode ser percebido, também, na Constituição
alemã de Weimar, de 1919, na do México, de 1917, e na Constituição Espanhola,
de 1931
26
. Assim, às funções estabelecidas pelo modelo liberal, foram
acrescentadas outras, de caráter social, isto é, que visavam a garantir o bem-estar
dos membros da sociedade e, de forma reflexa, combater a “ameaça comunista”.
Além disso, a Constituição de 1934 dispunha, ainda, sobre o
aproveitamento industrial das minas e das quedas-d’água
27
, possibilitando uma
maior ingerência do poder público nesses setores. Através da imposição de
normas de controle e fiscalização – regulamentadas, respectivamente, pelo Código
de Minas 28 e pelo Código de Água 29 – ampliava o Estado sua esfera de atuação.
Seria possível perceber, portanto, uma mudança da concepção acerca do
papel do Estado, que, de garantidor dos direitos de liberdade dos indivíduos,
passava a ser considerado um instrumento de implementação de justiça social. Por
outro lado, a essa mudança de papel do Estado corresponderia, também, uma
mudança na sua relação com as esferas social e econômica. O poder estaria
centralizado no Estado que, através de seu corpo burocrático, teria passado a
implementar medidas de caráter social e a adotar a intervenção direta na economia
como estratégia de atuação, além de participar como ator econômico – por meio
das empresas estatais – da competição no mercado.
24
São exemplos de inovações trazidas pela Constituição de 1934, dentre outros, a criação das
Justiças Eleitoral e Trabalhista, a burocratização do aparelho estatal e a criação do Mandado de
Segurança.
25
VENÂNCIO FILHO, Alberto. Verbete sobre a “Constituição de 1934”, in: Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro: Pós 1930, p. 1566. Fundação Getúlio Vargas (Disponível em:
www.cpdoc.fgv.br/dhbb - Acesso em 13.08.2007).
26
Ibid., loc. cit.
27
Cf. Arts. 118 e 119 da Constituição de 1934.
28
Decreto-lei n. 1.985, de 29 de janeiro de 1940, posteriormente alterado pelo Decreto-lei n. 227,
de 28 de fevereiro de 1967.
29
Decreto n. 24.643, de 10 de julho de 1934.
23
Justamente por isso, há quem diga que “nos anos 50, tornou-se um lugar
comum a idéia de que o Estado tinha um papel estratégico na promoção do
progresso técnico e da acumulação de capital, além de lhe caber a
responsabilidade principal pela garantia de uma razoável distribuição de renda” 30.
Entretanto, ambas as transformações – das funções estatais e da sua forma de
atuação em relação à sociedade e à economia – teriam produzido, também, um
“crescimento explosivo”
31
do Estado, que, para promover o bem-estar social e o
desenvolvimento econômico, aumentou, de forma expressiva, seu corpo
burocrático, e, conseqüentemente, teve que elevar a carga tributária para arcar
com as despesas relativas às suas novas funções 32.
Esse crescimento do Estado Social-Desenvolvimentista brasileiro acabou
gerando distorções em relação à concepção ideal do modelo que, aos poucos,
tornaram-se mais evidentes. Nesse sentido, são citados como fatores de distorção
que impediam tal modelo de Estado de atender com qualidade às demandas
formuladas por seus cidadãos a captura por interesses privados das transferências
das receitas oriundas da arrecadação dos tributos, a ineficiência da administração
pública burocrática – tanto no que diz respeito à realização das atividades
exclusivas do Estado quanto ao gerenciamento das empresas estatais – e a
incapacidade física de fiscalização da corrupção existente no imenso corpo
burocrático estatal 33. Todos esses fatores, aliados ao endividamento externo cada
vez maior, teriam levado a uma grave crise fiscal, cujos sintomas se manifestaram
de maneira mais explícita nos anos 1980.
30
Cf. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos
de controle. In: Cadernos MARE da Reforma do Estado, n.1. Brasília: Ministério da
Administração Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 13.
31
A expressão é de Bresser Pereira (Cf. Ibid., loc. cit..)
32
Explica Bresser Pereira que a carga tributária “de 5 a 10 por cento no início do século [XX]
passou para 30 a 60 por cento do Produto Interno Bruto dos países, e aumentou o número de
burocratas públicos, que agora não se limitavam a realizar as tarefas clássicas do Estado [liberal]”
(Cf. Ibid., loc. cit.).
33
Segundo Bresser Pereira: “As transferências [de receita] do Estado foram sendo capturadas
pelos interesses especiais de empresários, da classe média e de burocratas públicos. As empresas
estatais, que inicialmente se revelaram um poderoso mecanismo de realização de poupança
forçada, na medida em que realizavam lucros monopolistas e os investiam, foram aos poucos
vendo esse papel se esgotar, ao mesmo tempo que sua operação se demonstrava ineficiente ao
adotar os padrões burocráticos de administração. Na realização das atividades exclusivas do
Estado e principalmente no oferecimento dos serviços sociais de educação e saúde, a
administração pública burocrática, que se revelara efetiva em combater a corrupção e o nepotismo
no pequeno Estado Liberal, demonstrava agora ser ineficiente e incapaz de atender com qualidade
as demandas dos cidadãos-clientes no grande Estado Social do século vinte, tornando necessária
sua substituição por uma administração pública gerencial” (Cf. Ibid., loc. cit.).
24
O Estado Social-Desenvolvimentista brasileiro fracassava, assim, em
cumprir as funções por ele assumidas, pois, como explica Bresser Pereira:
“Na medida em que o Estado via sua poupança pública tornar-se negativa, perdia
autonomia financeira e se imobilizava. Suas limitações gerenciais apareciam com
mais nitidez. A crise de governança, que no limite se expressava em episódios
hiperinflacionários, tornava-se total: O Estado, de agente do desenvolvimento, se
transformava em seu obstáculo”. 34
Nesse sentido, a ascensão do Estado Regulador no Brasil é associada,
freqüentemente, ao colapso do modelo social-desenvolvimentista de Estado
durante a década de 1980. Entretanto, a outro fator é atribuída, também,
importância decisiva para o seu surgimento: o fenômeno da globalização
35
–
principalmente no seu viés econômico. É possível pensar na globalização como
resultado de uma combinação entre diminuição dos custos e aumento da
velocidade dos transportes e dos meios de comunicação internacionais
36
. No
âmbito econômico, “a globalização levou a um enorme aumento do comércio
mundial, dos financiamentos internacionais e dos investimentos diretos das
empresas multinacionais” 37, o que teve como efeito “um aumento da competição
internacional em níveis jamais pensados e uma reorganização da produção a nível
mundial patrocinada pelas empresas multinacionais”
38
. Ou seja, formou-se um
mercado global que ganha poder em detrimento da soberania dos Estados
Nacionais, na medida em que o desenvolvimento econômico destes passa a
depender de sua capacidade de competir internacionalmente com outros países
pelos recursos dos investidores externos. Dito de outro modo, tais mudanças
34
Cf. Ibid, p. 14.
O termo “globalização” não comporta uma única definição. O significado usual a ele associado
remete à idéia de uma conexão a nível mundial, que pode estar relacionada a diferentes áreas da
vida social. Segundo Jan Aart Scholte: “Globality in the sense of transworld connectivity is
manifested across multiple areas of social life, including communication, travel, production,
markets, money, finance, organizations, military, ecology, health, law and consciousness” (Cf.
SCHOLTE, Jan Aart. Globalization: A Critical Introduction. Hampshire: Palgrave Macmillan,
2005, p. 49).
36
Sobre a importância do desenvolvimento dos meios de comunicação e transportes para a
globalização, explica Bauman: “Parece claro de repente que as divisões dos continentes e do globo
como um todo foram função das distâncias, outrora impositivamente reais devido aos transportes
primitivos e às dificuldades de viagem. / Com efeito, longe de ser um ‘dado’ objetivo, impessoal,
físico, a ‘distância’ é um produto social; sua extensão varia dependendo da velocidade com a qual
pode ser vencida (e, numa economia monetária, do custo envolvido na produção dessa
velocidade). Todos os outros fatores socialmente produzidos de constituição, separação e
manutenção de identidades coletivas – como fronteiras estatais ou barreiras culturais – parecem,
em retrospectiva, meros efeitos secundários dessa velocidade” (Cf. BAUMAN, Zygmunt.
Globalização: As conseqüências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1999, p. 19).
37
BRESSER PEREIRA, ob. cit., p. 14.
38
Ibid., loc. cit..
35
25
geraram uma significativa perda de autonomia por parte dos Estados Nacionais,
uma vez que, agora, na formulação de suas políticas macroeconômicas, devem
levar em conta as exigências impostas pelo mercado global.
Os efeitos da globalização econômica foram – e são ainda – sentidos de
maneira distinta pelos chamados “países desenvolvidos” e pelos “países em
desenvolvimento”. Como explica Bresser Pereira:
“(...) dado o fato de que os mercados sempre privilegiam os mais fortes, os mais
capazes, aprofundou-se a concentração de renda seja entre os países, seja entre os
cidadãos de um mesmo país. Entre os países porque os mais eficientes tiveram
melhores condições de se impor sobre os menos eficientes. Entre os cidadãos de
cada país pela mesma razão. Entre os trabalhadores de países pobres e ricos,
entretanto, a vantagem foi para os primeiros: dado o fato que seus salários são
consideravelmente mais baixos, os países em desenvolvimento passaram a ganhar
espaço nas importações dos países desenvolvidos, deprimindo os salários dos
trabalhadores menos qualificados nesses países”. 39
Assim, se o Estado Social-desenvolvimentista brasileiro já dava sinais de
seu esgotamento em razão de sua crise fiscal e da conseqüente incapacidade de
implementação de políticas públicas, esse quadro teria se tornado ainda mais
grave por força dos efeitos da globalização. Vale dizer, não apenas sua capacidade
para implementar políticas públicas estaria limitada, mas a própria elaboração de
políticas públicas pelo Estado passava a obedecer à lógica determinada pelos
interesses de investidores externos. Sustentava-se que o desafio a ser enfrentado,
portanto, era o de restaurar o Estado no seu papel de agente promotor do
desenvolvimento sem, no entanto, aumentar os gastos com a máquina pública.
Alegava-se que era necessário revigorar o Estado através de reformas que o
tornassem mais barato e eficiente na realização de suas tarefas, aliviando, assim, o
peso de seu custo sobre as empresas nacionais, que, agora, participavam da
competição no mercado global.
Assim, por meio das reformas buscava-se (a) delimitar as funções do
Estado, reduzindo seu tamanho; (b) reduzir o grau de interferência do Estado na
economia, prevendo novos instrumentos para essa intervenção; (c) aumentar a
governança do Estado, principalmente por meio de um ajuste fiscal; e (d)
aumentar a governabilidade garantindo mecanismos de participação democrática
39
Ibid., loc. cit..
26
que tornassem mais legítima a atuação do governo
40
. Como previa Bresser
Pereira:
“(...) o Estado do século vinte-e-um será um Estado Social-Liberal: social porque
continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento
econômico; liberal, porque o fará usando mais os controles de mercado e menos
os controles administrativos, porque realizará seus serviços sociais e científicos
principalmente através de organizações públicas não-estatais competitivas,
porque tornará os mercados de trabalhos mais flexíveis, porque promoverá a
capacitação dos seus recursos humanos e de suas empresas para a inovação e a
competição internacional”. 41
Desse modo, se o Estado liberal se limitava a assegurar as regras do jogo
estabelecidas livremente pelos atores econômicos segundo a lógica do mercado e
o Estado Social-Desenvolvimentista buscava promover o bem-estar da
coletividade através da intervenção direta no mercado, o Estado Regulador
brasileiro deveria atuar no sentido de corrigir as falhas do mercado, de forma a
equilibrar as relações econômicas, tendo por base a eficiência da Administração
Pública e a maximização do bem-estar social 42.
Mas, afinal, no que consiste a atuação regulatória do Estado? É importante
ressaltar, desde logo, que o termo regulação comporta diferentes significados
43
.
Nada obstante, no campo do Direito Econômico, a regulação é normalmente
definida como uma espécie de intervenção do Estado na economia que se
contrapõe à intervenção direta
40
44
. Trata-se, assim, de um “conjunto de medidas
Ibid., pp. 18-19.
Ibid., p. 18.
42
Segundo Joaquim Barbosa Gomes, para quem: “O fenômeno da Regulação, tal como concebido
nos dias atuais, nada mais representa, pois, do que uma espécie de corretivo indispensável a dois
processos que se entrelaçam. De um lado, trata-se de um corretivo às mazelas e às deformações do
regime capitalista. De outro, um corretivo ao modo de funcionamento do aparelho do Estado
engendrado por esse mesmo capitalismo” (GOMES, Joaquim Barbosa. Agências Reguladoras: A
“Metamorfose” do Estado e da Democracia - Uma Reflexão de Direito Constitucional e
Comparado. In: BINENBOJM, Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 22).
43
Paulo Todescan Lessa Mattos adota um conceito mais amplo de regulação, que se associa a
“técnicas administrativas consubstanciadas em normas destinadas à organização do sistema
econômico ou que geram efeitos sobre o sistema econômico” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan
Lessa. O Novo Estado Regulador no Brasil..., p. 33). Para uma exposição sobre a origem do termo
regulação e dos significados aos quais o mesmo pode estar associado, bem como para uma
diferenciação entre a regulação e outros institutos como a regulamentação, o poder de polícia e a
Administração Ordenadora, ver: ARAGÃO, ob. cit., pp. 22-37. Para um panorama das diferentes
técnicas de regulação estatal ver: BALDWIN, Robert; e CAVE, Martin. Understanding Regulation
– Theory, Strategy and Practice. Oxford: Oxford university Press, 1999, pp. 34-62.
44
Assim, segundo Carlos Ari Sundfeld: “A regulação, enquanto espécie de intervenção estatal,
manifesta-se tanto por poderes e ações com objetivos declaradamente econômicos (o controle de
concentrações empresariais, a repressão de infrações à ordem econômica, o controle de preços e
tarifas, a admissão de novos agentes no mercado) como por outros com justificativas diversas, mas
efeitos econômicos inevitáveis (medidas ambientais, urbanísticas, de normalização, de disciplina
41
27
legislativas, administrativas e convencionais, abstratas ou concretas, pelas quais o
Estado, de maneira restritiva da liberdade privada ou meramente indutiva,
determina, controla, ou influencia o comportamento dos agentes econômicos,
evitando que lesem os interesses sociais definidos no marco da Constituição e
orientando-os em direções socialmente desejáveis” 45.
Há várias teorias que procuram explicar as razões pelas quais um
determinado setor econômico é regulado pelo Estado 46. Foge, porém, aos limites
deste estudo uma análise detalhada das mesmas. Em verdade, interessa, aqui, tão
somente consignar que a implementação do que é comumente denominado
“Estado Regulador” no Brasil é identificada com uma mudança na estratégia de
intervenção do Estado na economia, que deixou de estar baseada na atuação direta
no mercado, através das estatais, para estruturar-se, de forma descentralizada, em
torno de funções de fiscalização, fomento e planejamento da atividade econômica
do país, voltadas à correção de falhas de mercado, o que pressupunha a criação de
novas entidades administrativas 47.
das profissões etc.). Fazem regulação autoridades cuja missão seja cuidar de um específico campo
de atividades considerado em seu conjunto (o mercado de ações, as telecomunicações, a energia,
os seguros de saúde, o petróleo), mas também aquelas com poderes sobre a generalidade dos
agentes da economia (exemplo: órgãos ambientais). A regulação atinge tanto os agentes atuantes
em setores ditos privados (o comércio, a indústria, os serviços comuns – enfim, as ‘atividades
econômicas em sentido estrito’) como os que, estando especialmente habilitados, operam em áreas
de reserva estatal (prestação de ‘serviços públicos’, exploração de ‘bens públicos’ e de
‘monopólios’ estatais)” (Cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às Agências Reguladoras. In
SUNDFELD, Carlos Ari (Coord). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2006,
p. 18.).
45
Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 37.
46
Até os anos 70 os estudos sobre o tema partiam da premissa de que a regulação era um
instrumento estatal criado para corrigir as falhas do mercado. Em 1971, porém, George J. Stigler,
Professor da Universidade de Chicago, formulou o que ficou conhecido como Teoria Econômica
da Regulação para afirmar que “falhas de governo coexistiam com falhas de mercado –
sobrepujando-as, por vezes. Isso invalidaria e tornaria inóquo o esforço do Estado dirigido à
correção das primeiras. O resultado, segundo a Escola de Chicago, era uma regulação que protegia
os interesses da indústria regulada e que não promovia o bem-estar social” (Cf. MATTOS, Paulo
Todescan Lessa (coord.). Regulação econômica e Democracia: O Debate Norte-Americano. São
Paulo: editora 34, 2004, prefácio dos organizadores, p. 15. Para uma introdução à teoria
Econômica da Regulação, ver, na mesma obra: STIGLER, George J.. Teoria Econômica da
Regulação; POSNER, Richard A. Teorias da Regulação Econômica; e PELTZMAN, S.. A Teoria
Econômica da Regulação depois de uma década de desregulação). Ver, ainda: BALDWIN; e
CAVE, ob. cit., pp. 9-33.
47
Sobre as diferentes espécies de intervenção estatal e sua relação com o processo de
implementação do Estado Regulador no Brasil, Vinícius Marques de Oliveira observa que: “É
atribuída ao Estado, portanto, uma série de funções na organização do processo econômico.
Situando-as de maneira sintética, correspondem a dois grandes grupos: aquelas em que o Estado
aparece como empresário, ou seja, como produtor ou distribuidor de bens e serviços, e aquelas em
que ele se apresenta como regulador, enquadrando nesse âmbito as medidas de cunho legislativo e
administrativo por meio das quais controla ou influencia o comportamento dos agentes
econômicos, tendo em vista orientá-los em direções desejáveis e evitar efeitos lesivos aos
28
Se é certo, assim, que, segundo o critério classificatório acima adotado,
optou-se na CRFB/88 por um modelo regulador de Estado, há que se reconhecer,
porém, que a implementação de um tal modelo somente tornou-se possível, de
fato, a partir de meados da década de 1990, após a elaboração do Plano Diretor de
Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE. O PDRAE, de 1995, representa, nesse
sentido, um marco fundamental do “processo de substituição do Estado
planejador, controlador, produtor e árbitro dos conflitos dos quais era parte por
um Estado Regulador, que se limita a impor marcos referenciais, a promover a
direção descentralizada e a adotar controles indiretos por meio fomento à
concorrência” 48.
2.1.2
O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado como marco para
o Estado Regulador no Brasil
Foi visto, portanto, que, diante da crise fiscal do Estado nos anos 80 e das
exigências de flexibilidade e eficiência da Administração Pública geradas pela
globalização econômica, defendeu-se, no Brasil, a necessidade de reforma do
Estado. O modelo de reforma pensado à época englobava uma série de aspectos,
tais como o ajuste fiscal, a liberalização comercial, o programa de privatizações e
o programa de publicização dos serviços competitivos ou não-exclusivos do
Estado 49.
No que diz respeito às funções do Estado e à forma de sua intervenção na
economia, a ordem econômica estabelecida pela Constituição de 1988 é
considerada um passo importante no caminho para uma reforma voltada à
instituição do Estado Regulador no Brasil. Contudo, com relação à estrutura da
Administração Pública, estabeleceu o Poder Constituinte de 1988 um modelo
interesses socialmente legítimos”. Prossegue o autor: “O que se pode observar no Brasil, a partir
do inicio da década de 1990, foi o deslocamento da relevância atribuída às modalidades de
intervenção estatal. Enquanto, por um lado, se iniciou um esvaziamento das funções do Estado
empresário por intermédio do processo de privatizações de empresas estatais, por outro constituiuse um novo aparato regulatório formado pelas agências de regulação” (Cf. CARVALHO, Vinícius
Marques de. Regulação de Serviços Públicos e Intervenção Estatal na Economia, in: FARIA, ob.
cit., pp. 13-14).
48
Cf. MATTOS, Paulo todescan Lessa. Regulação Econômica e Democracia..., no prefácio de
José Eduardo Faria, p. 17.
49
Cf. PDRAE, p. 13.
29
identificado pelos reformistas como um verdadeiro “retrocesso burocrático”, que
resultou no encarecimento do custo da máquina administrativa, tanto no que se
refere a gastos com pessoal, como em relação a bens e serviços, o que teria
gerado, conseqüentemente, um enorme aumento da ineficiência dos serviços
públicos50.
Coube ao primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso a elaboração
do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), que lançou as
bases do projeto de reestruturação do aparato estatal, visando, principalmente, a
solucionar o problema da rigidez e ineficiência da máquina administrativa, que
eram vistos como os principais limitadores diretos da capacidade do Estado de
implementar políticas públicas. Segundo o discurso político então vigente, o
PDRAE tinha como objetivo não apenas enfrentar a “crise generalizada do
Estado”, mas também, em última análise, “defendê-lo como res publica”, na
medida em que visava a reestruturar a relação entre Estado e cidadão sobre a base
da eficiência da Administração Pública 51. Ou seja, sua elaboração tinha o objetivo
de “reforçar a governança – a capacidade de governo do Estado – através da
transição programada de um tipo de administração pública burocrática, rígida e
ineficiente, voltada para si própria e para o controle interno, para uma
administração pública gerencial, flexível e eficiente, voltada para o atendimento
do cidadão” 52.
Assim, observado de uma perspectiva mais ampla, o desafio que se propôs
enfrentar através da elaboração do PDRAE em 1995 era o de reconhecer as
limitações econômicas impostas ao Estado, que impediam a volta ao
desenvolvimentismo de 1930 e 1950, sem, no entanto, adotar o modelo ortodoxo
de Estado mínimo do neoliberalismo
53
. Em outras palavras, a questão que se
colocava era: Como reduzir os custos do Estado sem negar a ele seu papel
essencial de coordenador da sociedade e de promotor do desenvolvimento?
50
Ver a respeito: PDRAE, pp. 20-22; e BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A Reforma do
Aparelho do Estado e a Constituição Brasileira (Conferência ministrada no seminário sobre a
reforma constitucional realizados com os partidos políticos sob o patrocínio da Presidência da
República). Brasília, janeiro de 1995. Revisada em abril. Versão eletrônica disponível em:
http://www.bresserpereira.org.br (Aceso em 13.08.2007)
51
Cf. PDRAE, pp. 14-18.
52
Cf. Ibid., p. 13.
53
Cf. Ibid., p. 44: “Dada a crise do Estado e o irrealismo da proposta neoliberal do Estado mínimo,
é necessário reconstruir o Estado, de forma que ele não apenas garanta a propriedade e os
contratos, mas também exerça seu papel complementar ao mercado na coordenação da economia e
na busca da redução das desigualdades sociais”.
30
Na busca por uma solução, entendeu-se como medida prioritária redefinir
com clareza as funções do Estado. Redefinir as funções estatais seria, segundo a
lógica dos defensores da reforma do Estado, fazer com que ele abandonasse a
estratégia de desenvolvimento econômico e social pela via direta da produção de
bens e serviços para fortalecer-se na função de promotor indireto desse
desenvolvimento, via regulação, cumprindo, assim, o disposto na Constituição de
1988 54.
Nos termos do PDRAE, isso significava transferir, para o setor privado, as
atividades que poderiam ser controladas pelo mercado e, para o setor público nãoestatal, as atividades públicas não-exclusivas do Estado
55
. A lógica orientadora
desse processo deveria levar em conta a existência de quatro grandes setores da
atuação do Estado e uma análise sobre o quão necessária e eficiente seria a
atuação estatal em cada um desses setores.
O primeiro setor seria o núcleo estratégico, correspondente ao governo em
sentido amplo, cujas atividades não poderiam ser delegadas pelo Estado
56
. O
segundo seria o de atividades exclusivas do Estado, ou seja, aqueles serviços que
só o Estado poderia realizar
57
e que, portanto, também não poderiam ser
transferidos. O terceiro, por sua vez, seria o setor de atuação simultânea do Estado
e outras organizações públicas não-estatais e privadas. Seriam, portanto,
atividades com caráter essencialmente público, mas nas quais o Estado não atuaria
privativamente
54
58
, podendo, assim, ser transferidas através de publicização
59
.
Cf. supra, item 1.1.
Cf. BRESSER PEREIRA, ob. cit., p. 22.
56
“É o setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É portanto o
setor onde as decisões estratégicas são tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário,
ao Ministério Público e, no Poder Executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus
auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas
públicas” (Cf. PDRAE, p. 41).
57
“São serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado – o poder de regulamentar,
fiscalizar, fomentar. Como exemplos temos: a cobrança e fiscalização dos impostos, a polícia, a
previdência social básica, o serviço de desemprego, a fiscalização do cumprimento de normas
sanitárias, o serviço de trânsito, a compra de serviços de saúde pelo Estado, o controle do meio
ambiente, o subsídio à educação básica, o serviço de emissão de passaportes, etc.” (Cf. PDRAE, p.
41).
58
“As instituições desse setor não possuem o poder de Estado. Este, entretanto, está presente
porque os serviços envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde, ou
porque possuem ‘economias externas’ relevantes, na medida que produzem ganhos que não podem
ser apropriados por esse serviço através do mercado. As economias produzidas imediatamente se
espalham para o resto da sociedade, não podendo ser transformadas em lucros. São exemplos
desse setor: as universidades, os hospitais, os centros de pesquisa e os museus” (Cf. PDRAE, pp.
41-42)
55
31
Finalmente, o quarto setor seria aquele responsável pela produção de bens e
serviços para o mercado e, nesse sentido, seria o menos característico em termos
de intervenção “exclusiva e/ou necessária” do Estado 60. Tais atividades poderiam
ser privatizadas, ficando o Estado com a regulamentação e controle do seu
exercício pelos entes privados.
Em resumo, o PDRAE tinha como objetivos gerais aumentar a governança
do Estado e limitar sua atuação às funções que lhe são próprias. Esses objetivos
gerais eram traduzidos para cada um dos quatro setores da atuação estatal na
forma de objetivos específicos
61
. Isso porque cada um desses quatro setores
apresentaria características peculiares, tanto no que se refere às suas prioridades,
quanto aos princípios administrativos adotados.
Assim, conforme disposto no PDRAE, “no núcleo estratégico, o
fundamental é que as decisões sejam as melhores, e, em seguida, que sejam
efetivamente cumpridas”, de modo que “a efetividade é mais importante que a
eficiência”. Vale dizer: o que importa é saber “se as decisões que estão sendo
tomadas pelo governo atendem eficazmente ao interesse nacional, se
correspondem aos objetivos mais gerais aos quais a sociedade brasileira está
voltada ou não” e “se, uma vez tomadas as decisões, estas são de fato
cumpridas”62.
59
Explica Bresser Pereira que: “A palavra ‘publicização’ foi criada para distinguir esse processo
de reforma do de privatização. E para salientar que, além da propriedade privada e da propriedade
estatal existe uma terceira forma de propriedade existente no capitalismo contemporâneo: a
propriedade pública não-estatal. (...) / O reconhecimento de um espaço público não-estatal tornouse particularmente importante em um momento em que a crise do Estado aprofundou a dicotomia
Estado-setor privado, levando muitos a imaginar que a única alternativa à propriedade estatal é a
privada. A privatização é uma alternativa adequada quando a instituição pode gerar todas as suas
receitas da venda de seus produtos e serviços, e o mercado tem condições de assumir a
coordenação de suas atividades. Quando isto não acontece, está aberto o espaço para o público
não-estatal” (Cf. BRESSER PEREIRA, ob. cit., pp. 25-27).
60
“Corresponde à área de atuação das empresas. É caracterizado pelas atividades econômicas
voltadas para o lucro que ainda permanecem no aparelho do Estado como, por exemplo, as do
setor de infra-estrutura. Estão no Estado seja porque faltou capital ao setor privado para realizar o
investimento, seja porque são atividades naturalmente monopolistas, nas quais o controle via
mercado não é possível, tornando-se necessário, no caso de privatização, a regulamentação rígida”
(Cf. PDRAE, p. 42).
61
Como exemplo de objetivos específicos, é possível citar, para o núcleo estratégico, uma política
de profissionalização do serviço público; para o setor de atividades exclusivas, a transformação de
autarquias e fundações que possuem poder de Estado em agências autônomas; para o terceiro
setor, a publicização dos serviços públicos não-exclusivos; e, para o quarto setor, dar continuidade
ao processo de privatização das empresas estatais. Para uma lista detalhada dos objetivos
específicos do PDRAE para cada setor da atuação do Estado, ver: PDRAE, pp. 44-48.
62
Cf. PDRAE, p. 42.
32
Já em relação às atividades exclusivas do Estado, aos serviços nãoexclusivos e à produção de bens e serviços, a eficiência despontaria como critério
fundamental. Nesses setores, segundo o disposto no PDRAE, “o que importa é
atender milhões de cidadãos com boa qualidade e a um custo baixo”
63
. E, para
que isso fosse possível, seria necessário substituir o modelo burocrático de
administração pela administração gerencial 64.
Não é por outro motivo que a principal idéia que justifica e orienta o
projeto de reforma do Estado brasileiro na década de 1990 é a da “eficiência e
qualidade na prestação de serviços públicos e desenvolvimento de uma cultura
gerencial nas organizações” 65, o que, no plano da reforma do aparelho do Estado
se traduz na implementação da Administração Pública Gerencial. Esse novo
modelo administrativo não negaria o modelo anterior. A idéia defendida era a de
conservá-lo, mas flexibilizando alguns dos seus princípios fundamentais 66. Como
diferença fundamental entre os dois modelos, apontava-se a forma de controle dos
atos da Administração, não mais concentrada nos processos, e sim nos resultados.
Vale dizer:
“Na administração pública gerencial a estratégia volta-se (1) para a definição
precisa dos objetivos que o administrador público deverá atingir em sua unidade,
(2) para a garantia de autonomia do administrador na gestão dos recursos
humanos, materiais e financeiros que lhe forem colocados à disposição para que
possa atingir os objetivos contratados, e (3) para o controle ou cobrança a
posteriori dos resultados”. 67
A implementação dos princípios gerenciais de administração deveria
ocorrer, segundo o PDRAE, concomitantemente, em três dimensões: a dimensão
institucional-legal, que diz respeito à reforma do sistema jurídico-legal –
principalmente da ordem constitucional, por meio de emendas à constituição; a
cultural, responsável por viabilizar “a operacionalização da cultura gerencial
centrada em resultados através da efetiva parceria com a sociedade, e da
cooperação entre administradores e funcionários”; e a dimensão gestão, isto é,
aquela referente às práticas administrativas68.
63
Cf. Ibid., loc. cit.
Cf. Ibid., p. 43.
65
Cf. Ibid., p. 16.
66
Como, por exemplo, “a admissão Segundo rígido critérios de mérito, a existência de um sistema
estruturado e universal de remuneração, as carreiras, a avaliação constante de desempenho, o
treinamento sistemático” (Cf. PDRAE, p. 16).
67
Cf. Ibid., p. 16.
68
Cf. PDRAE, p. 48.
64
33
Para o presente estudo, interessa o nível das práticas administrativas que
constituem a “dimensão gestão” e, mais especificamente, a previsão da criação
das agências reguladoras independentes 69, tema que trataremos a seguir.
2.1.3
As agências reguladoras e o novo modelo de Estado
A implementação da denominada Reforma do Aparelho do Estado, a partir
da elaboração do PDRAE, introduziu no cenário jurídico-administrativo brasileiro
as agências reguladoras independentes
70
. Sustentava-se, então, que o caminho
rumo à Administração Pública gerencial passava pela “implantação de
laboratórios, especialmente nas autarquias voltadas para as atividades exclusivas
do Estado, visando iniciar o processo de transformação em agências autônomas,
ou seja, em agências voltadas para resultados, dotadas de flexibilidade
administrativa e ampla autonomia de gestão” 71.
Assim, segundo tal plano, essas agências, nitidamente inspiradas na figura
das independent regulatory agency do Direito Norte-americano
69
72
, seriam
Cabe observar que o PDRAE utiliza o termo “autônomas”, e não “independentes”, para
caracterizar as agências reguladoras. A utilização mais comum, atualmente, do termo
“independente” se justifica, porém, como forma de diferenciar o grau de autonomia de que gozam
essas agências da autonomia de que dispõem, por exemplo, outras entidades autárquicas
integrantes do aparato estatal brasileiro. Daí falar-se, também, de uma “autonomia reforçada” das
agências reguladoras se comparada com essas outras entidades. Ver a respeito: ARAGÃO, ob. cit.,
pp. 263-275.
70
Há hoje, no Brasil, somente no âmbito federal, dez agências: Agência Nacional de Energia
Elétrica – ANEEL, criada pela Lei n. 9.427/96; Agência Nacional de Telecomunicações –
ANATEL, criada pela Lei n. 9.472/97; Agência Nacional do Petróleo – ANP, criada pela Lei n.
9.478/97; Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, criada pela Lei n. 9.782/99;
Agência Nacional de Águas – ANA, criada pela Lei n. 9.984/00; Agência Nacional de Saúde
Suplementar – ANS, criada pela Lei n. 9.961/00; Agência Nacional de Transportes Aquáticos –
ANTAQ, criada pela Lei n. 10.233/01; Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT,
também criada pela Lei n. 10.233/01; Agência Nacional do Cinema – ANCINE; criada pela MP n.
2.228/01; e Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, criada pela Lei n. 11.182/05.
71
PDRAE, p. 55.
72
Alexandre santos de Aragão observa, porém, que “como demonstração de que a recente
legislação brasileira das agências reguladoras se abebera, não apenas da experiência norteamericana, como também nas recentes construções legislativas e doutrinas européias, cuja escola
do Direito Administrativo integramos, é digno de nota o art. 9o da Lei Geral das Telecomunicações
– Lei n. 9.472/97 –, que dispõe que a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL ‘atuará
como autoridade administrativa independente’ ” (Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 237, nota n. 43). De
fato, a expressão “autoridade administrativa independente” é a versão em português das “autorités
administratives indépendantes” francesas. Essa aparente confusão terminológica se explica,
segundo Carlos Ari Sundfeld, na medida em que, na realidade, “entes de regulação nada têm de
específicos à common law, podendo, sim, ser adotados em países estranhos a esse sistema – como
a França – uma vez que “a regulação não é própria de certa família jurídica, mas sim de uma opção
política econômica” (Cf. SUNDFELD, ob. cit., p.23).
34
instrumentos essenciais para diminuir os entraves burocráticos da atuação estatal
em setores estratégicos da economia, uma vez que sua instituição implicaria a
retirada da regulação desses mesmos setores do âmbito das escolhas políticas do
Presidente da República e de seus Ministros de Estado. Ou seja, “sob um ponto de
vista pragmático, essa pretensa despolitização tinha por objetivo criar um
ambiente regulatório não diretamente responsivo à lógica político-eleitoral, mas
pautado por uma gestão técnica e imparcial” 73.
Em verdade, a estratégia de “despolitização” de setores considerados
estratégicos para a economia se insere na lógica do processo de privatizações e de
desestatização que inspirou a Reforma do Estado 74. Isso porque se defendia que
“a atração do setor privado, notadamente o capital internacional, para o
investimento nas atividades econômicas de interesse coletivo e serviços públicos
objeto do programa de privatizações e desestatizações estava condicionada à
garantia de estabilidade e previsibilidade das regras do jogo nas relações dos
investidores com o poder público”
75
. Assim, tais agências teriam como função
garantir, lançando mão de um aparato decisório fundado no seu caráter técnico e
assegurado pela sua independência em relação a interferências políticas, a
satisfação do interesse público através da regulação de setores até então afeitos à
prestação direta do Estado 76.
Isso se daria pelo desempenho, no âmbito de sua competência – definido
na lei de sua criação –, de atividades de caráter executivo, normativo e judicante,
correntemente equiparadas pelos juristas às três funções típicas do Estado, a saber:
executiva, legislativa e jurisdicional 77. O exercício dessas funções e seu elevado
73
Cf. BINENBOJM, Gustavo (coord.). ob. cit., apresentação, p. ix.
Sob o ângulo específico do Direito Administrativo esse fenômeno se insere no contexto maior
de descentralização do Estado, também resultado das novas condições econômicas proporcionadas
pela globalização. Nesse sentido, afirma André de Laubadère que: “As transformações das
estruturas econômicas são hoje em dia tão rápidas que obrigam a freqüentes revisões das regras
administrativas. Por outro lado, as flutuações conjunturais reclamam adaptações constantes das
medidas econômicas decididas pela administração” (LAUBADÈRE, apud ARAGÃO, Alexandre
Santos de. Agências Reguladoras..., p. 7). Acrescenta Alexandre Santos de Aragão que: “É sob
esta perspectiva que a elaboração teórica e legislativa das agências reguladoras, com seu
dinamismo, independência, especialização técnica e valorização das soluções consensuais, deve
ser destacada como um importante instrumento de intercomunicação do sistema jurídico com o
subsistema econômico envolvente” (Ibid., loc. cit.).
75
Cf. BINENBOJM, ob. cit., apresentação, p. ix.
76
Cf. CARVALHO,Vinícius Marques de. Regulação de Serviços Públicos e Intervenção Estatal
na Economia, in:,FARIA, José Eduardo (org.). Regulação Direito e Democracia..., p. 14.
77
“As agências podem assumir distintos estatutos jurídicos, desde sua participação na
administração direta, até sua existência autárquica e independente. A elas competem funções do
Executivo, tais como a concessão e fiscalização de atividades e direitos econômicos, e lhes são
74
35
grau de autonomia política para decidir fizeram com que alguns considerassem as
agências reguladoras um quarto Poder
78
, ou, ainda, uma espécie de “mini-
Estado”79.
A regulação executiva por parte das agências reguladoras – por exemplo,
por meio de atos de consentimento de ingresso no mercado mediante concessão de
licenças, autorizações e permissões, ou, ainda, através de atos de fiscalização
sobre a execução da atividade consentida ou contratada – seria assemelhada às
atribuições dos órgãos da Administração Pública direta, no exercício do poder de
polícia
80
. Já o exercício da função normativa por essas entidades consistiria na
especificação das normas gerais definidas pelo legislador às particularidades do
setor econômico regulado
81
e encontraria sua justificativa no discurso da
necessidade de flexibilidade, rapidez e especialização técnica da intervenção
estatal na economia nas sociedades capitalistas contemporâneas
82
. Saber, no
entanto, até que ponto a atuação normativa das agências tem respeitado os limites
estabelecidos pelo legislador ou, ao contrário, vem usurpando sua competência, é
tema bastante controverso, que pressupõe a definição prévia de critérios capazes
de responder à pergunta acerca de quais são esses limites
83
. Por fim, a função
judicante diria respeito “à solução de eventuais conflitos entre os diversos agentes
regulados, entre esses agentes e os usuários/consumidores ou com o Poder Público
(concedente, permitente ou autorizador)”
84
. Ainda no âmbito da atuação
atribuídas funções do Legislativo, como criação de normas, regras, procedimentos, com força legal
sob a área de sua jurisdição. Ademais, ao julgar, impor penalidades, interpretar contratos e
obrigações, as agências desempenham funções judiciárias” (Cf. NUNES, Edson de O.;
NOGUEIRA, André M.; COSTA, Cátia C. da; ANDRADE, Helenice V. de; e RIBEIRO, Leandro
M.. Agências Reguladoras e Reforma do Estado no Brasil: inovação e contituidade no sistema
político institucional. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p. 16).
78
Segundo Edson Nunes et al., “desde a década de 30, nos EUA, chamou-se de quarto poder às
atividades atribuídas às agências. O comitê Brownlow (Committee on Administrative
Management), no Governo Franklyn Roosevelt, dizia que eram, em verdade, miniaturas de
governos independentes, que constituíam um ‘fourth branch of the government’ ”(Ibid., p. 17).
79
Ibid., loc. cit..
80
Ver a respeito: GUERRA, Sérgio. O Controle Judicial dos Atos Regulatórios. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005, p. 96-99; SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo
Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 57.
81
Como ressalta Sérgio Guerra, “as Agências Reguladoras brasileiras vêm editando uma série de
normas com vistas a traduzir, por critérios técnicos, os comandos previstos na Carta Magna e na
legislação infraconstitucional acerca do subsistema regulado”. Nesse sentido, cita o autor, como
exemplo, a interpretação do termo “eficiência”, previsto no parág. 1º, do art. 6º, da Lei n. 8.987/95.
82
Ver a respeito: SUNDFELD, ob. cit., p. 27.
83
E isso depende, em última análise, de uma teoria do Estado e, conseqüentemente, da separação
dos poderes, que consiga justificar o exercício das funções estatais sem se prender a arranjos
institucionais específicos. Voltaremos a este tema adiante.
84
Cf. GUERRA, Sérgio. O Controle Judicial..., pp. 125-126.
36
judicante, há a previsão, nas leis de criação de algumas agências reguladoras, da
solução de controvérsias por meio de conciliação, mediação e arbitragem 85.
Percebe-se, portanto, a partir da lógica que orientou a reforma do Estado, o
quão importante era que as novas entidades reguladoras fossem dotadas de
independência para decidir
86
. Em última análise, a garantia de que as decisões
resultantes de sua atuação executiva, normativa ou judicante, supostamente
técnicas, iriam prevalecer, dependia, diretamente, de que elas tivessem
independência política no desempenho de suas funções.
2.2
Agências reguladoras independentes e legitimidade
Mas o que significa, exatamente, essa “independência”? A independência
das agências reguladoras é entendida como a ausência de subordinação
hierárquica dessas entidades aos órgãos do Poder Executivo, o que, na prática, faz
com que o Conselho Diretor da agência seja a última instância decisória em
matérias de sua competência
87
. Fundamentais para que seja assegurada a
independência das agências seriam a sua autonomia orçamentária e financeira 88 e
a impossibilidade de exoneração ad nutum
89
dos seus dirigentes
90
– nomeados
por mandato determinado 91– pelo Poder Executivo.
85
A título de exemplo, a lei de criação da Agência Nacional do Petróleo – ANP (Lei n. 9.478/97),
no art. 43, X, prevê a necessidade de haver, no contrato de concessão para as atividades de
exploração, “regras sobre a solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução,
inclusive a conciliação e arbitragem”. No mesmo sentido, a lei que criou a Agência Nacional de
Telecomunicações – ANATEL (Lei n. 9.472/97) determina, no art. 93, XV, que o contrato de
concessão contenha “o modo para solução extrajudicial das divergências contratuais”.
86
Mencionar os artigos da Legislação sobre independência. Note-se, ainda, que, como ressalta
Carlos Ari Sundfeld: “No caso brasileiro, inclusive porque a Constituição o exige, as agências vêm
sendo instituídas por lei, e não por mero decreto do executivo, o que tem importância óbvia quanto
à garantia de sua autonomia” (SUNDFELD, ob. cit., pp. 23-24, nota 14).
87
“A independência decisória representa o estabelecimento do Conselho Diretor das Agência
Reguladora como última instância decisória, haja vista a sua vinculação administrativa (e não
subordinação hierárquica) ao respectivo Ministério” (Cf. GUERRA, ob. cit., p. 15).
88
“A autonomia financeira e orçamentária está assegurada nas leis instituidoras de cada Agência
Reguladora. Têm como principal receita as denominadas taxas de fiscalização ou regulação pagas
por aqueles que exercem as respectivas atividades econômicas reguladas, fazendo com que
inexista dependência de recursos do Tesouro” (Cf. GUERRA, ob. cit., p. 15)
89
Isso significa que “os Dirigentes das Agências Reguladoras somente perderão seus mandatos em
caso de renúncia, de condenação judicial transitada em julgado ou de processo administrativo
disciplinar, cabendo à lei de criação das Agências prever outras condições para a perda do
mandato” (Cf. GUERRA, ob. cit., p. 15).
90
Segundo Alexandre Aragão, as agências reguladoras são “órgãos e entidades dotadas de
independência frente ao aparelho central do estado – assegurada sobretudo pela vedação de
exoneração ad nutum dos seus dirigentes –, com especialização técnica e autonomia, inclusive
normativa, capazes de direcionar as novas atividades sociais na senda dos interesses públicos
37
Vale ressaltar que a previsão legal de vedação da exoneração dos
dirigentes das agências até mesmo pelo chefe do Poder Executivo foi objeto de
muita controvérsia no meio jurídico no passado 92. De fato, apenas recentemente,
no julgamento da ADI 1949-0/RS, o STF reverteu o entendimento até então
dominante na Corte, que autorizava a exoneração de dirigentes de autarquias
nomeados pelo Presidente para mandato determinado. Em seu voto, o Ministro
Nelson Jobim destacou que as agências reguladoras teriam sido concebidas para a
execução da política legal, que não necessariamente corresponde à política de
governo. Nesse sentido, sustentou o Ministro Jobim que a vedação à exoneração
ad nutum de seus dirigentes pelo chefe do Poder Executivo constitui condição
necessária para que as agências reguladoras possam cumprir as funções que lhes
foram atribuídas em Lei 93 – e às quais sua atuação está, portanto, vinculada – sem
sofrer interferências políticas 94.
juridicamente definidos” (Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 1). Carlos Ari Sundfeld, por sua vez, afirma
que “na verdade, o fator fundamental para garantir a autonomia da agência, parece estar na
estabilidade dos dirigentes” (Cf. SUNDFELD, ob. cit., p. 24).
91
Explica Carlos Ari Sundfeld: “Na maior parte das agências atuais o modelo vem sendo o de
estabelecer mandatos. O Presidente da República, no caso das agências federais, escolhe os
dirigentes e os indica ao Senado Federal, que os sabatina e aprova (o mesmo sistema usado para os
Ministros do Supremo tribunal Federal); uma vez nomeados, eles exercem mandato, não podendo
ser exonerados ad nutum”. O mesmo autor adverte, porém, que esse sistema de nomeação tem sido
seguido com maior ou menor rigidez nas diferentes agências (Cf. SUNDFELD, ob. cit., p. 25). O
prazo do mandato também pode variar: na ANA e na ANEEL, os mandatos dos dirigentes são de
quatro anos (Cf. art. 9o da Lei n. 9.984/00 e art. 5o da Lei n. 9.427/96), enquanto que, na ANS, é de
três anos (Cf. art. 6o, parágrafo único, da Lei n. 9.961/00).
92
Segundo Alexandre Santos de Aragão, “há algumas décadas começou a ser instituída, via
legislativa, uma série de autarquias de regime especial a cujos dirigentes a lei restringia o poder de
exoneração do chefe do Poder Executivo ao estabelecer sua nomeação por mandato determinado”.
O autor cita o exemplo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, criado pela lei n.
3.807/60 e registra que “o STF, contudo, à época, considerou inconstitucional este reforço de
autonomia por violar o poder de direção do Presidente da República sobre toda a Administração
Pública. Esta posição jurisprudencial foi consolidada pela Súmula n. 25, que dispõe: ‘A nomeação
a termo não impede a livre demissão, pelo Presidente da República, de ocupante de cargo
dirigente de autarquia’ ” (Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 264).
93
No mesmo sentido entende Alexandre Santos de Aragão, entendemos que “a independência das
agências reguladoras deve ser tratada sem preconceitos ou mitificações de antigas concepções
jurídicas que, no mundo atual, são insuficientes ou mesmo ingênuas. Com efeito, limitar as formas
de atuação e organização estatal àquelas do século XVIII, ao invés de, como afirmado pelos
autores mais tradicionais, proteger a sociedade, retira-lhe a possibilidade de regulamentação e
atuação efetiva dos seus interesses” (Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 9).
94
Nessa linha de raciocínio, argumentou o Ministro Jobim: “Eu, por exemplo, quando Ministro da
Justiça, tive a tentação de intervir em decisões do CADE no que diz respeito a casos que
aconteceram aqui, em relação à concentração COLGATE/KOLYNOS, etc., e o CADE repelia
completamente o conflito que se estabeleceu naquele momento entre a política econômica do
Governo, ou seja, a Secretaria de Assuntos Econômicos do Poder Executivo e a Secretaria de
Defesa Econômica do Ministério da Justiça. E ele trancou a possibilidade dessa concentração na
perspectiva da política macroecon6omica estar altamente interessante, mas que iria em detrimento
da concorrência, que era o objetivo da lei. O CADE não era para instrumentar política de Governo,
38
Daí se depreende que a independência das agências reguladoras não
implica a ausência de qualquer limite à sua atuação. Toda agência reguladora deve
ser criada por lei ordinária
95
, que lhe atribui competência e estabelece os
parâmetros e limites de sua atuação.
Justamente por isso, estão previstos, no ordenamento jurídico, diferentes
mecanismos de controle dos atos decisórios das agências reguladoras, tais como a
prestação de contas junto ao respectivo Tribunal de Contas quanto às verbas
públicas por elas despendidas
decisões
97
96
, a possibilidade de revisão judicial de suas
, e, principalmente, a possibilidade de fiscalização de seus atos, de
alteração de seu regime jurídico e até mesmo de sua extinção pelo poder
Legislativo
98
. Há, ainda, mecanismos de participação pública nos processos de
tomada de decisão das agências, como as “consultas públicas”, as “audiências
públicas” 99 e as ouvidorias.
Portanto, a qualificação “independente” deve ser entendida em termos
100
.
Mesmo porque “em nenhum país onde foram instituídas [as agências reguladoras]
possuem independência em sentido próprio, mas apenas uma maior ou menor
autonomia, dentro dos parâmetros fixados pelo ordenamento jurídico” 101. Dito de
outro modo, independência, no caso das agências reguladoras, não é sinônimo de
soberania
102
, mas sim de uma “efetiva descentralização autônoma, uma
mas sim a política da lei de proteção da concorrência” (Cf. ADI 1.949-0-RS. STF, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, D.J. 25/11/2005).
95
Como têm natureza institucional de “autarquia especial”, as agências reguladoras estão
submetidas ao disposto no art. 5o, I, do Decreto-Lei n. 200 de 1967, que exige que as autarquias
sejam criadas “por lei”.
96
Cf. art. 70 da Constituição de 1988.
97
Cf. art. 5o, XXXV, da Constituição de 1988. Cabe ressaltar que os limites do controle judicial
sobre os atos administrativos – neles inseridos, portanto, os atos das agências reguladoras – são,
ainda hoje, objeto de muita controvérsia. Para uma análise aprofundada do tema, ver: GUERRA,
Sérgio. Controle Judicial dos Atos Regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
98
Cf. art. 49, V e X, da Constituição de 1988.
99
Para um histórico da evolução dos mecanismos de controle dos atos das agências reguladoras
nos E.U.A. desde o New Deal até os anos 90 ver: SUNSTEIN, Cass. O Constitucionalismo Após o
New Deal. In: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Regulação Econômica e Democracia: O Debate
Norte-Americano(...).
100
Segundo SUNDFELD, dizer que as agências reguladoras são dotadas de independência é
apenas “fazer uma afirmação retórica com o objetivo de acentuar o desejo de que a agência seja
ente autônomo em relação ao Poder Executivo, que atue de maneira imparcial e não flutue sua
orientação de acordo com as oscilações que, por força até do sistema democrático, são próprias
desse poder” (Cf. SUNDFELD, ob. cit., p. 24).
101
Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 9.
102
Segundo Fezas Vital, a soberania é a “competência da competência, quer dizer, competência
para marcar os limites da própria competência. E assim, se o poder político tiver compet6encia
para marcar os limites dentro dos quais exerce o seu poder de ordens, dir-se-á soberano; mas se os
limites dentro dos quais exerce o seu poder de dar ordens forem marcados, não por ele próprio,
39
autonomia ‘reforçada’ em comparação com a autonomia das demais entidades da
Administração Indireta” 103.
É essa “autonomia reforçada” a principal nota distintiva das agências
reguladoras em relação aos demais entes de regulação previstos pelo ordenamento
jurídico brasileiro
104
. Vale dizer: embora tenham natureza institucional de
autarquia, diferenciam-se das demais entidades autárquicas em razão de seu
elevado grau de autonomia.
Assim, com base no que foi visto até aqui, é possível afirmar que, em que
pesem suas especificidades
105
, as agências reguladoras brasileiras têm como
características essenciais “a impossibilidade de exoneração ad nutum dos seus
dirigentes, a organização colegiada, a formação técnica, competências regulatórias
e a impossibilidade de recursos hierárquicos impróprios” 106. Apenas a conjunção
mas por outro poder, então dir-se-á não soberano”, mas apenas autônomo (VITAL, apud
ARAGÃO, ob. cit., p. 313).
103
Ibid., p. 10. Importante ressaltar que no próprio PDRAE utilizou-se a expressão “agências
autônomas” e não “agências independentes”.
104
O Banco Central do Brasil – BACEN e a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, por
exemplo, são entidades autárquicas com amplos poderes regulatórios que, no entanto, têm suas
decisões condicionadas pelo poder normativo do Conselho Monetário Nacional (órgão específico
do Ministério da Fazenda, conforme o disposto no art. 16, VII, da Lei n. 9.649/98) e podem, ainda,
ter seus dirigentes exonerados pelo Presidente da República caso lhe seja conveniente (Ver a
respeito: MENDES, Conrado Hübner. Reforma do Estado e Agências Reguladoras: Estabelecendo
os Parâmetros de Discussão, in: SUNDFELD, ob. cit., pp. 124-127; e ARAGÃO, ob. cit., pp. 297312). Justamente por isso, há quem diga que as agências reguladoras não representariam algo
verdadeiramente novo em termos de estrutura administrativa. Ver a respeito: Celso Antônio
Bandeira de Mello, para quem “Em rigor, autarquias com funções reguladoras não se constituem
em novidade alguma” (MELLO, Celso Antônio bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São
Paulo: Malheiros, 2001, p. 133) e Conrado Hübner Mendes que entende “serem as agências
reguladoras de pouca novidade na estrutura burocrática brasileira” (Cf. MENDES, ob. cit., p. 100).
Porém, como observa Paulo Todescan Lessa Mattos, esse tipo de afirmação “ignora dois aspectos
centrais à compreensão das agências de regulação no direito brasileiro: (I) o desenho institucional
das agências de regulação difere dos órgãos [e entidades, acrescentaríamos] reguladores até então
existentes no Brasil; e (II) os pressupostos teóricos e práticos à criação das agências de regulação
diferem dos pressupostos que orientam a criação dos demais órgãos [e entidades] reguladores que
encontramos no Direito brasileiro, nos diversos momentos da história econômica do país” (Cf.
MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Regulação Econômica e Democracia..., pp. 57-58).
105
NUNES et al., mencionam trecho da obra de Richard Noll para destacar que essa diversidade
de formatos institucionais não é exclusiva do Brasil e, mais ainda, é maior nos EUA do que aqui:
“Regulatory agencies come in many sizes and forms. Some are headed by commissions – a group
of coequal heads Who make decisions by voting on formal proposals, much like a legislature –
while others have a single administrative head. Some are independent agencies technically outside
the President’s administrative control, while other are lodged in executive branch departments.
Some have very narrow responsibilities (…). Others, like the Occupational Health and Safety
Administration, regulate every business in the nation” (NOLL, Richard (Ed.). Regulatory Policy
and the Social Sciences, apud NUNES et. al, ob. cit., p. 16, nota de rodapé n. 2).
106
Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 10.
40
desses elementos resultará na conceituação de uma entidade como agência
reguladora independente 107.
Ocorre que a criação de entidades reguladoras dotadas de um alto grau de
autonomia, em relação às decisões dos agentes públicos eleitos, para editar
normas enseja inúmeras e relevantes questões nos campos do Direito e da Política
– como as da delegação legislativa, da usurpação de competências institucionais e
da violação ao princípio da separação dos poderes. Todas elas, porém, são
derivadas de um problema fundamental, que diz respeito a um suposto déficit de
legitimidade democrática da atuação normativa dessas novas autoridades
administrativas
108
, isto é, à dificuldade de justificação de seu poder normativo
com base na teoria liberal da democracia 109.
Assim, se a distância dos critérios político-partidários de decisão,
assegurada, sobretudo, pela impossibilidade do Chefe do Poder Executivo (eleito)
exonerar livremente os seus dirigentes (nomeados), é tida, do ponto de vista da
eficiência econômica, como uma das maiores vantagens do modelo institucional
das agências reguladoras, do ponto de vista político, ela se apresenta como um dos
seus maiores problemas
107
110
. Isso porque “o usuário dos serviços e produtos
Cf. Ibid., loc. cit..
“A insurgência de espaços administrativos efetivamente autônomos frente ao poder executivo
central, do que as agências reguladoras independentes constituem o exemplo mais relevante em
nosso Direito Positivo, é uma exigência da eficaz regulação estatal de uma sociedade também
diferenciada e complexa. Todavia, a adoção de um modelo multiorganizado ou pluricêntrico de
Administração Pública traz riscos à legitimidade democrática da sua atuação” (Cf. ARAGÃO, ob.
cit., pp. 218-219). Como explica Paulo Todescan Lessa Mattos: “O que está em questão é saber em
que medida pode ser legítima e democrática a decisão sobre o conteúdo da regulação por um órgão
colegiado não-eleito e com autonomia decisória em relação à administração direta, em
contraposição à decisão monocrática de um ministro de Estado nomeado pelo presidente da
República eleito pelo voto popular. Ou, ainda, em que medida é legítima a definição de políticas
públicas para um setor da economia por meio de uma agência reguladora independente, na medida
em que, ao exercer sua função normativa, acaba por especificar (exercendo efetivamente poder
normativo) o conteúdo das normas gerais definidas em lei pelo Poder Legislativo (eleito) ou em
decreto do presidente da República (eleito)” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo
Estado Regulador Brasileiro..., p. 339).
109
Como observa, adequadamente, Aragão: “A determinação do âmbito do poder normativo das
agências reguladoras pressupõe a definição do que se entende por Estado de Direito, separação de
poderes, princípio da legalidade e discricionariedade” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências
Reguladoras..., p. 397).
110
Como explica Paulo Todescan Lessa Mattos que: “as agências reguladoras independentes são
autorizadas pelo Congresso a: (i) editar normas, exercendo função quase-legislativa; (ii) decidir
conflitos, exercendo função quase-jurisdicional ao aplicar e interpretar normas; e (iii) executar leis,
exercendo função quase-executiva de formulação de políticas públicas. E, no caso do exercício das
funções executivas, as agências têm, do ponto de vista legal, garantias de independência decisória
e podem, ao formular políticas públicas, contrariar os interesses políticos do presidente eleito
democraticamente. Dessa forma, muitas das decisões das agências envolvem escolhas políticas
traduzidas em normas editadas (political choices that ‘make law’), que têm que ser legitimadas”
(Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador Brasileiro..., p. 171).
108
41
regulados é, antes de ser usuário, eleitor daqueles que conferiram mandatos às
agências”
111
. E, se os agentes eleitos não têm influência direta sobre as decisões
dos reguladores – ou, dito de outro modo, se não há instrumentos de
accountability eleitoral para limitar as decisões dos dirigentes das agências
reguladoras –, o cidadão, como eleitor, perde seu poder sobre as decisões públicas
tomadas em setores que afetam áreas cruciais de sua vida. Em outras palavras:
“transformado apenas em consumidor, o cidadão eleitor carece de meios para
inquirir e interpelar o (mini)Estado que governará a água que bebe, a eletricidade
que consome, o telefone que usa, o rádio que ouve, a televisão que vê, o ensino
que obtém, o transporte que utiliza, o remédio que dá a seu filho” 112.
Nesse contexto, como em qualquer outro processo de autonomização do
poder, o desafio é repensar novos instrumentos de accountability e controle da
atuação estatal, que devem estar inseridos num contexto de ampliação dos espaços
democráticos e inclusão dos cidadãos
113
. O debate desenvolvido no âmbito do
Direito sobre o tema, porém, tem se concentrado apenas na dimensão jurídicoformal deste desafio.
A seguir, apresentarei, brevemente, as principais correntes deste debate e
procurarei demonstrar suas insuficiências para o enfrentamento de uma questão
tão complexa, que envolve diferentes áreas do conhecimento, como é a questão da
legitimidade democrática da atuação normativa das agências reguladoras. Embora
seja possível falar de uma “atuação normativa” das agências no desempenho de
suas três funções
114
– normativas, executivas e judicantes –, utilizarei tal
expressão para me referir, precisamente, à função “quase-legislativa”, isto é, a
função de edição de documentos normativos jurídicos, das agências reguladoras.
Isso se deve ao fato de que somente no desempenho dessa função está
prevista, obrigatoriamente, para as agências reguladoras – embora possam elas se
111
Cf. NUNES et al., ob. cit., p. 17.
Ibid., pp. 17-18.
113
Cf. SUNDFELD, ob. cit., p. 24.
114
Nesse sentido, a idéia de atuação normativa não estaria identificada, unicamente, com a
atividade legislativa das agências, mas se basearia na proposição de Hans Kelsen, segundo a qual
uma decisão jurisdicional que aplica a lei a um caso concreto ou um ato administrativo do Poder
Executivo que concretiza numa determinada situação o mandamento contido num texto normativo
são etapas necessárias da atuação normativa estatal. Segundo Kelsen: “Este processo, no qual o
Direito como que se recria em cada momento, parte do geral (ou abstrato) para o individual (ou
concreto). É um processo de individualização ou concretização sempre crescente” (KELSEN,
Hans. Teoria Pura do Direito. 7ª ed.. Trad. de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 263).
112
42
diferenciar quanto à sua estrutura institucional, uma vez que cada agência é criada
por lei específica tanto no âmbito federal, como estadual e municipal – a adoção
dos mecanismos de participação popular institucionalizados nos seus processos
decisórios – notadamente, as audiências públicas e as consultas públicas. E é,
justamente, nesses mecanismos de participação popular que se tem enxergado, por
meio da aplicação da teoria de Habermas, potenciais de legitimação democrática
da atuação normativa das agências reguladoras.
2.3
O debate no meio jurídico brasileiro
A maior parte dos autores de Direito administrativo e econômico no
Brasil115 têm tratado do tema da legitimidade democrática da atuação das agências
reguladoras a partir de uma perspectiva formalista, limitada ao plano do debate
constitucional, “no qual os problemas são sempre passíveis de uma solução
técnica por meio da melhor interpretação (ou da interpretação que vencer a
disputa)” 116.
É possível identificar, dentre os numerosos estudos já produzidos
117
, três
linhas principais que representam as diferentes posições assumidas por seus
115
Vale mencionar, como exceções a essa tendência disseminada entre nossos juristas, os trabalhos
desenvolvidos pelo grupo de pesquisa do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento – CEBRAP, dentre os quais se destaca a obra O Novo Estado Regulador
no Brasil: Eficiência e Legitimidade, de Paulo Todescan Lessa Mattos, utilizada como referência
para o presente estudo, e, ainda, o artigo de Gustavo Binenbojm: Agências Reguladoras
Independentes no Brasil (In: BINENBOJM, Gustavo (coord.). Agências Reguladoras e
Democracia. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2006, pp. 89-110), onde o autor chama a atenção para a
necessidade de fomento à participação pública e de aperfeiçoamento do sistema de controle sobre
as agências reguladoras a fim de aumentar o grau de legitimidade de sua atuação.
116
Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Autonomia Decisória, Discricionariedade
Administrativa e Legitimidade da Função Reguladora do Estado no Debate Jurídico Brasileiro.
In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Poder Normativo das Agências Reguladoras..., pp. 341342.
117
Ver: BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro:
Lumen Júris, 2006; ARAGÃO, Alexandre Santos de (Coord.). O Poder Normativo das Agências
Reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de
Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000; MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
“Regulamento e Princípio da Legalidade”. In: Revista de Direito Público, n. 96, outubrodezembro, 1990; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São
Paulo: Atlas, 1999; e SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às Agências Reguladoras. In:
SUNDFELD, ob. cit., pp. 17-38.
43
autores com relação ao tema
118
. Duas delas questionam a legitimidade
democrática da atuação das agências reguladoras.
A primeira o faz alegando que o poder normativo dessas entidades para
especificar o conteúdo de normas gerais previstas em lei ou decreto do Presidente
da República não possui previsão constitucional. Dessa forma, o exercício da
atividade normativa pelas agências reguladoras implicaria uma ampliação
inconstitucional da discricionariedade normativa por parte do titular do poder
regulamentar. Além disso, tal modelo de regulamentação ensejaria o risco de –
por força do aumento da discricionariedade – distanciar-se, cada vez mais, o
conteúdo dos documentos normativos editados pelas agências da intenção do
legislador quando da elaboração da lei ou do Presidente quando da elaboração do
Decreto de regulamentação de lei, que, em última análise, são autoridades eleitas
e, portanto, dispõem de maior legitimidade democrática que os diretores das
agências reguladoras. O aumento da discricionariedade geraria, ainda,
dificuldades no que diz respeito ao controle de legalidade dos atos normativos das
agências por parte do Poder Judiciário 119.
A segunda posição é ainda mais radical e afirma que a função normativa
das agências reguladoras representaria uma delegação abdicatória, ou seja, uma
renúncia do Poder legislativo ao seu dever de exercer a competência que lhe é
atribuída pela Constituição
120
. Portanto, seria inconstitucional, com base no art.
25, I, do ADCT/88121, qualquer forma de delegação da função normativa por parte
do Poder Legislativo e, conseqüentemente, o poder normativo das agências
reguladoras.
Uma terceira linha seria composta por aqueles que inserem o fenômeno de
surgimento das agências reguladoras no Brasil em um contexto maior de revisão
de alguns dos postulados principais do constitucionalismo clássico – tais como os
118
A divisão aqui adotada foi proposta por Paulo Todescan Lessa Mattos. Ver a respeito:
MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Autonomia Decisória, Discricionariedade Administrativa e
Legitimidade da Função Reguladora do Estado no Debate Jurídico Brasileiro. In: ARAGÃO,
Alexandre Santos de (Coord.). Poder Normativo das Agências Reguladoras..., pp. 339-341.
119
Ver a respeito: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública..., pp.
140-147.
120
Ver a respeito: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Regulamento e Princípio da Legalidade....
121
“Art. 25. Ficam revogados a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição,
sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a
órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional,
especialmente no que tange a:
I. Ação normativa; (...)”.
44
princípios da legalidade e da separação dos poderes – à luz das realidade sócioeconômica cada vez mais complexa gerada pelo mundo globalizado
122
.
Argumento muito utilizado é o da necessidade de regulação técnica de algumas
atividades específicas, que desloca o foco do problema de questões de dogmática
constitucional para o discurso sobre a exigência de eficiência da atividade
reguladora 123. Destaca-se também a previsão legal de mecanismos de controle da
atuação das agências e de formas de participação no processo decisório das
mesmas, como instrumentos capazes de responder às alegações de violação aos
princípios constitucionais da separação de poderes e do Estado democrático.
Assim, os esforços empreendidos por esses autores se resumem, normalmente, à
busca pela interpretação do texto constitucional que consiga “harmonizar” os
princípios da legalidade e da separação dos poderes com a atuação normativa
politicamente autônoma das agências reguladoras, a fim de identificar parâmetros
normativos de controle da discricionariedade administrativa.
É nesse contexto que tem crescido entre os administrativistas brasileiros o
debate sobre temas relacionados à questão dos limites do poder normativo das
agências reguladoras, como os da “deslegalização” (ou “delegificação”) e da
“delegação legislativa” 124. Nos EUA é comum a abordagem da questão a partir da
idéia da delegação legislativa. Vale dizer, entre os juristas norte-americanos, os
debates giram em torno não da possibilidade ou não de delegação legislativa por
parte do Poder legislativo às agências reguladoras, mas dos limites dessa
delegação. Entre nós, porém, há grande resistência para se reconhecer a
possibilidade de delegação da função de legislar pelo Poder Legislativo às
agências reguladoras. As posições contrárias ao exercício do poder normativo por
parte das agências reguladoras, normalmente, têm como ponto nuclear o
argumento de que é inconstitucional qualquer tipo de delegação legislativa não
autorizada expressamente em dispositivos da Constituição.
122
Ver a respeito: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras..., pp. 218-219; e
BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras: Constituição, Transformações do Estado e
Legitimidade Democrática. In: BINENBOJM, Gustavo. Agências Reguladoras e Democracia. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
123
Ver a respeito: SUNDFELD, ob. cit., pp. 17-38.
124
“A correlação entre o Princípio da Legalidade e o poder normativo da Administração Pública
(arts. 5º, II, 37, caput, e 84, IV e VI, CF) é uma das questões mais presentes nos debates
contemporâneos da Teoria Geral do Estado e do Direito Público” (Cf. ARAGÃO, Alexandre
Santos de. Agências Reguladoras..., p. 396. Ver, também, do mesmo autor: Princípio da
Legalidade e Poder Regulamentar no Estado Contemporâneo. In: Revista de Direito da
Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro – RDPGE, vol. 53, pp. 37-60).
45
Por isso, aqueles que defendem a legitimidade da atuação normativa das
agências, ao tratarem da questão, utilizam, nas palavras de Sundfeld, “uma forma
mais francesa: a administração pública tem também função normativa, que não se
confunde com a função normativa legislativa” 125. Ou seja, no Brasil, a estratégia
jurídica adotada por aqueles que defendem a legitimidade da atuação normativa
das agências reguladoras é a de se investir na argumentação acerca da
relativização do princípio da legalidade e da ampliação do poder normativo das
agências. A esta proposta corresponde a idéia de “deslegalização”, cujo
fundamento residiria na suposta necessidade de especialização técnica e
flexibilidade das normas que regulam certos setores da economia. Ao Poder
Legislativo, seria, então, relegada a tarefa de elaborar leis cada vez mais amplas e
genéricas, que não regulassem diretamente a matéria, mas estabelecessem apenas
os standards que deveriam guiar a produção normativa das agências
reguladoras126.
Na realidade, o que se depreende desse debate é que “estão todos dizendo
a mesma coisa; uns com honestidade chocante, outros, revestindo o fenômeno
dentro de categorias que o tornam mais palatáveis, tendo em vista a separação de
poderes que nos é tão cara”
127
. Tal conclusão é ainda mais evidente ao se
verificar que, mesmo que se insista na tese de não se tratar de delegação
legislativa, os tipos de argumento utilizados para defender a atuação normativa
das agências reguladoras, no Brasil, são muito semelhantes aos verificados no
debate norte-americano – onde, como visto, se assume, explicitamente, que se
trata de uma delegação da função de legislar 128.
125
Cf. SUNDFELD, apud NUNES et al., ob. cit., p. 17.
Ver a respeito, dentre outros: ver: SOUTO, Marcos Juruena Villela. Extensão do poder
Normativo das Agências Reguladoras. In: ARAGÃO (Coord.), ob. cit., pp. 125-142; e ARAGÃO,
Alexandre Santos de. A Legitimação Democrática das Agências Reguladoras. In: BINENBOJM
(Coord.), ob. cit., pp. 1-20.
127
Ibid., loc. cit..
128
Seriam três, basicamente, os modelos teóricos desenvolvidos nos EUA para justificar a
delegação legislativa às agências reguladoras (ver a respeito: MENDES, Conrado Hübner.
Reforma do Estado e Agências Reguladoras: Estabelecendo os Parâmetros da Discussão. In:
SUNDFELD (Coord.), ob. cit., p. 122). O primeiro é a denominado transmission belt model,
segundo a qual tal delegação seria fundamentada pelo fato de ser o legislador, legitimado eleitoral
e constitucionalmente, que cria a agência reguladora e lhe transfere o poder normativo e os limites
dentro dos quais deve ele ser exercido. Além disso, os dirigentes seriam indicados pelo Presidente
da República e aprovado pelo Senado – ambos órgãos democraticamente eleitos. Já o segundo é o
expertise model, que justifica a delegação legislativa com base na necessidade de especialização
técnica para regulação de determinadas atividades, que tornaria as agências reguladoras mais
capazes de editar normas em razão de serem formadas por técnicos expertos em matérias as quais
o Congresso não teria condições de regular. O terceiro é o procedural model, segundo o qual a
126
46
No Judiciário brasileiro, parece estar prevalecendo a corrente que defende
a legitimidade do exercício do poder normativo pelas agências reguladoras 129. Na
fundamentação das decisões relevantes do Superior Tribunal de Justiça sobre o
tema, percebe-se, claramente, a forte influência exercida pelo argumento da
especialização técnica das agências. Este é o caso, por exemplo, do julgamento
dos Recursos Especiais 572.070-PR , 985.265-RS e 986.415-RS, que ratificam o
poder normativo da Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL para
definir o que seria “área local” para cobrança de tarifas telefônicas e fixar o valor
das tarifas das assinaturas telefônicas 130.
legitimidade da atuação das agências repousaria na sua capacidade de garantir aos interessados a
participação no seu processo de tomada de decisões. Os argumentos ligados a este último modelo,
embora ainda pouco desenvolvidos entre os juristas brasileiros, são, a meu ver, aqueles que mais
se ajustam à complexidade das sociedades contemporâneas e às exigências trazidas pelo estágio
atual dos debates no âmbito da ciência política sobre as teorias da democracia, dentre elas a teoria
procedimentalista da democracia de Jürgen Habermas, que será tratada nos capítulos 2 e 3.
129
Em verdade, qualquer afirmação peremptória sobre a tendência decisória do Judiciário
brasileiro em relação à legitimidade do exercício do poder normativo pelas agências reguladoras
demandaria uma investigação empírica, o que extrapola os limites do presente trabalho.
130
Vale transcreve alguns trechos da ementa da decisão do STJ nos referidos julgamentos: “(...) 1.
A regulamentação do setor de telecomunicações, nos termos da Lei n. 9.472/97 e demais
disposições correlatas, visa a favorecer o aprimoramento dos serviços de telefonia, em prol do
conjunto da população brasileira. Para o atingimento desse objetivo, é imprescindível que se
privilegie a ação das Agências Reguladoras, pautada em regras claras e objetivas, sem o que não se
cria um ambiente favorável ao desenvolvimento do setor, sobretudo em face da notória e
reconhecida incapacidade do Estado em arcar com os eventuais custos inerentes ao processo. 2. A
delimitação da chamada ‘área local’ para fins de configuração do serviço local de telefonia e
cobrança da tarifa respectiva leva em conta critérios de natureza predominantemente técnica, não
necessariamente vinculados à divisão político-geográfica do município. Previamente estipulados,
esses critérios têm o efeito de propiciar aos eventuais interessados na prestação do serviço a
análise da relação custo-benefício que irá determinar as bases do contrato de concessão. 3. Ao
adentrar no mérito das normas e procedimentos regulatórios que inspiraram a atual configuração
das ‘áreas locais’ estará o Poder Judiciário invadindo seara alheia na qual não deve se imiscuir”
(STJ – RESP 572.070-PR – Rel. Min. João Otávio de Noronha – DJ 14/06/2004); “(...) 3. De
acordo com o art. 21, XI, da CF/88 e com a Lei 9.472/97 - Lei Geral de Telecomunicações, a
ANATEL detém o poder-dever de fiscalização e regulação do setor de telefonia em relação às
empresas concessionárias e permissionárias, o que inclui o papel de controle sobre a fixação e o
reajuste das tarifas cobradas do usuário dos serviços de telefonia, a fim de, dentro dessa linha
principiológica, garantir o pleno acesso às telecomunicações a toda a população em condições
adequadas e com tarifas razoáveis. 4. Nos termos do art. 175, da CF/88 e da Lei Geral de
Concessões, Lei 8.987/95, a fixação das tarifas devidas em retribuição ao serviço prestado pelas
concessionárias ocorre no ato de concessão, com a celebração do contrato público, precedido do
indispensável procedimento de licitação, sempre buscando o equilíbrio econômico-financeiro do
contrato. 5. A despeito disso, não existe regra específica quanto à quantidade de tarifas ou quanto
aos limites dessa cobrança, deixando a Lei Geral de Telecomunicações ao prudente arbítrio da
ANATEL o papel de regulação e fiscalização dos serviços de telefonia fixa e móvel. 6. A cobrança
da assinatura básica mensal está prevista na Resolução 85/98 da ANATEL e nas Portarias 217 e
226, de 3 de abril de 1997, editadas pelo Ministro de Estado das Comunicações, nas quais são
observados critérios técnicos tanto para permitir a cobrança da tarifa básica quanto para assegurar
ao usuário padrões mínimos e compatíveis de acessibilidade e utilização do serviço telefônico e
obrigando, ainda, as prestadoras a dar publicidade aos seus planos de serviços. 7. Não existe
incompatibilidade entre o sistema de regulação dos serviços públicos de titularidade do estado
prestados de forma indireta e o de proteção e defesa do consumidor, havendo, ao contrário,
47
É possível notar, portanto, que as três grandes posições doutrinárias às
quais se filiam os principais autores de Direito administrativo e econômico no
Brasil abordam a questão da legitimidade a partir de um exame de
constitucionalidade em termos de legalidade e de separação de poderes, que tem
como base uma concepção liberal da democracia e do Direito. As duas primeiras o
fazem para sustentar a inconstitucionalidade e conseqüente ilegitimidade das
agências reguladoras. A terceira, embora leve em conta em sua análise temas
externos ao Direito – como o fenômeno de complexificação e especialização das
esferas do saber e, ainda, a idéia do potencial de legitimidade democrática contido
na participação popular nos processos decisórios –, o faz unicamente como
maneira de obter argumentos capazes de mitigar os conceitos clássicos de
separação dos poderes e legalidade.
De qualquer forma, a discussão sobre a legitimidade, nos três casos, se
limita ao plano estritamente jurídico-formal e muito mais voltado para a
identificação de mecanismos institucionais de controle legal da atuação das
agências reguladoras. A criação dos espaços de deliberação pública e participação
popular nos processos decisórios das agências, pensados no projeto de reforma do
Estado como um dos principais instrumentos para tornar essas novas entidades
politicamente autônomas da Administração Pública permeáveis à participação
popular e, portanto, para suprir seu déficit democrático
131
, só é considerada em
perfeita harmonia entre ambos, sendo exemplo disso as disposições constantes dos arts. 6º, inc. X,
do CDC, 7º da Lei 8.987/95 e 3º, XI; 5º e 19, XVIII, da Lei 9.472/97. 8. Os serviços públicos são
prestados, na atualidade, por empresas privadas que recompõem os altos investimentos realizados
no ato da concessão com o valor recebido dos usuários, através dos preços públicos ou tarifas,
sendo certa a existência de um contrato estabelecido entre concessionária e usuário, de onde não
ser possível a gratuidade de tais serviços, o que inclui a disponibilidade do "tronco" telefônico na
comodidade do lar dos usuários, cobrado através do plano básico mensal (...)” (STJ – RESP
985.265-RS – Rel. Min. Eliana Calmon – DJ 22/02/2008); “(...) 15. Não há ilegalidade na
Resolução n. 85, de 30.12.1998, da Anatel, ao definir: “XXI – Tarifa ou Preço de Assinatura –
valor de trato sucessivo pago pelo assinante à prestadora, durante toda a prestação do serviço, nos
termos do contrato de prestação de serviço, dando-lhe direito à fruição contínua do serviço”. 16. A
Resolução n. 42/05 da Anatel estabelece, ainda, que “para manutenção do direito de uso, caso
aplicável, as Concessionárias estão autorizadas a cobrar tarifa de assinatura mensal”, segundo
tabela fixada. 17. A cobrança mensal de assinatura básica está amparada pelo art. 93, VII, da Lei n.
9.472, de 16.07.1997, que a autoriza, desde que prevista no Edital e no contrato de concessão,
como é o caso dos autos. 18. A obrigação do usuário pagar tarifa mensal pela assinatura do serviço
decorre da política tarifária instituída por lei, sendo que a Anatel pode fixá-la, por ser a reguladora
do setor, tudo amparado no que consta expressamente no contrato de concessão, com respaldo no
art. 103, §§ 3º e 4º, da Lei n. 9.472, de 16.07.1997 (...)” (STJ – RESP 986.415-RS – Rel. Min. José
Delgado – DJ 25/02/2008).
131
Mattos observa, no entanto, que a concepção de Bresser-Pereira, idealizador do PDRAE de
1995, sobre esses mecanismos de participação popular está diretamente ligada a um debate sobre a
necessidade de accountability da Administração Pública. Ou seja, a principal função vislumbrada
48
sua dimensão normativa. Ou seja, assume-se que a simples previsão legal de
mecanismos de representatividade ou de participação pública direta na atuação
das agências reguladoras já seria suficiente para suprir o déficit de legitimidade
democrática da atuação normativa das agências
132
. Não se investiga,
empiricamente, as reais necessidades da sociedade em relação a esse tipo de
entidades e nem tampouco o que, na prática, tem ocorrido nos espaços
institucionalizados de deliberação pública previstos nos processos decisórios
envolvidos em sua atuação 133.
E esse conceito jurídico-formal de legitimidade, fundado sobre um
paradigma liberal do Direito e da democracia, que é tão abstrato a ponto de ser
indiferente à realidade, não se presta a fazer o que deveria ser sua principal
função: explicar o fundamento normativo do poder político que o Estado – no
caso, as agências reguladoras – detém de fato na sociedade 134. Essa é a razão pela
qual esse conceito formal de legitimidade que informa os estudos produzidos no
âmbito do Direito administrativo econômico brasileiro não é suficiente para
por Bresser-Pereira para esses mecanismos é a de instrumentos de accountability, isto é, de
responsabilização e controle a posteriori dos atos administrativos, e não como espaços reservados
à deliberação prévia dos atores interessados no conteúdo da regulação pelo poder administrativo e
destinados à legitimação das normas por ele editadas. Ver a respeito: MATTOS, Paulo Todescan
Lessa. O Novo Estado Regulador..., pp. 238-239.
132
Nesse sentido, ver: SOUTO, Marcos Juruena Villela. Extensão do poder Normativo das
Agências Reguladoras. In: ARAGÃO (Coord.), ob. cit., pp. 125-142; e ARAGÃO, Alexandre
Santos de. A Legitimação Democrática das Agências Reguladoras. In: BINENBOJM (Coord.), ob.
cit., pp. 1-20. Em sentido contrário, ainda que de uma perspectiva eminentemente
problematizadora, e não propositiva, ver: MENDES, ob. cit., pp. 131-133.
133
No mesmo sentido,é a crítica elaborada Paulo Todescan Lessa Mattos. O autor procura “indicar
que o conceito de legitimidade formal que está na base do direito econômico e do direito
administrativo brasileiro não é suficiente para pensar o potencial democrático dos novos órgãos
reguladores criados do contexto das reformas da década de 1990” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan
Lessa. O Novo Estado Regulador..., pp. 205-206). Para ele, “Enfrentar a delegação legislativa
como um fato inerente ao fenômeno do Estado regulador e dar sentido à delegação legislativa para
garantir o controle democrático de processos decisórios sobre a formulação de políticas públicas
pelo Executivo implica pensar a separação de poderes dentro de um novo conceito de democracia”
(Ibid., p. 213).
134
Nas palavras de José Eduardo Faria: “Na visão do legalismo liberal, cuja concepção de
legitimidade muitas vezes a funde e confunde com a noção de legalidade, nossas estruturas
estariam vivendo uma situação de metástase: a ruptura da hierarquia lógico-formal do sistema
jurídico brasileiro seria, nessa ótica, condição de sua atual legitimidade. O legislativo liberal,
afinal, não prescinde em hipótese alguma da calculabilidade e da certeza – princípios básicos da
ideologia burguesa que permeou a consolidação dos modernos Estados de Direito (...). Como
conciliar as exigências de maior igualdade real, advogadas pelos diferentes matizes socialistas,
com a liberdade formal louvada em prosa e verso pelo liberalismo? Seria possível evitar que as
crescentes regulamentações efetuadas pelo Estado intervencionista, por meio do direito
administrativo, na maioria das vezes ditadas por razoes de conjuntura e impostas por critérios de
racionalidade material, continuem a abrir rombos fatais tanto no formalismo quanto na segurança
jurídica, comprometendo, assim, a pretensa universalidade do modelo liberal de direito?” (Cf.
FARIA, José Eduardo. Legalidade e legitimidade: o Executivo como legislador”. In: Revista de
Informação legislativa de Brasília, ano 22, n. 86, p. 93-104, abr-jun, 1985.
49
investigar as condições de legitimidade das novas entidades reguladoras criadas
no contexto das reformas da década de 1990.
3
Fundamentos normativos para um novo modelo de análise
Com vistas à superação das limitações de uma análise estritamente jurídica
da questão da legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras,
surgem, atualmente, no âmbito acadêmico jurídico, propostas que buscam ampliar
o foco de seu estudo para além do campo do Direito. Nesse sentido, a utilização
de aportes teóricos “importados” de outras áreas do conhecimento afetas ao tema
da legitimidade do poder estatal, como a filosofia política e a sociologia, começa a
ganhar espaço no cenário jurídico brasileiro. Essa tendência evidencia, em última
análise, o reconhecimento, por parte de alguns juristas, de que a dificuldade de
legitimação teórica da atuação normativa das agências é apenas um dos
desdobramentos do problema mais amplo da crise de legitimação do poder estatal
num período histórico marcado pela incerteza resultante da contestação teórica e
prática do projeto iluminista de civilização 1.
De fato, uma vez verificados os efeitos perversos gerados por um
racionalismo exacerbado, que privilegia a dominação do espaço social por
sistemas que se orientam segundo uma lógica tecnicista e instrumental, bem como
a impossibilidade de compreensão e assimilação do turbilhão de transformações
sociais decorrentes dos avanços tecnológicos pelo modelo de conhecimento
instaurado pela modernidade, resta abalada, atualmente, a crença na razão como
fundamento da coordenação da vida em sociedade. E os efeitos desse abalo
também se estendem ao Estado e às instituições jurídicas modernas, cuja
idealização e construção se deram sobre os pressupostos do racionalismo
iluminista. Como conseqüência, o projeto de um Estado de Direito fundado, em
última análise, na razão humana torna-se cada vez mais difícil de ser sustentado.
Cria-se, portanto, uma situação bastante problemática. Isso porque, com o
advento do racionalismo moderno, afastou-se, nas sociedades capitalistas
1
Como explica Sérgio Paulo Rouanet: “(...) assistimos hoje a uma contestação teórica e prática de
cada elemento do projeto iluminista de civilização”. Isso porque: “No plano teórico, a partir de
uma matriz nietzschiano-heideggeriana, a ciência é vista como ideologia (Habermas) e como
agente de um processo de dominação sobre a natureza e sobre os homens (Adorno e Horkheimer).
A razão, em geral, é uma simples antena na superfície do poder e uma indutora da docilidade
social (Foucault). O irracionalismo se difunde nas atitudes e comportamentos sociais. Banidos pela
ilustração, o mito e a superstição voltam triunfalmente” (Cf. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar
na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 98).
51
contemporâneas, a possibilidade de se recorrer a critérios metafísicos de
fundamentação do poder político. Vale dizer: fatores como a religião e a tradição
perderam sua capacidade de justificação da obediência à ordem jurídica e ao
poder estatal nessas sociedades. Por outro lado, a razão, apontada como
fundamento último do poder legítimo pelos iluministas, também se encontra,
agora, desacreditada.
Some-se a isso o fato de que, diferentemente das sociedades pré-modernas,
a realidade pluralista das sociedades capitalistas contemporâneas não comporta
uma análise por modelos teóricos pensados a partir da homogeneidade entre
indivíduos que se reconhecem a partir de uma identidade coletiva. A diferença e o
desacordo são seus traços fundamentais, de modo que qualquer tipo de solução
para o problema da legitimidade deve levar em conta a necessidade de busca de
um consenso em meio à heterogeneidade e ao conflito 2.
A grande questão que se coloca àqueles que buscam conferir legitimidade
aos ordenamentos jurídicos e ao poder do Estado, portanto, é como fazê-lo sem
recorrer a critérios metafísicos de fundamentação – como a religião e a tradição –
e nem a uma suposta ética universal iluminista, fundada nos ideais “racionais” de
bem comum e totalmente desconectada da realidade. Dito de outro modo, trata-se
de construir um conceito de legitimidade que mantenha relação com a realidade e
supere concepções por demais abstratas – seja por sua excessiva idealização, seja
por seu caráter formalista –, mas que, ao mesmo tempo, conserve, em si, um
componente normativo, que torne possível a possibilidade de crítica e alteração
dessa mesma realidade.
Nesse sentido, o modelo teórico de Jürgen Habermas tem sido apontado
como uma solução promissora e, cada vez mais, sua utilização no ambiente
jurídico brasileiro – dos direitos humanos à regulação econômica – vem ganhando
novos adeptos. Isso porque, para Habermas, uma teoria social que tenha como
2
Explica Gisele Cittadino que: “Diferentemente da modernidade, é possível apreender as
sociedades tradicionais enquanto coletividades ‘naturais’, como um todo homogêneo, pois ainda
que seja possível analisá-las a partir de um ponto de vista específico – religião, política, economia
– todas estas noções se entrelaçam de tal forma que constituem uma realidade única, orgânica e
integrada. O consenso aqui se confunde com a dimensão ‘natural’ do agrupamento social. A
sociedade democrática contemporânea não pode ser apreendida desta forma. A multiplicidade de
valores culturais, visões religiosas de mundo, compromissos morais, concepções sobre a vida
digna, enfim, isso que designamos por pluralismo, a configura de tal maneira que não nos resta
outra alternativa senão buscar o consenso em meio da heterogeneidade, do conflito e da diferença”
(Cf. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva – Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. 2ª Ed. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 78).
52
objeto de análise as sociedades modernas contemporâneas – democráticas e
capitalistas – tem que escolher seus conceitos básicos de maneira que estes
permitam identificar nas práticas políticas fragmentos e partículas de uma “razão
existente” a elas incorporadas, ainda que ela possa estar distorcida. Não se admite,
portanto, a contraposição entre ideal (normativo) e real (sociológico) nesse tipo de
análise, uma vez que na facticidade dos processos políticos empiricamente
observáveis estaria inserido, ainda que apenas parcialmente, um conteúdo
normativo. Em suas palavras:
“(...) o modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de
Direito, não pode ser descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico,
quando não se leva em conta a dimensão de validade do Direito e a força
legitimadora da gênese democrática do Direito”. 3
No presente capítulo, apresentarei, sucintamente 4, o modelo teórico
desenvolvido por Habermas, a fim de preparar as bases para a análise, no capítulo
III, de uma corrente teórica que, a partir de tal modelo, tem buscado investigar o
tema da legitimidade democrática da atuação normativa das agências reguladoras
brasileiras.
Habermas tem como foco o problema teórico das condições de integração
e reprodução, sobre bases racionais, das sociedades modernas contemporâneas –
caracterizadas por um alto grau de complexidade e diferenciação funcional, bem
como pela ruptura da possibilidade de justificação referida a uma moral de nível
convencional5 ou a critérios metafísicos 6. Propõe, como solução, sua Teoria da
Ação Comunicativa, que introduz um novo tipo de racionalidade – a
racionalidade comunicativa – supostamente existente nas relações interpessoais
na sociedade e reproduzido nas instituições jurídico-políticas do Estado de Direito
moderno. Com isso, constrói um paradigma procedimental do Direito
discursivamente estruturado e, segundo ele, capaz de dar conta das dificuldades de
3
Cf. HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito entre Facticidade e Validade – Vol. II. 2ª Ed.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 9.
4
Em razão da vasta produção do autor, não há, aqui, qualquer pretensão de proceder a uma análise
exaustiva de sua teoria. Do mesmo modo, tendo em vista que sua obra recebeu a influência dos
mais variados campos do conhecimento, não serão apontadas as origens das idéias por ele
assimiladas e desenvolvidas, salvo quando condição necessária para a compreensão das mesmas.
5
Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A.
de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
6
Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.
53
legitimação das normas jurídicas, das estruturas de dominação política e do
exercício do poder administrativo enfrentadas nas sociedades contemporâneas.
Antes, porém, de aprofundar a proposta habermasiana de legitimação da
ordem jurídica e do poder estatal, farei uma breve introdução (1) aos principais
aspectos da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas e (2) ao papel
desempenhado pelo Direito em sua teoria. Somente então, tratarei da (3)
reconstrução habermasiana da idéia de Estado de Direito, onde serão apresentados
a idéia de legitimação pelo procedimento estruturado segundo a ética do discurso
e seus obstáculos nas sociedades modernas.
3.1
Ação comunicativa e ética discursiva
Embora reconheça que o advento da modernidade e o deslocamento dos
fundamentos do poder para o locus da razão humana significaram para o homem a
sua emancipação face às fontes da dominação no período pré-moderno, Habermas
identifica efeitos colaterais gerados pelo racionalismo, que se encontram no cerne
de processos repressivos contemporâneos.
Nesse sentido, sua preocupação principal é desenvolver uma teoria capaz
de assimilar os problemas gerados pela modernidade – mais precisamente, pela
compreensão da modernidade fundada na filosofia do sujeito
7
– sem, contudo,
abrir mão do potencial crítico que acompanha o conhecimento racional 8. Dessa
7
Como explica Habermas: “A modernidade inventou o conceito de razão prática como faculdade
subjetiva. (...) Isso tornou possível referir a razão prática à felicidade, entendida de modo
individualista e à autonomia do indivíduo, moralmente agudizada – à liberdade do homem tido
como um sujeito privado, que também pode assumir os papéis de um membro da sociedade civil,
do Estado e do mundo. No papel de cidadão do mundo, o indivíduo confunde-se com o do homem
em geral – passando a ser simultaneamente um eu singular e geral” (Cf. HABERMAS, Jürgen.
Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., p. 17). Essa concepção mostrou-se,
porém, problemática, pois “após a implosão da figura da razão prática pela filosofia do sujeito, não
temos mais condições de fundamentar os seus conteúdos na teleologia da história, na constituição
do homem ou no fundo casual de tradições bem-sucedidas. Isso explica os atrativos da única opção
que ainda parece estar aberta: a do desmentido intrépido da razão em geral nas formas dramáticas
de uma crítica da razão pós-nietzscheana, ou à maneira sóbria do funcionalismo das ciências
sociais, que neutraliza qualquer elemento de obrigatoriedade ou de significado na perspectiva dos
participantes. Ora, todo pesquisador na área das ciências sociais que não deseja apostar tudo em
algo contra-intuitivo, não será atraído por tal solução. Por esta razão, eu resolvi encetar um
caminho diferentes, lançando mão da teoria do agir comunicativo: substituo a razão prática pela
comunicativa. E tal mudança vai muito além da simples troca de etiqueta” (Cf. Ibid., p. 19).
8
Juan Carlos Veslasco Arroyo, sobre esse ponto, assinala que, para Habermas, “Una condena
absoluta de la razón en su conjunto, sin embargo, dista mucho de constituir el modo más reflexivo
e idóneo de reaccionar ante las manifiestas patologías del mundo moderno. El ‘malestar de le
54
forma, o autor desenvolve sua teoria como uma “autocrítica” ou “revisão” no
âmbito da própria modernidade, e não como tentativa de superação do projeto
cultural moderno 9.
Ponto central da elaboração do modelo teórico habermasiano é, portanto, a
defesa da possibilidade de reabilitação da razão como fundamento da integração
social. De modo simplificado, é possível enxergar o problema da integração social
como um problema de interação social, isto é, de coordenação de ações dos
indivíduos na sociedade. Habermas utiliza, basicamente, a tipologia weberiana
segundo a qual uma ação é social quando os agentes, na persecução dos seus
planos de ação individuais, orientam-se a partir de suas próprias expectativas a
respeito das ações individuais e expectativas dos outros 10.
Assim, da perspectiva dos indivíduos, problemas podem surgir quando a
execução de seus planos de ação depende do comportamento – da ação ou
omissão – de outro agente. Quando isso acontece, é necessário que um agente
tenha seu plano de ação anexado ao(s) plano(s) de ação do(s) outro(s) 11.
Tendo isso em vista, Habermas procura encontrar nas próprias interações
sociais a solução para o problema de como tornar possível a anexação dos planos
individuais de ação dos agentes delas participantes de modo a que eles ajam de
forma coordenada. O autor direciona seu olhar para a identificação de estruturas
modernidad’está provocado fundamentalmente por una realización deformada de la razón en la
historia, por una suerte de hipertrofia racionalista. Sin embargo, anatematizar de plano cualquier
uso de la razón moderna constituye un sinsentido, ya que la viabilidad de una critica lógicamente
consistente de los efectos no deseados de la modernización depende a su vez de los presupuestos
racionales y normativos ‘que la modernidad puso a punto’. En el moderno proceso de
racionalización hay elementos positivos subyacentes que ciertamente pueden y deben ser
salvados; es más, en muchos ámbitos el proceso de ilustración ha sido realmente insuficiente y,
por tanto, tal como enfatiza Habermas, la modernidad es un proyecto inacabado y aún no
superado. No habría, por tanto, que apresurarse en despedirla, sino, mas bien, en llevar a su
cumplimiento aquellos aspectos emancipatorios que tras ser anunciados fueron abandonados o
traicionados”. (ARROYO, Juan Carlos Velasco. La Teoría Discursiva del Derecho: Sistema
jurídico y democracia en Habermas. Madrid: Boletín Oficial del Estado y Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales, 2000, p. 16).
9
Ver a respeito HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo..., p. 361.
10
Cf. SCHUARTZ, Luís Fernando. Entre Teoria e Esperança: Os “Potenciais de Racionalidade”
do Direito Moderno na Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas. In: Norma,
Contingência, Racionalidade: Estudos preparatórios para uma Teoria da Decisão Jurídica. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 230. Ver a respeito, também: HABERMAS, Jürgen. The Theory of
Communicative Action – Vol. I: Reason and the Rationalization of Society. Transl. Thomas
McCarthy. Boston: Beacon Press, 1984..., pp. 279-286.
11
Ibid., p. 231. Nas palavras de Habermas: “Podemos entender uma interação como sendo a
solução para um problema de coordenação: como coordenar entre si os planos de ação de vários
atores, de tal modo que as ações de Alter possam ser engatadas nas de Ego? (...) O problema da
coordenação coloca-se a partir do momento em que o ator só pode executar o seu plano de ação de
modo interativo, isto é, com o auxílio (ou mediante a omissão de auxílio) de pelo menos um outro
ator” (HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., pp. 70-71).
55
presentes na comunicação intersubjetiva que tornariam possível o entendimento
mútuo entre os participantes de uma interação social lingüisticamente mediada 12.
A atenção por ele dispensada ao entendimento no contexto da interação
comunicativa tem por objetivo evidenciar os mecanismos que possibilitam aos
agentes harmonizarem os seus planos individuais de ação cooperativamente
13
–
isto é, sem recorrerem aberta ou veladamente à violência física ou simbólica e
nem à manipulação –, sobre a base de interpretações convergentes da situação que
forma o contexto da interação 14.
Assim, Habermas faz uma aposta na ação comunicativa como mecanismo
privilegiado para a solução do problema de coordenação das ações individuais em
sociedade. Mais especificamente, o autor acredita na existência de um potencial
de racionalidade contido nas ações comunicativas (ações voltadas para o
entendimento mútuo), que pode ser verificado nas interações sociais
lingüisticamente mediadas.
Buscando identificar essa estrutura racional – isto é, os pressupostos
comunicativos universais internos à linguagem – dos processos comunicativos
12
“Nunca teria tentado uma reconstrução pragmático-formal do potencial racional da fala se não
tivesse a expectativa de que, dessa maneira, pudesse obter um conceito de racionalidade
comunicativa do conteúdo normativo dos pressupostos universais e inevitáveis da prática
necessária (uncircumventable) de processos cotidianos de alcançar entendimento. Não é o caso
dessa ou daquelas preferência, de noções ‘nossas’ ou ‘deles’ de uma vida racional; em vez disso, o
que está em jogo aqui é a reconstrução de uma voz da razão, uma voz que estamos obrigados a
deixar falar nas práticas comunicativas diárias – se queremos ou não” (HABERMAS, apud
BANNEL, Ralph Ings. Habermas & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, pp. 52-53).
Ralph Ings Bannel explica que, em sua análise, Habermas “tenta descrever ‘as estruturas gerais da
comunicação lingüística’, que são universais, e, sobretudo, a condição da possibilidade de uma
reflexão crítica e a construção do conhecimento em todos os domínios da vida, incluindo as esferas
moral-prática e estética. Assim, Habermas amplia a análise da razão para além da razão teórica;
para a razão prática, em uma concepção que recupera a unidade da razão, mas uma razão fraca em
comparação com a concepção de razão desenvolvida pelo pensamento iluminista”. Vale dizer:
“(…) é na análise da linguagem, especificamente na sua pragmática formal, que Habermas localiza
a racionalidade comunicativa e, portanto, os vestígios do sonho da liberdade através da razão.
Habermas argumenta que existe um potencial para a racionalidade contido em práticas
lingüísticas” (Cf. BANNEL, ob. cit., p. 52).
13
Esse ponto é especialmente importante para Habermas, na medida em que é o fundamento para a
construção de sua teoria do Direito e da democracia, que “(...) toma como ponto de partida a força
social integradora de processos de entendimento não violentos, racionalmente motivadores,
capazes de salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base da manutenção de uma
comunhão de convicções” (Habermas, Jürgen. Democracia e Direito entre Facticidade e Validade
– vol. I..., p. 22).
14
Porém, como explica Luís Fernando Schuartz, “[i]sso de modo algum implica que todo e
qualquer processo de negociação de interpretações convergentes no âmbito de uma interação
comunicativa tenha que desembocar, necessariamente, em um consenso entre os participantes. O
aspecto decisivo é que também os dissensos sejam conjunta, cooperativa e consensualmente (!)
identificados, bem como levados em conta no curso futuro da interação” (SCHUARTZ, ob. cit., p.
233).
56
humanos, Habermas desenvolve, como resultado da incorporação em seu
pensamento de idéias oriundas tanto da crítica à filosofia analítica da linguagem
quanto da teoria dos atos de fala 15, o que denomina teoria da pragmática formal.
Sua intenção é examinar a função cognitiva da linguagem – responsável pela
compreensão do significado daquilo que é dito e, conseqüentemente, pela
viabilidade do entendimento – não apenas de um ponto de vista semântico, mas
também do ponto de vista pragmático.
Da crítica à filosofia analítica da linguagem – principalmente por parte da
semântica formal – Habermas aproveita as idéias de que as sentenças – e não as
palavras isoladas – devem ser a unidade básica de significado da análise
lingüística e que seu significado não pode ser separado da relação que a
linguagem tem com a validade de afirmações
16
. Ou seja, “falantes e ouvintes
compreendem o significado de uma sentença quando sabem sob que condições ela
é verdadeira”17. A semântica formal, então, desenvolve a tese de que o significado
de uma frase é determinado por suas condições de verdade 18.
No entanto, esse tipo de análise se baseia em três formas de abstração que
não se adéquam ao projeto habermasiano. A primeira é uma abstração semântica.
Vale dizer: assume-se que o significado poderia ser abstraído das regras
pragmáticas para o uso de enunciados, o que Habermas discorda. A segunda é
uma abstração cognitivista, que afirma que todo significado poderia ser reduzido a
conteúdos proposicionais e frases assertóricas. Habermas, porém, pretende
estender a idéia das condições de validade de um proferimento lingüístico para
além desses limites. E a terceira é uma abstração objetivista, segundo a qual
aquilo que faz com que uma proposição seja verdadeira poderia ser explicado por
condições de verdade compreensíveis do ponto de vista de uma terceira pessoa.
15
A teoria dos atos de fala tal como incorporada por Habermas foi desenvolvida por John Searle a
partir da obra de John Austin (Ver a respeito: SEARLE, John. Speech Acts. Cambridge:
Cambridge University Press, 1976; e ARAÚJO, Manfredo. Reviravolta lingüístico-pragmática na
filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996).
16
“The semantics founded by Frege and developed through the early Wittgenstein to Davidson
and Dummett gives center stage to the relation between the sentence and state of affairs, between
language and the world. (…) The meaning of sentences, and the understanding of sentences
meanings, cannot be separated from language’s inherent relation to the validity of statements”
(Cf. HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, p. 276). Sobre esse
ponto, ver, também: BANNEL, ob. cit., p. 67.
17
“Speakers and hearers understand the meaning of a sentence when they know under what
conditions it is true” (Cf. HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…,
p. 276).
18
“Thus truth semantics developed the thesis that the meaning of a sentence is determined by its
truth conditions” (Ibid., p. 277).
57
Segundo esse raciocínio, o conhecimento das condições de verdade atribuível a
um falante e a um ouvinte do ponto de vista performativo – isto é, enquanto
participantes de uma interação linguisticamente mediada que, em suas
performances, devem adotar posturas de “sim” e “não” em relação ao que é dito –
não seria contemplado.
Habermas precisava, pois, conservar a idéia introduzida pela semântica
formal de que a compreensão do significado de uma sentença (necessária para o
entendimento mútuo) estaria ligada ao conhecimento, por parte dos atores de uma
interação lingüisticamente mediada, das condições sob as quais ela é verdadeira e,
ao mesmo tempo, superar as três abstrações assumidas por essa teoria. O passo
inicial para isso se deve à apropriação de uma crítica interna à tradição da
semântica formal. Habermas incorpora a distinção feita por Michel Dummet entre
conhecer as condições que fazem com que uma proposição seja verdadeira e
conhecer as razões que permitem a um falante afirmar a proposição como
verdadeira. Ou seja, “[s]e a proposição é a expressão de suas condições de
verdade, precisamos, para compreendê-la, ser capazes de reconhecer as condições
sob as quais a proposição é verdadeira”
19
. Assim, conhecer apenas “as
circunstâncias observáveis que indicam o hábito dos falantes de tomar por
verdadeira uma proposição não é suficiente”, pois “o conhecimento das condições
de verdade repousa no conhecimento das razões que dizem por que elas são
eventualmente preenchidas” 20.
Haveria, pois, uma relação interna entre as condições de verdade de um
enunciado e as razões que poderiam justificar uma correspondente pretensão de
verdade. E, com isso, a práxis da justificação – vale dizer, o jogo da argumentação
– adquire papel essencial, na medida em que “[a]o jogo lingüístico do afirmar não
pertencem apenas a apresentação e a contestação de afirmações, mas também sua
fundamentação ou refutação”
21
. E as razões que justificam uma pretensão de
verdade só podem ser acessadas se o terceiro é capaz de se colocar na perspectiva
de participante da interação comunicativa. É com base nessa idéia que Habermas
procurará superar a abstração objetivista.
19
Cf. HABERMAS, Jürgen. Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: Duas versões
complementares da virada lingüística. In: Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. Trad.
Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004, pp. 84-85, grifos nossos.
20
Ibid., p. 85, grifos nossos.
21
Ibid., loc. cit..
58
O segundo passo para superar as abstrações assumidas pela semântica
formal e, também, para desenvolver o insight da teoria do significado de Dummett
– concebido ainda na tradição da semântica formal – dentro de uma teoria da ação
comunicativa, que tem como foco a dimensão pragmática da linguagem, se dá
através da apropriação por Habermas da teoria dos atos de fala de John L. Austin
e John Searle
22
. Segundo essa teoria, os enunciados (atos de fala) – e não as
sentenças, como sustentado pela semântica formal, ou as palavras, como
sustentado pela filosofia analítica da linguagem – são os elementos primários de
uma análise do significado lingüístico. E atos de fala podem ser analisados com
relação a dois elementos: seu conteúdo proposicional e sua força ilocucionária.
Isso implica reconhecer que, com atos de fala, não somente dizemos algo sobre o
mundo dos fatos e estados de coisas (conteúdo proposicional), mas também
empregamos a linguagem para outros fins, como, por exemplo, prometer,
ameaçar, avisar etc. A esse segundo elemento do uso da linguagem dá-se o nome
de força ilocucionária 23.
A força ilocucionária lingüística decorre do compromisso assumido pelo
participante, ao se engajar na interação, em satisfazer as pretensões de validade
sustentadas na sua oferta comunicativa. As pretensões de validade sustentadas em
um ato de fala podem ser satisfeitas tanto por meio de razões reconhecidas como
válidas quanto por meio da consistência futura do seu comportamento em termos
de adequação entre o que o participante fala e faz. Por isso, seria possível dizer,
segundo Habermas, que o engajamento na interação “é fonte de obrigações para o
sujeito da oferta comunicativa, da mesma maneira que o ‘Sim’ – expresso ou
tácito – do outro participante da comunicação diante da oferta o vincula a fazer ou
a deixar de fazer determinadas coisas (em função do conteúdo semântico da oferta
a que seu assentimento foi dado)” 24.
Assim, através da apropriação da idéia de dupla estrutura da fala (conteúdo
proposicional + força ilocucionária), desenvolvida por Austin e Searle, Habermas
consegue superar as duas primeiras abstrações assumidas pela semântica da
22
“A teoria dos atos de fala desenvolvida por Austin e Searle é própria para situar o pensamento
fundamental da teoria da significação de Dummett na moldura de uma teoria do agir
comunicativo” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: Duas
versões complementares da virada lingüística..., p. 91). Ver, também, a respeito: HABERMAS,
Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, pp. 118-123; e
HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol I..., cap. 3.
23
Cf. BANNEL, ob. cit., p. 70.
24
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 232-233.
59
verdade. Isso porque a compreensão do significado de um enunciado pressupõe a
consideração de sua força ilocucionária, isto é, da dimensão pragmática (do uso da
linguagem) desse mesmo enunciado. Uma análise lingüística não deve se prender,
portanto, apenas ao conteúdo proposicional e às frases assertóricas – isto é, à
dimensão semântica da linguagem. Ao contrário, com base na teoria dos atos de
fala, Habermas afirma ser possível, também, analisar, formalmente, as regras
pragmáticas do uso da linguagem. E, com isso, “a validade não é vista como
amarrada somente à função representacional da linguagem e ao conteúdo
proposicional dos enunciados”
25
, mas seria possível sustentar pretensões de
validade de acordo com outras duas funções da linguagem, a saber: a função de
estabelecer e regular normas no mundo ‘social’ e a de expressar a subjetividade do
falante no mundo subjetivo 26.
Assim, por meio da idéia de “condições de validade”, desenvolvida por
Habermas, a análise da validade de um enunciado numa interação comunicativa é
generalizada para além dos limites da pretensão de “verdade das proposições” –
relacionada ao mundo dos objetos e estados de coisas – podendo incluir, também,
os enunciados que veiculam normas sociais – que sustentam uma pretensão de
validade normativa – e os enunciados que expressam estados subjetivos dos
interlocutores em comunicação – que sustentam uma pretensão de autenticidade
(ou sinceridade)27. Ou seja, é com base nas pretensões de validade que as razões
apresentadas pelos participantes em sua busca pelo entendimento no processo de
interação comunicativa devem ser analisadas.
Desse modo, ao condicionar a compreensão dos enunciados lingüísticos
como “enunciados válidos” – e, portanto, aceitos pelos participantes – à
possibilidade de sustentação dessa pretensão de validade por meio de razões
numa interação comunicativa, Habermas afirma existir uma conexão interna entre
a compreensão de um enunciado e suas condições de validade. Sua tese, portanto,
“é a de que para entender um enunciado temos que saber como o usaríamos com o
objetivo de alcançar um entendimento sobre algo”, isto é, temos que saber sob
25
Cf. BANNEL, ob. cit., p. 70.
Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, pp. 325326.
27
Ibid., p. 71.
26
60
quais condições o ouvinte o aceitaria (o compreenderia como um enunciado
válido) 28.
Isso implica que o sucesso ilocucionário – ou seja, ligado à produção da
força ilocucionária – de um enunciado (ato de fala) dependerá da satisfação das
pretensões de validade por ele levantadas 29. O que pressupõe que o ouvinte não
apenas a compreenda a expressão lingüística, mas também que ele aceite o
enunciado como válido e assuma obrigações relevantes para a seqüência de
interações 30. É nesse efeito coordenador das ações dos indivíduos, produzido pelo
sucesso ilocucionário racionalmente alcançado numa ação comunicativa, que
Habermas concentrará seu projeto de construção de uma teoria social da ação,
com o objetivo de enfrentar os problemas de integração social das sociedades
modernas 31.
Importante notar que, para Habermas, as pretensões de validade não se
restringiriam às interações comunicativas realizadas em um contexto social
específico, mas estariam presentes em qualquer interação comunicativa, sendo,
nesse sentido, universais
32
. Ou seja, em qualquer atuação orientada para o
entendimento mútuo, qualquer ato de fala inteligível emanado pelo falante ergue
os três tipos de pretensão de validade, a saber: que o enunciado formulado é
28
“We understand a speech act when we know what makes it acceptable” (Cf. HABERMAS,
Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, p. 297).
29
“O êxito ilocucionário de um ato de fala mede-se pelo reconhecimento intersubjetivo que a
pretensão de validade levantada por meio dele encontra” (Cf. HABERMAS, Jürgen.
Racionalidade do Entendimento Mútuo..., p. 109).
30
“O sentido ilocucionário de um proferimento não é o de que o ouvinte tome conhecimento da
opinião (ou intenção) de F [– o falante –], mas o de que ele chegue à mesma concepção de F (ou
que leve a sério o anúncio de F). Para que F alcance sua meta ilocucionária, não basta que O [– o
ouvinte –] conheça as condições de verdade (ou de sucesso) de “p” [conteúdo proposicional do
proferimento]; O também deve compreender o sentido ilocucionário de afirmações (ou de
declarações de intenção) e, se possível, aceitar as pretensões de verdade correspondentes” (Ibid., p.
112). Dito de outro modo: “A hearer understands the meaning of an utterance [enunciado] when,
in addition to grammatical conditions of well-formedness and general contextual conditions, he
knows those essential conditions under wich he could be motivated by a speaker to take an
affirmative position. These acceptability conditions in the narrower sense relate to the
illocutionary meaning that S [the speaker] expresses by means of a performative clause”
(HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, p. 298).
31
“From the standpoint of a sociological theory of action, my primary interest has to be in making
clear the mechanism relevant to the coordinating power of speech acts. To this end I shall
concentrate on those conditions under wich a hearer can be motivated to accept the offer
contained in a speech act, assuming that the linguistic expressions employed are grammatically
well formed and that the general contextual conditions required for a given type of speech are
satisfied”(HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, p. 298).
32
Segundo Habermas: “Qualquer um que participe de uma prática argumentativa já deve ter aceito
essas condições de conteúdo normativo. Pelo simples fato de terem passado a argumentar, os
participantes estão necessitados a reconhecer esse fato” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência
Moral e Agir Comunicativo..., p. 161.
61
verdadeiro; que o ato de fala é correto em relação a um contexto normativo
existente; e que o objetivo manifestado no ato de fala expressa os seus
sentimentos e objetivos verdadeiros33.
Vale destacar que enquanto as relações sociais e comunicativas de nossa
vida cotidiana não são problematizadas, pretensões de validade não são desafiadas
e a interação se desenvolve sobre as bases de um consenso de fundo fornecido por
significados compartilhados entre os atores
34
. Com efeito, somente quando esse
consenso de fundo é quebrado e, portanto, a pretensão de validade de um
determinado ato de fala é questionada, é que se recorre ao procedimento
discursivo. Assim, por meio da argumentação, procurar-se-á restaurar as
pretensões de validade postas em questão, que poderão, ao final, ser reafirmadas
ou substituídas 35.
Assim, em linhas gerais, o que caracteriza a interação comunicativa é a
coordenação dos planos individuais de ação dos participantes por meio do
mecanismo do entendimento mútuo. E o que torna possível essa coordenação –
isto é, essa “anexação” das ações de uns às ações dos outros – “é, em última
instância, a aceitação das pretensões de validade sustentadas uno acto com a
oferta comunicativa, baseada na suposição de que tais pretensões podem, em caso
de
demandas
por
razões,
ser
satisfeitas
por
meio
de
argumentos
intersubjetivamente válidos” 36. Vale dizer: “o agir comunicativo estabelece uma
relação reflexiva com o mundo, na qual a pretensão de validade levantada em
cada enunciado deve ser reconhecida intersubjetivamente; para isso acontecer, o
33
Ver: HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo…, pp. 167-168; e
BANNEL, ob. cit., pp. 80-81.
34
Como explica Luís Fernando Schuartz “Na aceitação por parte do outro participante que
viabiliza a coordenação dos planos individuais de ação e que, estruturalmente, se constitui como
negação da possibilidade de negação de uma pretensão de validade, manifesta-se a convicção
desse outro participante a respeito da aceitabilidade racional (i.e. bancada por razões) da oferta
comunicativamente veiculada” (SCHUARTZ, ob. cit., p. 236). Assim, “O sucesso da oferta
comunicativa do participante A se verifica na aceitação da oferta pelo participante B, mas tal
aceitação repousa, por sua vez, em uma dupla negação, i.e. na negação da – sempre presente –
possibilidade de negação ou rejeição da oferta. Ao aceitar a oferta de A, B está negando uma
possível negação, a qual, contudo, sobrevive, como momento constitutivo da sua aceitação, no
acordo comunicativo entre A e B e que pode ser, a qualquer momento, atualizada. Habermas fala
de um ‘risco de dissenso’ (Dissensrisiko) inscrito de maneira permanente no próprio mecanismo
do entendimento” (Ibid., p. 238).
35
O resgate de uma pretensão de validade, no caso de pretensões de verdade e correção,
estabelece-se argumentativamente, ou seja, aduzindo razões, e o resgate das pretensões de
sinceridade, pela consistência do comportamento dos falantes (Ver: HABERMAS, Jürgen.
Consciência Moral e Agir Comunicativo..., pp. 167-168).
36
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 237.
62
falante depende da cooperação dos outros”
37
. Esse seria o uso principal da
linguagem, inerente ao telos do discurso humano 38.
É, pois, dessa capacidade humana de ação dirigida ao entendimento que
Habermas extrai a noção de racionalidade comunicativa. A racionalidade
comunicativa “repousa, portanto, na conexão interna entre: (i) as condições que
tornam válido um ato de fala; (ii) a pretensão, levantada pelo falante de que sejam
cumpridas essas condições; e (iii) a credibilidade da garantia por ele assumida de
que poderia, se necessário, resgatar discursivamente essa pretensão de validade”39.
Por outro lado, não é qualquer procedimento discursivo que permitirá
resgatar a pretensão de validade desafiada de forma a produzir um resultado
presumivelmente racional
40
. A racionalidade demanda a imparcialidade numa
situação de comunicação e uma distribuição de papéis – essencial para a
racionalidade comunicativa corporificada em processos do entendimento mútuo –
segundo a qual “os envolvidos podem assumir, a cada vez, os papéis de falante e
de ouvinte (e, se necessário, de um terceiro presente), ou seja, os papéis da
primeira, da segunda e da terceira pessoas”
41
. Assim, são necessárias condições
bem específicas para que um procedimento deliberativo tenha maiores chances de
produzir um consenso verdadeiro, a saber:
“(a) publicidade e inclusividade: ninguém que pudesse fazer uma contribuição
relevante com relação à pretensão de validade objeto da controvérsia deve ser
excluído; (b) iguais direitos de se engajar em comunicação: todo mundo deve ter
a mesma oportunidade de falar sobre o assunto discutido; (c) exclusão de
enganação e ilusão: participantes devem ser sinceros no que eles dizem; e (d)
ausência de coerção: a comunicação deve ser livre de restrições que impeçam o
melhor argumento a ser levantado e que determinem o resultado da discussão”.42
37
Cf. BANNEL, ob. cit., pp. 53. Nas palavras de Habermas: “(..) falo em agir comunicativo
quando os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só perseguir suas
respectivas metas sob a condição de um acordo existente ou a se negociar sobre a situação e as
conseqüências esperadas” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo;
trad. de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 165).
38
Segundo William Outhwaite, “One of the central elements of Habermas theory is the distinction
between the genuinely communicative use of the language to attain common goals, wich
Habermas takes to be the primary case of language-use and ‘the inherent telos of human speech’,
and strategic or success-oriented speech (…).” (OUTHWAITE, William. Habermas: A Critical
Introduction. Stanford: Stanford University Press, 1994, p. 45)
39
Cf. HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do Entendimento Mútuo..., p. 109.
40
A rigor, “(…) sabemos que uma prática não deve ser levada a sério como argumentação quando
não satisfaz pressupostos pragmáticos determinados” (HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e
Razão Destranscendentalizada. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 66).
41
Ibid., loc. cit..
42
Cf. HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada..., p. 67. Explica
Habermas que: “Os pressupostos (a), (b) e (d) estabelecem as regras do processo de argumentação
de um universalismo igualitário, que tem por conseqüências, considerando as perguntas moraispráticas, que os interesses e orientações de valores de cada envolvido sejam considerados
63
Ou seja, tais condições representam um padrão independente 43 em relação
ao qual a deliberação pode ser avaliada, garantindo, assim, a possibilidade de
formação de um acordo racional 44.
Assim, em última análise, a solução para o descrédito da razão como
instrumento de integração social estaria na superação das opiniões de caráter
privado pelas concepções intersubjetivamente compartilhadas, ou reconhecidas45.
Isso implica substituir, como base de uma teoria social da ação, a racionalidade
monológica, isto é, auto-referenciada ao sujeito do conhecimento, por uma
racionalidade dialógica: a racionalidade comunicativa 46.
Note-se, porém, que, dependendo da maneira pela qual um ator conecta
seus planos e ações aos planos e ações de outro(s) ator(es), outro tipo de interação
igualmente. E porque nos discursos práticos os participantes são simultaneamente os envolvidos,
assume o pressuposto (c) que, considerando as perguntas teórico-empíricas, exige exclusivamente
uma ponderação correta e imparcial dos argumentos, o significado adicional de estar aberto
hermeneuticamente e de ser sensível contra o auto-engano criticamente, tanto em relação à autocompreensão como referentemente à compreensão do mundo dos outros” (Ibid., loc. cit.).
43
Inicialmente, Habermas se referiu a esse conjunto de condições como uma “situação ideal de
fala”. Diante das inúmeras críticas dirigidas a tal conceito, esclarece William Outhwaite: “It is
clear enough that Habermas never intended the ideal speech situation to be understood as a
concrete utopia wich would turn the world into a gigantic seminar. He has sometimes compared it
to what Kant called a transcendental illusion, involving the extension of the categories of
understanding beyond the limits of expeience, but with the difference that this illusion is also a
‘constitutive condition of the possibility of speech” (OUTHWAITE, ob. cit., p 45). Gisele
Cittadino acrescenta que, embora não haja dúvidas de que se trata de uma concepção contrafática,
as exigências impostas pela situação ideal de fala têm uma função regulativa, “na medida em que
permite comparar acordos argumentativos empíricos com as condições ideais de comunicação
racional” (Cf. CITTADINO, ob. cit., p. 111). Nas palavras do próprio Habermas: “(...) aqueles
pressupostos inevitáveis, como sempre também contrafáticos, da prática da argumentacao não são
de modo algum apenas construtos, porém são operativamente importantes na conduta do próprio
participante da argumentação. Quem participa seriamente de uma argumentação procede realmente
a partir desses pressupostos” (HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão
Destranscendentalizada..., p. 68). De todo modo, é possível perceber que, em suas obras mais
recentes, a expressão “situação ideal de fala” raramente tem sido utilizada por Habermas.
44
Isso porque “a aceitabilidade racional das exigências de validez se apóia ao final apenas em tais
fundamentos que se afirmam contra objeções, sob determinadas condições de comunicação
repletas de exigências. Quando o processo de argumentação não deve perder o seu sentido, a forma
de comunicação dos discursos deve ser constituída de tal modo, que todos os esclarecimentos e
informações os mais relevantes possíveis sejam verbalizados e de tal forma ponderados, que a
tomada de posição do participante possa ser motivada intrinsecamente apenas através da
capacidade revisora dos fundamentos flutuando livremente” (Ibid., p. 66).
45
“(...) na opinião de Habermas, o poder da razão/reflexão somente pode ser entendido se
conseguirmos nos livrar da filosofia da consciência (ou do sujeito). Isso quer dizer, entre outras
coisas, que, para ‘resgatar a experiência esquecida de reflexão’ temos que analisar a pragmática da
comunicação, ou seja, a pragmática do uso de linguagem na mediação da interação social” (Cf.
BANNEL, ob. cit., pp. 51-52).
46
“A razão comunicativa distingue-se da razão prática por não estar adscrita a nenhum ator
singular nem a um macrossujeito sóciopolítico. O que torna a razão comunicativa possível é o
medium lingüístico, através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam.”
(Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., p. 20).
64
social linguisticamente mediada pode ocorrer
47
. Isso porque, vale esclarecer,
Habermas emprega o termo “interação” (ou “agir social”) como um conceito
complexo, que pressupõe a ligação entre dois tipos de ação: “agir” e “falar”. Nas
interações lingüisticamente mediadas, portanto, “agir” e “falar” podem estar
ligados de maneiras diferentes, formando diferentes “constelações”. Assim,
“quando as forças ilocucionárias dos atos de fala assumem o papel de
coordenadoras da ação, a constelação é uma; e será outra toda vez que as ações de
fala estiverem subordinadas de tal modo à dinâmica extra-lingüística das
influências de atores que se influenciam mutuamente através de uma atividade
orientada para um fim, que as energias de ligação especificamente lingüísticas
deixam de ser utilizadas”48. Desse modo, é necessário, segundo Habermas,
distinguir as ações comunicativas – caracterizadas pelo uso da linguagem para o
entendimento – daquilo que ele denomina ação estratégica 49 – no sentido de ação
orientada exclusivamente para resultados.
Dois são os critérios principais de distinção propostos por Habermas. O
primeiro diz respeito ao mecanismo de coordenação da ação. Ou seja, “é preciso
saber, antes de mais nada, se a linguagem natural é utilizada apenas como meio
para transmissão de informações ou também como fonte da integração social” 50.
Na primeira hipótese, tratar-se-ia, segundo Habermas, de uma ação estratégica. Já
na segunda, ter-se-ia uma ação comunicativa.
O outro critério distintivo entre os dois mecanismos de coordenação das
ações e planos dos atores sociais decorre do aproveitamento da força ilocucionária
lingüística. Numa ação comunicativa, a linguagem funciona de maneira
desimpedida como fonte de coordenação social
51
. Assim, a força consensual do
entendimento mútuo lingüisticamente mediado é efetivamente aproveitada,
47
Como explica Ralph Ings Bannell: “É importante fazer uma distinção entre os atos
comunicativos e o agir comunicativo. Os atos de fala podem coordenar ações estratégicas tanto
quanto o agir comunicativo” (CF. BANNELL, ob. cit., p. 82).
48
Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., p. 70.
49
Segundo Habermas: “Na medida em que os atores estão exclusivamente orientados para o
sucesso, isto é, para as conseqüências do seu agir, eles tentam alcançar os objetivos de sua ação
influindo externamente, por meio de armas ou bens, ameaças ou seduções, sobre a definição da
situação ou sobre as decisões ou motivos de seus adversários. A coordenação das ações de sujeitos
que se relacionam dessa maneira, isto é, estrategicamente, depende da maneira como se entrosam
os cálculos de ganho egocêntricos. O grau de cooperação e estabilidade resulta então das faixas de
interesse dos participantes” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo...,
pp. 164-165.
50
Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., p. 71.
51
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 230-231.
65
gerando o efeito de coordenação das ações dos atores. Já nas ações estratégicas,
essa força ilocucionária não é aproveitada e a coordenação das ações “depende da
influência dos atores uns sobre os outros e sobre a situação da ação, a qual é
veiculada através de atividades não-lingüísticas” 52.
Na forma estratégica de interação, predominam, portanto, os chamados
efeitos perlocucionários
53
sobre os ilocucionários. Os atores deixam de lado o
pressuposto da orientação recíproca com base em um conjunto de pretensões de
validade intersubjetivamente compartilhadas, de modo que as condições de
sucesso das ações de cada participante deixam de estar relacionadas com a
aceitação racional das referidas pretensões e passam a depender da convicção dos
agentes sobre a probabilidade da incidência de sanções (prêmios ou punições).
Isso importa, por outro lado, numa modificação das perspectivas dos atores, que
têm que abandonar o enfoque performativo, no qual procuram entender-se com o
outro sobre algo no mundo, e assumir o enfoque objetivo de um observador
orientado pelo sucesso de seu plano de ação e que deseja produzir, por meio de
sua influência, algo no mundo 54.
Importante destacar, no entanto, que essa forma manifestamente
estratégica de agir é diferente do uso estratégico latente da linguagem. Isso
porque, como visto, “no agir manifestamente estratégico os atos de fala,
emasculados ilocucionariamente, perdem o papel de coordenação da ação em
favor de influências externas à linguagem”, de maneira que esta, debilitada,
“passa a preencher apenas as funções de informação que restam quando se retira
do entendimento lingüístico a formação do consenso, o que faz com que a
validade do proferimento, deixada em suspenso na própria comunicação, não
52
Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., p. 71.
“Chamamos ‘perlocutórios’ os efeitos de atos de fala que, eventualmente, também podem ser
obtidos de maneira causal por ações não-lingüísticas” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Racionalidade
do Entendimento Mútuo..., p. 121).
54
“Vista na perspectiva dos participantes, os dois mecanismos, o do entendimento motivador da
convicção e o da influenciação que induz o comportamento, excluem-se mutuamente. Ações de
fala não podem ser realizadas com a dupla intenção de chegar a um acordo com um destinatário
sobre algo e, ao mesmo tempo, produzir algo nele, de modo causal. Na perspectiva de falantes e
ouvintes, um acordo não pode ser imposto a partir de fora e nem ser forçado por uma das partes –
seja através da intervenção direta na situação da ação, seja indiretamente, através de uma
influência calculada sobre os enfoques proposicionais de um oponente. Aquilo que se obtém
através de gratificação ou ameaça, sugestão ou engano, não pode valer intersubjetivamente como
acordo; tal intervenção fere as condições sob as quais as forcas ilocucionárias despertam
convicções e geram ‘contatos’ ” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., pp. 7172).
53
66
possa mais ser apreendida diretamente” 55. No caso de uso estratégico latente da
linguagem, “a ação estratégica é empregada de maneira parasitária à ação
comunicativa, pois simula uma orientação comunicativa para atingir um
determinado fim não declarado
56
. Nesse sentido, é considerada por Habermas
como uma forma “fraca” do uso comunicativo da linguagem e do agir
comunicativo
57
, tendo em vista que, nesses casos, a racionalidade comunicativa
se entrelaça com a racionalidade teleológica de agentes orientados pelo sucesso,
mas sempre de modo que as metas ilocucionárias dominem os sucessos
perlocucionários que, conforme o caso, são também ambicionados 58.
Em resumo, dois mecanismos de coordenação das ações e planos
individuais dos atores podem ser verificados no plano das interações sociais
lingüisticamente mediadas: a ação estratégica e a ação comunicativa. Esta, por
sua vez, comporta um sentido fraco e um sentido forte. Tais distinções serão
relevantes para entender, no item 4.1, em que medida a teoria da democracia
deliberativa proposta por Habermas supera o debate entre as concepções liberal e
republicana da democracia e por que, segundo Paulo Mattos, essa mesma teoria
seria mais adequada para compreender a dinâmica de formação da vontade
política no interior dos órgãos regulatórios do Estado.
O modelo teórico de Habermas se apóia, portanto, nas premissas de que o
mundo social – no qual as instituições que compõem o Estado de Direito estão
55
Ibid., p. 75.
“O uso estratégico latente da linguagem vise parasitariamente do uso normal da linguagem,
porque ele somente pode funcionar quando uma das partes toma como ponto de partida que a
linguagem está sendo utilizada no sentido do entendimento. Esse status deduzido aponta para a
lógica própria, subjacente na comunicação lingüística, a qual só tem efeitos coordenadores durante
o tempo em que submeter a atividade teleológica dos atores a determinados limites” (Ibid., p. 73).
57
“Falo de agir comunicativo num sentido fraco, quando o entendimento mútuo se estende a fatos
e razões dos agentes para suas expressões de vontade unilaterais; falo do agir comunicativo num
sentido forte tão logo o entendimento mútuo se estende às próprias razoes normativas que baseiam
a escolha dos fins” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do Entendimento Mútuo..., p. 118).
58
Sinteticamente, explica Luís Fernando Schuartz que: “os efeitos ilocucionários predominam
quando: (i) são produzidos de maneira – semanticamente – ordenada a partir do conteúdo de um
ato ilocucionário bem sucedido (por exemplo, quando uma ordem é cumprida pelo destinatário
após ser aceita, uma intenção é realizada etc.), (ii) se verificam como conseqüências
semanticamente não determinadas, embora condicionadas, pelo sucesso ilocucionário de ações
lingüísticas (por exemplo, quando uma afirmação surpreende o destinatário), ou mesmo (iii) nos
casos de uma ação estratégica latente, em que uma das partes da interação apenas simula uma
orientação no entendimento mútuo para a obtenção de resultados que devem permanecer – como
um condição necessária do sucesso – ignorados pela outra parte. Nas perlocuções, ao contrário,
desaparece inclusive a suposta predominância do efeito ilocucionário sobre o perlocucionário
(pensemos em uma ameaça não-velada, por exemplo) (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp 233-234).
Sobre o mesmo ponto, nas palavras de Habermas, ver: HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do
Entendimento Mútuo..., pp. 121-124.
56
67
incluídas – é uma realidade lingüisticamente constituída e que, nesse sentido,
qualquer tentativa de compreendê-lo racionalmente somente se admite possível
através de uma reconstrução dessa realidade a partir de processos interpretativos
intersubjetivamente válidos. E, dado que as ações sociais se desenvolvem sobre a
base de certas pressuposições compartilhadas, que se pretendem válidas tanto por
aqueles diretamente afetados por essas ações quanto por aqueles que delas se
aproximem de fora, a interpretação das mesmas pode ser submetida a um critério
objetivo de correção – o critério da racionalidade comunicativa –, na medida em
que é possível reconstruir as razões – fundadas sobre pretensões de validade – que
motivaram o ator social a realizá-las
59
. Com isso Habermas consegue ligar a
formação de um consenso racional com as condições de validade de uma ação e,
conseqüentemente, estabelecer a possibilidade de crítica imanente acerca da
validade dessas ações.
Todavia, Habermas reconhece que seu modelo de integração social,
fundado na força ilocucionária imanente ao agir comunicativo, é incompleto, pois,
embora sua racionalidade garanta a validade dos resultados, ele carece de critérios
externos capazes de gerar uma força motivacional que garanta a transformação
dos consensos racionalmente alcançados em ação. Vale dizer: a demonstração de
que, por exemplo, uma determinada norma é apta a produzir uma adesão livre,
racionalmente motivada, não garante, por si só, seu o cumprimento 60.
E essa carência de uma motivação externa para que a ações sejam
desempenhadas com base no consenso racionalmente atingido se torna ainda mais
problemática diante das condições de integração social da sociedade moderna. E
isso não apenas porque está presente, em toda interação comunicativa, uma certa
instabilidade decorrente do risco do dissenso que, se materializado, pode resultar
59
“Qualquer um que se utilize de uma linguagem natural, a fim de entender-se com um
destinatário sobre algo no mundo, vê-se forçado a adotar um enfoque performativo e a aceitar
determinados pressupostos. Entre outras coisas, ele tem que tomar como ponto de partida que os
participantes perseguem sem reserves seus fins ilocucionários, ligam seu consenso ao
reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis, revelando a disposição de
aceitar obrigatoriedades relevantes para as conseqüências da interação que resultam de um
consenso. E o que está embutido na base de validade da fala também de comunica às formas de
vida reproduzidas pela via do agir comunicativo” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Democracia e
Direito entre Facticidade e Validade – vol. I…, p. 20).
60
“A transferência de saber para o agir é incerta devido à fragilidade e ao nível extremo de
abstração de uma auto-regulação arriscada do sujeito que age moralmente, especialmente devido à
improbabilidade de processos de socialização capazes de promover competências tão pretensiosas”
(Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., pp. 149150).
68
no rompimento da seqüência de ações que caracteriza esse tipo de interação
61
.
Além disso, há também o fato de a integração da sociedade moderna depender de
mecanismos de coordenação alternativos – e, até certo ponto, contrários – ao do
entendimento, característicos dos sistemas de ação funcionalmente especializados
representados pela economia e pelo poder administrativo. Os mecanismos de
coordenação desses sistemas se apóiam nos códigos operativos do dinheiro e do
poder e são responsáveis por uma expansão do domínio social no qual
predominam as interações estratégicas em detrimento da coordenação através do
entendimento – ver infra, no item 3.2.
A solução proposta por Habermas para esse problema é o moderno Direito
positivo, isto é, o sistema de direitos e as instituições do Estado de Direito criados
pela modernidade
62
. Desse modo, o Direito se apresenta como um medium
necessário e apto a absorver as inseguranças decorrentes de uma orientação
puramente moral do comportamento, tendo em vista que as expectativas
recíprocas de comportamento, ao se institucionalizarem juridicamente, ganham
força obrigatória e contam com potencial da sanção estatal. É na obra Direito e
Democracia entre Facticidade e Validade que Habermas desenvolve em detalhes
esse ponto de seu pensamento, o qual será abordado a seguir.
3.2
O Direito entre mundo da vida e realidade sistêmica
A proposta habermasiana atribui ao Direito um papel central para a
integração e organização da sociedade. O Direito é tratado por Habermas como
um medium capaz de operar em meio à relação entre as esferas nas quais se
desenvolve o processo de integração e reprodução da sociedade, denominadas
61
Tal instabilidade é reflexo da tensão entre facticidade e validade inerente a todo processo de
entendimento, isto é, do fato de que os processos de deliberação voltados para o entendimento
tendem a incrementar o mesmo risco do dissenso que deveriam absorver. Ver a respeito:
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., p. 85.
62
“Uma moral dependente de um substrato de estruturas da personalidade ficaria limitada em sua
eficácia, caso não pudesse atingir os motivos dos agentes por um outro caminho, que não o da
internalização, ou seja, o da institucionalização de um sistema jurídico que complementa a moral
da razão do ponto de vista da eficácia para a ação. O direito é um sistema de saber e, ao mesmo
tempo, um sistema de ação (...). E, como o direito está estabelecido simultaneamente nos níveis da
cultura e da sociedade, ele pode compensar as fraquezas de uma moral racional que se atualiza
primariamente na forma de um saber” (Ibid., loc. cit.).
69
mundo da vida e realidade sistêmica
63
. E, através dele, as estruturas que
asseguram a racionalidade comunicativa nas interações sociais poderiam ser
estendidas para o nível macro-social.
O mundo da vida é o ponto de referência através do qual Habermas
procura explicar “como é possível surgir ordem social a partir de processos de
formação de consenso que se encontram ameaçados por uma tensão explosiva [de
um permanente risco de dissenso] entre facticidade e validade”
64
. É constituído
pelos planos da vida privada e da opinião pública, os quais, estruturados
lingüisticamente, reproduzem-se a partir do agir comunicativo. Assim, “o mundo
da vida forma o horizonte para situações de fala e constitui, ao mesmo tempo, a
fonte
das
interpretações,
reproduzindo-se
somente
através
de
ações
comunicativas” 65, e representa “o espaço no qual a prática comunicativa elabora
interpretações cognitivas, expectativas morais e manifestações expressivas” 66.
Como decorrência da especificação funcional de uma linguagem técnica,
que emerge da linguagem coloquial do mundo da vida, mas que dele se diferencia
por força da introdução de códigos especiais mantenedores de delimitações que
63
Juan Carlos Veslasco Arroyo observa que: “(...) el autor alemán hace uso de un instrumental
conceptual de disímil procedencia teórica: las nociones de ‘mundo da vida’ y ‘sistema’. Aunque
de alguna manera pueden recordar la contraposición existente entre base y superestructura,
ninguna de ellas proviene de la tradición marxista: el concepto de Lebenswelt (mundo da vida)
posee una marcada raigambre fenomenológica y la categoría de System (sistema) procede del
universo teórico de la metabiología y la cibernética social”. (ARROYO, ob. cit., p. 20)
64
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 40.
Explica o autor que: “o alto risco de dissenso, alimentado a cada passo através de experiências,
portanto através de contingências repletas de surpresas, tornaria a integração social através do uso
da linguagem orientado pelo entendimento inteiramente implausível, se o agir comunicativo não
estivesse embutido em contextos do mundo da vida, os quais fornecem apoio através de um
maciço pano de fundo consensual. Os entendimentos explícitos movem-se, de si mesmos, no
horizonte de convicções comuns não-problemáticas, ao mesmo tempo, eles se alimentam das
fontes daquilo que sempre foi familiar. Na prática do dia-a-dia, a inquietação ininterrupta através
da experiência e da contradição, da contingência e da crítica, bate de encontro a uma rocha ampla e
inamovível de lealdades, habilidades e padrões de interpretação consentidos” (Cf. Ibid., loc.cit.).
65
Cf. Ibid., p. 41.
66
Cf. CITTADINO, ob. cit., p. 115. No mesmo sentido, Juan Carlos Velasco Arroyo explica que
“El mundo de la vida sirve precisamente de horizonte cognitivo y trasfondo normativo de la
acción comunicativa: los contextos sociales en los que está inserta la acción comunicativa
suministran el necesario respaldo mediante un masivo consenso de fondo, un marco de
convicciones compartidas en el que el inevitable disenso, en vez de presentarse como factor
potencial de desintegración social, cobra razón de posibilidad, así como sentido. Bajo el concepto
de mundo de la vida se reúnen las diferentes esferas regidas por la acción comunicativa, que se
articulan en torno a tres núcleos estructurales: la cultura, la sociedad y la personalidad. Estas
estructuras simbólicas del mundo de le vida se reproducen por medio de la apropiación y
transmisión de la tradición cultural, los procesos de socialización y los mecanismos
intersubjetivos de solidaridad grupal. De modo comunicativo también se coordinarían las
acciones en la esfera privada e íntima de la familia y, particularmente, en los espacios públicos de
participación política”. (ARROYO, ob. cit., p. 23).
70
interrompem o circuito de comunicação do mundo da vida, Habermas identifica
uma outra esfera de integração social, a qual denomina realidade sistêmica. A
realidade sistêmica habermasiana é constituída por dois subsistemas: o econômico
e o administrativo. Tais mecanismos de integração, através de seu código próprio,
coordenam as ações de uma maneira objetivista, descartando o uso comunicativo
da linguagem.
Importante notar que “a integração da sociedade moderna depende, em
larguíssima escala, desses subsistemas, cuja reprodução requer mecanismos de
coordenação alternativos e, em certa medida, opostos ao do entendimento,
reprodução que acaba ‘liberando’ quantidades massivas e crescentes de interações
sociais do tipo estratégico às custas das interações baseadas no entendimento” 67.
Por outro lado, há processos de diferenciação no mundo da vida que, embora
comportem certo grau de especificação
68
, uma vez que seus componentes –
cultura, sociedade, estruturas da personalidade – diferenciam-se no interior de
uma linguagem multifuncional, não resultam em um código unidimensional.
Justamente por isso, não constituem novos subsistemas, pois esses mesmos
componentes permanecem entrelaçados em um nível de diferenciação mais baixo,
que mantém a unidade de fundo na linguagem coloquial de definição e
processamento de problemas como esfera de sua dimensão.
Assim, Habermas admite que as complexas sociedades contemporâneas
procedem à sua integração, por um lado, mediante valores, normas e processos de
busca do entendimento e, por outro, sistemicamente, através do mercado e do uso
administrativo do poder político. Porém, a expansão da racionalidade instrumental
dos subsistemas econômico e administrativo faz com que os imperativos da lógica
sistêmica penetrem no mundo da vida 69. Essa invasão é denominada colonização
67
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 239.
Juan Carlos Velasco Arroyo adverte que “el contraste entre los dos tipos de contextos de acción
no debe interpretarse como una diferencia absoluta, sino más bien como una diferencia de grado.
Las acciones integradas en el sistema presuponen cierta consensualidad y referencia a normas; y
las acciones integradas socialmente también implican ciertos cálculos estratégicos. Por eso, más
que una diferencia irreductible, es ante todo una diferencia de perspectiva metodológica: la
perspectiva del mundo de la vida es hermenéutica e internalista, mientras que la perspectiva del
sistema es objetivadora y externalista”. (ARROYO, ob. cit., pp. 23-24)
69
A racionalização do mundo da vida – e sua conseqüente institucionalização – nessas sociedades
“possibilita o aparecimento e o aumento de subsistemas cujos imperativos autônomos atuam
destrutivamente sobre este mesmo mundo da vida” (Cf. HABERMAS, Jürgen, apud,
CITTADINO, ob. cit., p. 115).
68
71
do mundo da vida
70
e se opera por meio da substituição da interação simbólica
mediada por normas – própria do mundo da vida – por uma interação regulada
adaptativamente através de meios técnicos de controle, independentes da
linguagem, como são o dinheiro para a economia e o poder para a
administração71. Em outras palavras, isso significa dizer que o mundo da vida
racionalizado possibilita o aparecimento e o aumento de sistemas cujos
imperativos autônomos – dinheiro e poder –, na medida em que se diferenciam da
linguagem comum e dela se excluem, atuam destrutivamente sobre este mesmo
mundo da vida 72. Dessa forma, estrutura-se um ambiente de ameaça e violência,
onde os sujeitos são tentados a abandonar a interação comunicativa, uma vez que
as relações humanas encontram-se instrumentalizadas 73.
A saída para se evitar essa colonização do mundo da vida, segundo
Habermas, estaria no medium do Direito. O termo “medium” é utilizado com um
sentido técnico, que remete à noção de “meio de comunicação simbolicamente
generalizado” e decorre da apropriação, por Habermas, de parte da teoria dos
sistemas de Parsons 74. Como explica Schuartz:
“Um Medium é um artifício simbólico para a veiculação de uma oferta
comunicativa e a simultânea motivação do destinatário para sua aceitação. O
Medium assume uma função "desoneradora" (entlastende Funktion) em relação
aos custos incorridos e à energia consumida por participantes em processos de
entendimento que têm que transcorrer sob condições de aumento de
complexidade (i.e. maior número e variedade de comunicações possíveis) e
redução das zonas de intersecção entre os estoques de saber de cada participante
e, com isso, também uma função neutralizadora em relação ao "risco do
dissenso" que, nessas condições, atinge patamares problemáticos. Meios de
comunicação simbolicamente generalizados viabilizam, em outras palavras,
70
Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Accion Comunicativa – Tomo II..., p. 280.
ARROYO, ob. cit., p. 24. Há que se destacar que os imperativos impostos pela lógica do
mercado e pela lógica burocrática possuem uma dinâmica própria: “por um lado, pelo seu caráter
autônomo, carecem de justificação e, por outro, têm a capacidade de neutralizar os âmbitos de
ação estruturados comunicativamente” (Cf. CITTADINO, ob. cit., p. 116).
72
“(...) The rationalization of the lifeworld makes possible the emergence and growth of
subsystems whose independent imperatives turn back destructively upon the lifeworld itself”(Cf.
HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. II..., p. 186).
73
Como explica Gisele Cittadino: “As restrições e distorções à comunicação engendradas pelos
imperativos do mercado e do poder configuram, segundo Habermas uma ‘violência estrutural’, que
não se manifesta como tal, mas que viola a rede intersubjetiva das práticas comunicativas
cotidianas. A sociedade contemporânea, portanto, convive com a violência decorrente dos
mecanismos da monetarização que regem a esfera da vida privada e com os imperativos da
burocratização que invadem a esfera da opinião pública. Por trás deste processo de colonização do
mundo da vida se encontram orientações valorativas e interesses específicos que de nenhum modo
podem ser considerados constitutivos da identidade da comunidade em seu conjunto” (Cf.
CITTADINO, ob. cit., p. 116).
74
Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol.
I…, pp. 102-112.
71
72
importantes economias de informação e tempo e, partindo daí, a coordenação de
planos individuais de ação e a estabilização de padrões de interação social
inerentemente instáveis”.75
Essa generalização simbólica que caracteriza o medium se dá através da
especificação de um código operativo que lhe é próprio e, nesse sentido, o
diferencia dos demais. Enquanto o medium do “dinheiro” opera segundo o código
“ter/não ter” e o medium do “poder” com o código “ordenar/obedecer”, o Direito
opera segundo o código representado pela fórmula binária “lícito/ilícito”. Vale
dizer: o que caracteriza o medium do Direito é o fato de que as expectativas
normativas, as ações e comunicações que lhe são próprias são estruturadas e
classificadas com base no código operativo “lícito/ilícito”.
Agir de forma “lícita”, isto é, conforme ao Direito, implica possuir a
capacidade de mobilizar, caso seja necessário, o uso da coerção legítima do
Estado em face daqueles que desejam impedir a realização dessa mesma ação.
Essa capacidade advém da idéia – característica do Direito moderno – de validade
jurídica
76
, cujo sentido somente se explica através da referência simultânea à
validade social (ou fática) do Direito e à sua legitimidade
75
77
. O conceito de
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 253-254.
“Esse formato moderno da validade jurídica (ou da "forma do direito") é, segundo Habermas,
resultado de processos de racionalização sociocultural tanto na dimensão do incremento qualitativo
das razões que sustentam o caráter obrigatório das normas, como também na dimensão da garantia
da estabilização de expectativas normativas sob as condições de uma expansão crescente do
quantum de interações do tipo estratégico. / Assim, de um lado, a racionalização do direito ocorre
na dimensão da justificação das suas normas. Os critérios de fundamentação das normas para
atribuir-lhes validade jurídica estão ligados, em última instância, às exigências de uma moral de
nível pós-convencional. Isso implica dizer que normas são válidas quando merecem, da totalidade
dos indivíduos efetiva e potencialmente afetados por sua implementação, o reconhecimento
intersubjetivo no âmbito de processos de argumentação nos quais tais indivíduos são participantes
– ainda que virtuais. De outro, a racionalização do Direito moderno também se deve a uma espécie
de afinidade existente entre as normas que o integram e os processos de acúmulo de racionalidade
estratégica/instrumental. Nesta dimensão, a reorganização da validade jurídica está funcionalmente
associada à diferenciação de uma burocracia estatal e de uma economia capitalista./ O tipo
moderno da validade jurídica pode ser visto, assim, como um ponto de convergência da
racionalização sociocultural no que se refere às duas dimensões, ou seja, como resposta
institucional a esse duplo processo de racionalização: de um lado, aos ganhos qualitativos relativos
aos tipos de argumentos que "contam" para a satisfação de pretensões de validade universal e a
justificação de normas; de outro lado, aos imperativos funcionais de sistemas sociais que
institucionalizam, normalizam e estimulam comportamentos estratégicos e o domínio controlado
sobre processos naturais e sociais” (Ibid., p. 242-243).
77
“A validade social de normas do direito é determinada pelo grau em que consegue se impor, ou
seja, pela sua possível aceitação fática no círculo dos membros do direito. Ao contrário da validade
convencional dos usos e costumes, o direito normatizado não se apóia sobre a facticidade de
formas de vida consuetudinárias e tradicionais, e sim sobre a facticidade artificial de ameaças de
sanções definidas conforme o direito e que podem ser impostas pelo tribunal. Ao passo que a
legitimidade de regras se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade
normativa; e o que conta, em última instância, é o fato de elas terem surgido num processo
legislativo racional – ou o fato de que elas poderiam ter sido justificadas sob pontos de vista
76
73
validade jurídica explicita, portanto, o caráter dúbio da pretensão de validade
sustentada por toda genuína norma jurídica, a saber: a possibilidade do apoio em
um estoque organizado de força legítima para a satisfação da pretensão nominal
de vigência social, de um lado, e a possibilidade do apoio em argumentos
intersubjetivamente válidos para a satisfação da pretensão nominal de
legitimidade, de outro lado 78.
E, na medida em que se refere tanto à facticidade da validade social –
medida pela obediência geral às normas jurídicas –, quanto à legitimidade da
pretensão ao reconhecimento normativo, o Direito se apresente como um medium
híbrido, capaz de dar conta de ambas as formas de coordenação de planos e ações
individuais de atores envolvidos em interações sociais – ação comunicativa e ação
estratégica. Com isso, abre-se para os atores sociais – membros da comunidade da
comunidade jurídica – a possibilidade de “escolherem entre dois enfoques
distintos em relação à mesma norma jurídica: objetivador ou performativo”, de
modo que, “para o arbítrio de um ator que se orienta pelo sucesso próprio, a regra
constitui um empecilho fático na expectativa da imposição do mandamento
jurídico – com conseqüências previsíveis no caso de transgressão da norma”,
enquanto que, para o ator que age comunicativamente, “a regra amarra a sua
‘vontade’ livre através de uma pretensão de validade deontológica” 79.
Ou seja, por deixar em aberto os motivos que determinam o
comportamento lícito, é possível dizer que o medium do Direito tolera que os
atores assumam um enfoque estratégico em relação a certas normas. Mas, por
outro lado, diferentemente do medium do dinheiro e do medium do poder, o
Direito não é capaz de substituir o entendimento lingüisticamente mediado nas
suas funções de coordenação social, mas apenas de desonerá-lo, isto é, reduzir
seus custos por meio de mecanismos de abstração e de redução de complexidade80. Por isso, até mesmo as normas jurídicas consideradas do ponto de vista
estratégico pelos atores sustentam, na qualidade de elementos integrantes de uma
ordem jurídica legítima em seu conjunto, a pretensão de validade normativa, que
requer dos destinatários um reconhecimento racionalmente motivado e,
pragmáticos éticos e morais” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e
Validade – Vol. I..., p. 50).
78
Cf. SCHUARTZ, ob. cit. p.255.
79
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., p. 51.
80
Cf. SCHUARTZ, ob cit., p. 256.
74
conseqüentemente, a possibilidade de obediência por um motivo não coercitivo –
isto é, que não pode ser produzido pela força. Razão pela qual “a ordem jurídica
deve tornar possível a qualquer momento a obediência às suas regras por respeito
à lei”81. Do ponto de vista da normatização jurídica, isso implica a necessidade de
que o Direito positivo tenha que se legitimar racionalmente. O que, em última
análise, dada a relação de dependência entre legitimidade e a satisfação discursiva
de pretensões de validade universais, pressupõe que as normas jurídicas
positivadas possam ser interpretadas como resultado de processos de argumentação orientados para o entendimento mútuo, aos quais deve ter sido
assegurado o acesso, em condições igualitárias, a todos os destinatários, de modo
que os mesmos, em sua totalidade, possam compreender-se – virtualmente ao
menos – como autores dessas normas 82.
Por outro lado, essa pressuposição demanda a institucionalização jurídica
dos pressupostos comunicativos de processos discursivos sob forma de
procedimentos de formação da opinião e da vontade políticas, que, nas sociedades
modernas, se estruturam como procedimentos democráticos de producao
normativa sustentados por um conjunto de direitos subjetivos “que garantam, a
seus titulares, enquanto indivíduos orientados em um entendimento mútuo, a
participação direta e indireta nos referidos procedimentos” 83.
Ou seja, é através do uso público da razão, num processo democrático no
qual os pressupostos comunicativos que garantem um discurso racional estão –
presumivelmente – institucionalizados juridicamente, que Habermas vislumbra a
saída para se evitar a colonização do mundo da vida. A rigor, “Habermas não tem
a pretensão de sugerir um modelo de ética discursiva que elimine a dominação e a
violência decorrentes dos interesses que instrumentalizaram as relações
humanas”84. Sustenta, porém, a possibilidade de limitação dessa dominação desde
que o Direito possa funcionar como o “transformador” dos “fracos impulsos
sócio-integradores” originados no mundo da vida em parâmetros eficazes, do
ponto de vista comportamental, para as operações sistêmicas 85.
81
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., p. 52.
Cf. SCHUARTZ, ob cit., p. 246.
83
Ibid., p. 247.
84
Ibid., loc. cit..
85
Ibid., p. 256. Ver também: HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito entre Facticidade e
Validade – Vol I..., p. 221.
82
75
Somente assim o Direito pode funcionar como medium a serviço da
integração social
86
. Vale dizer, tendo em vista que “os meios de regulação –
dinheiro e poder administrativo – são ancorados no mundo da vida através da
institucionalização jurídica dos mercados e das organizações burocráticas”
87
, as
normas jurídicas podem influenciar comportamentos e estratégias dos agentes
integrantes de ambos os sistemas. Apenas na “linguagem do Direito” os resultados
dos processos de entendimento – atingidos comunicativamente – adquirem
coercibilidade e se transformam num código assimilável pelos sistemas, podendo,
assim, circular por todas as esferas da sociedade.
Diante dessas considerações, fica mais evidente por que ao Direito
moderno é imputada por Habermas a tarefa de solucionar as insuficiências
relativas à motivação para a ação associadas a uma teoria da sociedade que
explica a integração social a partir da noção de agir comunicativo: Ao Direito
cabe a função de “guardião” da racionalidade comunicativa. Segundo Schuartz:
“Se, para a crítica imanente da sociedade moderna, exige-se a localização dos
pontos de contato entre as condições necessárias de sua reprodução e a orientação
dos agentes sociais em pretensões de validade universais, e se o sistema jurídico sobretudo na forma do “moderno direito positivo” - é capaz de realizar a função
do transporte, do nível das interações “face a face” para o nível da sociedade
como um todo, das estruturas de racionalidade presumidamente inerentes à ação
orientada no entendimento, então poder-se-ia pensar no direito moderno como
uma espécie de guardião macrossocial da racionalidade comunicativa. (...) Os
pressupostos contrafáticos - as ‘estruturas’ - do entendimento aparecerão
reflexivamente, em meio a procedimentos institucionalizados de natureza
discursiva, nos processos de criação e aplicação do direito no Estado
Democrático de Direito”. 88
Ou seja, segundo Habermas, haveria um potencial de racionalidade inscrito nas instituições do Estado Democrático de Direito, tanto através da
86
“No sistema jurídico, o processo da legislação constitui, pois, o lugar propriamente dito da
integração social. Por isso, temos que supor que os participantes do processo de legislação saem do
papel de sujeitos privados do direito e assumem, através de seu papel de cidadãos, a perspectiva de
membros de uma comunidade jurídica livremente associada, na qual um acordo sobre os princípios
normativos da regulamentação da convivência já está assegurado através da tradição ou pode ser
conseguido através de um entendimento segundo regras reconhecidas normativamente. Essa união
característica entre coerção fática e validade da legitimidade, que tentamos esclarecer através do
direito subjetivo à assunção estratégica de interesses próprios, exige um processo de legislação no
qual os cidadãos devem poder participar na condição de sujeitos do direito que agem orientados
não apenas pelo sucesso. Na medida em que os direitos de comunicação e de participação política
são constitutivos para um processo de legislação eficiente do ponto de vista da legitimação, esses
direitos subjetivos não podem ser tidos como os de sujeitos jurídicos privados e isolados: eles têm
que ser apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimento, que se encontram
numa prática intersubjetiva de entendimento” (Ibid., pp. 52-53).
87
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I…, pp.
104-105.
88
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 247.
76
institucionalização jurídica de procedimentos discursivamente estruturados para a
solução racional de problemas, como por meio do reconhecimento generalizado
de direitos subjetivos que asseguram uma participação universal nos referidos procedimentos. E isso seria relevante não apenas para a solução de problemas
relativos à integração social, mas também para problemas relativos à reprodução
da sociedade moderna, pois “é a hipótese da institucionalização macrossocial
desses nichos de racionalidade comunicativa que viabiliza a análise estritamente
teórica de determinados processos sociais enquanto fontes de crises e patologias,
uma vez que, sem a suposta ‘incorporação da razão comunicativa’ nas
mencionadas instituições, desaparece a plataforma normativa que assegura à
pretensão da teoria ao exercício da crítica imanente o reclamado título de legitimidade” 89.
3.3
A legitimação do Direito e do poder político no Estado de Direito
Assim, a tese principal que sustenta o projeto de integração social proposto
por Habermas é a da incorporação macrossocial da razão comunicativa nas
instituições político-jurídicas da sociedade moderna. O autor assume, com isso, o
ônus argumentativo de demonstrar como essa incorporação ocorre. Para tanto,
Habermas divide a exposição de seu raciocínio em duas etapas. Na primeira,
empreende uma reconstrução, com base na sua teoria do discurso, do Estado de
Direito moderno. Essa reconstrução é apresentada nos capítulos 3 e 4 da obra
Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Neles, Habermas propõe a
“reconstrução racional”
90
da auto-compreensão normativa das ordens jurídicas
modernas através da reinterpretação dos direitos fundamentais e de instituições
centrais do Estado Democrático de Direito com base na teoria do discurso
91
.O
objetivo dessa etapa inicial é “demonstrar que, e como, as representações
normativas que reconhecemos nas afirmações de princípios acerca dos direitos de
89
Ibid., pp. 249-250.
William Outhwaite adverte que “A reconstructive theory will not be expected to display what
Giddens has called ‘the enormous revelatory power’ of natural-scientific theories, and, although a
new theory of action is as broad a project as one could imagine, it will still be telling us how we
do something we know we do already.” (OUTHWAITE, ob. cit., p. 109).
91
Essa reconstrução encontra-se exposta nos capítulos III e IV de: HABERMAS, Jürgen.
Democracia e Direito entre Facticidade e Validade – Vol. I... .
90
77
cada indivíduo e do funcionamento das instituições políticas e jurídicas (enquanto
produtos da época moderna e legados da tradição do pensamento iluminista acerca
da organização político-jurídica da sociedade moderna) podem ser justificadas
segundo padrões de racionalidade universais e merecem aceitabilidade generalizada” 92.
Na segunda etapa, Habermas examina, de uma perspectiva sociológica, as
condições de implementação dessas normas jurídicas e instituições, por ele
reinterpretadas, nos processos de circulação do poder político das sociedades
capitalistas contemporâneas. Esse momento da análise de Habermas se caracteriza
pela assunção do enfoque descritivo por parte do autor, preocupado, agora, não
mais em reconstruir os fundamentos de uma ordem normativa e suas instituições,
mas em identificar, na relação de tensão entre o ideal – supostamente
institucionalizado nas normas jurídicas – e a realidade, os obstáculos que essas
instituições enfrentam quando inseridas na facticidade social dos processos
políticos dessas sociedades.
Assim, se nos capítulos 3 e 4 Habermas discute a tensão entre facticidade e
validade no interior do próprio Direito – que, como visto no item 3.2, decorre do
caráter ambivalente da validade jurídica –, nos capítulos 7 e 8, analisa o que
denomina “tensão externa” (externa ao sistema jurídico) entre facticidade e
validade 93.
Não pretendo, obviamente, reconstituir todo o caminho percorrido por
Habermas em seu raciocínio. Cabe, aqui, destacar tão somente os pontos
específicos desse percurso que são reproduzidos por Mattos em sua apropriação
do pensamento habermasiano e aqueles que prepararão as bases para a construção,
no capítulo III, das críticas que oponho a essa apropriação. Nesse sentido,
procurarei concentrar-me nos aspectos essenciais para a compreensão tanto dos
fundamentos normativos de seu modelo de legitimação do Direito e do poder
administrativo (tensão interna entre facticidade e validade) quanto das
dificuldades apresentadas à sua efetivação na prática dos processos políticos das
sociedades modernas (tensão externa entre facticidade e validade).
Dividirei a exposição desses temas em três tópicos. Nos itens (a) e (b),
abordarei, respectivamente, a reconstrução habermasiana do sistema de direitos e
92
93
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 251.
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 10.
78
dos princípios e instituições do Estado de Direito. No item (c) apresentarei a
concepção de democracia deliberativa habermasiana, a qual se apóia em seu
modelo de legitimação pelo procedimento discursivamente estruturado. Ainda
neste mesmo item, tratarei dos obstáculos decorrentes da realidade dos processos
políticos à implementação de ordens jurídicas legítimas nas sociedades modernas
identificados por Habermas.
3.3.1
Reconstrução do sistema de direitos
O passo inicial de Habermas para a reconstrução discursiva da autocompreensão das ordens jurídicas modernas é a reconstrução do sistema de
direitos. Para tanto, o autor parte da seguinte questão: quais os direitos que os
cidadãos têm que atribuir uns aos outros caso queiram regular legitimamente sua
convivência através do medium do Direito positivo 94?
Nesse sentido, pode-se entender a reconstrução habermasiana do sistema
de direitos das ordens jurídicas modernas como uma explicitação dos pressupostos
necessários para que, na prática, a empreitada de um grupo de indivíduos que
deseja auto-regular a interação entre seus membros, através da definição
consensual de um conjunto de princípios fundamentais de convivência na forma
de direito positivo legítimo, seja possível. Em sua análise, Habermas assume
como dados a serem levados em conta por esse grupo de indivíduos – e, portanto,
por ele próprio, na medida em que adota um enfoque reconstrutivo –, “um
conjunto de propriedades que caracterizam o Medium do moderno direito positivo, bem como um conjunto de propriedades que caracterizam o conceito moderno
de legitimidade” 95.
Foi visto – no item 3.2 – que uma das características do medium do Direito
diz respeito à função desoneradora das justificativas morais para a ação, que é
94
Id., Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 113.
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 251-252. Explica Habermas que “(…) a ‘nossa’ introdução
teórica in abstracto de direitos fundamentais revela-se ex post como um artifício. Ninguém é capaz
de lançar mão de um sistema de direitos no singular, sem apoiar-se em interpretações já elaboradas
na história. ‘O’ sistema de direitos não existe em um estado de pureza transcendental. Porém, após
mais de duzentos anos de desenvolvimento constitucional na Europa, temos vários modelos à
disposição; eles podem servir a uma reconstrução generalizadora da compreensão que acompanha
necessariamente a prática intersubjetiva de uma auto-legislação empreendida com os meios do
direito positivo” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade –
Vol I..., p. 166).
95
79
gerada pela idéia de licitude (ação conforme ao Direito). O que importa em dizer
que, agindo de forma lícita, um sujeito está autorizado a empregar livremente a
sua vontade, independentemente das razões que orientam sua ação96. Na moderna
compreensão do Direito, essa idéia desempenha um papel central e corresponde
ao conceito de direito subjetivo
97
. Os direitos subjetivos definem iguais
liberdades de ação para todos aqueles considerados como portadores de direitos 98
– idéia que, em última análise, é explicitada pelo próprio conceito de lei99. É essa
função desoneradora dos direitos subjetivos que explicam por que o moderno
Direito positivo consegue se adaptar “à integração social de sociedades
econômicas que, em domínios de ação neutralizados do ponto de vista ético,
dependem de decisões descentralizadas de sujeitos singulares orientados pelo
próprio sucesso” 100.
Porém, também foi visto que a função do Direito não se resume apenas a
garantir o espaço de liberdade de ação no qual indivíduos estrategicamente
orientados por uma racionalidade instrumental, característica dos subsistemas
econômico e administrativo, podem agir. Mesmo porque, da dimensão de
legitimidade que compõe a noção de “validade jurídica”, decorre a exigência de
que as normas jurídicas que delimitam esse espaço de liberdade, no qual ações
estratégicas podem se desenrolar, possam ser justificadas racionalmente. Em
termos habermasianos, isso significa que as normas jurídicas positivadas por meio
de um processo legislativo democrático têm que poder ser entendidas como o
resultado de processos de argumentação orientados para o entendimento mútuo,
aos quais deve ter sido assegurado o acesso, em condições igualitárias, a todos os
destinatários. E, desse modo, o sistema de direitos também deve garantir “as
condições precárias de uma integração social que se realiza, em última instância,
96
O direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as transfere para as leis que
garantem a compatibilidade das liberdades de ação” (Ibid. p. 114).
97
“(...) direitos subjetivos (rights) estabelecem os limites no interior dos quais um sujeito está
justificado a empregar livremente a sua vontade” (Ibid., p. 113).
98
“Direitos subjetivos não estão referidos, de acordo com seu conceito, a indivíduos atomizados e
alienados, que se entesam possessivamente uns contra os outros. Como elementos da ordem
jurídica, eles pressupõem a colaboração de sujeitos, que se reconhecessem reciprocamente em seus
direitos e deveres, reciprocamente referidos uns aos outros, como membros livres e iguais do
direito (Ibid., p. 121).
99
“O conceito da lei explicita a idéia do igual tratamento, já contida no conceito do direito: na
forma de leis gerais e abstratas, todos os sujeitos têm os mesmos direitos” (Ibid., p. 114).
100
Ibid. loc. cit..
80
através das realizações de entendimento de sujeitos que agem comunicativamente,
isto é, através da aceitabilidade de pretensões de validade” 101.
Habermas aplica tais idéias à reconstrução do sistema de direitos. Segundo
ele, o próprio medium do Direito, enquanto tal, pressupõe determinadas categorias
de direitos que definem o status de pessoas jurídicas como portadoras de direitos
em geral
102
. Na idéia de que “toda norma de comportamento que se revestir de
forma jurídica torna possível a seu destinatário a percepção de um conjunto de
terminado de liberdades subjetivas negativas, cujo conteúdo expressa um ‘estardesonerado’”
103
em relação às obrigações ilocucionárias geradas nas interações
comunicativas, Habermas identifica o conteúdo de um direito subjetivo
fundamental inscrito, constitutivamente, no próprio medium do Direito, e fonte
originária de um tipo qualificado e ainda muito abstrato de “autonomia
privada”104.
E é isso que leva à proposição in abstracto de três categorias de direitos,
ligadas a essas propriedades formais do medium do Direito
105
, que
institucionalizam o próprio código jurídico através da definição do status das
pessoas portadoras de direitos. São elas: (1) a categoria de “direitos fundamentais
que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida
possível de iguais liberdades subjetivas de ação”
106
; (2) a categoria de “direitos
fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de
101
Ibid. loc. cit..
Ibid., p. 155.
103
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 258-259.
104
Ibid., pp 260-261. Nas palavras de Habermas: “(...) a autonomia privada de um sujeito do
direito pode ser entendida essencialmente como a liberdade negativa de retirar-se do espaço
público das obrigações ilocucionárias recíprocas para uma posição de observação e influência
recíproca” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol.
I..., p. 156).
105
Esclarece Luís Fernando Schuartz que: “Essas propriedades formais do Medium do direito estão
caracterizadas por três abstrações levadas a efeito da perspectiva genérica do destinatário de uma
norma jurídica” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 256). As três abstrações a que o autor se refere são
incorporadas por Habermas, em seu raciocínio, a partir da obre de Kant: “Kant caracterizara a
legalidade de modos de agir, servindo-se de três abstrações que se referem aos destinatários, não
aos autores do direito. Em primeiro lugar, o direito não leva em conta a capacidade dos
destinatários em ligar a sua vontade, contando apenas com sua arbitrariedade. Além disso, o
direito abstrai da complexidade dos planos de ação no nível do mundo da vida, limitando-se à
relação externa da atuação interativa e recíproca de determinados agentes sociais típicos.
Finalmente, o direito não considera, conforme vimos, o tipo de motivação, contentando-se em
enfocar o agir sob o ponto de vista de sua conformidade à regra” (HABERMAS, Jürgen. Direito e
Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 147). Ou seja, a idéia é que tais abstrações,
características do vínculo jurídico, traduzem um “estar desonerado” de obrigações comunicativas.
106
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p.
159.
102
81
um membro numa associação voluntária de parceiros do direito”
107
; e (3) a
categoria de “direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade
de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da
proteção jurídica individual” 108. Estas duas últimas categorias são exigidas como
correlatas necessárias à primeira, na medida em que, de um lado, o “código do
Direito” somente pode ser aplicado no interior de uma comunidade jurídica
concreta, determinada através dos direitos subjetivos fundamentais de
pertencimento à essa mesma comunidade jurídica
109
, e, de outro, uma
institucionalização jurídica do código do Direito demanda “a garantia dos
caminhos jurídicos pelos quais a pessoa que se sentir prejudicada em seus direitos
possa fazer valer suas pretensões” 110, que se materializa na oferta de prestação de
serviços de natureza jurisdicional.
Para que sejam positivados, tais direitos, porém, devem ser “talhados”, isto
é, confeccionados sobre medida, respeitando-se a igual liberdade de arbítrio dos
atores portadores de direitos. Este processo requer o reconhecimento de outras
categorias de direitos subjetivos, “as quais seriam, por sua vez, necessárias para a
constituição de procedimentos discursivos de criação do direito capazes de zelar
pela legitimidade de direitos subjetivos a serem então positivamente
atribuídos”111. Isso porque, vale ressaltar, da maneira como foram inicialmente
formulados, nada garante que os direitos pertencentes às três categorias acima
mencionadas sejam legítimos. A pretensão de legitimidade do Direito positivo –
como já foi dito – decorre da exigência de que a liberdade de cada um possa
conviver com a igual liberdade de todos, segundo uma lei geral, que deve poder
ser justificada racionalmente 112.
107
Ibid., loc. cit..
Ibid., loc. cit..
109
“Isso deriva do próprio conceito de positividade do direito, isto é, da facticidade da
normatização e da imposição do direito. Normas jurídicas originam-se das decisões de um
legislador histórico, referindo-se a um universo geograficamente delimitado e a uma coletividade
de parceiros jurídicos delimitável socialmente, e, com isso, a um âmbito de validade especial. (...)
O estabelecimento de um código jurídico exige, por isso, direitos que regulam a participação numa
determinada associação de parceiros jurídicos e, deste modo, permite a distinção entre membros e
não-membros, cidadãos e estranhos” (Ibid. p. 161).
110
Ibid., p. 162.
111
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 252.
112
“Pois o direito legítimo somente se coaduna com um tipo de coerção jurídica que salvaguarda
os motivos racionais para a obediência do direito. O direito coercitivo não pode obrigar os seus
destinatários a isso; deve ser-lhes facultado renunciar ou não conforme o caso, ao exercício de sua
liberdade comunicativa e à tomada de posição em relação à pretensão de legitimidade do direito,
ou seja, deve-se permitir que abandonem, num caso concreto, o enfoque performativo em relação
108
82
E essa justificação racional apenas poderia ser obtida caso cada uma das
categorias de direitos inferidas a partir do medium do Direito fosse submetida ao
que seria, segundo Habermas, o único teste de legitimidade aceitável sob
condições modernas
113
– caracterizadas pela impossibilidade de recurso a
critérios metafísicos ou tradicionais de justificação e pelo pluralismo de visões de
mundo 114–, a saber, um teste de validade normativa, proposto a partir do princípio
do discurso “D”.
O princípio do discurso simplesmente põe em destaque o sentido das
exigências de uma fundamentação pós-convencional. Por isso, não há dúvidas de
que ele possui um conteúdo normativo. Porém, tal princípio se encontra num tal
nível de abstração, que consegue ainda ser neutro em relação ao direito e à moral,
referindo-se às normas de ação em geral
115
. Seu conteúdo explicita as condições
de validade de uma norma, adotando a necessidade de imparcialidade dos juízos
práticos como critério. Desse modo, o teste de validade por ele proposto consiste
em saber se uma norma “pode ou não ser considerada expressão de interesses
generalizáveis relativamente aos indivíduos efetiva e potencialmente afetados pela
sua implementação” 116. Daí porque a formulação proposta por Habermas:
“D: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam
dar seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”. 117
ao direito, trocando-o pelo enfoque de um ator que calcula as vantagens e que decide
arbitrariamente. Normas jurídicas devem poder ser seguidas com discernimento” (HABERMAS,
Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., pp. 157-158).
113
Como explica Schuartz: “Ao mexer nas condições sob as quais normas de comportamento
merecem a aceitabilidade generalizada dos seus destinatários, o processo de racionalização,
sociocultural desloca, definitivamente, a correspondente base de validade da tradição e do ethos de
uma comunidade particular para os arranjos discursivos nos quais as mais diferentes contribuições
apresentadas pelos mais diferentes interessados podem ser, explícita e publicamente, expostas,
defendidas, criticadas, aceitas e refutadas. É assim que o ‘discurso racional’ converte-se em
‘ultima instância’ no que se refere ao juízo sobre a validade de uma determinada norma” (Cf.
SCHUARTZ, ob. cit., p. 264).
114
“Com o abalo dos fundamentos sagrados desse tecido moral, têm início processos de
diferenciação. No nível do saber cultural, as questões jurídicas separam-se das morais e éticas. No
nível institucional, o direito positivo separa-se dos usos e costumes, desvalorizados como simples
convenções” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol
I..., p. 141).
115
Ibid., p. 142.
116
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 263-264.
117
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 142.
Sobre os conceitos constantes dessa formulação, Explica Habermas que: “O predicado ‘válidas’
refere-se a normas de ação e a proposições normativas gerias correspondentes; ele expressa um
sentido não específico de validade normativa, ainda indiferente à distinção entre moralidade e
legitimidade. Eu entendo por ‘normas de ação’ expectativas de comportamento generalizadas
temporal, social e objetivamente. Para mim, ‘atingido’ é todo aquele cujos interesses serão
afetados pelas prováveis conseqüências provocadas pela regulamentação de uma prática geral
através de normas. E ‘discurso racional’ é toda a tentativa de entendimento sobre pretensões de
83
Para se aplicar o princípio D como teste de validade de normas jurídicas, é
necessário, porém, uma especificação. Pois, como mencionado anteriormente,
essa formulação abstrata do princípio do discurso refere-se às normas de ação em
geral, podendo incluir não apenas normas jurídicas, como também normas morais.
Nesse sentido, a qualificação do princípio D como teste de validade de normas
jurídicas está ligada a um desdobramento desse princípio na forma específica de
um princípio democrático, enquanto, no que diz respeito à validade de normas
morais, esse desdobramento resulta no princípio moral. Essa especificação do
princípio D em princípio democrático ou em princípio moral é relevante, pois
determina não apenas os tipos de argumentos que contam para afirmar que uma
norma é válida – há argumentos aceitos no teste de validade jurídica que não
seriam aceitos para validar uma norma moral – como também quais os
correspondentes arranjos discursivos que devem estar envolvidos nesse teste
118
.
Além disso, essa distinção será necessária para entender, mais à frente, no item
3.3.2, o conceito de formação racional da vontade política, essencial para a
compreensão no modelo habermasiano de legitimação da ordem jurídica e do
poder administrativo.
Para o propósito da reconstrução do sistema de direitos, entretanto,
interessa mais imediatamente apenas a distinção entre as formas que o princípio D
pode assumir que diz respeito às condições de viabilização dos arranjos
discursivos. Isso porque, se o princípio do discurso exige que o teste sobre a
validade de uma norma seja – ainda que virtualmente – conduzido pelos próprios
validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições da comunicação que
permitem o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de
um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias. Indiretamente, a expressão
refere-se também a negociações, na medida em que estas são reguladas através de procedimentos
fundamentados discursivamente” (Ibid., loc. cit.).
118
“No primeiro caso, normas devem ser racionalmente fundamentadas somente por meio de
argumentos que atestem a sua validade para todas as pessoas capazes de formular juízos morais;
no outro caso, normas devem ser racionalmente justificadas também por meio de argumentos mais
restritivos quanto ao âmbito de validade, vale dizer, argumentos ético-políticos e pragmáticos 46.
Nesse sentido, o critério de validade básico do "atendimento igualitário dos interesses de todos"
significa no âmbito jurídico algo distinto do que significa no âmbito da moral. É a razão prática
como um todo que se faz presente nos processos de justificação de normas morais e é o caráter
constitutivo da referência ao ponto de vista particular de uma comunidade jurídica localizável no
espaço e no tempo que permite relativizar o alcance da pretensão de validade de uma norma
jurídica - ao menos no que não disser respeito ao necessário teste de compatibilidade da norma
com o estoque de normas morais válidas (algo que, segundo a posição ha bermasiana, também tem
que ser considerado critério de validade de normas jurídicas)” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 265266). Ver também: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade –
Vol. I..., pp. 142-144.
84
participantes dos discursos racionais, nos quais argumentos favoráveis e
contrários às pretensões de validade são apresentados, o princípio democrático
demanda, para sua operacionalização, a institucionalização jurídica dos arranjos
discursivos segundo os quais esse processo argumentativo irá se desenrolar. Isso
implica que seja deixada de lado a perspectiva do observador – isto é, de um
teórico que “diz para os civis quais são os direitos que eles teriam que reconhecer
reciprocamente, caso desejassem regular legitimamente sua convivência com os
meios do direito positivo”
119
–, até então adotada para a reconstrução do sistema
de direitos, a fim de que os próprios participantes possam aplicar, por si mesmos,
o princípio do discurso. O que faz com que seja necessário introduzir uma outra
categoria de direitos, a saber: “(4) Direitos fundamentais à participação, em
igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos
quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam
direito legítimo”120. Pois, como sujeitos do direito, os participantes só conseguirão
autonomia caso se entendam e ajam como autores dos direitos aos quais desejam
submeter-se como destinatários 121.
E, com isso, a reconstrução do sistema de direitos completa um círculo
“onde se encontram as perspectivas do destinatário e do autor de normas jurídicas
e é constatada a dependência recíproca – e a co-participação originária – da
autonomia privada e da autonomia pública na garantia das condições de
legitimidade de uma norma jurídica (e, em geral, de um ordenamento jurídico
como um todo)” 122. É nesse sentido que, para Habermas, a autonomia privada e a
autonomia pública dos cidadãos podem ser definidas de modo que a relação entre
ambas seja concebida não como uma relação de concorrência, na qual uma
119
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 163.
Ibid., p. 159.
121
“Após essa mudança de perspectivas, nós não podemos mais fundamentar iguais direitos de
comunicação e participação a partir de nossa visão [de observador]. Ora, são os próprios civis que
refletem e decidem – no papel de um legislador constitucional – como devem ser os direitos que
conferem ao princípio do discurso a figura de um princípio da democracia. (...) A liberdade
comunicativa está referida, antes de qualquer institucionalização, a condições de um uso da
linguagem orientado pelo entendimento, ao passo que as autorizações para o uso público da
liberdade comunicativa dependem de formas de comunicação asseguradas juridicamente e de
processos discursivos de consulta e de decisão. Estes fazem supor que todos os resultados obtidos
segundo a forma e o procedimento correto são legítimos. Iguais direitos políticos fundamentais
para cada um resultam, pois, de uma juridificação simétrica da liberdade comunicativa de todos os
membros do direito; e esta exige, por seu turno, uma formação discursiva da opinião e da vontade
que possibilita um exercício da autonomia política através da assunção dos direitos dos cidadãos”
(Ibid., p. 164).
122
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 267.
120
85
restringe a outra, mas como uma relação de co-originalidade
123
. Pois, “no final
das contas, a institucionalização jurídica do Medium do direito se realiza uno acto
com a institucionalização jurídica ‘concreta’ dos direitos subjetivos relativos à
autonomia privada, que, por sua vez, se realiza uno acto com o uso ‘originário’
dos direitos subjetivos relativos à autonomia pública, a qual, enfim, acaba por
coincidir com a institucionalização jurídica ‘concreta’ do ‘código do direito’” 124.
As quatro categorias de direitos subjetivos apresentadas até agora
abrangem o que se pode chamar de direitos subjetivos absolutos
125
. Isso porque
tais direitos decorrem diretamente da aplicação do princípio do discurso,
especificado sob a forma de princípio democrático, ao medium do Direito. São
eles os direitos generalizados (1) à maior medida possível de iguais liberdades
subjetivas; (2) ao status de membros espontâneos de uma comunidade jurídica
livremente constituída; (3) ao acesso à prestação jurisdicional na defesa e proteção
de interesses e direitos individuais; e (4) à participação em processos de formação
da opinião e vontade políticas.
Por fim, há que se mencionar, ainda, uma última categoria de direitos que
integra o sistema de direitos proposto por Habermas, qual seja a categoria dos “(5)
123
No capítulo 3 de Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, Habermas explora as
razões pelas quais a relação entre autonomia privada e autonomia pública dos indivíduos encontrase, atualmente, obscurecida. A justificativa para o desenvolvimento dessa etapa de seu raciocínio
decorre da constatação de que, tanto no âmbito da dogmática jurídica – no qual se verifica uma
dicotomia entre direito subjetivo (autonomia individual) e direito objetivo (lei), que dificulta a
compreensão adequada do aparente “paradoxo” de como a legitimidade pode surgir da legalidade
– quanto nos campos da teoria política e da filosofia do Direito – onde se desenvolveu a falsa idéia
de uma relação de concorrência entre direitos humanos e soberania popular, atualmente
exemplificada nos debates, nos EUA, entre as correntes teóricas políticas liberal e republicana –,
não se conseguiu pensar de forma harmônica a relação entre as liberdades privadas subjetivas
(autonomia privada) e a soberania popular (autonomia pública). Segundo Habermas, “em ambos
os casos, as dificuldades [para relacionar harmonicamente tais conceitos] podem ser explicadas,
não somente a partir de premissas da filosofia da consciência, mas também a partir de uma herança
metafísica do direito natural, ou seja, a partir da subordinação do direto positivo ao direito natural
ou moral” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol
I..., p. 115). Ao contrário de tais concepções, o autor alemão sustenta que há uma relação de cooriginalidade entre a autonomia privada e a autonomia pública dos indivíduos de uma comunidade
jurídica, que fica clara quando se decifra, através da teoria do discurso, a idéia da “auto-legislação”
nas sociedades modernas, segundo a qual os cidadãos devem ser, simultaneamente, autores e
destinatários das normas jurídicas. Assim, tanto o aparente paradoxo da legitimidade através da
legalidade – incompreensível a partir da dogmática jurídica – o quanto a relação – supostamente
problemática – entre direitos humanos e soberania do povo poderiam ser adequadamente
entendidos. O que, por outro lado, tornaria possível definir um sistema de direitos que contemple,
igualmente, a autonomia privada e à autonomia pública dos cidadãos, respondendo, então, à
pergunta acerca de quais seriam os direitos necessários para que indivíduos regulem
legitimamente, por meio do Direito, sua convivência. Ver a respeito: Ibid., pp. 115-138.
124
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 268.
125
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 160
86
Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e
ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento,
em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) a (4)”
126
. Trata-se dos
chamados direitos sociais, isto é, de direitos que “dão cobertura a exigências de
segurança social - entendida esta última tanto na dimensão da garantia de
condições materiais suficientes para a fruição dos direitos relativos à autonomia
privada e à autonomia pública, como na dimensão da proteção diante dos riscos
associados a problemas ecológicos e tecnológico-científicos”
127
. Os direitos
relativos a essa categoria são direitos fundamentados de modo relativo, pois
funcionam de forma “instrumental constitutiva”
128
com relação aos direitos
fundamentais das demais categorias. Isto é, sua inclusão no sistema de direitos se
justifica apenas na medida em que isso for necessário para um aproveitamento em
igualdade de chances dos direitos das demais categorias, “mas isso no sentido
forte de que os direitos absolutos que definem a autonomia privada e a autonomia
pública dos membros de uma comunidade jurídica implicam o reconhecimento
dos direitos relativos como condições necessárias para a legitimidade do
respectivo ordenamento jurídico - ou, em se tratando da sociedade moderna, de
um ordenamento jurídico qualquer”129.
Essa inserção dos direitos sociais no sistema de direitos é responsável por
introduzir um elemento de conexão da proposta de Habermas com a facticidade
das sociedades capitalistas modernas. Nesse sentido, representa um ponto
importante da teoria habermasiana, pois permite ao autor incorporar “a reflexão
crítica em relação aos limites das posições alternativas que confiam ingênua ou
inconscientemente nas promessas nominais dos catálogos standardizados de
direitos fundamentais adotados de maneira generalizada nos textos constitucionais
e tratados internacionais” 130.
126
Ibid., loc. cit..
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 269.
128
A expressão é de Luís Fernando Schuartz (Ibid., loc. cit.).
129
Ibid., pp. 269-270.
130
Ibid., p. 270.
127
87
3.3.2
Reconstrução dos princípios do Estado de Direito
No item anterior, procurei demonstrar que, em sua reconstrução do sistema
de direitos através da teoria do discurso, Habermas compreende os direitos
fundamentais como os pressupostos nos quais os membros de uma comunidade
jurídica moderna se apóiam quando pretendem regular as relações entre si,
legitimamente, através do medium do Direito – sem apelar, portanto, para motivos
de ordem religiosa ou metafísica. Em outras palavras, “nesses direitos reflete-se a
socialização horizontal dos civis, quase in statu nascendi”
131
, razão pela qual
haveria – como foi visto – uma relação de co-originalidade entre as autonomias
privada e pública dos cidadãos de uma comunidade jurídica. Assim, sob a ótica
discursiva, os direitos fundamentais estabelecem as condições necessárias para
tornar possível a integração e reprodução social por meio da comunicação e, desse
modo, revelam-se constitutivos para toda associação de membros jurídicos livres e
iguais.
Porém, esse ato auto-referencial de institucionalização jurídica da
autonomia política entre os indivíduos não seria suficiente para estabilizar-se a si
próprio. A sua consolidação – e perpetuação – exigiria a instauração, organização e
funcionamento de um poder estatal
132
. Isso porque, segundo Habermas, um
entrelaçamento duradouro entre autonomia pública e autonomia privada demandaria
um processo de institucionalização jurídica que não se limitasse apenas às
liberdades subjetivas de ação das pessoas privadas e às liberdades comunicativas
dos cidadãos, mas se estendesse, também, “ao poder político – já pressuposto com o
medium do direito – do qual depende a obrigatoriedade fática da normatização e da
implantação do direito”
133
. Assim, a auto-compreensão normativa das ordens
jurídicas modernas não se referiria apenas às condições necessárias para a
legitimidade de normas e processos de produção de normas (sistema de direitos),
mas também à legitimidade das estruturas de dominação política e do uso do
poder administrativo pelo Estado.
131
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 169
Ibid., loc. cit..
133
Ibid., loc. cit..
132
88
Justamente por isso, o passo seguinte de Habermas em sua reconstrução
dessa auto-compreensão do Estado de Direito moderno consiste na demonstração da
relação entre Direito e poder político. Haveria, segundo o autor, uma interligação
conceitual originária entre ambos. Vale dizer: tendo em vista, por um lado, que os
direitos subjetivos só podem ser estabelecidos e impostos por uma organização
capaz de tomar decisões que possam ser obrigatórias para a coletividade 134, e, por
outro, que a obrigatoriedade de tais decisões se deve à forma jurídica da qual as
mesmas se revestem
135
, seria correto afirmar que o conceito de poder político-
administrativo está pressuposto no conceito de direito legítimo e vice-versa. Em
resumo, nas palavras de Habermas:
“O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução,
porque os direitos têm que ser implantados, porque a comunidade de direito
necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a
identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que
ser implementados. Tais aspectos não constituem meros complementos,
funcionalmente necessários para o sistema de direitos, e sim, implicações
jurídicas objetivas, contidas in nuce nos direitos subjetivos. Pois o poder
organizado politicamente não se achega ao direito como que a partir de fora, uma
vez que é pressuposto por ele: ele mesmo se estabelece em formas do direito. O
poder político só pode desenvolver-se através de um código jurídico
institucionalizado na forma de direitos fundamentais”. 136
Dessa interdependência entre Direito e poder político resulta que também o
poder administrativo do Estado – na medida em que é exercido por meio do Direito
– deve poder ser considerado legítimo. E a fonte da legitimação das estruturas de
dominação política e do uso do poder administrativo pelo aparato estatal reside no
processo de normatização legítima do Direito. A explicação detalhada de como
134
“O Medium do direito, na qualidade de Kommunikationsmedium, serve para motivar um destinatário ou um grupo de destinatários a aceitar uma determinada obrigação. A especificidade deste
Medium está na sua capacidade de gerar a motivação necessária para a aceitação da proposta
normativa seja por meio da referência a um estoque de argumentos intersubjetivamente válidos,
seja por meio da mobilização de um estoque de poder. A satisfação da sua ‘pretensão de vigência
social’ requer a possibilidade do recurso a um poder estocado que, em particular nas sociedades
modernas, é monopolizado por um aparato estatal organizado. Do ponto de vista normativo, é esta
relação de dependência entre direito e poder que reclama a necessidade de legitimação do poder, e
é nesta exigência normativa que consiste a idéia do Estado de Direito”. (Cf. SCHUARTZ, ob. cit.,
p. 271).
135
“O poder político-administrativo, entendido como capacidade de tomar e implementar decisões
coletivamente vinculantes, somente pode estabilizar-se, i.e. tornar-se macrossocialmente relevante,
se e enquanto aparecer na forma de poder organizado, o que requer, por sua vez, o direito como
meio de organização: poder organizado somente existe enquanto viabilizado pela
institucionalização jurídica de cargos, relações de hierarquia, etc. E, novamente, tem-se a idéia de
Estado de Direito a reclamar desta relação de dependência que seja selada exclusivamente por
direito legítimo” (Ibid., loc. cit.).
136
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I…, p.
171.
89
ocorre esse processo é desenvolvida por Habermas no capítulo 4 da obra Direito e
Democracia entre Facticidade e Validade.
De forma resumida, pode-se dizer que Habermas parte do argumento, já
mencionado, da existência de uma conexão funcional entre os códigos do Direito e
do poder. Ou seja, ambos os códigos, embora se diferenciem e possuam funções
próprias, exercem, também, funções complementares entre si
137
. E isso, na
modernidade, está diretamente ligado ao fato de que o poder político só pode se
desenvolver como poder legal, sob a forma do Direito positivo. Assim, o poder
político
complementa
a
função
de
estabilização
das
expectativas
de
comportamento – própria ao Direito – à medida que contribui, por meio da
ameaça da coerção, para o surgimento da segurança jurídica, que permite aos
destinatários das normas jurídicas calcularem as conseqüências de seus próprios
comportamentos e o dos demais membros da comunidade jurídica
138
. O Direito,
por sua vez, contribui para a função própria do poder organizado em forma de
Estado através das normas de competência
139
, que revestem as instituições do
Estado com autorizações, e das normas de organização, que estabelecem os
procedimentos segundo os quais se criam programas de leis que são elaboradas na
administração ou na justiça 140.
Essa relação entre código do Direito e código do poder não significa,
porém, que há uma “troca auto-suficiente e horizontal entre direito e poder
137
“Fazemos, pois, uma distinção entre as funções que o direito e o poder preenchem um em
relação ao outro, e as funções próprias que o direito e o poder, enquanto códigos, desempenham
para a sociedade em geral. / Ao emprestar forma jurídica ao poder político, o direito serve para a
constituição de um código de poder binário. Quem dispõe do poder pode dar ordens aos outros. E,
neste sentido, o direito funciona como meio de organização do poder do Estado. Inversamente, o
poder, na medida em que reforça as decisões judiciais, serve para a constituição de um código
jurídico binário. Os tribunais decidem sobre o que é direito e o que não é. Nesta medida, o poder
serve para a institucionalização política do direito” (Ibid. p. 182).
138
“Sob esse ponto de vista, as normas jurídicas têm que assumir a figura de determinações
compreensíveis, precisas e não-contraditórias, geralmente formuladas por escrito; elas têm que ser
públicas, conhecidas por todos os destinatários; elas não podem pretender validade retroativa; e
elas têm que ligar os respectivos fatos a conseqüências jurídicas e regulá-los em geral de tal modo
que possam ser aplicados da mesma maneira a todas as pessoas e a todos os casos semelhantes. A
isso corresponde uma codificação que confere às regras do direito um elevado grau de consistência
e explicação conceitual. Esta é a tarefa de uma jurisdição que elabora cientificamente o corpus
jurídico, submetendo-o a uma sistematização e a uma configuração dogmática” (Ibid., pp. 182183).
139
“O direito não se esgota simplesmente em normas de comportamento, pois serve à organização
e à orientação do poder do Estado. Ele funciona no sentido de regras constitutivas, que não
garantem apenas a autonomia pública e privada dos cidadãos, uma vez que também produzem
instituições políticas, procedimentos e competências” (Ibid., p. 183).
140
Ibid., loc.cit.
90
político”
141
. Em condições pós-metafísicas de justificação do poder, o simples
fato de revestir-se o poder estatal da forma jurídica não é suficiente para torná-lo
legítimo 142.
Assim, se é certo que o poder político, nas sociedades modernas, deve
sua autoridade normativa unicamente à forma do Direito, o fundamento
legítimo dessa autoridade depende da ligação das normas jurídicas com as
condições de sua elaboração num processo democrático juridicamente
institucionalizado, que, presumivelmente, viabiliza o exercício da autonomia
política dos cidadãos por meio de procedimentos deliberativos discursivamente
orientados. Justamente por isso, a hipótese sustentada por Habermas é a de que o
sistema jurídico somente é capaz de garantir a realização adequada de sua função
de complementação do poder político quando traz consigo uma presunção de
legitimidade derivada, em última análise, da força (ilocucionária) socialmente
integradora da ação comunicativa 143.
Essa relação interna entre ação comunicativa e presunção de legitimidade
dos resultados dos procedimentos discursivamente estruturados e juridicamente
institucionalizados de formação da vontade política, e entre estes e o poder
juridicamente organizado do aparato estatal, apenas se sustentaria se e enquanto
mediada por um tipo particular de poder político, que Habermas denomina “poder
comunicativo” 144.
Habermas estabelece, assim, uma distinção entre duas espécies de poder
político: poder comunicativo e poder administrativo. Poder administrativo é o
poder político constituído sob a forma jurídica, ao passo que o poder
141
Ibid., loc. cit..
“Nas sociedades tradicionais, fora possível produzir, um nexo plausível entre o direito
estabelecido de fato e o direito legitimamente pretendido, uma vez que estavam preenchidas,
de modo geral, as condições do seguinte cenário: Tendo como pano de fundo cosmovisões
religiosas reconhecidas, o direito ocupara inicialmente uma base sagrada; esse direito, via de
regra administrado e interpretado por juristas teólogos, era amplamente aceito como
componente reificado de uma ordem salvífica divina, ficando subtraído, enquanto tal, ao
poder humano. O próprio detentor do poder político, na qualidade de senhor supremo do
tribunal, estava subordinado a esse direito natural. O direito normatizado burocraticamente
pelo senhor, ou seja, o direito ‘positivo’ no sentido pré-moderno, apoiava sua autoridade na
legitimidade do senhor (mediada através da competência judicial), na sua interpretação de
uma ordem jurídica dada preliminarmente, ou no costume, sendo que o direito
consuetudinário extraía sua autoridade da tradição. Porém, com a passagem para a modernidade, a cosmovisão religiosa obrigatória decompôs-se em forças de fé subjetivas, fazendo
com que o direito perdesse sua indisponibilidade e a dignidade metafísica” (Ibid., pp. 184185).
143
Ibid., p. 115.
144
Ibid., pp. 185-186. Ver, ainda: SCHUARTZ, ob. cit., pp. 272-273.
142
91
comunicativo reside no potencial de formação de uma vontade comum numa
comunicação não coagida e, desse modo, não pode ser efetivamente possuído por
ninguém 145 e nem criado por meio do Direito – ainda que seja elemento essencial
para a produção de normas jurídicas legítimas.
O poder comunicativo é gerado por meio do uso público das liberdades
comunicativas, isto é, “da capacidade de todo e qualquer sujeito que fala e age de
posicionar-se, enquanto participante de interações orientadas no entendimento
mútuo, em face das ofertas comunicativas dos demais participantes” 146. A rigor, o
poder comunicativo nasce quando, da utilização dessas liberdades comunicativas,
resulta uma convergência entre os participantes do discurso, sustentada pela
aceitação – expressa ou tácita – de pretensões de validade normativa a partir de
argumentos intersubjetivamente compartilhados entre eles. Isto decorre do fato de
que, como visto no item 3.1, as convicções produzidas através do discurso e
compartilhadas intersubjetivamente possuírem uma força motivadora, ainda que
“não seja mais do que a pequena força motivadora que está presente nos bons
argumentos” 147 – isto é a força ilocucionária.
É nesse sentido que se pode afirmar que o uso público de liberdades
comunicativas é um gerador de potenciais de poder
148
, política e juridicamente
relevante. Vale dizer, a partir do momento em que as liberdades comunicativas
dos civis são mobilizadas – em processos de entendimento de maior amplitude e
juridicamente institucionalizados – para a formação de vontade política que irá
influenciar a produção do Direito legítimo, as obrigações ilocucionárias geradas
nesse processo se constituem num potencial que os detentores do poder
administrativo não podem – ou, ao menos, não devem – ignorar 149.
Assim, o poder comunicativo está na base tanto da legitimação do poder
administrativo como da constituição do direito legítimo que responde
145
“(…) segundo Hannah Arendt, ninguém pode ‘possuir’ [o poder comunicativo]
verdadeiramente: ‘o poder surge entre os homens quando agem em conjunto, desparecendo tao
logo eles se espalham’” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e
Validade – Vol. I..., pp. 185-186).
146
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 273. Ver também: HABERMAS, , Jürgen. Direito e Democracia
entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 186.
147
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p.
186.
148
Ibid., loc.cit...
149
Ibid., pp. 186-187.
92
imediatamente por tal legitimação
150
, de modo que, se o poder da administração
do Estado, constituído conforme o Direito, não estiver apoiado num poder
comunicativo normatizador, a fonte da qual o Direito extrai sua legitimidade
secará 151. Daí por que, segundo Habermas, o Direito não é apenas constitutivo do
poder político no sentido de sua organização, mas é também o medium através do
qual poder comunicativo se transforma em poder administrativo
152
. E essa
transformação tem o sentido de uma procuração para agir no quadro de permissões
legais
153
. Por meio dela, atrela-se a atuação – implementação e aplicação de
normas jurídicas – do aparelho do Estado à vontade política resultante do
exercício da autonomia pública dos cidadãos 154.
Note-se que a tese da vinculação do poder administrativo ao poder
comunicativo encontra seu fundamento na leitura que Habermas faz dos processos
de formação da opinião e vontade políticas como processos discursivos
150
155
. Isso
“A atribuição dessa dupla função ao poder comunicativo é sistematicamente justificável, uma
vez que aquilo que aparece, do ponto de vista cognitivo, como uma condição de satisfação da
pretensão de legitimidade inerente às normas do direito positivo, vale dizer: a possibilidade de
referência a um estoque de razões intersubjetivamente válidas cuja existência nós estamos
autorizados a presumir em virtude da estrutura discursiva que caracteriza o procedimento de
produção das referidas normas, é algo que, do ponto de vista motivacional, surge como único fator
admissível de instituição daquelas obrigações ilocucionárias que respondem pela constituição do
poder político que está na base de todo direito legítimo” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 274-275).
151
Ibid., p. 186.
152
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p.
190. Ver, ainda: SCHUARTZ, ob. cit., p. 271.
153
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p.
190.
154
Como observa SCHUARTZ, esta leitura, que resulta “de uma reconstrução racional - i.e.
justificadora - das ‘intuições normativas’ supostamente encarnadas nas instituições do Estado de
Direito moderno, em particular, nos seus princípios”, é “o cerne da reconstrução habermasiana da
idéia do Estado de Direito, entendida no sentido de uma exigência normativa endereçada ao modo
de circulação do poder no interior do sistema político-jurídico”. Isso explica a ênfase dada por
Habermas à necessidade da institucionalização jurídica desse tipo de procedimentos. Como pontua
SCHUARTZ, em última análise, “a legitimidade (racionalidade) de normas e instituições Jurídicas
em geral dependeria da possibilidade de sua reconstrução ou enquanto condições ‘lógica’ ou
faticamente necessárias para tal institucionalização e sua estabilização, ou então enquanto resultados de procedimentos de produção de normas discursivamente estruturados e já
institucionalizados juridicamente” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit.,p. 276).
155
Segundo Habermas: “Os direitos de participação política remetem à institucionalização jurídica
de uma formação pública da opinião e da vontade, a qual culmina em resoluções sobre leis e
políticas. Ela deve realizar-se em formas de comunicação, nas quais é importante o princípio do
discurso, em dois aspectos: O princípio do discurso tem inicialmente o sentido cognitivo de filtrar
contribuições e temas, argumentos e informações, de tal modo que os resultados obtidos por este
carrinho têm a seu favor a suposição da aceitabilidade racional: o procedimento democrático deve
fundamentar a legitimidade do direito. Entretanto, o caráter discursivo da formação da opinião e da
vontade na esfera pública política e nas corporações parlamentares implica, outrossim, o sentido
prático de produzir relações de entendimento, (...) desencadeando a força produtiva da liberdade
comunicativa. O poder comunicativo de corvicções comuns só pode surgir de estruturas da
93
implica assumir, no sentido do que foi dito no item 3.2, que as próprias
instituições do Estado moderno – e, em particular, seus princípios –, dado que
cristalizadas através do medium do Direito, encarnariam as estruturas da racionalidade comunicativa que possibilitariam presumir a legitimidade (racionalidade)
do resultado de tais processos. Tal presunção tem como base a assunção da
existência de “uma relação de equivalência entre condições de aceitabilidade
racional ou condições de racionalidade, de um lado, e condições de sucesso em
procedimentos estruturados discursivamente, de outro lado”
156
. Pois, em
procedimentos institucionalizados juridicamente e discursivamente estruturados,
os participantes têm que agir comunicativamente – seja por meio de um agir
comunicativo no “sentido forte” daqueles que agem orientados pelo entendimento,
seja através de um agir comunicativo em “sentido fraco” dos que agem segundo
interesses próprios (ver supra, item 3.1) – se quiserem ser bem sucedidos.
Tendo isso em vista, “é possível desenvolver a idéia de um Estado de
Direito com o auxílio de princípios segundo os quais o Direito legítimo é
produzido a partir do poder comunicativo e este último é novamente transformado
em poder administrativo pelo caminho do direito legitimamente normatizado” 157.
Tais princípios são propostos a partir da perspectiva da institucionalização jurídica
da rede de discursos e negociações no interior da qual os processos de formação
da opinião e da vontade políticas devem se realizar. Através desses processos, a
pergunta “o que devemos fazer?”, constitutiva do exercício da autonomia política
dos cidadãos, deve poder ser respondida, racionalmente, de diferentes maneiras158,
intersubjetividade intacta. (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e
Validade – Vol. I..., pp. 190-191)
156
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 276. Nas palavras de Habermas: “A aceitabilidade racional dos
resultados obtidos em conformidade com o processo explica-se pela institucionalização de formas
de comunicação interligadas que garantem de modo ideal que todas as questões relevantes, temas e
contribuições, sejam tematizados e elaborados em discursos e negociações, na base das melhores
informações e argumentos possíveis” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre
Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 213).
157
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p.
212.
158
Para Habermas, o direito serve como medium para a auto-organização de comunidades jurídicas
que se afirmam, num ambiente social, sob determinadas condições históricas. Com isso, imigram
para o direito conteúdos concretos e pontos de vista teleológicos. Diferentemente das regras morais,
que, ao formular aquilo que deveria ser do interesse simétrico de todos, exprimem uma vontade geral
pura e simples, as regras jurídicas exprimem, também, a vontade particular dos membros de uma
determinada comunidade jurídica. Ou seja, “enquanto a vontade moralmente livre é, de certa forma,
virtual, pois afirma apenas aquilo que pode ser aceito racionalmente por qualquer um, a vontade
política de uma comunidade jurídica, que também deve estar em harmonia com idéias morais, é a
expressão de uma forma de vida compartilhada intersubjetivamente, de situações de interesses dados
e de fins pragmaticamente escolhidos” (Ibid., p. 191) E isso faz com que se amplie o leque dos
94
argumentos relevantes para a formação política da vontade: aos argumentos morais
acrescentam-se razões pragmáticas e éticas. Em resumo, Habermas explica a interligação
entre a normatização jurídica e a formação do poder comunicativo existente na formação
discursivamente estruturada da opinião e da vontade de um legislador político lançando mão
de um modelo processual que segue a lógica da argumentação: “ele parte de questionamentos
pragmáticos, passa pela formação de compromissos e discursos éticos, atinge a clarificação de
questões morais, chegando finalmente a um controle jurídico de normas. Nesta seqüência
modifica-se a constelação formada pela razão e pela vontade. Com o deslocamento do sentido
ilocucionário do ‘dever-ser’, modifica-se também o conceito da vontade ao qual esses
imperativos se dirigem, pelo caminho que inclui desde recomendações técnicas ou estratégicas, conselhos clínicos e mandamentos morais” (Ibid., p. 204). Ou seja: “as constelações
formadas pela razão e pela vontade modificam-se de acordo com os aspectos pragmáticos,
éticos e morais da matéria a ser regulada. A partir dessas constelações se esclarece o problema
do qual parte a formação discursiva de uma vontade política comum” (Ibid., p. 205) Desse
modo, caso se suponha que as questões políticas se colocam inicialmente na forma pragmática
de uma escolha valorativa de fins coletivos e de uma consideração pragmática de estratégias
que o legislador político deseja votar, poder-se-ia imaginar que o início do modelo processual
de formação discursivamente estruturada da opinião e da vontade de um legislador político se
dá com a “fundamentação pragmática de programas gerais, que ficam na dependência de uma
aplicação e de uma execução” (Ibid., pp. 205-206). Tal fundamentação dependeria, primeiro, “de
uma interpretação correta da situação e da descrição adequada do problema que se tem pela frente,
da afluência de informações relevantes e confiáveis, da elaboração correta dessas informações,
etc.” (Ibid., p. 206). Note-se que nesse primeiro estágio da formação da opinião e da vontade, fazse necessário um saber especializado, “que é naturalmente falível e raras vezes neutro do ponto de
vista valorativo, sendo, portanto, controverso” (Ibid., loc. cit.). Vale dizer: “Nas próprias avaliações políticas de perícias e contra-perícias, entram em jogo pontos de vista que dependem de
preferências” (Ibid., loc. cit.). E nessas preferências, se manifestam situações de interesses e
orientações axiológicas, que, num segundo plano, entram em concorrência aberta entre si,
obrigando a uma mudança no nível do discurso. Pois os discursos pragmáticos dizem respeito
apenas à “construção e a avaliação das conseqüências de possíveis programas, não a formação
racional da vontade, a qual só pode aceitar uma sugestão quando se apropria dos fins e valores
hipoteticamente pressupostos” (Ibid., loc. cit.). Assim, prosseguindo a controvérsia em torno de
argumentos, o modo como ela será decidida dependerá do aspecto sob o qual a matéria a ser
regulamentada é acessível a um esclarecimento – em termos de justificativas racionais – posterior.
De modo que: “Quando se trata diretamente de um questionamento moralmente relevante (...)
então é preciso lançar mão de discursos que submetem os interesses e orientações valorativas
conflitantes a um teste de generalização no quadro do sistema de direitos interpretados e
configurados constitucionalmente. Ao contrário, quando se trata de um questionamento eticamente
relevante (...) então é o caso de se pensar em discursos de auto-entendimento, que passam pelos
interesses e orientações valorativas conflitantes, e numa forma de vida comum que traz
reflexivamente à consciência concordâncias mais profundas” (Ibid., pp. 206-207). Entretanto, dada
a complexidade e o pluralismo existente nas sociedades contemporâneas, nem sempre essas
alternativas estarão abertas. Nesses casos, “resta a alternativa de negociações que exigem
evidentemente a disposição cooperativa de partidos que agem voltados ao sucesso” (Ibid., p. 207).
Segundo Habermas, “negociações naturais ou não-reguladas apontam para compromissos
aceitáveis pelos participantes sob três condições. Tais compromissos prevêem um arranjo que é: a)
vantajoso para todos; b) que exclui pingentes que se retiram da cooperação; c) exclui explorados
que investem na cooperação mais do que ganham com ela”. Esses processos de negociação seriam
adequados para situações nas quais não é possível neutralizar as relações de poder, como é
pressuposto nos discursos racionais. Os compromissos resultantes dessas negociações contêm um
acordo que estabelece um equilíbrio entre interesses conflitantes. Assim, “enquanto um acordo
racionalmente motivado se apóia em argumentos que convencem da mesma maneira todos os
partidos, um compromisso pode ser aceito por diferentes partidos por razões diferentes” (Ibid., loc.
cit.). Por outro lado, “a corrente discursiva de uma formação racional da vontade romperia com o
elo de um tal compromisso, caso o princípio do discurso não pudesse valer, ao menos
indiretamente, em tais negociações” (Ibid., pp. 207-208). Desse modo, embora não se realize
diretamente nas negociações e compromissos, o princípio do discurso garante, nesses casos, um
consenso não-coercitivo de forma indireta, “desdobrando-se através de procedimentos que regulam
as negociações sob pontos de vista da imparcialidade” (Ibid., p. 208). Pois, “se a negociação de
95
na medida em que se refira a questões colocadas nos planos pragmático
160
159
, ético
e moral 161.
O primeiro princípio do Estado de Direito proposto por Habermas é o
princípio da soberania popular, segundo o qual todo o poder do Estado emana do
povo. É neste princípio que Habermas enxerga o elo (a “charneira”) entre o
compromissos decorrer conforme procedimentos que garantem a todos os interesses iguais
chances de participação nas negociações e na influenciação recíproca, bem como na concretização
de todos os interesses envolvidos, pode-se alimentar a suposição plausível de que os pactos a que
se chegou são conformes à equidade” (Ibid., loc. cit.). Importante notar, porém que, “dado que a
formação de compromissos não pode substituir discursos morais, não se pode reduzir a formação
política da vontade à formação de compromissos” (Ibid., p. 209). Isso porque “as condições
procedimentais, que conferem aos compromissos faticamente selados a suposição de eqüidade,
precisam ser justificadas em discursos morais” (Ibid., loc. cit.). O mesmo vale para discursos éticopolíticos. Seus resultados têm de ser ao menos compatíveis com princípios morais.
159
“Questões pragmáticas colocam-se na perspectiva de um ator que procura os meios
apropriados para a realização de preferências e fins que já são dados. Essas instruções para
a ação têm a forma semântica de imperativos condicionados. Sua validade repousa, em
última instância, no saber empírico que elas assimilam. Elas estão fundamentadas em
discursos pragmáticos. Nestes, são determinantes os argumentos que referem o saber
empírico a preferências dadas e fins estabelecidos e que julgam as conseqüências de
decisões alternativas (que geralmente surgem sem que se tenha ciência) de acordo com
máximas estabelecidas. Todavia, a partir do momento em que os próprios valores orientadores tornam-se problemáticos, a pergunta: ‘o que devemos fazer?’ aponta para além do
horizonte da racionalidade teleológica” (Ibid., pp. 200-201).
160
“Questões ético-políticas colocam-se na perspectiva de membros que procuram obter
clareza sobre a forma de vida que estão compartilhando e sobre os ideais que orientam seus
projetos comuns de vida. A questão ético-existencial: quem sou eu? quem desejo ser? que tipo
de vida é bom para mim?, colocada no singular, repete-se no plural, modificando, desta
forma, o seu sentido. A identidade de um grupo refere-se às situações nas quais os membros
podem dizer enfaticamente ‘nós’; ela não constitui uma identidade-eu em tamanho grande, e
sim, o seu complemento. O modo como nós nos apropriamos das tradições e formas de vida
nas quais nascemos e como as continuamos seletivamente decide sobre quem nós somos e
queremos ser enquanto cidadãos”. (Ibid., p. 201)
161
Como visto, para Habermas, em discursos pragmáticos, examinamos se as estratégias de
ação são adequadas a um fim, pressupondo que nós sabemos o que queremos; e, em discursos
ético-políticos, nos certificamos de uma configuração de valores sob o pressuposto de que nós
ainda não sabemos o que queremos realmente. No entanto, para ele, “uma boa fundamentação
precisa levar em conta um outro aspecto – o da justiça. Antes de querer ou aceitar um programa,
é preciso saber se a prática correspondente é igualmente boa para todos. Com isso desloca-se,
mais uma vez, o sentido da pergunta: ‘o que devemos fazer?’. Em questões morais, o ponto de
vista teleológico, que nos permite enfrentar problemas por meio de uma cooperação voltada a
um fim, desaparece por trás,do ponto de vista normativo, sob o qual nós examinamos a
possibilidade de regular nossa convivência no interesse simétrico de todos. Uma norma só é
justa, quando todos podem querer que ela seja seguida por qualquer pessoa em situações
semelhantes. Mandamentos morais têm a forma semântica de imperativos categóricos ou
incondicionais. O que se ‘deve’ fazer significa aqui que a prática correspondente é justa. E tais
deveres são fundamentados em discursos morais. Neles são decisivos os argumentos que
conseguem mostrar que os interesses incorporados em normas contestadas são pura e
simplesmente generalizáveis. Em discursos morais, a perspectiva etnocentrista de uma
determinada coletividade se alarga, assumindo a perspectiva abrangente de- uma comunidade
comunicativa não-circunscrita, onde cada membro se coloca na situação, na compreensão e na
autocompreensão do mundo de cada um dos outros, e onde todos praticam em comum a
assunção ideal de papéis (Ibid., pp. 202-203).
96
sistema de direitos e a construção do Estado de Direito 162. Isso porque, através do
princípio da soberania popular, o direito subjetivo à participação, com igualdade
de chances, na formação democrática da vontade, vem ao encontro da
possibilidade
jurídico-objetiva
de
uma
prática
institucionalizada
de
autodeterminação dos cidadãos.
Assim, a idéia contida no princípio da soberania popular não é outra senão
a da auto-legislação, correspondente ao exercício da autonomia política dos
cidadãos. Ou seja, o exercício do poder político é orientado e se legitima pelas
normas jurídicas que os cidadãos criam para si mesmos em processos
democráticos de formação da opinião e da vontade, estruturados discursivamente.
Em última análise, tais processos podem ser encarados como mecanismos para
soluções de problemas, que garantem um tratamento racional de questões
políticas. São eles que tornam possível o uso e o emprego efetivo de iguais
liberdades
comunicativas,
uma
vez
que
obrigam
os
participantes
e
simultaneamente os estimulam a fazer uso da razão prática em suas dimensões
pragmática, ética e moral, ou, se for o caso, a buscar um equilíbrio eqüitativo dos
seus interesses 163.
Portanto, interpretado pela teoria do discurso, o princípio da soberania
popular significa, que todo o poder político se depreende do poder comunicativo
dos cidadãos 164. Note-se que essa exigência de ligação entre poder administrativo
e poder comunicativo não ignora a impossibilidade prática de que todos os
cidadãos estejam reunidos simultaneamente para deliberar, diretamente uns com
os outros, acerca de todas as decisões a serem tomadas sobre o exercício do poder
político. A alternativa para essa questão estaria na criação de corporações
deliberativas representativas, segundo o princípio parlamentar. Contudo, vale
destacar que a composição (eleições, garantias, organização) e o funcionamento
(regras de decisão – princípio da maioria, quórum para aprovação etc.) das
corporações parlamentares devem ser regulamentados à luz do princípio do
discurso, “de tal modo que os pressupostos comunicativos necessários para
discursos pragmáticos, éticos e morais, de um lado, e as condições de negociações
162
Ibid., loc. cit..
Ibid., loc. cit..
164
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p.
213.
163
97
eqüitativas, de outro lado, possam ser preenchidas satisfatoriamente”
165
. Da
observância ao princípio do discurso resultam, ainda, as exigências de pluralidade
de concepções políticas (princípio do pluralismo político) e de complementação
da formação da opinião e da vontade parlamentares através de uma “formação
informal da opinião na esfera pública política, aberta a todos os cidadãos”. Este
ponto é extremamente caro a Habermas, uma vez que, segundo o autor:
“O conteúdo do princípio da soberania popular só se esgota através do princípio
que garante esferas públicas autônomas e do princípio da concorrência entre os
partidos. Ele exige uma estruturação discursiva das arenas públicas nas quais
circulações comunicativas, engrenadas anonimamente, se soltam do nível
concreto das simples interações. Uma formação informal da opinião, que prepara
a formação política da vontade influindo nela, não é sobrecarregada pela
institucionalização de uma deliberação entre pessoas presentes que buscam uma
tomada de decisão.” 166
Essas arenas, que compõem a denominada esfera pública, devem estar
protegidas pelos direitos fundamentais a fim de que possam viabilizar o
surgimento do poder comunicativo por meio do livre fluxo livre de opiniões,
pretensões de validade e tomadas de posição.
Mas, além dessas exigências, a ligação do poder administrativo ao poder
comunicativo dos cidadãos demanda, também, o reconhecimento de outros
princípios. O primeiro deles seria o princípio da ampla garantia legal do
indivíduo, assegurado através de um Judiciário independente. Isso porque, as
comunicações políticas dos cidadãos na esfera pública deságuam nos parlamentos
e se transformam em lei. A rigor, a formação política da vontade tem como
objetivo final atingir a atividade legislativa, pois ela própria surge da configuração
e interpretação do sistema dos direitos que os cidadãos se reconheceram
mutuamente através de leis e, além disso, o poder estatal só pode ser organizado e
dirigido legalmente
167
. Ao generalizar expectativas normativas, as leis (Direito
positivo) estabelecem a base para as pretensões jurídicas dos indivíduos. Tais
pretensões resultam da aplicação de leis a casos singulares, seja pelos caminhos
da administração, seja pelo caminho auto-executivo, e, caso frustradas, podem ser
exigidas judicialmente.
Porém, para impor suas decisões, a Justiça deve contar com a
possibilidade da utilização dos meios de repressão do aparelho do Estado.
165
Ibid., p. 214.
Ibid. loc. cit..
167
Ibid., pp. 214-215.
166
98
Por isso, a fim de evitar o risco de auto-programação, a Justiça deve não
apenas estar impedida de exercer a atividade legislativa, como também
vincular-se
às
normas
jurídicas
democraticamente
produzidas
pelo
parlamento (princípio da ligação da justiça ao direito vigente).
É dessa maneira, portanto, que os direitos fundamentais dos indivíduos são
protegidos juridicamente – administrativa e judicialmente – no Estado de Direito.
Importante notar que esse mecanismo de proteção estatal dos direitos
fundamentais de acordo com divisão de competências entre legislação e aplicação
do direito remete, em última análise, a uma diferença de lógica argumentativa
entre fundamentação e aplicação de normas. Isto é, discursos de fundamentação e
de aplicação precisam ser institucionalizados juridicamente de diferentes
maneiras. Enquanto, nos discursos de fundamentação, haveria somente
participantes, cujas interações, estabelecidas horizontalmente, são reguladas,
discursivamente, pelas regras do procedimento, nos discursos de aplicação
seria preciso decidir qual das normas consideradas válidas é a adequada
numa situação cujas características foram descritas da forma mais completa
possível 168.
Ou seja, ao poder administrativo (discursos de aplicação) não caberia
interferir nas premissas que se encontram na base tanto das decisões do
parlamento que resultaram numa lei, quanto da Justiça, ao interpretar essa mesma
lei (discursos de fundamentação)
169
. A necessidade de vedação a esse tipo de
interferência do poder administrativo aparece de forma ainda mais evidente caso
se leve em conta que Justiça não pode prescindir do poder administrativo para que
sejam implementadas as decisões judiciais e que, em última instância, a própria
legalidade da atuação do poder administrativo deve – se questionada – ser
decidida pela Justiça. Nessa idéia reside o sentido nuclear da separação dos
poderes do Estado, representado nos princípios da legalidade da administração e
do controle judicial e parlamentar da administração. Como explica Habermas:
168
Ibid., p. 215.
O caso da jurisdição constitucional, isto é, o controle de constitucionalidade das leis por um
tribunal constitucional, é um caso à parte, tratado por Habermas, separadamente, no capítulo VI de
Democracia e Direito entre Facticidade e Validade. Não explorarei, porém, o tema em razão de
não guardar relação direta com os objetivos do presente trabalho. Mesmo porque, como
mencionado no primeiro capítulo, os tribunais brasileiros – tanto o STF quanto o STJ – têm
respeitado e confirmado a atuação normativa das agências reguladoras brasileiras. Assim, o foco,
aqui, está direcionado muito mais para a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo do que
entre estes e o Judiciário.
169
99
“Enquanto o poder administrativo é consumido para a instalação,
organização e aplicação do direito, opera à maneira de condições
possibilitadoras. Quando, porém, a administração assume outras funções,
que não as administrativas, há uma submissão de processos da legislação e
da jurisprudência sob condições limitadoras. Tais intervenções ferem os
pressupostos comunicativos de discursos legislativos e jurídicos, estorvando
os processos de entendimento dirigidos pela argumentação, que são os
únicos capazes de fundamentar a aceitabilidade racional de leis e decisões
judiciais. Por isso, a autorização do executivo para a promulgação de
normas jurídicas necessita de uma norma especial, conforme ao direito
administrativo”. 170
Assim, se faz valer o princípio da proibição da arbitrariedade no interior
do Estado. O que significa, da perspectiva dos indivíduos, que “os direitos que os
cidadãos inicialmente se atribuem na dimensão horizontal de interações
cidadão-a-cidadão precisam estender-se, a partir do momento em que se
constituiu um poder executivo, à dimensão vertical das relações dos cidadãos
com o Estado”
171
direitos de defesa
. Com isso, tais direitos assumem o sentido adicional de
172
, que determinam o conteúdo do princípio da separação
entre Estado e sociedade.
Normalmente, tal princípio é associado à experiência concreta do
Estado liberal burguês. Contudo, do modo como Habermas o formula, o
princípio da separação ente Estado e sociedade apenas veicula, de forma
geral, “a garantia geral jurídica de uma autonomia social que atribui a cada um,
enquanto cidadão, as mesmas chances de utilizar-se de seus direitos políticos de participação e de comunicação” 173, não coincidindo, assim, necessariamente, com apenas um
determinado modelo histórico de Estado.
Nesse sentido, a versão discursiva do princípio da separação entre Estado e
sociedade teria, como essência, a criação na sociedade de uma esfera de proteção dos
indivíduos em face do Estado não somente para que eles possam usufruir de sua
autonomia privada, mas, também, de sua autonomia pública. Visto dessa perspectiva, tal
princípio pressupõe a existência, consolidação e fortalecimento de uma sociedade civil,
derivada das relações de associação e participação política dos cidadãos – isto é, da
capacidade dos indivíduos se associarem a fim de exercer sua autonomia política – além
170
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p.
217.
171
Ibid., loc. cit..
172
Como lembra Habermas: “Esses direitos ‘liberais’ em sentido mais estrito formam,
inclusive, do ponto de vista histórico, o núcleo das declarações dos direitos humanos. Deles
nasceu o sistema dos direitos - inicialmente fundado num direito racional” (Ibid., pp. 217-218).
173
Ibid., p. 218.
100
de uma cultura política suficientemente desacoplada de estruturas de classe vigentes na
sociedade 174.
Isso porque caberia à sociedade civil a função de “amortecer e neutralizar a
divisão desigual de posições sociais de poder e dos potenciais de poder daí derivados” 175,
de modo que aquilo que Habermas denomina “poder social” pudesse facilitar o exercício
da autonomia dos cidadãos. Por “poder social” Habermas se refere à chance de
imposição, por um ator, de seus próprios interesses no âmbito de uma relação social,
ainda que contra a resistência e em detrimento da vontade de outros. Nesse sentido, a
noção de poder social é ambígua em relação aos objetivos da institucionalização de
processos discursivos para a formação da opinião e vontade políticas e a constituição de
poder comunicativo, pois ele tanto pode possibilitar como restringir a formação do poder
comunicativo 176.
Atuando como possibilitador da constituição do poder comunicativo, o poder
social deve proporcionar as condições materiais necessárias para uma assunção autônoma
de liberdades comunicativas ou de ação, formalmente iguais 177. Quando, porém, o poder
social é desempenhado de forma a gerar uma distribuição assimétrica de recursos
materiais e capacidade de influência sobre o processo político, exerce um papel limitador
da possibilidade de formação do poder comunicativo 178.
Assim, o princípio da separação entre Estado e sociedade visa a impedir
que o poder social se transforme diretamente em poder administrativo, sem passar
antes pelas comportas (ou “eclusas”) da formação comunicativa do poder – que,
como veremos, funcionam como um filtro
179
. Do ponto de vista da organização
do poder, a idéia de que se deve impedir a intervenção direta do poder social no
poder administrativo se expressa no princípio da “responsividade democrática”
(democratic accountability) dos detentores de cargos políticos em relação aos
eleitores e ao parlamento. Os parlamentares, representantes do povo, têm que se
expor, periodicamente, a novas eleições e, desse modo, à responsabilidade da
174
Ibid., pp. 218-219.
Ibid., p. 219.
176
Ibid., p. 219. Ver, também: SCHUARTZ, ob. cit., p. 279.
177
“Em negociações políticas, por exemplo, os partidos envolvidos têm que conseguir credibilidade para
suas promessas ou ameaças através do poder social” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre
Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 219).
178
“Através deste modo interventor [, limitador do poder comunicativo], empresas, organizações e
associações conseguem, por exemplo, transformar o seu poder social em político, seja diretamente, através da
influência na administração, ou indiretamente, através de intervenções e manobras na esfera pública política”
(Ibid., loc. cit.).
179
Ibid., pp. 211-212.
175
101
Administração Pública e seus membros por suas próprias decisões e pelas decisões de
seus agentes subordinados corresponde o poder de controle e de exoneração
(impeachment) que os órgãos do parlamento detêm.
Em resumo, portanto, pode-se dizer que os princípios do Estado de Direito
desenvolvido por Habermas articulam-se em torno da seguinte idéia:
“A organização do Estado de direito deve servir, em última instância, à autoorganização política autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu, com o
auxílio do sistema de direitos, como uma associação de membros livres e iguais
do direito. As instituições do Estado de direito devem garantir um exercício
efetivo da autonomia política de cidadãos socialmente autônomos para que o
poder comunicativo de uma vontade formada racionalmente possa surgir,
encontrar expressão em programas legais, circular em toda a sociedade através da
aplicação racional, da implementação administrativa de programas legais e
desenvolver sua força de integração social – através da estabilização de
expectativas e da realização de fins coletivos. Ao se organizar o Estado de direito,
o sistema de direitos se diferencia numa ordem constitucional, na qual o medium
do direito pode tornar-se eficiente como transformador e amplificador dos fracos
impulsos sociais e integradores da corrente de um mundo da vida estruturado
comunicativamente”. 180
Ou seja, a garantia do exercício efetivo, pelos cidadãos, dos seus direitos
políticos (autonomia pública) é uma exigência que deve ser satisfeita tanto pela
constituição de poder comunicativo em processos de formação racional da opinião
e vontade políticas e sua incorporação em normas jurídicas (leis), quanto por meio
da circulação social deste poder comunicativo nos processos de aplicação e
implementação destas normas pela Justiça e pela Administração Pública. A
expectativa de que essa circulação do poder comunicativo pela sociedade ocorra
depende de que tais procedimentos juridicamente institucionalizados de formação
da opinião e vontade políticas se deixem reconstruir como procedimentos
genuinamente discursivos (ainda que indiretamente, como no caso dos processos
legítimos de negociação política). Somente assim, torna-se possível confiar na sua
capacidade de transmissão de poder comunicativo ao longo das engrenagens do
poder movimentadas no sistema político-jurídico
180
181
, ou, dito de outro modo, na
Ibid., pp. 220-221.
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 280-281. Sobre a necessidade de se enxergar os procedimentos
institucionalizados juridicamente como procedimentos genuinamente discursivos, observa
Schuartz que: “Este é um ponto muito importante, uma vez que tal preservação supõe,
rigorosamente, o asseguramento de pressupostos normativos nada triviais que se furtam à
institucionalização jurídica, a saber, as ‘condições comunicativas ideais’ – supostamente –
implícitas nos processos de argumentação, e que esta mesma garantia é dificilmente compatível
com as restrições temporais, materiais e sociais que são próprias aos procedimentos de aplicação e
implementação do direito. Habermas reconhece esta dificuldade e a enfrenta por meio da exigência
181
102
sua
capacidade
de
legitimação
do
Direito
e
do
poder
do
Estado.
3.3.3
A circulação do poder político legítimo nas sociedades modernas
Com base no que até agora foi dito, já é possível expor, em linhas gerais, a
concepção de Jürgen Habermas acerca da legitimação do Direito e do poder
estatal nas sociedades modernas. Como visto, nos capítulos 3 e 4 de Direito e
Democracia entre Facticidade e Validade, seu objetivo é demonstrar que – e
como – a auto-compreensão normativa do Estado de Direito – isto é, as
representações normativas que reconhecemos nas afirmações de princípios acerca
dos direitos de cada indivíduo e do funcionamento das instituições políticas e
jurídicas – pode ser reconstruída racionalmente. Resumidamente, pode-se dizer
que a idéia do Estado de Direito consiste na exigência de se ligar “o sistema
administrativo, comandado pelo código do poder, ao poder comunicativo, estatuidor
do direito, e de mantê-lo longe das influências do poder social, portanto da
implantação fática de interesses privilegiados” 182.
Até esse ponto, portanto, sua análise das condições da gênese e da
legitimação do Direito se concentra na política legislativa, deixando em segundo
plano os processos políticos. Habermas procura demonstrar que “as instituições do
Estado de direito devem garantir um exercício efetivo da autonomia política de
cidadãos socialmente autônomos para que o poder comunicativo de uma vontade
formada racionalmente possa surgir, encontrar expressão em programas legais,
circular em toda a sociedade através da aplicação racional, da implementação
administrativa de programas legais e desenvolver sua força de integração social através da estabilização de expectativas e da realização de fins coletivos”
183
.A
idéia básica é a de que, para ser legítimo, o poder administrativo não deve reproduzir-se a si mesmo, e sim regenerar-se a partir da transformação do poder
comunicativo.
Mas como essa idéia pode se relacionar com as afirmativas de teorias
sociológicas, que enxergam a política como uma arena na qual se desenrolam
de que a institucionalização jurídica das mencionadas condições lhes deixem, "na medida do
possível", intocadas” (Ibid. loc. cit., nota de rodapé n. 70). Ver, também, supra, item III.1.a.
182
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 190.
183
Ibid., p. 220.
103
processos de poder? Haveria dificuldades para a realização da idéia de Estado de
Direito reconstruída por Habermas nas sociedades modernas? Quais seriam? As
respostas oferecidas por Habermas a tais questionamentos são o objeto deste item.
Vale notar que esse ponto do desenvolvimento teórico de Habermas marca
uma mudança na sua perspectiva de análise. O autor deixa a perspectiva
reconstrutiva do filósofo, que analisa, no plano conceitual, as tensões internas ao
Direito – a saber, entre positividade e legalidade; entre autonomia privada e
autonomia pública; e entre poder político e Direito legítimo – e assume a
perspectiva descritiva do sociólogo, a quem cabe, agora, a tarefa de compreender
a “tensão externa” (ao Direito) entre a idéia discursiva de Estado de Direito e a
facticidade dos processos político-jurídicos na sociedade moderna
184
. Interessa
agora, pois, investigar o desnível entre norma e realidade, tomando o poder como
facticidade social, perante o qual as idéias podem ser desacreditadas 185.
184
“Até o momento, adotamos a linha de uma teoria do direito que discute a tensão entre
facticidade e validade no âmago do próprio direito. Nas páginas seguintes tomaremos como tema a
relação externa entre facticidade e validade, ou seja, a tensão entre a auto-compreensão normativa
do Estado de direito, explicitada na teoria do discurso, e a facticidade social dos processos
políticos - que se desenrolam nas formas constitucionais” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e
Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 10).
185
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p.
174.
104
Não há, porém, qualquer contradição nessa mudança de perspectiva
186
.
Isso porque, em seu projeto teórico, Habermas vislumbra a construção um
conceito de legitimidade democrática através de um modelo normativo de
democracia capaz de dar conta da visão mais sóbria – até mesmo cínica – que as
análises sociológicas têm sobre o processo político. Para ele, o derrotismo
normativo resultante das análises de várias correntes da sociologia política “não é
fruto de evidências concretas, mas do uso de estratégias conceituais falsas”, pois “o
modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode
ser descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico, quando não se leva em
conta a dimensão de validade do direito e a força legitimadora da gênese
democrática do direito”
187
. Ou seja, uma sociologia da democracia tem que
escolher conceitos básicos que permitam identificar, nas práticas políticas,
“fragmentos e partículas de uma ‘razão existente’, mesmo que distorcida” 188. Nesse
sentido, a identificação de pontos de apoio na faticidade dos sistemas políticojurídico modernos, que permitam afastar a tese da impossibilidade da realização
186
Como explica Schuartz: “A referida mudança de perspectiva não significa uma verdadeira cisão
no plano metodológico. Ao contrário, é essencial para o objetivo de Habermas a afirmação de que
o conteúdo normativo do Estado Democrático de Direito - tal como reconstruído nos moldes da
teoria do discurso - é inerente à faticidade das instituições políticas e jurídicas do Estado moderno,
não podendo faltar em nenhuma descrição empiricamente adequada destas instituições. A relação
entre ‘ideal normativo’ e ‘realidade’ é tratada em termos não de uma contraposição, mas de uma
‘tensão externa’ (externe Spannung). O objetivo da empreitada teórica de reconstrução do
conteúdo normativo das instituições do moderno Estado Democrático de Direito não é salvar o
ideal ‘por si’; a preservação da faticidade do ideal, ou melhor, do ideal na faticidade, interessa na
medida em que permite a identificação de pontos de apoio para o exercício da crítica imanente.
Neste contexto, a reconstrução das ‘intuições normativas’ dos sistemas jurídicos modernos segundo o receituário da teoria do discurso não é casual. Ela é uma condição estritamente necessária
para que tal identificação seja realizada no nível de profundidade adequado, que é aquele
descoberto por Habermas para resolver o problema metodológico dos fundamentos normativos da
crítica. Há, neste sentido, uma bela simetria entre a localização da solução para este problema nos
‘pressupostos pragmáticos da comunicação orientada ao entendimento mútuo’, de um lado, e a
leitura teórica do sistema de direitos enquanto conjunto de condições necessárias para a institucionalização jurídica destes ‘pressupostos’ no nível correspondente à forma reflexiva deste tipo de
comunicação (i.e. o nível do discurso) - e das instituições do Estado de Direito enquanto conjunto
de condições necessárias para estabilizar tal ‘constituição originária’ -, de outro lado.
Complementarmente a este requisito formal, há também uma exigência de caráter ‘substantivo’,
expressa na primazia qualificada concedida aos conteúdos dos processos supostamente
espontâneos de entendimento que se desenrolam anarquicamente nos espaços públicos em que se
articula a ‘base’ da sociedade civil. São estes os dois pilares fundamentais sobre os quais
construiu-se a teoria do direito habermasiana e que, enquanto tais, serão preservados a todo custo
na tradução sociológica da idéia do Estado Democrático de Direito e no modelo teórico da
sociedade moderna no qual esta tradução se encaixa” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 283-284).
187
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 9.
188
Ibid., loc. cit..
105
do sentido normativo que foi reconstruído discursivamente, constitui, para o
projeto teórico de Habermas, uma etapa indispensável 189.
Um bom ponto de partida para a compreensão do significado da tensão
externa entre ideal normativo e realidade social para a teoria de Habermas está
relacionado com a idéia de que a institucionalização de discursos e negociações
em processos democráticos é capaz de assegurar a presunção de racionalidade dos
resultados destes procedimentos
190
. Como visto, tal presunção se apóia na
suposição de que os pressupostos da racionalidade comunicativa estariam
assegurados nos procedimentos juridicamente institucionalizados no Estado
Democrático de Direito. Mas isso dificilmente é compatível com as restrições
temporais, materiais e sociais características dos procedimentos de aplicação e
implementação do Direito nas sociedades modernas. Essa dificuldade é
reconhecida por Habermas e faz com que o autor assuma que, devido ao seu
conteúdo idealizador, os pressupostos comunicativos gerais de argumentações só
podem ser preenchidos de modo aproximado 191.
Assim, a tensão externa entre facticidade e validade pode ser colocada nos
seguintes termos: De um lado, os processos democráticos de formação da opinião
e da vontade política têm – do ponto de vista normativo – a função de transportar
e atualizar, no âmbito macro-social, os potenciais de racionalidade comunicativa
latentes, por assim dizer, no estoque de saber socialmente acumulado. De outro, a
possibilidade de realização do conteúdo normativo implícito no princípio
democrático, tendo em vista a magnitude dos obstáculos – decorrentes da
facticidade social dos processos políticos – que se impõem à sua implementação
nas sociedades modernas, parece cada vez mais remota192. As críticas dirigidas às
189
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 276.
Ibid., pp. 284-285. A chave de uma concepção genuinamente procedimentalista, segundo
Habermas: “consiste precisamente no fato de que o processo democrático institucionaliza discursos e
negociações com o auxílio de formas de comunicação as quais devem fundamentar a suposição da
racionalidade para todos os resultados obtidos conforme o processo”, de modo que: “A política
deliberativa obtém sua força legitimadora da estrutura discursiva de uma formação da opinião e
da vontade, a qual preenche sua função social e integradora graças à expectativa de uma
qualidade racional de seus resultados” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre
Facticidade e Validade – Vol. II..., pp. 27-28).
191
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 223.
192
Sobre esse ponto, Habermas menciona as transformações sociais globais apontadas por
Norberto Bobbio que levaram este autor italiano a adotar uma estratégia deflacionária na
construção de seu conceito de democracia: “Ele registra inicialmente algumas transformações
sociais globais que não correspondem às promessas das concepções clássicas: especialmente o
surgimento de uma sociedade policêntrica de grandes organizações, na qual a influência e o poder
político passam para atores coletivos, saindo cada vez mais das mãos de associados singulares; em
190
106
concepções normativas do Estado de Direito, nesse sentido, se fortalecem
193
.E
mesmo a versão ‘minimalista’ de reconstrução do conteúdo discursivo dos
procedimentos, proposta por Habermas, não está imune diante delas.
A rigor, “num sistema político que sofre a pressão da complexidade social,
essas limitações manifestam-se através de dissonâncias cognitivas crescentes, que
nascem da distância que separa as suposições de validade do Estado de direito
democrático das formas concretas que esse processo político assume”
194
. Essa
sobrecarga cognitiva do sistema político é resultado da crescente presença e
predominância de problemas de coordenação gerados pelos sistemas de ação
funcionalmente especializados. E “ao perigo da crescente marginalização das
questões relacionadas à integração moral e à autocompreensão e auto-realização
éticas dos indivíduos na sociedade moderna, bem como da não solução dos correspondentes problemas, junta-se, no plano das interações entre tais indivíduos, o
perigo da crescente penetração, na forma de ‘monetarização’ e ‘burocratização’,
da racionalidade estratégico-instrumental em âmbitos sociais que somente
poderiam ser integrados de uma maneira não-patológica por meio de interações
comunicativas” 195 – ou seja, o perigo de colonização do mundo da vida.
O exercício do poder político pelo Estado torna-se, assim, cada vez mais
independente em relação ao modo deliberativo de uma socialização realizada
consciente e autonomamente, gerando “momentos inerciais” da sociedade
196
.E
esse “ensimesmamento” do poder do Estado, como visto, é objeto de críticas de
Habermas, na medida em que reduz as possibilidades de mudança social por meio
de processos conscientes de deliberação e decisão.
segundo lugar, a multiplicação de interesses de grupos concorrentes, a qual dificulta uma formação
imparcial da vontade; a seguir, o crescimento de burocracias estatais e de tarefas públicas, o que
propicia uma dominação tecnológica; finalmente, a apatia das massas, que se distanciam das elites, as
quais contrapõem-se oligarquicamente aos sujeitos privados, sem autonomia” (Cf. HABERMAS,
Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 26).
193
“(...) parece que nas sociedades complexas abre-se cada vez mais a fresta entre necessidade de
coordenação, de um lado, e realizações de integração, de outro - fresta que o direito e a política
deveriam fechar - na medida em que o sistema administrativo tem que assumir tarefas de
regulação, as quais sobrecarregam o modo deliberativo de decisão. Nessa sobrecarga torna-se
perceptível a resistência que as sociedades complexas oferecem à realidade, através da qual elas
enfrentam as pretensões investidas nas instituições do Estado de direito. A teoria da decisão revela
que o processo democrático é consumido, "por dentro", pela escassez de fontes funcionalmente
necessárias; e ‘por fora’, ele se choca, no entender da teoria do sistema, contra a complexidade de
sistemas funcionais intransparentes e dificilmente influenciáveis” (Ibid., p. 49).
194
Ibid., p. 48.
195
Cf. SCHUARTZ, ob. Cit., p. 287.
196
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 49.
107
Diante disso, “é preciso perguntar se o modo, de socialização discursiva,
suposto para a auto-organização da comunidade jurídica, ou seja, para uma
associação de sujeitos livres e iguais, é possível nas condições de reprodução de
uma sociedade complexa e, em caso afirmativo, como isso pode dar-se” 197. Não é
por outro motivo que o modelo de circulação do poder político legítimo que
Habermas desenvolve está voltado para o peso empírico do fluxo oficial do poder
(sociedade civil/esfera pública Æ instituições do Estado Democrático de Direito Æ
sistemas funcionais: burocracia estatal e economia) prescrito pela idéia de Estado
Democrático de Direito. E esse peso depende, principalmente, da capacidade da
sociedade civil em gerar impulsos vitais através de esferas públicas autônomas e
capazes de ressonância, as quais podem introduzir, no sistema político, conflitos
existentes na periferia
198
. Mesmo porque, na perspectiva dos participantes, os
momentos de inércia podem ser percebidos como diferenças entre norma e
realidade, que fornecem o pretexto para detectar e elaborar questões práticas em
geral 199.
Tendo isso em mente, o modelo a que Habermas recorre para a descrição e
explicação dos processos de comunicação e decisão no sistema político-jurídico é
construído com base num eixo centro-periferia, no qual tais processos são
estruturados através de um sistema de “comportas” (ou “eclusas”) e caracterizados
através de dois padrões de processamento de problemas
200
. O núcleo do sistema
político é formado pelos complexos institucionalizados dotados juridicamente de
competências e prerrogativas de deliberação e decisão, a saber: “a administração
(incluindo o governo), o judiciário e a formação democrática da opinião e da
vontade
(incluindo
as
corporações
parlamentares,
eleições
políticas,
concorrência entre os partidos, etc.)” 201. No interior desse núcleo, a capacidade
de ação varia de acordo com a densidade da complexidade organizatória. Assim,
por exemplo, o complexo parlamentar é o que se encontra mais aberto para a
percepção e a tematização de problemas sociais; porém, comparado ao
complexo administrativo, ele possui uma capacidade menor de processar
problemas. O núcleo possui uma periferia interna, na qual se encontram
197
Ibid., pp. 25-26.
Ibid., p. 58.
199
Ibid., loc. cit..
200
Ibid., pp. 86 e ss..
201
Ibid., p. 87.
198
108
instituições de natureza administrativa ou quase-administrativa com poderes
restritos de autogestão e auto-regulação – por exemplo, universidades, fundações,
representantes de corporações etc. –, e, quando considerado em seu conjunto, uma
periferia externa, onde se encontram os fornecedores e os consumidores do
sistema, “ocupados, respectiva e tipicamente, com os processos de implementação
de medidas políticas ou administrativas e com a articulação de problemas e
formulação de propostas” 202.
Forma-se, portanto, uma rede complexa de atores em torno do sistema
político. Os denominados “consumidores” são aqueles que “se interpõem entre
administração pública e organizações privadas, grupos de interesses, etc., que
preenchem funções de coordenação em domínios sociais carentes de regulação,
porém intransparentes” 203. Trata-se, pois, de sistemas de negociação, que não se
confundem com grupos “fornecedores”, isto é, “associações e ligas que
enfrentam os parlamentos e administrações, inclusive pelo caminho da justiça,
tematizando problemas sociais, colocando exigências políticas, articulando
interesses e necessidades e influenciando a formulação de políticas ou projetos
de lei” 204.
As decisões que se pretende, efetivamente, implementar devem atravessar
os estreitos canais do núcleo, passando pelas comportas constituídas por esse
complexo central, a fim de que sejam dotadas de autoridade – isto é, sejam
possam ser impostas à coletividade
205
. Todavia, a legitimidade de tais decisões
permanece condicionada à participação ativa da periferia em processos
argumentativos direcionados à formação da opinião e da vontade políticas 206.
Nesse sentido, desempenha papel essencial para o modelo de Habermas a
idéia de esfera pública política. Esta seria uma “caixa de ressonância” onde os
problemas a serem elaborados pelo sistema político encontrariam eco. Nesta
202
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 289.
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p. 87.
204
Ibid., loc. cit.. “O leque abrange desde associações que representam grupos de interesses
claramente definidos, uniões (com objetivos de partido político), e instituições culturais (tais
como academias, grupos de escritores, radical professionals, etc.), até ‘public interest groups’
(com preocupações públicas, tais como proteção do meio ambiente, proteção dos animais, teste
dos produtos, etc.), igrejas e instituições de caridade. Essas associações formadoras de opinião,
especializadas em temas e contribuições e, em geral, em exercer influência pública, fazem parte
da infra-estrutura civil de uma esfera pública dominada pelos meios de comunicação de massa, a
qual, através de seus fluxos comunicacionais diferenciados e interligados, forma o verdadeiro
contexto periférico”. (Ibid., pp. 87-88).
205
Ibid., p. 88
206
Ibid. loc. cit..; Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 289.
203
109
medida, funciona, segundo Habermas, como um conjunto de sensores não
especializados, porém, sensíveis no âmbito de toda a sociedade
207
. A esfera
pública constitui uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo
entendimento
208
, que se apóia sobre o domínio da linguagem ordinária e está em
sintonia com a “compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana”
209
sem, contudo, estar ligada exclusivamente qualquer um dos saberes
especializados ligados a funções gerais de reprodução do mundo da vida210.
Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública deve reforçar a
pressão exercida pelos problemas. Ou seja, não basta que ela se limite a percebê-los
e a identificá-los. Deve, além disso, “tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los
de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo
complexo parlamentar”
211
. Assim, de forma resumida, a esfera pública pode ser
descrita como “uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas
de posição e opiniões”, na qual “os fluxos comunicacionais são filtrados e
sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em
temas específicos” 212.
207
Note-se que: “A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma
organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre
competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização, etc. Tampouco ela
constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos,
exteriormente ela se carateriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis”.
(HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 92).
208
“O espaço de uma situação de fala, compartilhado intersubjetivamente, abre-se através das
relações interpessoais que nascem no momento em que os participantes tomam posição perante
os atos de fala dos outros, assumindo obrigações ilocucionárias. Qualquer encontro que não se
limita a contatos de observação mútua, mas que se alimenta da liberdade comunicativa que uns
concedem aos outros, movimenta-se num espaço público, constituído através da linguagem. Em
princípio, ele está aberto para parceiros potenciais do diálogo, que se encontram presentes ou
que poderiam vir a se juntar” (Ibid., p. 93).
209
Ibid., p. 92.
210
“Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz
através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está
em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana. Descobrimos
que o mundo da vida é um reservatório para interações simples; e os sistemas de ação e de saber
especializados, que se formam no interior do mundo da vida, continuam vinculados a ele. Eles
se ligam a funções gerais de reprodução do mundo da vida (como é o caso da religião, da escola
e da família), ou a diferentes aspectos de validade do saber comunicado através da linguagem
comum (como é o caso da ciência, da moral, da arte). Todavia, a esfera pública não se
especializa em nenhuma destas direções; por isso quando abrange questões politicamente
relevantes, ela deixa ao cargo do sistema político a elaboração especializada. A esfera pública
constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a
qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com
os conteúdos da comunicação cotidiana” (Ibid., loc. cit.).
211
Ibid., p. 91.
212
Ibid., loc. cit..
110
Em outras palavras, essa visão do regime democrático, que traduz em
termos sociológicos a teoria do discurso, afirma que “as decisões impositivas,
para serem legítimas, têm que ser reguladas por fluxos comunicacionais que
partem da periferia e atravessam as comportas dos procedimentos próprios à
democracia e ao Estado de direito, antes de passar pela porta de entrada do
complexo parlamentar ou dos tribunais (e às vezes antes de voltar pelo caminho
da administração implementadora)”
213
. Desse modo, por meio desse modelo de
comportas, seria possível evitar que o poder do complexo administrativo ou o
poder social das estruturas intermediárias que têm influência no núcleo central
se tornem independentes em relação ao poder comunicativo que se forma no
complexo parlamentar 214.
Contudo, a exigência de que todas as decisões vinculantes coletivamente
percorram as etapas desse modelo não corresponde ao modo de proceder comum
nas democracias ocidentais. Como mencionado anteriormente, em condições
modernas, o sistema político-jurídico é sobrecarregado pelos problemas de
coordenação decorrentes dos sistemas de ação funcionalmente especializados e
sofre uma pressão contínua da complexidade social que o envolve, operando, em
regra, em sentido inverso ao oficial. Essas contracorrentes, por outro lado, não
representam apenas “o desmentido de uma facticidade social cínica”
215
. Parte
dessas decisões “ensimesmadas” contribui para a redução da complexidade do
modelo oficial de circulação do poder, estabelecendo padrões de funcionamento.
A rigor, a maior parte das operações no núcleo do sistema político segue o ritmo
ditado por certas rotinas: “Tribunais emitem sentenças, burocracias preparam
leis e elaboram petições, parlamentos despacham leis e orçamentos, centrais de
partidos
conduzem
disputas
eleitorais,
clientes
influenciam
‘suas’
administrações - e todos esses processos caminham de acordo com padrões
estabelecidos” 216.
Do ponto de vista normativo, interessaria apenas saber se essas rotinas
continuam abertas a impulsos renovadores, oriundos da periferia. Em caso de
resposta afirmativa, tratar-se-ia apenas de mecanismos de redução de
213
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade eValidade – Vol. II..., pp.
88-89.
214
Ibid., loc. cit..
215
Ibid., p. 89.
216
Ibid., loc. cit..
111
complexidade gerados pelo próprio sistema. Entretanto, se a resposta for
negativa, tais rotinas seriam nada mais que os reflexos cristalizados de estruturas
de poder social antidemocrático, que contribuem para uma atuação patológica do
poder estatal 217.
Há, portanto, dois modos de tratar dos problemas sociais, que são
decisivos para a regulação dos fluxos da comunicação. No modo normal de
funcionamento do sistema político-jurídico, “a relação entre centro e periferia
flui no sentido e ritmo ditados por rotinas administrativas, inércias burocráticas e
interações pontuais mais ou menos promíscuas entre funcionários e órgãos
públicos, de um lado, e grupos de interesse ou agentes privados individuais com
maior ou menor poder social ou influência, de outro lado” 218. Porém, em caso de
crise, isto é, quando estiver em perigo a solução de problemas relativos à
integração social e, em última instância, das próprias instituições políticojurídicas
219
, esse modo de operar conforme convenções habituais é substituído
por um outro. Pois nessas situações “a pressão da opinião pública consegue
forçar um modo extraordinário de elaboração de problemas, que favorece a
regulação da circulação do poder através do Estado de direito, atualizando,
portanto, sensibilidades em relação às responsabilidades políticas reguladas
juridicamente” 220.
Como conclusão, tem-se que a constatação de que o núcleo do sistema
político-jurídico que constitui o Estado Democrático de Direito funciona,
normalmente, de acordo com um fluxo de poder que obedece o sentido centroperiferia, não constitui, por si só, um problema normativo. Pois, “para que a idéia
do Estado Democrático de Direito possa manter-se sociologicamente intacta,
exige-se apenas que as instituições que compõem este complexo estejam, em
princípio, abertas aos inputs da periferia e que mudem de padrão nos casos
críticos - em última instância, naquelas situações em que estiver em perigo a
integração social da sociedade” 221.
Mas o que garantiria que, no interior dessa periferia do sistema jurídicopolítico, não houvesse deformações – seja por meio da atuação de um conjunto de
217
Ibid. pp. 89-90.
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 290.
219
Ibid., p. 289.
220
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p. 89.
221
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 290.
218
112
atores detentores de poder social, ou por meio da atuação de especialistas em
publicidade, capazes de selecionar informações e controlar os acessos aos meios
de comunicação de massa – no processo de constituição do poder comunicativo
que irá influenciar as instituições que formam o complexo central do Estado
Democrático de Direito
222
? As pesquisas desenvolvidas na área da sociologia da
comunicação descrevem as esferas públicas das democracias ocidentais como
ambientes dominados pelo poder e pela mídia, o que reforçaria essa objeção.
A resposta de Habermas para essa questão decorre da utilização da mesma
estratégia aplicada para a descrição do funcionamento do sistema político-jurídico
para dar conta das resolver os problemas no interior da própria periferia. O autor
faz uma distinção entre três tipos de atores na esfera pública informal. Primeiro,
diferencia os atores que surgem do público e participam na reprodução da esfera
pública dos atores que ocupam uma esfera pública já constituída, a fim de aproveitar-se
dela para exercem influência no sistema político – como, por exemplo, grandes grupos
de interesses, bem organizados e ancorados em sistemas funcionais
223
. A terceira
categoria de atores seriam os profissionais da mídia – repórteres, jornalistas,
publicitários etc. – que, por serem responsáveis pela seleção de informações e pelo
controle do acesso aos meios de comunicação de massa tornam-se fonte de uma
nova espécie de poder – o poder da mídia – o qual, embora já comece a ser
regulamentado tanto juridicamente quanto por parâmetros ético-profissionais, não é
suficientemente é controlado. Assim “o análogo ao problema do ‘amalgamento’ e
‘ensimesmamento’ do poder social e administrativo em relação ao poder
comunicativo consiste, agora, no problema da definição unilateral e interessada,
por políticos, publicistas e organizações privadas, do espectro de temas e do
sentido do fluxo das comunicações com as quais o público, reduzido ao papel de
consumidor passivo, é confrontado”
224
. E, novamente, a saída encontrada por
Habermas consiste em se concentrar não na normalidade, mas sim em situações
de crise social. Nas suas palavras:
“Basta tornar plausível que os atores da sociedade civil, até agora
negligenciados, podem assumir um papel surpreendentemente ativo e pleno de
222
“Convém saber até que ponto as tomadas de posição em termos de sim/não do público são
autônomas - se elas refletem apenas um processo de convencimento ou antes uma processo de
poder, mais ou menos camuflado” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre
Facticidade e Validade – Vol II..., p. 108 ).
223
Ibid., p. 96.
224
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 291.
113
conseqüências, quando tomam consciência da situação de crise. Com efeito,
apesar da diminuta capacidade organizacional, da fraca capacidade de ação e
das desvantagens estruturais, eles têm chances de inverter o fluxo convencional
da comunicação na esfera pública e no sistema político, transformando destarte
o modo de solucionar problemas de todo o sistema político”. 225
Mesmo porque, os grupos de interesses detentores de poder social, que
exercem influência no sistema político através da esfera pública, quando
participam de negociações reguladas publicamente ou de tentativas de pressão
não-públicas, não podem usar, de forma explícita, os potenciais de sanção sobre
os quais se apóiam. Isso se justifica na medida em que, “para contabilizar seu
poder social em termos de poder político, eles têm que fazer campanha a favor de
seus interesses, utilizando uma linguagem capaz de mobilizar convicções”
226
.E
as opiniões públicas decorrentes dessas convicções, formadas graças ao uso
velado de poder social – dinheiro ou poder organizacional – perdem sua
credibilidade tão logo essas fontes de poder social são reveladas e se tornam
públicas. O que decorre do fato de que “as opiniões públicas podem ser
manipuladas, porém não compradas publicamente, nem obtidas à força”
227
. A
rigor, “antes de ser assumida por atores que agem estrategicamente, a esfera,,
pública tem que reproduzir-se a partir de si mesma e configurar-se como uma
estrutura autônoma”228.
Em resumo, portanto, o desenvolvimento, implementação e consolidação
da idéia do Estado Democrático de Direito, entendida a partir da teoria do
discurso,
dependem
não
apenas
da
institucionalização
jurídica
dos
correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos, como, também, da
interação entre deliberações institucionalizadas e opiniões públicas elaboradas nas
esferas informais do espaço público, tais como associações, movimentos sociais,
organizações não governamentais etc.
229
. Ambas as condições são igualmente
indispensáveis para que se possa falar em legitimidade do poder político nas
sociedades modernas.
225
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p.
115.
226
Ibid., p. 96.
227
Ibid., p. 97.
228
Ibid., loc. cit..
229
Sobre os conceitos de sociedade civil e esfera pública na obra de Habermas, ver: HABERMAS,
Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol II..., cap. VIII.
114
A seguir, apresentarei uma corrente teórica que tem buscado, a partir desse
modelo teórico, investigar o tema da legitimidade da atividade de produção de
normas das agências reguladoras no Brasil, destacando suas vantagens analíticas
em relação à perspectiva dominante que tem orientado a grande maioria dos
estudos sobre o tema no Brasil e problematizando algumas de suas premissas.
4
Teoria do discurso, participação e agências reguladoras no
Brasil
Tratou-se, no primeiro capítulo, do processo de surgimento das agências
reguladoras no Brasil. Viu-se que tal processo é parte de uma série de reformas
institucionais implementadas no Brasil na década de 1990, que resultaram no
denominado modelo regulador de Estado 1. Diferente do modelo anterior,
caracterizado pela intervenção direta do Estado na economia através das empresas
estatais, o Estado regulador foi idealizado a partir do discurso segundo o qual
apenas as denominadas “atividades exclusivas” do Estado deveriam ser exercidas
diretamente pelo Estado, enquanto que as “atividades não-exclusivas” deveriam
ser delegadas à iniciativa privada.
De acordo com o Plano Diretor da Reforma do Estado – PDRAE, a
privatização de atividades essenciais – ainda que não-exclusivas do Estado – à
sociedade, deveria ser acompanhada, por outro lado, pela criação de órgãos
regulatórios tecnicamente especializados, dotados de alto grau de autonomia
política e capazes de estabelecer, com a agilidade e flexibilidade necessárias,
marcos normativos voltados para a correção de falhas de mercado, a fim de
orientar a atuação dos agentes econômicos no sentido da maximização do bemestar social. Em alguns setores, esses órgãos regulatórios foram constituídos sob a
forma de agências reguladoras. Normativamente 2, é possível afirmar que a
institucionalização das agências reguladoras brasileiras na década de 1990 foi
diretamente influenciada pelas experiências históricas ocorridas na década
anterior nos EUA e nos países capitalistas da Europa. Se destes se absorveu a
experiência de criação de órgãos de regulação para novos mercados decorrentes
1
Esta é a denominação adotada pela maioria dos juristas brasileiros, que se apóiam num conceito
jurídico de regulação. Paulo Mattos, porém, prefere utilizar a expressão “novo estado regulador”,
em razão de adotar um conceito econômico de regulação, segundo o qual qualquer forma de
intervenção na economia por parte do Estado pode ser classificada como atividade de regulação
estatal. Ver a respeito: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p. 33 e ss.
2
Na prática, porém, Nunes et alli ressaltam que, a despeito de toda teorização e diretrizes sobre a
reforma do Estado, não existiram, até maio de 1996, definições claras sobre o formato institucional
e organizacional das agências idealizadas para fiscalizar e regular os serviços públicos que seriam
privatizados. No momento da criação das chamadas “agências de primeira geração” – a saber,
ANATEL, ANEEL e ANP – o poder Executivo não tinha clareza sobre o modelo a ser instituído,
como revelam as declarações de atores intimamente envolvidos no processo de criação de tais
agências, apresentadas pelos autores (Cf. NUNES et alli, ob. cit.).
116
da privatização de atividades até então desempenhadas de forma monopolística
pelo Estado, daquele incorporou-se as exigências de sofisticação dos mecanismos
de controle e responsabilização (accountalibity) da atuação desses novos órgãos,
tanto no plano de sua relação institucional com os demais elementos da estrutura
do Estado, quanto no plano do controle social por parte da população. Nesse
sentido, pode-se perceber na estrutura institucional das agências reguladoras
brasileiras a existência tanto de mecanismos de controle ligados à interferência
dos Poderes do Estado na atuação das agências, como de mecanismos de
participação popular nos processos de tomada de decisão dessas entidades.
Viu-se, porém, que, desde sua criação, as agências reguladoras foram – e
continuam sendo – objeto de críticas relacionadas, principalmente, a um suposto
déficit de legitimidade democrática da de sua atuação normativa. O principal alvo
dos ataques seria o alto grau de autonomia política decisória de que gozam essas
entidades administrativas – ver item I.2. Se, do ponto de vista econômico, a
justificativa desse nível de autonomia reside na necessidade de previsibilidade e
prevalência de critérios técnicos para a tomada de decisão – ainda que como
destacado por Mattos, dentro da técnica existe espaço escolha política 3– e,
portanto, de blindagem contra interferências políticas indevidas, da perspectiva
jurídico-política, essa delegação legislativa a órgãos formados por dirigentes que
não foram eleitos pelo povo e que não estão sujeitos à accountability eleitoral
carece de uma justificativa capaz de gerar consenso.
Isso porque, como visto, entre os juristas, a questão da legitimidade
democrática da atividade de produção de normas pelas agências reguladoras tem
sido abordada de forma reducionista e insuficiente. Os debates sobre o tema, em
geral, se limitam a uma perspectiva jurídico-formal, no qual as propostas de
solução são pensadas a partir da “melhor interpretação” dos princípios
constitucionais da separação dos Poderes e da legalidade.
Neste capítulo, meu objetivo é apresentar uma concepção teórica que
procura abordar a questão da legitimidade democrática da atuação normativa das
agências reguladoras brasileiras com apoio no conceito habermasiano de
3
Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p. 248.
117
democracia deliberativa 4. Foi visto, no segundo capítulo, de forma resumida, o
percurso teórico percorrido por Habermas para solucionar o problema dos
fundamentos da legitimidade do Direito e do poder administrativo nas sociedades
modernas. O autor alemão busca reconstruir a idéia de Estado de Direito na
modernidade sobre as bases de um novo tipo de racionalidade – a racionalidade
comunicativa –, o que pressupõe a possibilidade de que o poder comunicativo
gerado nas esferas públicas informais, constituídas no mundo da vida, possa ser
institucionalizado através da política e do medium do Direito, a fim de influenciar
a Administração Pública e o mercado. Cabe, agora, apresentar como Paulo
Todescan Lessa Mattos – principal representante da corrente teórica
supramencionada nesse campo temático – busca enfrentar o problema teórico da
legitimidade do poder normativo das agências reguladoras no Brasil a partir da
aplicação do paradigma habermasiano de legitimação pelo procedimento
discursivamente
estruturado
aos
mecanismos
de
participação
popular
institucionalizados nos processos decisórios dessas entidades.
4.1
O modelo habermasiano e as agências reguladoras brasileiras
O trabalho de Mattos veicula, expressamente, uma proposta de ruptura
com o padrão de análise jurídica da questão da legitimidade das agências
reguladoras apresentado no primeiro capítulo 5. Com efeito, sua análise aborda a
questão de uma perspectiva mais ampla, no âmbito da tensão entre as teorias da
regulação e as teorias da democracia, ou, de modo mais específico, entre a
eficiência da regulação e as exigências de legitimidade democrática e de controle
das agências reguladoras independentes.
4
Conforme já mencionado, essa perspectiva teórica se insere num projeto mais amplo
desenvolvido pelo Núcleo de Direito e democracia do CEBRAP, do qual MATTOS foi
pesquisador.
5
Logo na introdução, afirma o autor: “Os modelos de análise predominantes na doutrina jurídica
brasileira em matéria de direito administrativo e direito econ6omico não são, a meu ver,
suficientes para compreender a complexidade do funcionamento do Estado regulador e,
principalmente, as condições de legitimidade de processos decisórios sobre a formulação de
políticas públicas num contexto de delegação legislativa (ou de exercício da capacidade normativa
de conjuntura) por órgãos reguladores dotados de autonomia decisória. Seriam modelos ainda
presos a um paradigma liberal de direito, focados em análises de adequação lógico-formal de
normas a um ordenamento jurídico hierarquicamente constituído” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan
Lessa. O Novo Estado Regulador…, p. 28).
118
Em sua obra, Mattos parte dos fatos da regulação estatal – entendida como
intervenção estatal na economia – nas sociedades capitalistas contemporâneas e
do crescimento, nessas sociedades, do poder normativo da Administração
Pública6. Isto é, o autor reconhece que, ante os desafios que atualmente se
colocam aos Estados Nacionais e seus ordenamentos jurídicos 7, é inevitável que o
Estado interfira na atuação do mercado e que essa tarefa caiba, cada vez mais, ao
Poder Executivo. A grande questão a ser investigada, segundo Mattos, portanto, é
a de como – do ponto de vista do modelo institucional do Estado – e a partir de
quais parâmetros normativos, regular?
É nesse sentido que o autor se contrapõe àqueles que simplesmente negam,
de antemão, a legitimidade de normas produzidas pelas agências reguladoras, com
base numa idéia de separação dos Poderes que remete, em última análise, a um
conceito liberal de democracia. Segundo Mattos, atualmente, o Poder Legislativo
– composto por representantes eleitos do povo, que contam, pois, com a
legitimidade democrática – tem se mostrado incapaz de regular as questões que
lhe são apresentadas com a agilidade, flexibilidade e especialização técnica que as
mesmas requerem. Com isso, são cada vez mais gerais as leis produzidas pelo
Legislativo, o que amplia o espaço de discricionariedade a ser preenchido através
do exercício do poder normativo pela Administração Pública. A ela cabe a
concretização das disposições, dotadas de alto grau de generalidade e abstração,
contidas nas leis produzidas pelo Legislativo em políticas públicas, que
demandam a produção de normas mais específicas.
Assim, considerando a inexorabilidade da regulação por parte da
Administração Pública, há que se escolher, inicialmente, como será desempenhada
essa função. Vale dizer, a atividade regulatória será exercida pela chamada
Administração Pública direta, ou por entidades administrativas que compõem a
denominada Administração Pública indireta? De que maneira isso pode
influenciar a legitimidade democrática da regulação?
Mattos demonstra que, no Brasil, as experiências de regulação da
economia diretamente pelo Poder Executivo, típicas do Estado social6
“Na medida em que o Estado capitalista regulador se forma, em oposição à concepção de um
Estado liberal ideal (...), essencialmente para a correção de falhas de mercado, aumenta a
delegação legislativa para formulação de normas pelo Estado” (Ibid., p. 67).Ver também: Ibid.,
capítulo 2, pp. 69-108.
7
Sobre o tema ver: FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo:
Malheiros, 1999.
119
desenvolvimentista, estiveram sempre associadas à práticas antidemocráticas 8.
Desde o Estado getulista, o que se pode observar é uma concentração do poder
decisório quanto à políticas públicas na figura do Presidente da República,
caracterizando o que O’Donnel denomina “democracia delegativa”9. O Presidente
assumia que recebia da população “um ‘cheque em branco’ para governar e
decidir qual é o ‘interesse público’ do país” 10. A obrigatoriedade de prestação de
contas perante os demais Poderes e instituições do Estado e a sociedade em geral
11
se apresentava, aos olhos do Presidente, como um obstáculo inconveniente à
plena autoridade que, por delegação, acabara de receber12.
Assim, a experiência institucional de um modelo de Estado marcado pela
concentração do poder decisório sobre a regulação na Administração Pública
direta – e, em última instância, no Presidente da República – constituiu-se, no
Brasil, com claros déficits de legitimidade democrática. Dada a consolidação dos
chamados “anéis burocráticos” 13, poucos eram os grupos de interesse que tinham
acesso aos processos decisórios em matéria de políticas públicas, e poucos eram
os mecanismos institucionalizados de controle democrático das decisões
tomadas14. Durante os regimes autoritários, esses déficits de legitimidade se
tornaram, obviamente, ainda maiores.
Segundo Mattos, porém, a redemocratização do Brasil, que culminou na
promulgação da Constituição de 1988, e a reforma do Estado da década de 1990
alteraram, significativamente, esse quadro. Com efeito, ao menos do ponto de
vista institucional, o “novo” modelo regulador de Estado, decorrente dessas
Ver a respeito: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., capítulo 3, pp.
109-154.
9
Cf. O’DONNEL, Guillermo. Democracia Delegativa. In: Revista Novos Estudos, n. 31, outubro
de 1991.
10
Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador…, p. 23.
11
“Os partidos políticos e o Congresso são esvaziados enquanto canais de circulação do poder
político, sendo o processo de formulação de políticas públicas centralizado na burocracia estatal
interna ao Poder Executivo de forma fechada e pouco pública (a ‘caixa preta’ do Governo), onde
as decisões administrativas são tomadas de forma não procedimentalizada e sob a justificativa
geral de serem as decisões administrativas discricionárias e técnicas. Dessa forma, decisões sobre a
regulação de setores da economia brasileira passam a ser revestidas de um caráter ‘apolítico’,
como se decisões técnicas não implicassem escolhas de ordem política. E, na ausência de controles
democráticos institucionalizados sobre a atuação dessa burocracia estatal, decisões discricionárias
acabam por revelar decisões arbitrárias” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado
Regulador..., pp. 23-24)
12
Cf. O’DONNEL, ob. cit., p. 31.
13
Ver a respeito: CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro e outros ensaios.
4 ed. São Paulo: Rio de Janeiro: DIFEL, 1979; e MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo
Estado Regulador..., cap. 3.
14
Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., pp. 24-25.
8
120
transformações, representaria, se comparado ao modelo anterior, um grande
avanço no sentido da legitimação das decisões da Administração Pública. Isso
porque, nele, estão previstos espaços de participação popular, resultantes da
combinação entre os direitos fundamentais de associação, livre acesso à
informação, liberdade de expressão e participação – garantidos pela Constituição
de 1988 – e mecanismos institucionalizados de participação nos processos de
tomada de decisão sobre a formulação de políticas públicas capazes de aumentar a
sujeição da Administração Pública ao controle democrático de sua atuação pela
sociedade. E, nesse sentido, Mattos sustenta que, na medida em que esses canais
de participação popular nas decisões da Administração Pública jamais existiram
no Brasil, o “Novo Estado Regulador” brasileiro seria, historicamente, do ponto
de vista institucional, o mais capaz de gerar decisões democraticamente
legítimas15.
As agências reguladoras estariam inseridas neste cenário. Segundo Mattos,
elas fariam parte da criação de “uma nova dinâmica política para a ação
regulatória do Estado”, pois “a formulação de políticas setoriais, que antes estava
restrita aos gabinetes ministeriais, aos conselhos institucionalizados no interior da
burocracia estatal da administração direta, subordinada às decisões políticas do
Presidente da República e ao jogo de barganhas políticas com o Congresso,
passou a ser feita de forma insulada por técnicos especializados, porém aberta ao
público afetado pelas normas editadas pelas agências” 16. A abertura a que Mattos
se refere seria garantida, principalmente, através de mecanismos, como as
audiências públicas e consultas públicas, normalmente institucionalizados nos
processos decisórios das agências reguladoras pela lei de sua criação. O autor
analisa, de forma mais detida, as consultas públicas, em razão de, conforme o
disposto na lei de criação da ANATEL (objeto de sua análise), serem as mesmas
obrigatórias para a produção de normas, enquanto que a realização de audiências
públicas depende de juízo dos dirigentes da agência.
15
“É possível afirmar que a adoção de mecanismos de consultas públicas e audiências públicas
pode significar um avanço em termos de accountability do processo decisório sobre políticas
setoriais no Brasil. Isso ocorreria na medida em que a ‘caixa-preta’ dos ministérios perde
relevância no processo decisório, permitindo que outros grupos de interesse, que não apenas
aqueles com acesso privilegiado aos canais de circulação de poder político na relação PresidenteCongresso, participem do processo decisório e tenham os seus interesses ouvidos no interior das
novas agências” (Ibid., p. 25).
16
Ibid., p. 25.
121
Ou seja, se, como visto no primeiro capítulo, aqueles que sustentam a
ausência de legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras o fazem
alegando que os dirigentes dessas entidades administrativas não foram
diretamente eleitos pelo povo e não estão sujeitos à accountability eleitoral – na
medida em que não podem nem mesmo ser exonerados pelo chefe do Poder
Executivo – os defensores de uma possível legitimidade de sua atividade de
produção de normas apontam, como resposta, a previsão de mecanismos
institucionalizados de participação popular nos processos decisórios das agências,
expressa nas leis de sua criação.
Mattos se filia a este último grupo, porém, com algumas – e relevantes –
diferenças. Isso porque o autor não se contenta apenas com a previsão, em lei, dos
instrumentos de participação popular. Defende ele que as condições efetivas de
deliberação nos espaços de participação popular institucionalizados nos processos
de tomada de decisão das agências reguladoras devem ser levadas em conta em
qualquer estudo que pretenda investigar a legitimidade das normas produzidas por
essas entidades
17
. E isso porque, nestes canais de participação popular, estaria
contido um “potencial democrático” capaz de legitimar a atuação normativa das
agências reguladoras.
Nesse ponto, Mattos se vê obrigado a enfrentar um outro tipo de crítica, de
cunho sociológico. Mais especificamente, as críticas às agências reguladoras
provenientes de análises que não enxergam, nessas entidades administrativas, uma
estrutura institucional capaz de evitar a continuidade e permanência de padrões de
funcionamento patológico da Administração Pública, culturalmente incrustados na
atividade política brasileira, como o “clientelismo”, a “cordialidade” e o
“patrimonialismo”. Mattos se contrapõe às concepções herdeiras dessa tese, por
ele denominada – com base em Jessé Souza
17
18
– “patrimonialista”, da realidade
Isso se justifica na medida em que, segundo o autor: “No contexto de redemocratização do
Brasil e de valorização da sociedade civil e da esfera pública como elementos constitutivos da
democracia e, assim, das condições de legitimidade de políticas públicas, as agências reguladoras
surgem como uma possibilidade de descentralização da ação regulatória do Estado”, pois “os
mecanismos de consultas públicas e audiências públicas adotados no interior das novas agências
reguladoras podem ser tomados como a garantia de legitimidade do conteúdo da regulação, uma
vez que por meio destes estariam sendo expressos e supostamente atendidos os interesses do
público (i.e., grupos de interesse) afetados pelas políticas públicas definidas pela agência” (Ibid.,
loc. cit.).
18
Cf. SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro.
Brasília: Editora UNB, 2000.
122
política brasileira, que, em última análise, assumem como modelo de Estado a ser
alcançado o tipo ideal do Estado liberal. Segundo o autor:
“O problema da tese dos estamentos burocráticos e do patrimonialismo estaria no
fato de que levaria à conclusão, por um lado, de que ‘a nossa formação social
seria defeituosa devido à permanente influência da herança estatal portuguesa’,
que teria impedido ‘o país de livrar-se do atraso social e econômico’. E, por outro
lado, conduziria a uma apologia do modelo de Estado liberal, como sendo aquele
que mais próximo de uma burocracia estatal racional voltada para a garantia do
funcionamento do mercado no capitalismo e das liberdades civis fundamentais na
democracia. Só com o florescimento do Estado democrático racional seria
possível o livre desenvolvimento do capitalismo industrial e a formação de uma
sociedade politicamente capaz de exercer direitos e liberdades civis”. 19
Assim, para Mattos, tanto os juristas, limitados aos aspectos jurídicoformais de constitucionalidade em termos de legalidade e separação dos poderes,
quanto os autores presos à tese patrimonialista da realidade política brasileira, não
percebem o potencial democrático contido nos canais de participação popular
previstos na estrutura institucional das agências reguladoras brasileiras.
Mesmo outras correntes analíticas que buscam justificar a criação e
atuação das agências, rejeitando, também, as análises ancoradas na tese
patrimonialista, o fazem, segundo Mattos, com base em argumentos como a
necessidade de estabilidade regulatória – ligada às idéias de credibilidade da ação
regulatória – ou de criação de mecanismos de controle e responsabilização
(accountability) posteriores da atuação dessas entidades20. Não haveria, portanto,
uma preocupação com o que Mattos chama de condições substantivas de
deliberação nos processos decisórios 21, ou seja, “as condições de funcionamento
dos mecanismos de participação pública institucionalizados com função de
legitimação de processos decisórios sobre o conteúdo de políticas públicas – as
condições de participação de grupos de pressão durante o processo e as condições
de deliberação” 22.
Por outro lado, aqueles que procuram deslocar o foco da análise para a
esfera pública e para o interior dos processos deliberativos parecem se vincular,
19
Ibid., p. 230.
“Nesses modelos, a accountability é pensada, por um lado, como controle de resultados da
Administração (em termos de eficiência dos resultados), centrada no processo eleitoral
(accountability vertical) como forma de responsabilização ou numa relação de freios e contrapesos
entre os três Poderes entendida de forma por demais mecânica ou estática” (Ibid., p. 28).
21
Ibid., pp. 231-240. Mattos identifica essa carência de uma análise das condições substantivas de
deliberação nos processos decisórios nas contribuições de Marcus André Melo, Guillermo
O’Donnel, Luiz Carlos Bresser-Pereira e Fábio Wanderlei Reis.
22
Ibid., p. 235.
20
123
segundo o entendimento de Mattos, a uma concepção republicana de democracia
23
. Desse modo, embora a dinâmica da participação pública de grupos de interesse
na esfera pública seja incluída nesse tipo de análise, não se conseguiria, “dados os
traços de um republicanismo idealizado”
24
dar conta de problemas substantivos
de legitimidade democrática, pois não haveria uma preocupação com “o
funcionamento dos procedimentos decisórios internos à burocracia estatal
enquanto condições de institucionalização do conteúdo de políticas públicas no
interior do sistema na forma do conteúdo de normas (o conteúdo da regulação)”25.
Para Mattos, portanto, a compreensão adequada do potencial democrático
contido nos espaços de participação pública nos processos decisórios das agências
reguladoras e, conseqüentemente, da questão da legitimidade da atuação
normativa dessas entidades, demanda um modelo de análise capaz de dar conta da
complexidade das relações sociais próprias ao fenômeno do Estado regulador.
Segundo o autor:
“Tal modelo precisa permitir uma análise que seja capaz de avaliar o desenho
institucional de órgãos reguladores e sua relação com o Poder Executivo
(Administração direta), com o Poder Legislativo e com o Poder Judiciário para
além de uma concepção liberal de democracia que assume uma relação estática
entre tais poderes. Ao mesmo tempo, deve ser um modelo capaz de avaliar os
procedimentos institucionalizados para tomada de decisão, assumindo tais
procedimentos como meios de controle democrático e de deliberação pública
sobre questões relevantes de ordem política , que estão na base da escolha de
técnicas administrativas para regular a economia e a vida social – a definição do
conteúdo da regulação. Por fim, tem que ser um modelo capaz de avaliar as
condições de participação na esfera pública brasileira. Saber quem é o público
(i.e. grupos de interesse) que está atuando junto às agências, influenciando o
conteúdo da regulação, e como está se dando o processo decisório no interior das
agências passou a ser importante para uma análise das condicoes de legitimidade
democrática da formulação de políticas setoriais no Brasil pós-reforma do
Estado” 26.
É em razão disso que Mattos adota, como marco normativo para a
investigação de sua hipótese, a teoria discursiva do Direito e da democracia de
Jürgen Habermas. A proposta habermasiana seria adequada a seus objetivos, na
medida em que – segundo seu entendimento – nela, a legitimidade do poder
decorreria da participação dos atores sociais nos processos institucionalizados de
23
Mattos se refere à posição de Leonardo Avritzer, principalmente em: AVRITZER, Leonardo.
Democracy and the public space in Latin America. Princeton: Princeton University press, 2002.
Ver: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., pp. 241-243.
24
Ibid., p. 29.
25
Ibid., p. 242.
26
Ibid., pp. 27-28.
124
deliberação pública e, desse modo, seria possível superar as limitações de análises
fundadas numa concepção – liberal – de democracia, que vêem no Poder
Legislativo o representante exclusivo dos interesses legítimos da sociedade.
Assim, as consultas públicas e audiências públicas poderiam garantir a
legitimidade do conteúdo da regulação, tendo em vista que, por meio destes
espaços públicos institucionalizados, os atores sociais afetados pelas políticas
definidas por uma agência reguladora podem participar diretamente do processo
de tomada de decisão dessas entidades, tornando-se capazes de fazer com que seus
interesses sejam levados em conta e influenciem os resultados desses processos.
Ou seja, se, “no plano jurídico-formal, a fonte de legitimidade da ação regulatória
do Estado continua sendo a lei setorial” aprovada pelo Poder Legislativo, “no
plano político, a fonte de legitimidade democrática das políticas formuladas pelas
agências reguladoras deixariam de ser apenas os interesses e as decisões do
Presidente da República (eleito) e dos congressistas (eleitos)” 27.
Mattos destaca que, no plano da teoria política, Habermas superaria o
debate entre as correntes liberal e republicana de democracia
conceito de democracia deliberativa
27
29
28
ao propor o
, segundo o qual, a atividade política é
Ibid., p. 27.
Segundo Habermas: “Na perspectiva liberal, o processo democrático se realiza exclusivamente
na forma de compromissos de interesses. E as regras da formação do compromisso, que devem
assegurar a eqüidade dos resultados, e que passam pelo direito igual e geral ao voto, pela
composição representativa das corporações parlamentes, pelo modo de decisão, pela ordem dós
negócios, etc., são fundamentadas, em última instância, nos direitos fundamentais liberais. Ao
passo que a interpretação republicana vê a formação democrática da vontade realizando-se na
forma de um auto-entendimento ético-político, onde o çonteúdo da deliberação deve ter o respaldo
de um consenso entre os sujeitos privados, e ser exercitado pelas vias culturais; essa précompreensão socialmente integradora pode renovar-se através da recordação ritualizada do ato de
fundação da república” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e
Validade – Vol. II..., p. 19).
29
“O modelo procedimental de democracia habermasiano permite, em certa medida, incorporar o
debate sobre organização e ação de grupos de interesse que atuam segundo uma racionalidade
estratégica (instrumental) com vistas a fins. E nesse sentido nos afastamos do idealismo excessivo
republicano. Ao mesmo tempo, Habermas se afasta do individualismo metodológico inerente às
teorias de rational choice e, ao trabalhar com o conceito de racionalidade comunicativa, dá ao seu
modelo de democracia a capacidade de avaliar a atuação de grupos de interesse na esfera pública
segundo outra perspectiva. É nesse ponto que a avaliação das condições de participação pública se
torna relevante” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p.
201).Como explica o próprio Habermas: “a teoria do discurso assimila elementos de ambos os
lados, integrando-os no conceito de um procedimento ideal para a deliberação e a tomada de
decisão. Esse processo democrático estabelece um nexo interno entre considerações pragmáticas,
compromissos, discursos de auto-entendimento e discursos da justiça, fundamentando a suposição
de que é possível chegar a resultados racionais e eqüitativos. Nesta linha, a razão prática passa dos
direitos humanos universais ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade para as
regras do discurso e as formas de argumentação, que extraem seu conteúdo normativo da base de
validade do agir orientado pelo entendimento e, em última instância, da estrutura da comunicação
28
125
entendida como um processo de conformação de preferências com vistas à
elaboração e institucionalização, no sistema jurídico-político, do conteúdo de uma
determinada política pública. E, nesse processo, as preferências assumidas
previamente pelos atores políticos podem ser alteradas durante a deliberação,
enquanto que aquelas preferências que se mantiverem devem ser externalizadas e
justificadas racionalmente. O que leva à conclusão de que, nos termos da
democracia deliberativa, “as condições para uma formação política racional da
vontade não devem ser procuradas apenas no nível individual das motivações e
decisões de atores isolados, mas também no nível social dos processos
institucionalizados de formação de opinião e de deliberação”
30
. Em outras
palavras, isso significa que o conteúdo da regulação não seria, necessariamente,
resultado de “um processo de disputa no jogo de barganha para influenciar a
decisão sobre políticas públicas”
31
, pois os processos institucionalizados de
formação de opinião e de deliberação também podem ser entendidos como
processos nos quais se busca criar e garantir condições de vida no interesse de
todos
32
. É nessa mudança de perspectiva – da teoria da escolha racional
(individualismo metodológico) para a teoria do discurso – quanto aos processos
de formação da vontade política que Mattos identifica a principal vantagem
analítica da adoção da idéia de democracia deliberativa de Habermas33.
lingüística e da ordem insubstituível da socialização comunicativa” (Cf. HABERMAS, Jürgen.
Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 19) .
30
Ibid., p. 72.
31
Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador Brasileiro..., p. 191.
32
Nas palavras de Habermas: “(…) a tarefa da política não consiste apenas em eliminar
regulamentações ineficientes e antieconômicas, mas também em criar e garantir condições de vida,
no interesse simétrico de todos” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre
Facticidade e Validade – vol. II..., pp. 69-70). Segundo o autor, os processos políticos podem ser
considerados “arranjos que influenciam as preferências dos participantes, pois eles selecionam os
temas, as contribuições, as informações e os argumentos, de tal modo que somente os que são
‘válidos’ conseguem atravessar, em caso ideal, o filtro das negociações eqüitativas e dos discursos
racionais, assumindo importância para as tomadas de resolução” (Ibid., p. 72.).
33
De fato, o grande ganho teórico para a análise da questão da legitimidade democrática da
atuação das agências reguladoras identificado por Mattos no modelo habermasiano reside no fato
de que este considera não apenas a dimensão sistêmica, mas também “a ação da sociedade civil e a
formação (e transformação) de opiniões (ou preferências) no plano da esfera pública” (Cf.
MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador Brasileiro..., p. 156). Ou seja, não
apenas o desenho institucional e os procedimentos decisórios institucionalizados, mas as
“condições de participação no plano da organização da sociedade civil e na esfera pública” são
relevantes para se aferir a legitimidade de uma decisão por parte da Administração Pública e, mais
especificamente, das agências reguladoras (Ibid., loc. cit.). Mattos ressalta que, em Habermas,
“esses dois tipos de condições se comunicam. Condições sistêmicas de maior participação pública
e deliberação podem estimular a ação de grupos de pressão desde a sociedade civil. Ao mesmo
tempo, maior atividade e organização de grupos engajados no debate na esfera pública sobre o
conteúdo de políticas públicas pode levar à radicalização democrática dos mecanismos de
126
Tal concepção de democracia, como visto no item 3.3.c, leva em conta a
atuação de grupos de interesse para além das instituições que formam o núcleo do
sistema político-jurídico, incluindo os processos informais de formação do poder
comunicativo nas esferas públicas. A análise do problema da legitimidade
democrática do conteúdo da regulação através do modelo de democracia
deliberativa busca investigar, pois, a maneira como funciona a circulação de poder
político juridicamente regulada e as formas pelas quais o poder comunicativo
pode ser convertido em poder administrativo.
A partir do modelo habermasiano, é possível afirmar que problemas de
legitimação numa dada sociedade podem surgir quando se verifica a existência de
uma esfera pública pouco ativa ou quando há uma participação privilegiada de
certos grupos políticos em detrimento de outros. Isso interessa a Mattos na medida
em que “a esfera pública e as condições de atuação de atores relevantes na
sociedade civil passam a ter um lugar privilegiado no modelo de análise da
organização social”
34
. E, desse modo, a investigação das condições efetivas da
participação pública através de consultas públicas e audiências públicas nos
processos de tomada de decisão das agências reguladoras passa a constituir uma
etapa fundamental para a avaliação de tais mecanismos como instrumentos de
legitimação democrática das decisões das agências.
Vale dizer: as consultas públicas e audiências públicas se apresentariam
como instrumentos potencialmente aptos a legitimar democraticamente a atuação
das agências reguladoras, na medida em que fossem capazes de reproduzir, no
processo decisório das agências reguladoras, um ambiente discursivo capaz de
gerar resultados que possam ser considerados legítimos – racionais – pelos
participantes. A discussão sobre a legitimidade democrática da atuação das
agências reguladoras deixa, assim, o campo da adequação jurídico-formal aos
princípios da legalidade e da separação dos Poderes e passa a se concentrar nas
participação institucionalizados” (Ibid., loc. cit.). Desse modo, passam a integrar o modelo teórico
de análise da legitimidade democrática “o modo como se dá o processo decisório sobre a definição
do conteúdo da regulação, considerando os atores que participam de processos decisórios e os
atores afetados pelas normas editadas, e a avaliação dos efeitos desses processos decisórios sobre
os interesses que estão em jogo” (Ibid., pp. 245-246).
34
Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador Brasileiro..., p. 30.
127
condições efetivas de deliberação nos processos decisórios das agências por meio
dos mecanismos institucionalizados de participação popular 35.
Há, pois, uma aposta no sentido de que a teoria habermasiana forneceria os
critérios necessários para se apontar obstáculos e potenciais democráticos no
desenho institucional dos órgãos reguladores e nos procedimentos decisórios
sobre o conteúdo da regulação. Isso tornaria possível aperfeiçoar os
procedimentos administrativos, para que a ação regulatória do Estado fosse
permeada pela participação pública através de processos de deliberação racional
sobre o conteúdo das políticas que ingressarão no sistema jurídico por meio de
normas. E, assim, poder-se-ia examinar, efetivamente, a legitimidade democrática
da atuação normativa de uma agência reguladora 36.
Para explorar de forma mais específica essa hipótese, Mattos analisa a
estrutura institucional e o funcionamento de uma das agências reguladoras criadas
no contexto da reforma do Estado da década de 1990, a Agência Nacional de
Telecomunicações – ANATEL
37
. Inicialmente, o autor explicita, do ponto de
vista do desenho institucional, as formas de controle da autonomia decisória da
ANATEL, previstas na sua lei de criação (Lei Geral de Telecomunicações – LGT,
Lei n. 9472/97) tanto no plano da separação dos poderes (accountability
horizontal), como no plano da participação popular na Administração
Para Mattos, Habermas amplia, pois, o debate sobre accountability da atuação da burocracia
estatal (poder admnistrativo), na medida em que, a partir do seu modelo deliberativo de
democracia, seria possível falar mecanismos de accountability vertical mediante participação
pública direta. Ou seja, mecanismos de accountability vertical não limitados aos processos
eleitorais. Assim, nas palavras de Mattos: “Ao falar em accountability vertical, estamos falando, a
partir da noção de deliberação no modelo habermasiano de democracia, em condições de
legitimidade dos processos decisórios e não apenas em responsabilização como controle a
posteriori de resultados (em termos de eficiência da decisão ou dos efeitos produzidos). Entendo
que essa ampliação do conceito de accountability é fundamental para compreender o potencial
democrático dos mecanismos de participação pública – enquanto procedimentos que fazem parte
do processo decisório sobre o conteúdo da regulação – introduzidos no modelo de agências
reguladoras no Brasil” (Ibid., p. 202).
36
Mattos assevera que a análise das condições de legitimidade do processo decisório sobre o
conteúdo da regulação depende de um modelo capaz de dar conta de ambas as faces do Direito
identificadas por Habermas: “a face sistêmica, que institucionaliza e garante direitos e
procedimentos de participação pública; e a face que o torna meio comunicativo de demandas que
nascem na esfera pública por meio da ação de grupos de interesse organizados na sociedade civil e
que, mediante instrumentos de participação pública, podem ser internalizadas como conteúdo de
normas no interior do sistema. Nesse segundo sentido, o Direito é parte constitutiva da caixa de
ressonância que a esfera pública pode ser para tornar público o debate sobre questões relevantes
em matéria de políticas públicas” (Ibid., p. 248).
37
Segundo Mattos, tal estudo serve “como forma de avaliação do potencial democrático da
ANATEL enquanto agência reguladora adotada no Brasil na década de 1990. Ao mesmo tempo,
fornece elementos para pensar, desde uma perspectiva teórica da democracia procedimental, as
condições de legitimidade democrática do conteúdo da regulação no contexto do novo Estado
regulador no Brasil” (Ibid., p. 249).
35
128
(accountability vertical deliberativa). Num segundo momento, são apresentados
os resultados de uma pesquisa empírica sobre o funcionamento das consultas
públicas
38
realizadas nos processos decisórios da ANATEL, que busca avaliar,
também, as condições de participação e deliberação nesses espaços públicos
institucionalizados. O autor tem por objetivo identificar quem são os atores que
fazem uso das consultas públicas para influenciar o processo normativo da
ANATEL; quais são os tipos de interesse defendidos por esses atores ao
participarem de consultas públicas; qual o nível de incorporação das propostas dos
atores no conteúdo das normas editadas pela ANATEL; e se há ou não
justificativas por parte da ANATEL para incorporar ou rejeitar as propostas 39.
É dessa forma, portanto, que Mattos procura apontar os potenciais e os
déficits democráticos do modelo de agências reguladoras dotadas de autonomia
decisória, tendo como caso específico a ANATEL. Segundo o autor:
“(...) o estudo realizado no caso da ANATEL permite chegar a conclusões sobre
(a) o grau de autonomia decisória da agência e as condições de controle
democrático da atuação da agência no plano dos três poderes (accountability
horizontal); (b) a efetividade dos mecanismos de participação pública no
funcionamento da ANATEL em termos de condições de deliberação sobre o
conteúdo da regulação (mecanismos deliberativos de accountability vertical); e
(c) as condições de participação de grupos de interesse no processo de
formulação do conteúdo da regulação (condições de accountability deliberativa
vertical na esfera pública)”. 40
Essas conclusões a que chega Mattos podem ser resumidas da seguinte
maneira:
(a) Quanto aos mecanismos de accountability horizontal, o autor
demonstra a existência de várias formas de controle da atuação da ANATEL pelos
Poderes Executivo (Administração Pública direta), Legislativo e Judiciário. Em
relação ao Poder Legislativo, as condições de controle estão ligadas,
principalmente, aos mecanismos de prestação de contas das atividades do
Conselho Diretor, que estão previstos tanto na LGT quanto na Constituição de
1988. A LGT também prevê que os indicados para o Conselho Diretor da
ANATEL sejam aprovados pelo Senado Federal.
38
A escolha de Mattos em pesquisar apenas as consultas públicas se justifica na medida em que “a
consulta pública é o principal mecanismo de participação pública no processo decisório da
ANATEL na definição do conteúdo da regulação. Isso porque está diretamente associado à função
normativa da agência” (Ibid., p. 262), conforme disposto no art. 42 da Lei n. 9.472/97 (Lei geral de
Telecomunicação – LGT).
39
Ibid., p. 249.
40
Ibid., loc. cit..
129
No que diz respeito ao controle judicial dos atos administrativos –
inclusive os normativos – da ANATEL, Mattos indica que seria possível
estabelecer uma relação entre as condições de deliberação sobre o conteúdo da
regulação e os limites da revisão judicial, o que permitiria avaliar objetivamente o
mérito das decisões administrativas da ANATEL. Isto é, sem substituir o
conteúdo da regulação por sua decisão, o Poder Judiciário poderia invalidar as
normas editadas por ausência ou insuficiência de justificativas racionais
apresentadas sobre os motivos do conteúdo da regulação. Contudo, não é isso que
se tem observado na prática. Com efeito, sob “o ‘dogma da discricionariedade
administrativa’ e no ‘lugar-comum retórico’ que o conceito de interesse público
representa em parte relevante da doutrina brasileira em matéria de direito público,
o Judiciário acaba por ter o seu papel diminuído” 41 no controle do mérito dos atos
administrativos.
Por fim, quanto ao controle da atuação da ANATEL pelo Poder Executivo,
vários mecanismos de accountability horizontal também são previstos na
legislação. Em primeiro lugar, há uma divisão de competências entre as matérias
que dizem respeito à definição da política governamental de telecomunicações,
atribuída à Administração Pública, e as matérias que cabem à ANATEL definir ou
especificar na execução dessa política pré-definida pelo governo. Isso implica a
necessidade de prestação de contas por parte da ANATEL à Administração direta
quanto à execução da política governamental de telecomunicações, permitindo,
inclusive, a possibilidade de demissão de membros do Conselho Diretor caso esta
não estiver sendo cumprida. Além disso, o Presidente da República tem o poder
de indicar os nomes dos integrantes do Conselho Diretor da ANATEL.
(b) Em relação aos mecanismos de participação popular da ANATEL
(mecanismos deliberativos de accountability vertical), Mattos afirma que, do
ponto de vista do seu desenho institucional, os mesmos permitem a deliberação
pública sobre o conteúdo da regulação, tendo em vista que possibilitam que partes
afetadas registrem seus argumentos nos processos decisórios da ANATEL
42
. As
consultas públicas se destacam como mecanismos de accountability vertical mais
relevante, pois, além de viabilizarem a deliberação acerca do conteúdo das normas
a serem editadas e a defesas dos interesses das partes afetadas, sua realização é,
41
42
Ibid., p. 288.
Ibid., pp. 293-294.
130
segundo a LGT, obrigatória para o exercício de função normativa por parte da
ANATEL. Os mecanismos da audiência pública e do procedimento de denúncia
ou reclamação, embora sejam importantes para o controle da execução de
políticas públicas definidas pela agência e para a resolução de conflitos, não são
de realização obrigatória pela agência. No caso da denúncia, a iniciativa parte
daqueles interessados na instauração de um processo administrativo. Já no caso da
audiência pública, sua realização depende de juízo de conveniência do
administrador43.
Porém, na prática, o desempenho de tais mecanismos na função de
“controle substantivo” dos argumentos e justificativas apresentados à ANATEL
nos processos analisados por Mattos apresenta algumas falhas que são entendidas
pelo autor como “déficits democráticos procedimentais”. Isso porque a idéia de
controle substantivo, segundo Mattos, se caracterizaria da seguinte maneira: (i)
pela possibilidade de contraditório e amplo acesso (por intervalo de tempo
definido) aos argumentos dos atores que se manifestam em consultas públicas, a
fim de aumentar a discussão pública de motivos e efeitos almejados no conteúdo
da regulação a ser definida; (ii) pela fundamentação das decisões do Conselho
Diretor, explicando as razões da aceitação e da recusa dos argumentos contidos
nas manifestações dos participantes; (iii) pela realização de audiências públicas
conjuntamente com consultas públicas, gerando foros deliberativos durante o
prazo em que a minuta do texto da norma a ser editada esteja em discussão
44
.
Mas os resultados da pesquisa realizada por Mattos, considerando todas as
consultas públicas realizadas na ANATEL, entre 1998 e 2003, sobre o tema
“universalização de serviços de telecomunicações e questões correlatas”,
demonstram, que: (i) somente em três das dez consultas públicas pesquisadas
houve a possibilidade de contraditório e amplo acesso aos argumentos dos demais
atores participantes; (ii) em apenas uma das consultas a ANATEL formalizou
resposta aos atores que se manifestaram; e (iii) em apenas quatro consultas
públicas o Conselho Diretor da ANATEL entendeu por bem realizar, também,
audiência pública no processo de elaboração das normas regulatórias 45.
43
Ibid., pp. 294-295.
Ibid., pp. 295-296.
45
Ibid., loc. cit..
44
131
O controle substantivo dos procedimentos representa, para Mattos, um
ideal a ser perseguido para o aperfeiçoamento democrático-institucional das
agências reguladoras. Pois o cumprimento das três condições por ele elencadas,
em última análise, tem por objetivo viabilizar um maior controle da atuação
normativa das agências, não só em termos de accountability vertical como,
também, de accountability horizontal.
(c) Quanto às condições de participação de grupos de interesse no processo
de formulação do conteúdo da regulação, é possível afirmar que as consultas
públicas da ANATEL têm sido efetivamente utilizadas não apenas por
associações ou empresas de telecomunicações, mas também por outros atores
sociais. E isso, segundo Mattos, por si só, “comprova que esse tipo de mecanismo
de participação tem o potencial democrático de ampliar a participação de outros
atores da sociedade civil na deliberação sobre o conteúdo da regulação, que não
apenas aqueles que sempre fizeram parte da ‘tríplice aliança’ ou que tiveram
acesso privilegiado aos ‘anéis burocráticos’ do Estado”
46
. Conclusão reforçada
pelo fato de que interesses distintos daqueles das empresas reguladas são levados
à ANATEL, embora, quantitativamente, o índice de representação destes nas
propostas ventiladas nas consultas ainda seja predominante em face da
representação daqueles.
Por outro lado, a predominância quantitativa das propostas que
representam
os
interesses
das
empresas
reguladas
47
não
significa,
necessariamente, predominância de influência dessas empresas sobre o processo
decisório. Em primeiro lugar, porque não há uma contraposição obrigatória os
interesses das empresas e os interesses classificados por Mattos como “difusos”48.
46
Ibid., p. 298.
“A categoria interesse empresarial privado é definida por demandas de alteração do texto das
minutas de normas cujos argumentos e justificativas apresentados apontam para efeitos
pretendidos que beneficiam as empresas atuantes no setor de telecomunicações ou em setores
correlatos” (Ibid., p. 277).
48
“A categoria de interesses difusos é definida por demandas que têm por base argumentos e
justificativas para alteração de normas visando efeitos que beneficiam uma coletividade de atores.
Defesa de direitos dos consumidores e do meio ambiente são exemplos típicos. Contudo, a defesa
de direitos e interesses que possam beneficiar grupos coletivos mais restritos também se
enquadram nessa categoria. É o caso dos interesses de portadores de deficiência física, de
população de baixa renda ou sem renda, de população de determinadas regiões do país e de
trabalhadores. Por sua vez, a defesa de direitos e interesses mais amplos, como a universalização
de serviços (incluindo aqui a ampliação dos tipos de serviços com metas de universalização e dos
setores a terem serviços universalizados), o desenvolvimento tecnológico nacional, a
universalização de acesso a informações (incluindo setores específicos como saúde e educação), a
47
132
Em segundo lugar, porque, de acordo com o conceito habermasiano de
democracia deliberativa – no qual Mattos se apóia –, mesmo quando “os
interesses difusos defendidos contrariarem interesses empresariais privados (e
vice-versa) é possível supor que a deliberação pública sobre as opções que estão
em jogo crie pressão (política) para que uma decisão seja tomada pelo órgão
regulador, sendo racionalmente justificada com base nos argumentos apresentados
e efeitos almejados com a regulação a ser estabelecida”
49
. Em terceiro lugar,
porque não existe discrepância entre os índices de incorporação de sugestões que
veiculam interesses privados das empresas reguladas e de sugestões que
representam interesses difusos – o índice de incorporação destas é, inclusive,
superior ao daquelas.
Assim, o simples fato de propostas que representam interesses difusos
conseguirem circular nos processos decisórios da ANATEL é suficiente, segundo
Mattos, para indicar a existência de um potencial democrático contido no
mecanismo das consultas públicas 50.
Mattos destaca, ainda, outros resultados que chamam a atenção, como, por
exemplo, o baixo índice de participação de associações de defesa do consumidor e
de outros organismos não governamentais. Ressalva, porém, que as causas para
isso podem ser variadas: falta de conhecimento desses mecanismos de
participação; falta de recursos como tempo, dinheiro e informação; falta de
confiança na efetividade do uso desses mecanismos na ANATEL etc. Uma das
hipóteses que poderiam ser levantadas, segundo o autor, é a de que os déficits
democráticos apontados no funcionamento desses mecanismos (especialmente a
ausência de resposta formal às manifestações e a impossibilidade de contraargumentação no processo) possam ter sido reconhecidos pelos representantes de
interesses difusos, que, desse modo, teriam perdido a confiança na efetividade das
consultas públicas 51.
O último dado relevante diz respeito ao baixo índice geral de incorporação
das propostas dos participantes das consultas públicas. O que também está aberto
a diferentes hipóteses explicativas. Por exemplo, seria plausível cogitar, como faz
democratização de controle da aplicação de recursos na universalização de serviços, também
foram incluídos na categoria de interesses difusos” (Ibid., loc. cit.).
49
Ibid., p. 299.
50
Ibid., loc. cit..
51
Ibid., pp. 299-300.
133
Mattos, que a ANATEL não estaria assumindo seriamente a importância dos
mecanismos de participação pública para sua atuação. E, se, caso testada, essa
hipótese não fosse falsificada, isso significaria um déficit de legitimidade
democrática na formulação do conteúdo da regulação52.
Em síntese, a conclusão geral a que chega Mattos é a de que “os
mecanismos de participação pública adotados na ANATEL têm um potencial
democrático” 53, considerando o sentido que foi por ele atribuído a esse conceito
com base na teoria deliberativa da democracia de Habermas e também as
características da atividade regulatória do Estado brasileiro antes das reformas da
década de 1990. Esse potencial democrático, porém, “não se realizou
completamente ou pode não se realizar, tendo em vista os déficits democráticos
apontados”54.
Nas próximas seções, apontarei, segundo meu entendimento, as vantagens
analíticas da adoção da proposta teórica de Mattos para o tratamento do tema da
legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras brasileiras (2), bem
como o que julgo serem os pontos problemáticos de tal proposta (3).
4.2
Vantagens analíticas da proposta de Mattos
Não há dúvidas de que a proposta teórica de Mattos representa uma
contribuição relevante para o debate sobre a legitimidade da atuação normativa
das agências reguladoras brasileiras. A meu ver, trata-se, a rigor, da contribuição
mais relevante já produzida no meio jurídico sobre o tema. Isso porque, por um
lado, abre espaço para uma busca de parâmetros normativos para o conceito de
legitimidade que estejam situados além dos limites formais dos textos normativos
jurídicos. Por outro, procura testar tal conceito face à facticidade dos processos
decisórios das agências reguladoras, operacionalizando-os através da construção
de um modelo de análise empírica, a fim de produzir conhecimento capaz de
explicar e atuar sobre a realidade.
52
Ibid., p. 300.
Ibid., loc. cit..
54
Ibid., loc. cit..
53
134
Nesse sentido, Mattos evidencia – ao mesmo tempo em que busca superar
– as insuficiências do padrão de pesquisa consolidado entre os juristas brasileiros
sobre a questão da legitimidade do poder normativo das agências reguladoras. Os
estudos que seguem a este padrão se limitam a uma análise estritamente jurídicoformal do tema, segundo a qual tanto a legitimidade quanto a ilegitimidade da
atuação normativa das agências decorrem da “melhor” interpretação que se faça
dos princípios constitucionais da legalidade e da separação dos poderes.
Mattos, ao contrário, parte do fato da inexorabilidade da regulação da
economia pelo Estado nas sociedades capitalistas modernas através da atribuição
crescente de funções normativas à Administração Pública. Isso faz com que
tentativas de interpretação jurídicas “puras” dos princípios constitucionais da
separação de Poderes e da legalidade, com base num paradigma liberal de
democracia, mostrem-se, desde logo, inadequadas para a compreensão do
problema.
Além disso, por meio da comparação entre os modelos institucionais do
Estado brasileiro antes e depois das reformas da década de 1990, o autor
demonstra que o desenho institucional do que denomina “novo Estado regulador”
representa um ganho democrático em relação ao modelo de Estado anterior,
principalmente em razão de prever mecanismos de participação da sociedade nas
decisões da Administração Pública. Com isso, deixa claro que o foco das
investigações sobre o tema deve estar em saber se e como esses mecanismos de
participação pública podem, efetivamente, cumprir a função para a qual foram
idealizados, isto é, de legitimar, democraticamente, a atividade de produção
normativa da Administração Pública.
É com esse objetivo que Mattos investiga a estrutura institucional da
ANATEL e o funcionamento das consultas públicas por ela realizadas. Sua aposta
é a de que, com base no conceito de democracia deliberativa, seria possível
construir um modelo de análise capaz de apontar déficits e potenciais
democráticos nos processos de produção normativa dessa entidade.
A meu ver, esta última etapa da elaboração de sua proposta, por seu caráter
inovador e ousado, merece ser colocada à prova através da problematização de
seus próprios pressupostos. Na próxima seção, pretendo, pois, questionar três
aspectos da apropriação da teoria de Habermas por Mattos para a construção de
135
seu modelo de análise acerca da estrutura institucional e funcionamento da
ANATEL.
4.3
Aspectos problemáticos da proposta de Mattos
As críticas que pretendo explorar foram formuladas a partir das
proposições de Mattos sobre as características necessárias a “um modelo de
análise que dê conta da complexidade das relações sociais próprias do fenômeno
do Estado regulador”
55
. Segundo o autor, tal modelo deve: (a) ser capaz de
avaliar o desenho institucional de órgãos reguladores e sua relação com os três
Poderes do Estado para além de uma concepção liberal de democracia; (b)
permitir uma avaliação dos procedimentos de controle democrático e de
participação pública institucionalizados para tomada de decisão sobre o conteúdo
da regulação; (c) ser capaz de avaliar as condições de participação na esfera
pública brasileira
56
. Mattos assume que a teoria discursiva do Direito e da
democracia de Habermas seria capaz de informar, normativamente, a construção
de um modelo de análise que reunisse essas três características.
Com base nisso, questionarei até que ponto: (a) o modelo deliberativo de
democracia de Habermas pode ser utilizado para se avaliar o desenho institucional
das agências reguladoras e sua relação com os três Poderes do Estado; (b) o
conceito de legitimidade sustentado por Habermas pode ser operacionalizado
empiricamente para avaliar os processos decisórios das agências reguladoras; (c) o
conceito habermasiano de esfera pública dá conta da realidade política brasileira.
4.3.1
Legitimação democrática, separação dos poderes e participação
popular
Mattos reconhece que a atividade regulatória do Estado tem como base,
em grande medida, o aumento da delegação da função legislativa por parte do
Poder Legislativo ao Poder Executivo. O que pode ser explicado em razão da
55
56
Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p. 27.
Ibid., pp. 27-28.
136
crescente complexidade das relações sociais nas sociedades capitalistas
contemporâneas. Essa delegação legislativa, porém, é objeto de críticas que têm
como fundamento uma concepção liberal do princípio da separação dos Poderes
do Estado. No caso específico das agências reguladoras, essas críticas são
fortalecidas pelo fato de que as decisões tomadas pelos dirigentes que compõem
os Conselhos Diretores dessas entidades, e não são eleitos pelo voto popular,
quanto ao conteúdo das normas de regulação por elas elaboradas, não podem ser
revistas pelo chefe do Poder Executivo, democraticamente eleito, e, ainda, pela
relativa estabilidade de que gozam tais dirigentes em seus cargos durante o
cumprimento de seus mandatos.
Para responder a esse tipo de crítica, Mattos se apóia na concepção
habermasiana de democracia deliberativa, segundo a qual, nas sociedades
capitalistas contemporâneas, a soberania popular é procedimentalizada 57, devendo
ser interpretada de modo intersubjetivista58. O conceito de democracia deliberativa
pressupõe, pois, a imagem de uma sociedade descentrada 59, e não centralizada no
Estado, o que implica um deslocamento da fonte de legitimação do poder
administrativo: se, de uma perspectiva liberal, o centro do qual emana o poder
político legítimo está localizado no parlamento, da concepção deliberativa de
democracia, o poder político legítimo surge, sob a forma de poder comunicativo,
através dos procedimentos informais de deliberação dos atores da sociedade civil
na esfera pública.
57
“A soberania do povo retira-se para o anonimato dos processos democráticos e para a
implementação jurídica de seus pressupostos comunicativos pretensiosos para fazer-se valer como
poder produzido comunicativamente. Para sermos mais precisos: esse poder resulta das interações
entre a formação da vontade institucionalizada constitucionalmente e esferas públicas mobilizadas
culturalmente, as quais encontram, por seu turno, uma base nas associações de uma sociedade civil
que se distancia tanto do Estado como da economia” (Ibid. p. 24).
58
“A identidade da comunidade jurídica que se organiza a si mesma é absorvida pelas formas de
comunicação destituídas de sujeito, as quais regulam de tal modo a corrente da formação discursiva
da opinião e da vontade, que seus resultados falíveis têm a seu favor a suposição da racionalidade”
(Ibid. loc. cit..).
59
“A teoria do discurso conta com a intersubjetividade de processos de entendimento, situada
num nível superior, os quais se realizam através de procedimentos democráticos ou na rede comunicacional de esferas públicas políticas. Essas comunicações destituídas de sujeito - que acontecem
dentro e fora do complexo parlamentar e de suas corporações - formam arenas nas quais pode
acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de matérias
relevantes para toda a sociedade e necessitadas de regulamentação. O fluxo comunicacional que
serpeia entre formação pública da vontade, decisões institucionalizadas e deliberações legislativas,
garante a transformação do poder produzido comunicativamente, e da influência adquirida através da
publicidade, em poder aplicável administrativamente pelo caminho da legislação” (Cf.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., pp. 21-22).
137
Assim, é com base nessa idéia – qual seja, a de que a legitimidade surge do
poder comunicativo gerado nos procedimentos deliberativos, que remetem, em
última análise, a formas de comunicação destituídas de sujeito, que acontecem
tanto dentro do parlamento, quanto fora dele, na rede comunicacional de esferas
públicas políticas – que Mattos entende ser possível superar as críticas dirigidas à
legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras que têm por
fundamento uma concepção liberal de democracia.
De fato, tais críticas se encontram ainda muito atreladas a uma noção de
separação dos Poderes na qual a soberania popular, fonte da legitimação do poder
estatal, é representada de forma monopolística pelo parlamento, o que subestima a
capacidade de autodeterminação democrática das pessoas que deliberam nas esferas
públicas informais, isto é, sua capacidade de influenciar uma formação política
racional da vontade. Para a teoria deliberativa da democracia, no entanto, “a
lógica da divisão dos poderes só faz sentido se a separação funcional garantir, ao
mesmo tempo, a primazia da legislação democrática e a retro-ligação do poder
administrativo ao comunicativo”
60
. Ou seja, os cidadãos politicamente
autônomos têm que poder se considerar autores do Direito ao qual obedecem
enquanto sujeitos privados.
Porém, ao se concentrar na dimensão deliberativo-procedimental do
modelo habermasiano de legitimação democrática, Mattos deixa de explicitar
pontos importantes do raciocínio de Habermas e subestima a importância que as
corporações parlamentares – o Poder Legislativo – exercem na teoria discursiva
do Direito e da democracia.
Normativamente, o modelo habermasiano de política deliberativa
pressupõe diferenciações de tipos de argumentos e discursos inerentes ao processo
de formação da opinião e da vontade política, que estão diretamente ligadas à
reconstrução discursiva das instituições do Estado de Direito moderno – ver item
3.3.b. Nesse aspecto, vale aprofundar um pouco mais as implicações dessa idéia
para a noção de separação dos Poderes, que introduzi no item 3.3.b.
A reconstrução discursiva da auto-compreensão do Estado de Direito
moderno, empreendida por Habermas nos capítulos 3 e 4 de Direito e Democracia
entre Facticidade e Validade, nada mais é, em última análise, do que a
60
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 233.
138
reconstrução da auto-compreensão normativa do modelo liberal de Estado, isto é,
das representações normativas reconhecidas sobre direitos individuais e
instituições político-jurídicas resultantes da tradição do pensamento iluminista no
qual se funda a modernidade. E a idéia de separação dos Poderes, segundo a
concepção liberal clássica, é explicada através da seguinte diferenciação das
funções do Estado: “enquanto o legislativo fundamenta e vota programas gerais
e a justiça soluciona conflitos de ação, apoiando-se nessa base legal, a
administração é responsável pela implementação de leis que necessitam de
execução” 61.
Mas, para Habermas, a separação dos Poderes do Estado de Direito moderno
não pode ser explicada suficientemente a partir da experiência concreta do Estado
liberal 62. Daí porque propõe ele uma análise dos princípios do Estado de Direito na
qual os mesmos não estejam vinculados à qualquer ordem jurídica histórica e nem a
uma forma concreta de institucionalização. Nesse sentido, o fato de se reconhecer a
separação abstrata de três funções do Estado não quer dizer que, no plano
institucional, tais funções sejam concretizadas num igual número de organizações63.
Pelo contrário, Habermas deixa claro que os princípios do Estado de Direito, dentre eles o
da legalidade e controle judicial e parlamentar da administração – que esclarece o sentido
nuclear da separação dos Poderes 64 –, quando concretizados no nível organizatório das
instituições políticas ou do processo político, assumem diferentes formas. E, desse modo, o
fato de que uma determinada organização institucional concreta não obedeça ao esquema
clássico da separação dos Poderes não quer dizer, necessariamente, que ela seja contrária à
idéia de separação dos Poderes 65.
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 232.
Segundo Habermas, a concepção liberal da separação dos Poderes do Estado se apóia numa interpretação estreita do conceito de lei, que perde de vista sua gênese democrática: “Ela carateriza a lei
através de princípios semânticos gerais e abstratos e considera preenchido o princípio da legalidade
da administração, quando a execução administrativa se limitar rigorosamente a uma concretização do
conteúdo normativo geral, de modo adequado às circunstâncias. Na linha dessa interpretação, a lei
não deve a sua legitimidade ao processo democrático, mas à sua forma gramatical. O encurtamento
semântico propõe uma interpretação da divisão de poderes, seguindo uma lógica de subsunção.
Segundo esta linha, a ligação do legislativo à constituição e a ligação do executivo à lei medir-se-ia
pela subordinação lógica dos conteúdos normativos mais específicos aos mais gerais: medidas,
estatutos e decretos têm que subsumir-se à lei, do mesmo modo que as leis simples se subordinam à
norma constitucional”. (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e
Validade – Vol. I..., p. 236).
63
Ibid., p. 237.
64
Ibid., p. 216.
65
Ibid., p. 240, nota de rodapé n. 63.
61
62
139
Na verdade, a avaliação das formas concretas de institucionalização de
princípios que informam a idéia de separação dos poderes, demanda que se assuma o
ponto de vista abstrato de análise da utilização dos diferentes tipos de argumentos,
bem como das correspondentes formas de comunicação que esses tipos de
argumentos comportam. “O olhar tem que se dirigir mais aos discursos e negociações
nos quais se forma a vontade do legislador e ao potencial de argumentos pelos quais
as leis se legitimam” 66.
Desse modo, na perspectiva da teoria do discurso, as funções da produção de
leis, da Justiça e da administração podem ser diferenciadas de acordo com as formas
de comunicação e potenciais de argumentos correspondentes
67
. Em resumo, leis
regulam a transformação do poder comunicativo em administrativo, na medida em
que: i) são elaboradas de acordo com um processo democrático; ii) fundamentam
uma abrangente proteção legal garantida por uma Justiça independente; e iii)
subtraem da administração implementadora o tipo de argumentos normativos que
sustentam as decisões legislativas e judiciais 68. Segundo Habermas:
“Esses argumentos normativos fazem parte de um universo no qual o legislativo e a
jurisprudência distribuem entre si o trabalho de fundamentação das normas e o da sua
aplicação. Uma administração limitada a discursos pragmáticos não pode mover nada
nesse universo com contribuições próprias; ao mesmo tempo, ela extrai dele as
premissas normativas que ela precisa colocar na base de suas próprias decisões
teleológicas informadas empiricamente”. 69
Ou seja, “do ponto de vista da lógica da argumentação, a separação entre as
competências de instâncias que fazem as leis, que as aplicam e que as executam,
resulta da distribuição das possibilidades de lançar mão de diferentes tipos de
argumentos e da subordinação de formas de comunicação correspondentes, que
estabelecem o modo de tratar esses argumentos” 70.
E, de acordo com essa idéia, “somente o legislador político tem o poder
ilimitado de lançar mão de argumentos normativos e pragmáticos, inclusive os
constituídos através de negociações eqüitativas, isso porém, no quadro de um
procedimento democrático amarrado à perspectiva da fundamentação de normas” 71.
A administração não constrói (função do legislador), nem reconstrói (função da
66
Ibid., p. 238.
Ibid., loc. cit..
68
Ibid., loc. cit..
69
Ibid., pp. 238-239.
70
Ibid., p. 239.
71
Ibid. loc. cit..
67
140
Justiça), argumentos normativos. As leis vinculam a persecução de fins coletivos a
premissas normativas nelas estabelecidas, de modo que a atividade administrativa se
restringe a escolhas entre tecnologias e estratégias de ação, no horizonte da
racionalidade pragmática 72.
Assim, a atuação administrativa elabora o conteúdo teleológico do direito
vigente, enquanto este confere forma de lei a políticas e dirige a realização
administrativa de fins coletivos. Somente dessa maneira, a idéia da separação
funcional dos Poderes pode garantir, ao mesmo tempo, a primazia da legislação
democrática e a retro-ligação do poder administrativo ao comunicativo, e os
cidadãos politicamente autônomos podem se considerar autores do Direito ao
qual obedecem enquanto sujeitos privados.
Dois elementos que decorrem da idéia de separação de Poderes e que,
segundo Habermas, contribuem para a primazia da legislação democrática são “a
autorização do pessoal dirigente através dos eleitores, em votações gerais” e,
especialmente, “o princípio de conformidade à lei, de uma administração que deve
estar submetida ao controle parlamentar e judicial”
73
. Ocorre, porém, que, como
visto, no caso das agências reguladoras, os dirigentes não são eleitos e nem estão
sujeitos à accountability eleitoral. E, além disso, dado que Poder Legislativo elabora
leis cada vez mais gerais, é bastante amplo o espaço discricionário de decisão das
agências, o que dificulta o controle judicial
74
. Vale dizer, quando o Congresso
atribui às agências reguladoras, por meio de leis como a LGT, a de petróleo (Lei n.
9.478/97), de energia elétrica (Lei n. 9.427/96), planos de saúde (Lei n. 9.961/00)
etc., a capacidade de decidir entre, de um lado, a necessidade de universalização dos
serviços de telecomunicação, eletricidade, preço acessível de combustíveis e de
72
Ibid., loc. cit..
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 234.
Note-se que, segundo Habermas: “Essa ligação da administração à lei não pode ser confundida com
uma outra espécie de mecanismo limitador do poder. A divisão regional e funcional do poder
administrativo numa administração estruturada de modo federativo, bem como a subdivisão do
executivo em administrações especiais e universais seguem o modelo de ‘checks and balances’ - da
distribuição do poder no interior de uma divisão funcional de poderes, já realizada. Esta distribuição do
poder administrativo está acoplada apenas indiretamente à lógica da divisão de poderes, a saber, na
medida em que a descentralização do aparelho administrativo tem efeitos de bloqueio, de retardamento
e de moderação, que abrem a administração em geral a controles externos” (Ibid., p. 234-235).
74
Segundo Habermas, o esquema liberal clássico da divisão dos poderes perde sua atualidade frente
ao surgimento, no Estado Social, de leis que não veiculam programas condicionais, mas sim
programas finalísticos. Essas leis “contêm cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados ou
concretos, finalidades que servem de medida, que abrem à administração um amplo espaço de
opinião”. E “uma administração planejadora, executora e configuradora não pode mais restringir-se à
implementação técnica de normas gerais e suficientemente determinadas, sem levar em conta
questões normativas” (Ibid., p. 236-237).
73
141
planos de saúde etc., e, de outro, a necessidade de gerar empregos, atrair
investimentos e fomentar o crescimento econômico, parece claro que os
administradores devem fazer escolhas valorativas que não se enquadram na idéia de
competência exclusivamente técnica ou profissional.
Ora, isso certamente não se enquadra na descrição ideal – resultado da
reconstrução proposta por Habermas – de uma Administração Pública cuja
atuação é informada, exclusivamente, pela racionalidade teleológica e pautada por
argumentos normativos – externos a ela – estabelecidos através do desempenho
das funções de fundamentação e aplicação da lei por parte do legislador e da
Justiça. Habermas reconhece que, na medida em que a implementação de leis
finalísticas sobrecarrega a administração com tarefas relacionadas com o aprimoramento
do Direito e com a aplicação da lei, a base de legitimação clássica das estruturas
administrativas não é mais suficiente 75. No entanto, o autor afirma que, nesses casos, “a
lógica da divisão dos poderes precisa ser realizada em estruturas modificadas – por
exemplo, através da introdução de formas de comunicação e de participação
correspondentes ou através do estabelecimento de processos judiciais ou parlamentares, de
processos da formação de compromissos, etc.” 76.
Note-se que o foco do problema, para Habermas, não está, em si, na
assunção da função de produção de normas pela Administração Pública, mas
no fato de que, no desempenho de tal função, “se lança mão, em larga escala e
a qualquer hora, de argumentos normativos, os quais, segundo o esquema
clássico da separação entre os poderes, estavam reservados à justiça e ao
legislador parlamentar”
77
. Assim, diante de “uma administração sobrecarregada
com tarefas de regulação, a qual não pode mais limitar-se a executar leis de modo
normativamente neutro e competente, no quadro de atribuições normativas
75
“Com o crescimento e a mudança qualitativa das tarefas do Estado, modifica-se a
necessidade de legitimação, quanto mais o direito é tomado como meio de regulação política e
de estruturação social, tanto maior é o peso de legitimação a ser carregado pela gênese
democrática do direito. A quantidade de programas políticos pode, inclusive, sobrecarregar o
medium do direito, quando o processo político fere as condições procedimentais de
normatizações legítimas, diferenciadas nos princípios do Estado de direito, em última
instância, quando atinge o processo democrático da estruturação política autônoma do sistema
de direitos (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol
II..., p. 171).”
76
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., pp.
239-240.
77
Ibid., p. 182.
142
claras”78, Habermas propõe que se pense em mecanismos institucionais que
viabilizem discursos envolvendo a fundamentação e a aplicação de normas – os
quais extrapolam o quadro profissional de um preenchimento pragmático de
tarefas – e sejam capazes de fazer com que se possa tratar, racionalmente, no
âmbito administrativo, de questões que envolvem o escalonamento dos bens
coletivos, a escolha entre fins concorrentes e a avaliação normativa de casos
particulares. Ou seja, “uma vez que a administração, ao implementar programas
de leis abertos, não pode abster-se de lançar mão de argumentos normativos, ela
tem que desenvolver-se através de formas de comunicação e procedimentos que
satisfaçam às condições de legitimação do Estado de direito” 79.
Habermas, no entanto, não especifica quais seriam esses mecanismos e
nem desenvolve, de forma suficiente, de que maneira eles se integrariam às
demais instituições do Estado de Direito. Ao contrário, o autor problematiza ainda
mais a questão, como se percebe no trecho abaixo:
“(...) é necessário perguntar se tal ‘democratização’ da administração – que
ultrapassa o simples dever de informar e que complementou o controle
parlamentar e judicial da administração a partir de dentro – implica apenas a
participação decisória de envolvidos, a ativação de ombudsmen, de processos
análogos ao tribunal, de interrogatórios, etc., ou se implica, além disso, outros
tipos de arranjo num domínio tão suscetível a estorvos e onde a eficiência conta
tanto”. 80
Assim, embora reconheça a necessidade de, ante a sobrecarga do sistema políticojurídico nas sociedades capitalistas contemporâneas, se pensar novas formas institucionais
para que seja preservada a ligação entre o poder administrativo e o poder comunicativo
nessas sociedades, Habermas deixa claro que essa inovação, na prática, “é questão de um
jogo que envolve tanto a fantasia institucional, como a experimentação
cuidadosa” 81. Portanto, se, no plano abstrato da teoria do discurso, essas práticas
de participação pública poderiam ser entendidas como processos destinados à
legitimação das decisões administrativas, capazes de substituir a atuação do
legislador ou da Justiça no tratamento de questões que envolvem argumentos
normativos, quando trazidas para o plano real, a operacionalização dessa idéia em
formas institucionais concretas exige o enfrentamento de novos problemas.
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p.
184.
79
Ibid., p. 184.
80
Ibid., pp. 184-185.
81
Ibid., p. 184.
78
143
Isso porque, o estabelecimento de um ambiente discursivo através dos
mecanismos de participação pública exige que o Estado exerça funções que o
modelo normativo de Habermas não admite. Práticas comuns no Direito
regulatório contemporâneo, como, por exemplo, a auto-regulação das empresas, a
mediação e a conciliação, parecem não se enquadrar no princípio da separação
entre Estado e sociedade civil. Nelas há uma “horizontalização” da relação do
Estado com os atores da sociedade civil que, por sua vez, assumem poderes
ligados à decisão e à implementação de normas, e não apenas à capacidade de
influenciar indiretamente as decisões do sistema político.
Ademais, não custa lembrar que há diferenças significativas, diretamente
ligadas à questão da representatividade e, por conseguinte, da legitimidade
democrática, entre os processos decisórios que se desenvolvem nas corporações
parlamentares e aqueles que se desenrolam nas agências reguladoras. Habermas
entende que, organizatoriamente, o principio que mantém a divisão entre Estado e
sociedade civil e que impede uma intervenção direta do poder social no poder
administrativo “encontra sua expressão no princípio da responsabilidade
democrática de detentores de cargos políticos em relação aos eleitores e aos
parlamentos” 82. Vale dizer: “Deputados têm que se expor periodicamente a novas
eleições; a responsabilidade do governo e os parlamentares para com suas
próprias decisões e para com os serviços públicos dependentes de suas diretrizes
correspondem aos direitos de controle e de exoneração da representação popular”.
Sabe-se que os parlamentares são eleitos pelo povo; estão sujeitos à
accountability eleitoral; e os resultados dos processos deliberativos determinam a
decisão a ser tomada pelo Poder Legislativo. Já em relação às agências
reguladoras, tem-se que, embora o formato institucional não seja sempre o mesmo
em todas as agências, o Conselhos Diretor de cada uma dessas entidades é
composto por membros não-eleitos; que, portanto, não estão sujeitos à
accountability eleitoral – nem mesmo pela via indireta, na medida em que não
podem ser exonerados ad nutum pelo chefe do Poder Executivo durante o
mandato –; e cujas decisões não estão, de forma alguma, vinculadas aos resultados
dos processo deliberativos ocorridos através dos mecanismos de participação
institucionalizados pelas leis de criação das agências reguladoras.
82
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 219.
144
Isto posto, não é óbvia – e muito menos trivial – a aplicação das idéias ultraabstratas que sustentam o paradigma procedimentalista do Direito à concretude
das instituições do Estado Regulador brasileiro, como as agências reguladoras.
Mesmo porque, a rigor, o projeto teórico de reconstrução discursiva desenvolvido
por Habermas em Direito e Democracia entre Facticidade e Validade se apóia na
auto-compreensão normativa da experiência institucional concreta do Estado
liberal. E, em tal contexto, a possibilidade de criação de mecanismos
institucionais de participação popular nas decisões da administração surge como
uma medida “compensatória” de um modelo normativo de Estado que não
consegue mais dar conta dos problemas que se lhe apresentam nas sociedades
capitalistas contemporâneas. Dito de outro modo, do ponto de vista da autocompreensão normativa da sociedade, tais mecanismos continuam a ser
considerados como paliativos para um funcionamento “patológico” da
Administração.
O reconhecimento dos mecanismos de participação pública como
instrumentos integrantes do sistema político-jurídico, aptos a legitimar
democraticamente – ou, nas palavras de Mattos, dotados de um “potencial
democrático” – as decisões da administração que envolvem argumentos
normativos, depende, assim, de uma reconstrução desses arranjos institucionais à
luz da teoria do discurso, o que, no Brasil, ainda não foi feito 83.
83
Para uma tentativa de operacionalização do paradigma procedimentalista habermasiano nos
ambientes regulatórios desenvolvida no contexto europeu, ver: BLACK, Julia.
Procedimentalizando a Regulação: Parte I; e Procedimentalizando a Regulação: Parte II. In:
MATTOS, Paulo Todescan Lessa (coord.). Regulação Econômica e Democracia: O Debate
Europeu..., pp. 141-203. O trabalho de Black é capaz de fornecer uma pequena amostra do quão
complexo é pensar, a partir da Teoria de Habermas, os espaços de participação popular
institucionalizados nas agências reguladoras como instrumentos capazes de democratizar e
legitimar a atuação dessas entidades e, conseqüentemente, superar as questões constitucionais
contrapostas à sua atuação. A autora inglesa procura desenvolver um modelo de
procedimentalização “em sentido amplo” a partir da teoria da democracia deliberativa de
Habermas. Mas, para tanto, entende serem necessárias modificações em dois importantes aspectos,
que, no entanto, permanecem em aberto: “Em primeiro lugar, argumenta-se que a demanda por
deliberação não é suficiente, pois ainda que todos os deliberantes possam ser reunidos, existe a
probabilidade de a comunicação ser bloqueada pela diferença: diferença nos modos do discurso,
nas técnicas do argumento, na linguagem e demandas de validade. O discurso, portanto, pode
precisar ser mediado por meio da adoção de estratégias de tradução, mapeamento e resolução de
disputas. Se os reguladores podem ou devem assumir esse papel de mediação permanece, porém,
uma questão aberta. Em segundo lugar, argumenta-se que as formas deliberativas de formação e
regulação de políticas são compatíveis com arranjos mais pluralistas e poliárquicos do que
Habermas permite. Tais arranjos precisam ser adotados para que a procedimentalização ‘em
sentido amplo’ se torne operativa (Cf. BLACK, ob. cit., p. 167).
145
4.3.2
Legitimidade e circulação do poder político: rotina e crise
A segunda crítica direcionada à proposta de Mattos diz respeito à sua
tentativa de operacionalizar, empiricamente, o conceito de legitimidade proposto
por Habermas em Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, com o
objetivo investigar a existência do que denomina “potencial democrático” nas
consultas públicas da ANATEL. A hipótese de Mattos é a de que as consultas
públicas se apresentariam como instrumentos potencialmente aptos a legitimar
democraticamente a atuação das agências reguladoras, na medida em que fossem
capazes de reproduzir, no processo decisório das agências reguladoras, um
ambiente discursivo capaz de gerar resultados que possam ser considerados
legítimos pelos participantes.
Mattos define duas dimensões a partir das quais procura investigar o
potencial democrático das consultas públicas. Primeiro, pretende avaliar em que
medida as consultas públicas, como mecanismos de participação popular
institucionalizados nos processos decisórios das agências reguladoras, cumprem a
função – que por ele lhes é atribuída
84
– de “controle substantivo”, isto é, de
“meios de controle democrático e de deliberação pública sobre questões
relevantes de ordem política, que estão na base da escolha de técnicas
administrativas para regular a economia e a vida social” 85. Essa avaliação quanto
ao controle substantivo dos argumentos e justificativas apresentados pelos
participantes nos processos deliberativos sobre o conteúdo das políticas que
ingressarão no sistema jurídico por meio de normas regulatórias editadas pelas
agências serve de medida para se identificar potenciais e déficits democráticos na
dimensão institucional desses mecanismos de participação popular. E, como visto,
Mattos escolhe três indicadores para operacionalizar sua análise no plano
institucional: (i) a possibilidade de contraditório e amplo acesso (por intervalo de
tempo definido) aos argumentos dos atores que se manifestam em consultas
84
Suponho, aqui, como condição para prosseguir na análise da proposta de Mattos, que a
problemática etapa de institucionalização de espaços de participação popular nos processos de
tomada de decisão das agências reguladoras de acordo com a teoria discursiva do Direito e da
democracia de Habermas – mencionada no item anterior – foi ultrapassada com sucesso, de modo
que seria possível assumir tais mecanismos participativos como instrumentos aptos a legitimar as
decisões normativas das agências reguladoras.
85
Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p. 28.
146
públicas; (ii) a fundamentação das decisões do Conselho Diretor; (iii) a realização
de audiências públicas conjuntamente com consultas públicas 86.
A outra dimensão do conceito de potencial democrático avaliada por
Mattos diz respeito às condições efetivas de participação nas consultas públicas.
Nela o autor define como indicadores os dados referentes a quem participa das
consultas públicas, quais são os temas levantados por tais atores em suas
sugestões e qual o grau de incorporação das mesmas às normas que são editadas
pela ANATEL.
Na dimensão institucional, os indicadores escolhidos são adequados para
apontar – como, de fato, o fazem – dificuldades na incorporação de pressupostos
comunicativos formais mínimos – sem os quais não se pode falar em deliberação
do ponto de vista da teoria do discurso – nos procedimentos das consultas
públicas. Porém, na dimensão referente às condições efetivas de participação nas
consultas públicas, a metodologia escolhida por Mattos não me parece adequada
para avaliar, com base no conceito de legitimidade habermasiano, o potencial
democrático das consultas públicas realizadas pela ANATEL. Isso porque, como
demonstrado no item 3.3.c, o conceito de legitimidade proposto por Habermas,
com base no modelo de circulação do poder político de Peters, não se presta a
uma análise empírica em circunstâncias de normalidade.
É certo que, como visto, no modelo de reprodução social pensado por
Habermas em Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, o sistema
político-jurídico se diferencia nas sociedades modernas como sistema responsável
pelo processamento e solução reflexiva dos problemas de integração que não
foram solucionados espontaneamente em outros âmbitos sociais. E, nos termos do
modelo normativo de Estado de Direito construído com base na teoria do
discurso, o sistema político-jurídico deve operar aberto para os impulsos de poder
comunicativo produzidos pela sociedade civil nas esferas públicas, de modo que
os mesmos possam influenciar os processos de tomada de decisões coletivamente
vinculantes 87.
Contudo, Habermas reconhece o fato de que, dada a complexidade dos
problemas de integração das sociedades capitalistas contemporâneas e a
sobrecarga cognitiva por eles gerada, o sistema político-jurídico, em sua rotina,
86
87
Ibid., pp. 295-296.
Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 288.
147
opera em sentido inverso ao devido. E ele procura equacionar esse obstáculo
oposto pela realidade ao seu modelo por meio de uma “deflação de expectativas”,
segundo a qual assume, como suficiente, do ponto de vista normativo, que o
sistema político-jurídico opere no sentido ideal “apenas – porém, nestes casos,
invariavelmente – nas situações críticas, quando estiver em perigo a solução de
problemas relativos à integração social da sociedade na ‘última instância’ das
instituições político-jurídicas” 88.
Por isso, com base no conceito de legitimidade de Habermas, não é
possível medir, empiricamente, o potencial de legitimação de um órgão do
sistema político-jurídico – no caso, a ANATEL – durante a rotina de seu
funcionamento. A verificação da existência ou não de um potencial democrático
nos mecanismos de participação pública depende, justamente, de que seja possível
caracterizar, empiricamente, um momento de “crise”, isto é, uma situação na qual,
em função do descompasso entre as decisões do sistema político e a opinião
discursivamente gerada na esfera pública política, a própria integração da
sociedade estiver ameaçada. Diante de tal circunstância, se, através dos
mecanismos de participação popular, a sociedade civil conseguisse influenciar o
Conselho Diretor da ANATEL – como órgão do sistema político-jurídico – na
tomada de suas decisões, de modo a adequá-las à opinião e vontade políticas
produzidas comunicativamente na esfera pública – estabelecendo, portanto, o
fluxo ideal do poder político –, poder-se-ia dizer que a atuação da agência, como
um todo, é legítima. Mas, enquanto essa situação de crise não é demonstrada, não
é possível investigar o potencial democrático das consultas públicas da ANATEL.
O que não implica dizer, entretanto, que a pesquisa de Mattos não tem
utilidade. Muito pelo contrário. Ela fornece dados extremamente relevantes para
um mapeamento – descritivo – do funcionamento das consultas públicas da
ANATEL, permitindo, assim, que sejam levantadas novas hipóteses para estudos
futuros. Porém, com base nela, não é possível afirmar a existência ou não de
potencial democrático – tal qual definido por Mattos – nessas consultas públicas.
Na verdade, quanto à dimensão referente às condições de participação nas
consultas públicas, os números não permitem que se chegue a qualquer conclusão
segura. Não é possível saber, por exemplo, se o baixo nível de incorporação das
88
Ibid., p. 289.
148
sugestões ventiladas nas consultas públicas às normas editadas pela ANATEL,
verificado na pesquisa de Mattos, é um reflexo do exercício de poder social
antidemocrático por atores da sociedade civil ou se, ao contrário, reflete de
maneira fiel a opinião e a vontade política legítima formada na esfera pública
informal
89
. Por outro lado, verificar que é grande a participação de atores não
ligados às empresas reguladas nas consultas públicas e que nelas é grande a
circulação de debates relativos a interesses difusos também não é suficiente para
se poder concluir, com segurança, sobre a existência ou não de um potencial
democrático. Isso porque – como será sustentado no próximo item – a grande
barreira à retro-ligação do poder administrativo ao poder comunicativo gerado na
esfera pública no Brasil parece estar relacionada não à possibilidade de
participação, mas à capacidade de influenciar as decisões do sistema políticojurídico.
Ou seja, em última análise, dado que o conceito de potencial democrático
depende da dimensão relativa às condições de participação nas consultas públicas,
o modelo de Mattos não é adequado para testar a hipótese por ele formulada. A
meu ver, a dificuldade para a operacionalização da idéia de legitimidade de
Habermas está ligada, principalmente, ao nível de abstração no qual o autor
desenvolve sua teoria. Habermas está preocupado com a legitimidade da ordem
jurídica e do poder estatal como um todo, e não com a legitimidade de cada
decisão resultante de cada processo decisório. A construção de um modelo
empírico teria, pois, que levar isso em conta. Teria, primeiro, que operacionalizar
o conceito de “situação de crise”, a fim de demonstrar sua ocorrência. Depois,
pensar em indicadores capazes de apontar se, por conta da crise acusada pelos
sensores da esfera pública, a agência reguladora, através do mecanismo da
consulta pública, leva em conta os influxos de poder comunicativo originários da
89
“Coloca-se a questão de saber até que ponto a facticidade social desses inevitáveis momentos de
inércia constitui um ponto de cristalização para complexos de poder ilegítimos, independentes do
processo democrático, mesmo quando a facticidade social já foi considerada na estrutura formal e
organizacional de instituições e constituições do Estado de direito. Levanta-se o problema da
inserção imperceptível do poder – que se concentra nos sistemas sociais funcionais, nas grandes
organizações e nas administrações estatais – na base sistêmica do fluxo do poder regulado por
normas e o problema da eficácia da intervenção do fluxo não-oficial desse poder não legitimado
no circuito do poder regulado pelo Estado de direito” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Democracia e
Direito entre Facticidade e Validade – vol. II..., p. 56).
149
participação dos atores da sociedade civil em processos deliberativo-discursivos
institucionalizados por meio das consultas públicas em suas decisões futuras 90.
4.3.3
O conceito de esfera pública no Brasil
A última crítica dirigida à contribuição de Mattos diz respeito ao modo
como o autor se apropria do conceito discursivo de esfera pública 91, proposto por
Habermas, para analisar um tema que se insere no contexto particular da realidade
política brasileira. Embora assuma de forma explícita essa opção metodológica92,
Mattos não se aprofunda na explicação das razões e, principalmente, das
implicações dessa escolha, passando ao largo do debate existente entre autores
que adotam o modelo deliberativo de esfera pública no Brasil, no qual se destaca a
divergência quanto à necessidade ou não de se alterar tal modelo para que o
mesmo possa dar conta dos problemas característicos do cenário sócio-político
brasileiro.
De uma perspectiva mais ampla, é possível afirmar que o desenvolvimento
do modelo discursivo de esfera pública habermasiano se insere nos debates em
torno da necessidade de reformulação, em face do intervencionismo estatal, das
teorias sobre a relação entre Estado e sociedade nos regimes democráticos. A
questão à qual se dirige, portanto, é a de como elaborar um modelo de democracia
que consiga preservar o ideal normativo da auto-regulação dos cidadãos – núcleo
da idéia da soberania popular – vinculando-o a processos políticos verticais
(liberal-representativos) e horizontais (participativo-democráticos). E isso implica
90
O recente caso envolvendo a demissão de membros do Conselho Diretor da Agência Nacional
de Aviação Civil – ANAC talvez pudesse fornecer dados relevantes para uma investigação acerca
da legitimidade da atuação desta agência reguladora. Foge aos limites do presente trabalho, porém,
realizar qualquer tipo de análise quanto ao mesmo.
91
O conceito de esfera pública apresentado, inicialmente, por Habermas em Mudança Estrutural
da Esfera Pública foi alterado pelo autor durante a década de 1990, após a elaboração de sua
Teoria da Ação Comunicativa em 1981. Assim, no prefácio da reedição alemã da obra em 1990, e,
principalmente, em Três Modelos Normativos de Democracia e Direito e Democracia entre
Facticidade e Validade, Habermas desenvolve o conceito deliberativo de esfera pública (Ver a
respeito: HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003; ___________. Três Modelos Normativos de Democracia...; e ___________.
Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II...; e, ainda, AVRITZER & COSTA,
ob. cit., pp. 705-710; e BERNARDES, Márcia Nina. Globalization and Political Inclusion in
Brazil: Domestic Implications of Transnational Public Spheres. New York: New York University
School of Law, A thesis submitted for the degree of Juridical Science Doctor, 2006 ).
92
Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa Mattos. O Novo Estado Regulador..., p. 30.
150
a necessidade de reflexão sobre formas de integração e articulação entre esses
tipos de processos políticos e, conseqüentemente, sobre o papel da sociedade civil
nas democracias contemporâneas.
Nesse sentido, compartilho com Mattos a opinião de que, comparado com
o modelo institucionalista de análise, típico dos estudos sobre a transição
democrática de países da América Latina, o modelo da esfera pública representa
um ganho analítico para a compreensão do processo – constante e ambíguo – de
democratização da sociedade brasileira e, portanto, para o estudo da questão da
legitimidade do poder administrativo em nosso país. Isso porque, como observam
Avritzer e Costa, há dois problemas analíticos fundamentais nas teorias
institucionalistas
da
transição
democrática. O primeiro está ligado à
desconsideração do papel ativo dos novos atores sociais que emergem no contexto
da democratização (movimentos sociais, associações de vizinhos, ONGs etc.).
Para tais teorias, a contribuição desses atores se resumiria a fortalecer a posição
das elites democráticas no jogo da política institucional, única arena em que a
construção da democracia efetivamente aconteceria. O segundo diz respeito à
relação de causalidade assumida entre política e cultura, segundo a qual às
mudanças político-institucionais corresponderiam, imediatamente, o enraizamento
de valores e práticas democráticas na sociedade 93.
Ou seja, falta à corrente teórica institucionalista um conceito substantivo
de espaço público que permita, em relação ao primeiro problema, entender como
se constroem, pela comunicação pública, a legitimidade e o poder efetivo que
conquistam os novos atores sociais e, quanto ao segundo, demonstrar como a
existência ou inexistência de uma sociedade civil atuante e de uma esfera pública
ativa tem papel fundamental na construção de uma cultura democrática e na
elaboração de mecanismos de fiscalização pública que inibam práticas
antidemocráticas enraizadas na realidade política brasileira, como o clientelismo e
o patrimonialismo
94
. O que somente é possível caso o foco da análise esteja
Cf. AVRITZER, Leonardo; e COSTA, Sérgio. Teoria Crítica, Democracia e Esfera Pública:
Concepções e Usos na América Latina. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro,
Vol. 47, n. 4, 2004, p. 720.
94
Ibid., loc. cit.. Para Avritzer e Costa, o papel da esfera pública na construção da democracia não
é adequadamente considerado pelos autores que seguem a linha das teorias da transição. Nestas
análises sobre a esfera pública na América Latina, “predomina (...) a visão herdada da sociologia
da sociedade de massas e da recepção tardia do conceito de indústria cultural, conforme foi
elaborado pela primeira geração da Escola de Frankfurt. Assim, esboça-se a imagem de um
público atomizado e disperso que, de produtores críticos de cultura se transformaram, no âmbito
93
151
voltado para a visualização das inter-relações entre os processos sócio-culturais e
político-institucionais 95.
É exatamente por isso que, ao se conceber espaço público a partir do
modelo discursivo de esfera pública, isto é, como uma arena, na qual se
concretizam e se condensam intercâmbios comunicativos gerados em diferentes
campos da vida social, se amplia a capacidade de compreensão das ambigüidades
inerentes aos processos de transformação social, de reconfiguração do poder
político e do surgimento de novos atores sociais no cenário político
96
. Pois, a
concepção habermasiana de esfera pública permite que se reconheça, como
mecanismos de integração social, tanto a força aglutinadora da coordenação
sistêmica, quanto as interações orientadas pelo entendimento, fundadas sobre as
estruturas comunicativas do mundo da vida
97
. Ou seja, a esfera pública passa a
ser concebida como resultado das tentativas de coordenação sistêmica, de um
lado, e do processo comunicativo de formação da opinião pelos atores da
do processo mesmo de constituição da sociedade de massas, em consumidores passivos dos
produtos da indústria cultural” (Ibid., p. 717). Ou seja, “No que diz respeito propriamente à esfera
pública política, pode-se postular, seguindo tal visão, que as sociedades latino-americanas –
diferentemente do contexto europeu, onde a fragmentação urbana e a emergência da sociedade de
massas teriam produzido a obliteração da esfera pública burguesa preexistente – seriam
caracterizadas pela inexistência histórica de tal espaço comunicativo. São os meios de
comunicação de massa que ocupariam, desde os primórdios da constituição de uma sociedade
urbana na América Latina, o lugar das mediações sociais, estabelecendo ‘uma nova diagramação
de espaços e intercâmbios urbanos’. Não se espera, obviamente, que, nesse espaço público
assenhoreado pela mídia, argumentos racionais sejam esgrimidos, questões substantivas sejam
levadas a debate e posições doutrinárias e ideológicas claras e diferenciadas venham à tona. Diante
da lógica própria da mídia, com ênfase na televisão, em cuja linguagem não cabem verdades
matizadas nem longos exercícios argumentativos, mas apenas enunciados bombásticos, a política
veria se esvaírem seus conteúdos” (Ibid., p.718).
95
“Para deslindar os processos sociais de transformação verificados no escopo da democratização,
as investigações teriam, portanto, que penetrar o tecido das relações sociais e da cultura política
gestada nesse nível, revelando as modificações aí observadas. Ao mesmo tempo, rompendo o véu
do discurso institucional universalista, esses estudos necessitariam debruçar-se sobre os padrões
concretos de relacionamento entre o Estado e a sociedade civil, analisando o papel de atores como
movimentos sociais, organizações não governamentais etc. para a operação de transformações em
tais relações” (Cf. COSTA, Sérgio. Movimentos Sociais, Democratização e a Construção de
Esferas Públicas Locais. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais – RBCS, Vol. 12, n. 35, out.
1997, p. 121).
96
Cf. COSTA, Sérgio. As Cores de Ercília: Esfera pública, democracia, configurações pósnacionais. Belo Horizonte: UFMG, 2002, pp. 12-13.
97
Como observa Adrián Gurza Lavalle, “é cabível afirmar que a chave do revigoramento da
publicidade [isto é, da Öffentlichkeit, normalmente traduzida para o português como esfera
pública] reside na arquitetura dual da sociedade e na relação necessária entre ambos os níveis. De
um lado, o mundo da vida sempre exposto às investidas colonizadoras provindas dos sistemas, mas
por definição salvo, já que a espontaneidade social e a infindável produção de sentenças nunca
serão suprimidas ou reguladas por completo; do outro, a realidade sistêmica ensimesmada, porém
incapaz de produzir sua própria legitimidade e, portanto, de se enclausurar diante dos reclamos
que, emergindo do mundo da vida, alcançam consenso social pela via da publicidade” (Cf.
LAVALE, Adrián Gurza. Jürgen Habermas e a virtualização da publicidade. In: Margem, São
Paulo, n. 16, dez. 2002, p. 81).
152
sociedade civil, por outro. Dessa maneira, a imagem do espaço público segundo
essa concepção não é mais “a de um simples palco para encenação de atores
estrategicamente voltados para a manipulação das opiniões” 98. Para ela dirigemse, também, “fluxos comunicativos condensados na vida cotidiana, que encerram
questões relevantes para o conjunto da sociedade” 99.
O mesmo argumento pode ser utilizado para superar as objeções da
chamada “corrente funcionalista” da esfera pública, preocupadas em enfatizar os
processos de “espetacularização” e de conseqüente perda de substância
argumentativa das deliberações nos espaços públicos. Não se nega, com base na
concepção deliberativa de esfera pública, a ocorrência de tais processos nas
sociedades contemporâneas. Habermas busca demonstrar, contudo, que eles não
representam a totalidade das relações que se desenvolvem na esfera pública. Isso
porque, para além do espaço público transformado em mercado, persistem “um
leque diversificado de estruturas comunicativas e uma gama correspondente de
processos sociais (de recepção e reelaboração das mensagens recebidas e de
interpenetração entre os diferentes micro-campos da esfera pública), cuja
existência confere, precisamente, consistência, ressonância e sentido ao
espetáculo, ancorando-o, novamente, no cotidiano dos atores”
100
. Em última
análise, na ausência desses processos comunicativos, “as imagens e mensagens,
ainda que tecnicamente eleboradas e esteticamente empolgantes, ecoariam no
vazio, destituídas de substância e credibilidade” 101.
É exatamente neste ponto, que a idéia de sociedade civil assume um papel
fundamental no modelo Habermasiano. Como visto no item 3.3.c, a sociedade
civil abrange os atores sociais que absorvem e condensam a ressonância que as
situações-problema emergentes na sociedade encontram nos domínios da vida
privada
102
, canalizando tal resposta de forma amplificada tanto para a vida
Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública. In:Lua Nova – Revista de
Cultura e Política, n. 36, 1995, p. 58.
99
Ibid., p. 59.
100
Cf. COSTA, Sérgio. Do simulacro e do discurso: esfera pública, meios de comunicação de
massa e sociedade civil. In: Comunicação & Política, nova série, vol. 4, n. 2, mai-ago 1997, p.
124.
101
Ibid., p. 125.
102
Nas palavras de Habermas: “Os problemas tematizados na esfera pública política transparecem
inicialmente na pressão social exercida pelo sofrimento que se reflete no espelho de experiências pessoais
de vida. E, na medida em que essas experiências encontram sua expressão nas linguagens da religião, da
arte e da literatura, a esfera pública ‘literária’, especializada na articulação- e na descoberta do mundo,
entrelaça-se com a política” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade –
98
153
privada quanto para a esfera pública política. Assim, aos atores da sociedade civil
é atribuída uma dupla função. Enquanto a condensação das “situações-problema”
percebidas na vida cotidiana corresponde à uma atuação defensiva desses atores –
pois relacionada à preservação e à ampliação das estruturas comunicativas do
mundo da vida –, a tematização de tais problemas da esfera privada dos
indivíduos e sua canalização na esfera pública constitui uma dimensão ofensiva de
sua atuação 103.
É dessa maneira que as situações-problema percebidas nos micro-domínios
privados da prática cotidiana dos atores da sociedade civil, tematizadas e
amplificadas na esfera pública política, se transformam em fluxos de poder
comunicativo capazes de percorrer os sistemas de eclusas institucionais “até
assumir o caráter de persuasão sobre membros autorizados do sistema político,
determinando mudanças no comportamento destes”
104
. Somente quando esses
fluxos comunicativos extrapolam as fronteiras das esferas públicas autônomas,
eles podem ter acesso às instâncias deliberativas previstas na ordem democrática
e, conforme a lógica de assédio
105
, influenciar a tomada de decisão nesses
Vol. II..., 97). Prossegue o autor, explicando que: “No início, tais experiências são elaboradas de modo
‘privado’, isto é, interpretadas rio horizonte de uma biografia particular, a qual se entrelaça com
outras biografias, em contextos de mundos da vida comuns. Os canais de comunicação da esfera
pública engatam-se nas esferas da vida privada- as densas redes de interação da família e do círculo
de amigos e os contatos mais superficiais com vizinhos, colegas de trabalho, conhecidos, etc. - de tal
modo que as estruturas espaciais de interações simples podem ser ampliadas e abstraídas, porém não
destruídas. De modo que a orientação pelo entendimento, que prevalece na prática cotidiana,
continua valendo também para uma comunicação entre estranhos, que se desenvolve em esferas
públicas complexas e ramificadas, envolvendo amplas distâncias” (Ibid., p. 98). Habermas conclui
que: “A esfera pública retira seus impulsos da assimilação privada de problemas sociais que
repercutem as biografias particulares” (Ibid., loc. cit.).
103
Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., pp. 59-60. Segundo
Habermas, essa dupla função já havia sido observada por Cohen e Arato “(...) nos novos
movimentos sociais, os quais perseguem objetivos ‘ofensivos’ e ‘defensivos’ ao mesmo tempo.
‘Através de uma ofensiva’, eles tentam lançar temas de relevância para toda a sociedade, definir
problemas, trazer contribuições para a solução de problemas, acrescentar novas informações, interpretar
valores de modo diferente, mobilizar bons argumentos, denunciar argumentos ruins, a fim de produzir
uma atmosfera consensual, capaz de modificar os parâmetros legais de formação da vontade política e
exercer pressão sobre os parlamentos, tribunais e governos em benefício de certas políticas. Ao passo
que ‘defensivamente’ eles tentam preservar certas estruturas da associação e da esfera pública, produzir
contra-esferas públicas subculturais e contra-instituições, solidificar identidades coletivas e ganhar
novos espaços na forma de direitos mais amplos e instituições reformadas” (Cf. HABERMAS, Jürgen.
Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 103).
104
Cf. COSTA, Sérgio. Esfera Pública, Redescoberta da Sociedade Civil e Movimentos Sociais no
Brasil: Uma Abordagem Tentativa. In: Revista Novos Estudos – CEBRAP, v. 1994, n. 38. São
Paulo, 1994, p. 43.
105
“O poder comunicativo é exercido à maneira de um assédio. Mesmo não tendo intenções de
conquista, ele interfere nas premissas dos processos de juízo e de decisão do sistema político, a fim
de fazer valer seus imperativos, na única linguagem capaz de ser entendida pela fortaleza sitiada:
ele administra o pool de argumentos que o poder administrativo pode, é verdade, manipular
154
ambientes. Nesses casos, a esfera pública política desempenha sua função de
intermediação entre os impulsos comunicativos gerados no mundo da vida e o
núcleo do sistema político.
Assim como Cohen e Arato, Habermas reconhece, contudo, que a
sociedade civil e a esfera pública “garantem uma margem de ação muito
limitada para as formas não-institucionalizadas de movimento e de expressão
política”
106
, o que decorre dos limites à capacidade da sociedade civil de auto-
organizar a sociedade como um todo. Trata-se, segundo ele, de uma “auto-limitação
estruturalmente necessária para a prática de uma democracia radical”
107
. Esses
limites são divididos por Habermas em três eixos temáticos. O primeiro está
vinculado aos requisitos sócio-estruturais da sociedade civil. Segundo o autor, a
formação de uma sociedade dinâmica de pessoas privadas necessita de um mundo da
vida já racionalizado
108
. O segundo está relacionado à questão do poder. Vale
dizer: os atores da sociedade civil não podem exercer poder político ou
administrativo, apenas influência 109. Para gerar um poder político, sua influência tem
que abranger, também, as deliberações de instituições democráticas da formação da
opinião e da vontade, assumindo uma forma autorizada. O terceiro e último eixo
temático diz respeito à questão da complexidade: “Para que possam funcionar
como catalisadoras de processos espontâneos de formação da opinião, as
organizações da sociedade civil não podem se transformar em estruturas
instrumentalmente, porém não ignorar, uma vez que é estruturado conforme o direito” (Cf.
HABERMAS, Jürgen. A Soberania do Povo como Processo. In: HABERMAS, Jürgen. Direito e
Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 273). Com isso, Habermas quer dizer que:
“a eficácia do poder comunicativo é indireta, apresentando-se como limitação da realização do
poder administrativo – que é o exercício do poder de fato. E, para preencher a supramencionada
função de assédio, a opinião pública informal tem que seguir o caminho da deliberação
responsável e organizada através de procedimentos democráticos” (Ibid., p. 276).
106
Ibid., p. 104.
107
Ibid., loc. cit..
108
“Caso contrário, podem surgir movimentos populistas que defendem cegamente os segmentos
petrificados da tradição de um mundo da vida ameaçado pela modernização capitalista. Esses
movimentos são modernos devido às formas de sua mobilização, porém antidemocráticos em seus
objetivos” (Ibid., p. 104).
109
E “(...) essa influência pública e política tem que passar antes pelo filtro dos processos
institucionalizados da formação democrática da opinião e da vontade, transformar-se em poder
comunicativo e infiltrar-se numa legislação legítima, antes que a opinião pública, concretamente
generalizada, possa se transformar numa convicção testada sob o ponto de vista da generalização de
interesses e capaz de legitimar decisões políticas” (Ibid. p. 105). Como explica Costa: “Os atores da
sociedade civil não possuem poder político ou administrativo, dispõem apenas de uma forma
mediatizada de geração de poder. Isto é, a influência destes sobre a política consubstancializa-se
nas mensagens que, percorrendo os mecanismos institucionalizados do Estado constitucional,
alcançam os núcleos decisórios. Desta forma, procura-se afastar a idéia de que a sociedade civil
possa assumir as funções que cabem ao Estado”. (Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a
Dinâmica da Esfera Pública..., pp. 60-61).
155
formalizadas, dominadas pelos rituais burocráticos. De outra forma, o ganho de
complexidade poderia significar a rendição aos imperativos organizacionais e o
conseqüente distanciamento da base” 110.
Por outro lado, Habermas distingue os atores da sociedade civil dos demais
atores da esfera pública. De forma resumida, é possível citar quatro aspectos a
partir dos quais essa distinção é estabelecida. O primeiro diz respeito ao conteúdo
das reivindicações. Os atores da sociedade civil tematizam situações-problemas
percebidas nos micro-domínios da vida privada cotidiana e que, portanto, têm
relevância para toda a sociedade, enquanto os atores chamados de “consumidores”
(ou clientes) do sistema político por Habermas (sindicatos, grupos de interesse
etc.) representam, no âmbito da esfera pública, as reivindicações de grupos
políticos e econômicos específicos
111
. O segundo aspecto está ligado ao tipo de
comunicação na esfera pública. Os atores da sociedade civil agem
comunicativamente, transformando a esfera pública numa arena da argumentação
discursiva e de convencimento do conjunto da sociedade com base na força –
racional – do melhor argumentos, enquanto os demais atores agem orientados pelo
sucesso, procurando, exclusivamente, conferir maior publicidade às suas
reivindicações pela ocupação de espaços públicos
112
. O terceiro se relaciona ao
tratamento conferido pelos atores à esfera pública. Na medida em que não
dispõem de outros meios para exercerem influência sobre o processo político além
da atuação da esfera pública, os atores da sociedade civil empenham-se na
reprodução e revitalização da esfera pública, buscando, de um lado, oferecer
resistência às ameaças de obliteração da esfera pública e, de outro, explorar
intensivamente as possibilidades comunicativas existentes e ampliar as fronteiras
dessa esfera, mediante a incorporação de novas minorias e grupos marginais e da
intervenção de novos meios comunicativos
113
. O quarto aspecto concerne às
origens dos atores sociais. Vale dizer: enquanto os denominados grupos
consumidores têm sua origem vinculada a certos campos funcionais como
partidos políticos, grupos de interesse, representações funcionais etc., a identidade
dos atores da sociedade civil é constituída ad hoc, no âmbito da atuação coletiva,
Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., p. 60.
Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II…, p. 87.
112
Ibid., pp. 92-93.
113
Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., p. 63.
110
111
156
e com o suporte de um público recrutado entre a totalidade das pessoas
privadas114.
Diante de tais características, é necessário reconhecer que, tomado ao pé
da letra, o modelo discursivo de esfera pública parece demasiadamente ideal para
ser utilizado na maior parte das democracias contemporâneas. Como destaca
Costa, caso “se leve, por exemplo, às últimas conseqüências o pressuposto de que
a relevância pública dos atores da sociedade civil é devida exclusivamente ao
conteúdo e ao apelo argumentativo de suas intervenções, muito poucos seriam os
sujeitos coletivos, empiricamente observáveis, a merecer um enquadramento na
categoria de representante da sociedade civil”
115
. Isso porque, na prática,
paralelamente ao esforço do convencimento por meio de argumentos racionais,
tais atores procuram se adaptar aos requisitos estruturais dos veículos,
realizando,assim, um trabalho de relações públicas – isto é, “oferecendo
informações de valor noticioso, orientadas, no nível de conteúdos e quanto aos
prazos, pelas formas de produção jornalísticas e pelas características institucionais
dos meios de comunicação de massa” 116 – com o intuito de obter espaço na mídia
e dar maior publicidade às suas reivindicações.
Mas, a rigor, essa circunstância, de modo algum, impede que tais atores
sejam “classificados” como atores da sociedade civil – ou seja, como
fornecedores de demandas para o sistema político (e não consumidores de suas
decisões). Essa ambigüidade é absorvida pelo modelo de Habermas, na medida
em que o autor localiza na própria organização interna dos atores coletivos a
condição para que os atores desempenhem a função de canalizar os problemas
emergentes da vida cotidiana para a esfera pública. Em outras palavras, “caso o
ator permaneça permeável aos impulsos provindos da base e aos processos
espontâneos de formação da opinião, ele certamente se manterá, estruturalmente,
em condições de condensar as situações-problema emergentes no mundo da vida e
de transportá-las para a esfera pública” 117. É a partir dessa idéia que Costa procura afastar as objeções à incorporação,
no Brasil, do modelo discursivo da esfera pública, demonstrando que o mesmo
Ibid., loc. cit..; e HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade –
Vol II…, pp. 96-97.
115
Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., p. 63.
116
Ibid., loc. cit..
117
Ibid., p. 64.
114
157
pode ser utilizado em muitas situações
118
. Pois se é certo que a realidade
brasileira apresenta problemas para acomodar idéias como a da distinção, acima
mencionada, entre atores da sociedade civil (fornecedores) e demais atores da
esfera pública (consumidores)
119
, também não há dúvidas de que, em diversas
ocasiões, é possível observar que as organizações da sociedade civil no país são
capazes de conferir caráter público a determinados temas, fazendo com que os
mesmos consigam chegar ao núcleo do sistema político-jurídico e sejam levados
em conta na tomada de decisão dos agentes autorizados
120
. Exemplo dessa
ambigüidade pode ser percebido nos casos, investigados por Costa, de atuação das
associações de moradores das cidades mineiras de Uberlândia, Juiz de Fora e
Governador Valadares em experiências de administração municipal participativa
121
. Segundo o autor:
“Parece indiscutível que estas organizações efetivamente tematizam tensões das
esferas privadas, revelando o caráter geral e conferindo tratamento público a
118
Segundo o autor, “Em que pesem os diferentes níveis de desenvolvimento da sociedade civil e
da esfera pública nas democracias maduras e em países como o Brasil, emergem, do confronto
destes diferentes contextos, interessantes constatações. / O modelo que descreve a participação da
sociedade civil no processo de formação de decisões públicas apresentado no tópico anterior , por
exemplo, pode ser transposto, em variadas situações, para o caso brasileiro. / Para iniciar com um
caso extremo e ruidoso pode-se mencionar o processo recente de afastamento do presidente da
República. / Parece ineludível a importância, no episódio, das pressões no nível da esfera pública e
da ‘dramatização’ do tema, por meio das manifestações públicas, dos rostos pintados ou da
simbolização do luto das roupas pretas, para a geração e sustentação das decisões tomadas pelo
complexo parlamentar e para a transposição de várias eclusas institucionais que conduziram
finalmente ao impeachment. / Em outros episódios, menos sensacionalistas, como nas campanhas
do movimento ecologista, pode-se também observar como as organizações da sociedade civil no
país conferem caráter público a determinadas questões levando ao seu tratamento pelas instâncias
decisórias” (Cf. COSTA, Sérgio. Esfera Pública, Redescoberta da Sociedade Civil e Movimentos
Sociais no Brasil..., p. 49).
119
“Tratada à luz da situação brasileira, a diferenciação deixa transparecer o seu caráter
meramente normativo, empiricamente pouco plausível” (Ibid., p. 50). Normalmente se enfatiza no
Brasil a circunstância de que interesses são diretamente projetados no aparelho do Estado e que
não haveria, portanto, sujeitos coletivos autônomos que representassem publicamente tais
interesses (ou seja, inexistência de sociedade civil). Isso porque não teria ocorrido em nosso país
uma separação completa entre as esferas da economia, da sociedade civil e da sociedade política:
“Em muitas situações, os interesses dos diferentes segmentos sociais não são trazidos a uma esfera
pública autônoma, onde eles são discutidos e confrontados; eles percorrem os canais do próprio
Estado que, nesses casos, por meio de processo não universalistas, portanto, variáveis e arbitrários,
pondera e decide” (Ibid., loc. cit.).
120
Pois, mesmo quando agem de maneira “instransparente”, os atores sociais coletivos não estão
preocupados com o fortalecimento da esfera pública, mas sim com seus interesses particulares e
dos setores que representam. Nesse sentido, perdem o principal traço que os distingue dos Grupos
de Interesse. Porém, essa estratégia de negociações intransparentes “se traz resultados concretos
para as organizações da sociedade civil, só pode fazê-lo esporadicamente, ou por um curto espaço
de tempo” (Ibid. loc. cit.). Isso porque, diferente dos Grupos de Interesse que contam com recursos
organizacionais e instrumentos de pressão próprios, os atores das sociedades civis dependem da
repercussão pública de suas ações para sustentar sua força política.
121
Cf. COSTA, Sérgio. Movimentos Sociais, Democratização e Construção de Esferas Públicas
Locais..., pp. 122-124.
158
questões como moradia, saúde, educação etc. Ao mesmo tempo, entretanto,
conforme mostram diferentes trabalhos, as organizações de moradores procuram
beneficiar-se dos ‘relacionamentos clandestinos’ com o Estado e o sistema
político, acertando, através de suas cúpulas, acordos (para o apoio político, para a
obtenção de melhorias para o bairro ou até vantagens pessoais) que nunca são
objeto de discussão pública, nem mesmo no nível do conjunto dos membros da
organização. Nesses casos, as organizações de moradores agem, da mesma forma
que os Grupos de Interesse, buscando ‘feudalizar’ o Estado e fortalecendo os seus
laços particularistas” 122.
Outro aspecto problemático da realidade sócio-política brasileira em
relação ao modelo habermaisano diz respeito à dificuldade de diferenciação clara
entre a esfera político partidária e o próprio Estado. Pois, como observam Avritzer
e Costa, o modelo discursivo de esfera pública foi formulado “por referência
empírica a um contexto em que há mecanismos efetivos de controle do Estado
pelos cidadãos e os partidos políticos, a despeito do desencantamento dos últimos
tempos, ainda funcionam como estruturas eficientes de intermediação entre a
sociedade civil e o sistema político” 123. No Brasil, entretanto, o sistema partidário
se consolidou a partir da montagem de máquinas partidárias alimentadas pela
patronagem e capazes de distribuir, privadamente e por meio de acordos
clientelistas, benefícios públicos. E, dessa forma, não exercem os partidos
políticos brasileiros a função de intermediação entre sociedade civil e o Estado. A
rigor, “confundidos com o aparato administrativo e ‘desenraizados’ na sociedade
civil, eles não se prestam à função de, no plano individual, possibilitar a ‘autoracionalização de interesses’ e, no âmbito do Estado, atuar como ordenador da
seletividade de temas e demandas”, mas, ao contrário, “acabam se transformando,
do ponto de vista individual, em instrumentos de realização de projetos pessoais
de poder, enquanto, com relação ao Estado, operam um processo autonomizado
(fora do controle da sociedade civil) de eleição de temas e produção de
decisões”124. O que abre espaço para o surgimento cada vez maior de novos atores
da sociedade civil – associações de moradores, ONGs, clubes etc. –, questionando
a idéia de monopólio da representação política pelos partidos políticos e
implementando alternativas participativas de democracia que passam a concorrer
com os clássicos instrumentos representativos.
Id., Esfera Pública, Redescoberta da Sociedade Civil e Movimentos Sociais no Brasil..., pp. 5051.
123
Cf. AVRITZER & COSTA, ob. cit., p. 723.
124
Cf. COSTA, Sérgio. Esfera Pública, Redescoberta da Sociedade Civil e Movimentos Sociais no
Brasil..., p. 51.
122
159
Mas, em última análise, essas dificuldades para o “emolduramento”
analítico das peculiaridades do quadro sócio-político brasileiro, que não são
contempladas no modelo discursivo de esfera pública originariamente proposto
por Habermas, não impediriam a utilização de tal modelo para o estudo da
realidade
política
do
país.
Pois,
embora
mecanismos
não
públicos
(“intransparentes”) de acesso ao sistema político e influência sobre suas decisões,
em muitos casos, sejam, ainda, preponderantes, é possível observar a existência de
uma esfera pública que, apoiada numa “sociedade civil que se (re)constrói,
apresenta sinais efetivos de independência e vitalidade, operando, de fato, como
caixa de ressonância para a ‘criação’ de questões públicas” 125. Os trabalhos desenvolvidos a partir de perspectivas teóricas filiadas às
correntes institucionalista e sistêmica não dão conta desta ambigüidade e, desse
modo, não são capazes de reconhecer o conteúdo “democratizante” de práticas
estabelecidas no Brasil. Práticas que, a rigor, tiveram início ainda na década de
1970, quando ao termo “sociedade civil” foi atribuída uma função políticoestratégica de ponto de apoio para o projeto de oposição ao regime militar
126
.E
que se aprofundaram durante o período de transição para o regime democrático no
Brasil, já na década de 1980, na forma de associações voluntárias e movimentos
sociais no âmbito local, criando uma nova esfera de deliberação e negociação que
Avritzer conceitua como “Públicos Participativos” (participatory publics)
127
.
Atualmente, malgrados o florescimento das clivagens na sociedade civil brasileira
– que se encontravam latentes antes da instauração do regime democrático –,
resultantes dos múltiplos interesses de seus diferentes atores – feministas,
movimento negro, movimentos ecológicos etc. –, e as ambivalências geradas por
fenômenos sociais recentes – como a proliferação e internacionalização das
ONGs, a aliança dessas entidades com setores empresariais, o crescente desejo de
regulação dos atores da sociedade civil pelo Estado – é possível apontar, segundo
Costa, evidências da continuidade dos processos de construção de uma esfera
pública ativa e de uma sociedade civil autônoma, desacoplada do Estado. Dentre
125
Ibid., loc. cit.
Id., As Cores de Ercília..., p. 55.
127
Cf. AVRITZER, Leonardo;e WRAMPLER, Brian. Públicos Participativos: Sociedade Civil e
Novas Instituições no Brasil Democrático. In: COELHO, Vera Schattan P.; e NOBRE, Marcos
(orgs.). Participação e Deliberação: Teoria Democrática e Experiências Institucionais no Brasil
Contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 212; e, também, AVRITZER, Leonardo.
Democracy and The Public Space in Latin America. Princeton: Princeton University Press, 2002,
pp. 135-170.
126
160
as práticas que contribuem para esse processo, o autor ressalta, “o surgimento de
meios de comunicação ‘críticos’, a expansão da sociedade civil e a preservação de
espaços públicos primários, dentro dos quais se observa um processo ‘alternativo’
de formação de opinião” 128.
Tanto Avritzer quanto Costa concordam, portanto, que o modelo da esfera
pública conta com um instrumental conceitual mais adequado à descrição do
processo de democratização da sociedade brasileira. Resta saber, porém, até que
ponto o modelo de esfera pública, tal qual proposto por Habermas, é suficiente
como padrão normativo de análise dos processos políticos no Brasil. Dito de outro
modo: é necessário fazer adaptações a esse modelo para incorporá-lo às análises
sobre democracia e legitimidade do poder administrativo na realidade sóciopolítica brasileira?
Para Avritzer
129
, a resposta a essa questão é afirmativa. Sua crítica ao
modelo habermasiano se dirige à separação rígida entre Estado e sociedade civil,
que importa na não admissão da possibilidade de ampliação dos mecanismos
institucionalizados de formação da vontade política a fim de se conferir poderes
efetivos aos Públicos Participativos. Como esclarecem Avritzer e Costa:
“De fato, a preocupação de Habermas com a defesa do caráter
institucional/constitucional do Estado de direito, assim como a influência da
teoria parsoniana sobre o autor, a qual enfatiza a distinção e a necessidade de
preservação de códigos de coordenação específicos nos diferentes sistemas (a
sociedade civil produz influência política, mas não decide nem implementa
políticas), levam-no a subestimar completamente as estruturas de participação
pública. Dessa maneira, em toda a sua discussão sobre espaço público, faltam
referências à necessidade de horizontalizar os processo decisórios ou à
necessidade de promover processos de ‘alfabetização política’, que permitam, no
plano local, a vivência da noção de poder”. 130
Essa é a razão pela qual Avritzer considera a proposta habermasiana
insuficiente para promover um caminho alternativo para que se vincule razão (o
consenso gerado na esfera pública) e vontade política (a institucionalização
jurídica desse consenso). Pois, a rigor, a despeito da racionalidade dos resultados
obtidos através da deliberação pública, são os detentores do poder político que
decidem quando incorporá-los e transformá-los em leis e políticas públicas 131. Se
Id., As Cores de Ercília..., p. 80.
Ver a respeito: AVRITZER, Leonardo. Democracy and The Public Space in Latin America...,
pp. 48 e ss.
130
Cf. AVRITZER & COSTA, ob. cit., p. 713.
131
Cf. AVRITZER, Leonardo. Democracy and The Public Space in Latin America..., p. 49.
128
129
161
essas exigências de auto-limitação dos atores da sociedade civil e de separação
clara entre sociedade civil e detentores do poder político são compreensíveis
quando referidas a uma realidade social na qual se verificam mecanismos efetivos
de controle do Estado pelos cidadãos e onde os partidos políticos ainda funcionam
como estruturas capazes de intermediar a relação entre sociedade civil e sistema
político, quando aplicadas, porém, ao contexto político típico das democracias
latino-americanas – onde são freqüentes as violações aos direitos humanos e nas
quais práticas clientelistas e patrimonialistas ainda influenciam, num grau
considerável, os processos decisórios do sistema político – acabam elas
funcionando como barreiras à democratização 132. Isso porque, segundo o autor, o
principal problema dessas democracias não é, em si, a possibilidade de
participação nos processos deliberativos, mas a possibilidade de que o resultado
de tais processos influencie, efetivamente, as decisões do sistema político.
Haveria um bloqueio – resultante da continuidade do domínio de um grupo social
sustentado pela cultura política estabelecida – do fluxo do poder político legítimo,
situado na “última comporta” do modelo de circulação do poder adotado por
Habermas 133.
Para Avritzer, seria preciso, portanto, que “no seio de uma esfera pública
porosa e pulsante, temas, posições e argumentos trazidos pelos novos atores
sociais encontrem formas institucionais de penetrar o Estado e, por essa via,
democratizá-lo, tornando-o objeto de controle dos cidadãos”
134
. E o conceito
deliberativo de esfera pública proposto por Habermas não seria suficiente para
enfrentar os desafios apresentados pelo contexto político brasileiro à
concretização desse projeto.
Márcia Nina Bernardes aponta, porém, raízes mais profundas do problema
identificado por Avritzer. A autora concorda com este diagnóstico de “bloqueio”,
132
Ou seja, segundo Avritzer: “(...) as questões centrais com as quais a democracia lida mudam de
acordo com os diferentes cenários políticos. No caso brasileiro, o clientelismo, a falta de
capacidade de pressão da população e a distribuição desigual dos bens públicos em nível local são
algumas das questões com as quais as formas fixas da democracia não são capazes de lidar de
forma adequada” (Cf. AVRITZER, Leonardo. Modelos de deliberação democrática: uma análise
do orçamento participativo no Brasil. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a
democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2002, p. 592).
133
Nas palavras de Avritzer: “A redemocratização brasileira envolveu, simultaneamente, grandes
doses de continuidade política misturadas com algumas doses de inovação política. Em nível
político, apesar dos primeiros indícios de formas de organização social, as forças hegemônicas ao
longo do processo de modernização mantiveram o controle sobre o sistema político” (Ibid., p. 572)
134
Cf. AVRITZER & COSTA, ob. cit., p. 713.
162
segundo o qual os fluxos de poder comunicativo emanados da esfera pública não
conseguem atravessar as comportas para chegar ao núcleo decisório do sistema
político-jurídico. Mas, segundo ela, Avritzer atribui importância muito grande a
esse aspecto do problema em sua análise, depositando sobre os ombros da
sociedade política brasileira uma responsabilidade excessiva pelo vácuo entre
sociedade civil e sistema político-jurídico
135
. O que, a rigor, acaba por restringir
sua análise à discussão de questões relacionadas apenas ao regime político,
negligenciando a investigação de outras dimensões do problema 136.
Bernardes chama a atenção para a existência de bloqueios numa etapa
anterior àquela sobre a qual Avritzer concentra sua atenção. Segundo ela:
“(…) the first challenge one faces when trying to eliminate, or at least diminish,
domination in stratified societies is to thematize the relations of domination ―
such as those involving the rich and the poor, the rural property owner and the
land worker, the politician and his or her constituent ― thereby taking them out
of the lifeworld background and putting them into the public sphere, making
these relations of domination an issue on the public agenda”. 137
Na verdade, o modelo discursivo da esfera pública, segundo Bernardes,
não explora de forma detalhada o modo como os fluxos comunicativos
provenientes da esfera pública ingressam no sistema político-jurídico. Habermas
assumiria, simplesmente, que o modelo das comportas é suficiente para se
compreender
o
processo
de
conversão
da
opinião
pública
formada
discursivamente em poder comunicativo e, então, em poder administrativo.
Contudo, no caso brasileiro, essas passagens não são simples e muito menos
automáticas
138
. Devido ao hibridismo de nossa cultura política, que mistura
elementos democráticos e não democráticos, constituiu-se, no Brasil, um mundo
da vida estruturado sobre um pano de fundo normativo repleto de ambigüidades,
cujas estruturas tradicionais e privatistas ainda não foram suficientemente
tematizadas e problematizadas. Assim, haveria dois momentos problemáticos, que
são anteriores ao bloqueio sofrido pelos fluxos comunicativos no sistema político135
Cf. BERNARDES, ob. cit., p. 99.
“Although he [Avritzer] says that the main obstacles to democracy in the country are (1) the
nature of the elites, (2) the hybridization of Brazil’s democratic practices, and (3) the lack of
institutional mechanisms capable of assuring accountability or of expanding the public culture, he
does not sufficiently theorize how the cultural hybridism affects society at large, whose support
for, tolerance of, or resignation to many widespread undemocratic practices has been pivotal for
their continuation, as the cases of police brutality against the urban poor and the peasantry
clearly illustrate” (Ibid., pp. 99-100).
137
Ibid., pp. 100-101.
138
Ibid., p. 102.
136
163
jurídico, a saber: conseguir perceber e tematizar, nos micro-domínios da vida
cotidiana, temas sobre os quais se sustentam relações de dominação racionalmente
injustificáveis, e incluí-los na pauta de discussões da esfera pública a fim de que
os mesmo ganhem repercussão. Como resultado, tem-se que: “(1) some topics do
not reach the dominant public sphere; (2) even when they do, the influence of the
discursively generated public opinion is not always strong enough to overcome
the traditional structural barriers to its transformation into communicative and,
then, administrative power” 139.
Bernardes procura explorar como o processo de consolidação de esferas
públicas transnacionais pode desempenhar um papel relevante para a superação de
tais problemas no Brasil, cogitando, ainda, assim como Avritzer, da necessidade
de se atrelar os resultados dos processos deliberativos a algum tipo de poder 140.
Dentre os autores brasileiros que trabalham a partir do marco teórico do
modelo discursivo da esfera pública, Costa parece ser o mais próximo das idéias
originariamente defendidas por Habermas. Principalmente no que diz respeito à
proposta habermasiana de auto-limitação da sociedade civil, que, em momento
algum é por ele questionada. Assim, para Costa, os atores da sociedade civil não
poderiam exercer qualquer tipo de poder político ou administrativo, mas apenas
influência
141
sobre as deliberações de instituições autorizadas responsáveis pela da
formação democrática da opinião e da vontade política. Há que se manter, pois, “a
distinção entre a esfera societária e a esfera política e o Estado, de sorte que a
influência da sociedade civil se concretize de forma anônima e difusa por meio da
existência de uma esfera pública transparente e porosa, permeável às questões
originadas no mundo da vida” 142.
139
Ibid., pp. 102-103.
Ibid., pp. 101-103.
141
E “(...) essa influência pública e política tem que passar antes pelo filtro dos processos
institucionalizados da formação democrática da opinião e da vontade, transformar-se em poder
comunicativo e infiltrar-se numa legislação legítima, antes que a opinião pública, concretamente
generalizada, possa se transformar numa convicção testada sob o ponto de vista da generalização de
interesses e capaz de legitimar decisões políticas” (Ibid. p. 105). Como explica Costa: “Os atores da
sociedade civil não possuem poder político ou administrativo, dispõem apenas de uma forma
mediatizada de geração de poder. Isto é, a influência destes sobre a política consubstancializa-se
nas mensagens que, percorrendo os mecanismos institucionalizados do Estado constitucional,
alcançam os núcleos decisórios. Desta forma, procura-se afastar a idéia de que a sociedade civil
possa assumir as funções que cabem ao Estado”. (Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a
Dinâmica da Esfera Pública..., pp. 60-61).
142
Cf. COSTA, Sérgio. As Cores de Ercília..., p. 26.
140
164
Ponto extremamente caro a Costa no modelo discursivo da esfera pública é a
preservação do enraizamento dos movimentos sociais e demais atores da sociedade
civil em esferas sociais “que são, do ponto de vista institucional, pré-políticas”
143
.
Assim, a intenção de se transformar a legitimidade democrática dos movimentos
sociais e atores da sociedade civil em performance participativo-institucional é vista
com ressalvas pelo autor 144. Porque, segundo ele, “o caráter diferencial e renovador
da ação dos movimentos sociais reside precisamente na sua institucionalidade distinta
(mais flexível e informal) e em seu ancoramento nos processos primários de
reprodução social”
145
. Vale dizer, sua contribuição para o revigoramento da vida
pública deve se restringir à função de “tornar conhecidas demandas e questões que
emergem nas franjas dos núcleos institucionais de discussão e deliberação” 146.
Assim, diante de todo o exposto, resta evidente, a meu ver, que o uso da
concepção discursiva de esfera pública na América latina demanda que se
enfrente, previamente, críticas feitas a tal modelo que têm por objetivo sua
adaptação a contextos sociais distintos daquele de sua criação, na Europa. As
divergências existentes entre as contribuições de Costa, Avritzer e Bernardes, em
última análise, giram em torno de uma questão fundamental, qual seja, a de saber
se – e como – o modelo discursivo de esfera pública – tal qual proposto por
Habermas a partir da realidade sócio-política dos países da Europa Ocidental – e a
proposta emancipadora e democratizante nele encarnada podem ser aplicados à
realidade política brasileira.
Id., Movimentos Sociais, Democratização e a Construção de Esferas Públicas Locais..., p. 122.
“São compreensíveis as angústias daqueles atores políticos e daqueles cientistas sociais que,
apercebendo-se da ‘feudalização’ do Estado pelos interesses privados e do solapamento do
conteúdo público das arenas representativas pelas práticas e acordos intransparentes, apostam no
‘arejamento’ da esfera pública mediante a ampliação das competências institucionais dos ‘atores
da sociedade civil’. Não obstante, a circunscrição da democratização da esfera pública ao seu
âmbito institucional pode apresentar conseqüências políticas e analíticas danosas. Politicamente,
ela pode representar a indução ao surgimento de atores que, apesar de serem formalmente
delegados da sociedade civil, apresentam-se desvinculados dos anseios e expectativas políticas da
população. Reproduzirão assim, nas arenas institucionais, sua lógica sistêmica, divulgado
demandas constituídas no âmbito estrito da própria organização” (Cf. COSTA, Sérgio. Atores da
Sociedade Civil e Participação Política: Algumas Restrições. In: Cadernos do CEAS, n. 155, janfev 1995, pp. 72-74). Por outro lado, “Analiticamente, a redução da esfera pública à sua dimensão
institucional ofusca a visualização das regiões de articulação entre os processos comunicativos de
reprodução cultural e as formas de consolidação institucional da democracia. Nesse movimento, os
atores da sociedade civil são transformados em atores intermediadores de interesses políticos,
destituídos de qualquer idiossincrasia sociocultural. Já não serão mais os co-responsáveis pela
tradução e transmissão para a órbita político-institucional dos anseios difusos gestados nos
interstícios do tecido social. Tampouco contribuirão, agindo na direção oposta, para o
enraizamento dos valores democráticos nas ‘práticas cotidianas’ ” (Ibid., loc. cit.).
145
Id., Do simulacro e do discurso..., p. 131.
146
Ibid., loc. cit..
143
144
165
Um aspecto importante desse debate para o tema do presente estudo é o da
influência dos resultados das deliberações na esfera pública nos processos
decisórios das agências reguladoras. Isso porque, vale lembrar, não há qualquer
obrigatoriedade por parte do Conselho Diretor em adotar as sugestões dos atores
participantes dos procedimentos deliberativos. A pesquisa de Mattos demonstra,
como visto, que é baixo o índice de incorporação das sugestões de alteração dos
textos normativos submetidos a consultas públicas pela ANATEL. Demonstra,
também, que na grande maioria das consultas públicas não houve nem mesmo
justificativa formalizada em relação às sugestões recusadas pela agência.
Se as hipóteses de Avritzer e Bernardes estiverem corretas, não haveria,
efetivamente, um potencial democrático nos mecanismos de participação popular
institucionalizados nos processos decisórios das agências reguladoras. Esses
mecanismos teriam que ser “reforçados” por algum tipo de instrumento que
atrelasse o resultado da deliberação a algum tipo de poder sobre a decisão do
Conselho Diretor da agência reguladora. Mas, tendo em vista as desigualdades de
recursos materiais existentes entre as empresas reguladas e os demais atores
envolvidos nos processos participativos das agências reguladoras, em termos de
informação, tempo e dinheiro, que conseqüências a vinculação das decisões das
agências ao resultado das deliberações poderia gerar?
Esse tipo de questão é um exemplo dos desafios que se apresentam à
utilização do modelo discursivo de esfera pública para a análise da legitimidade
da atuação normativa das agências reguladoras no Brasil. A escolha de uma ou
outra concepção teórica sobre a recepção de tal modelo nos estudos sobre a
realidade política brasileira tem repercussão direta nas conclusões a que se chega
em termos de propostas de solução.
Mattos, porém, não entra nesse mérito. Em sua análise, o autor atribui
relevância excessiva à questão do desenho institucional de mecanismos de
participação popular que sejam capazes de funcionar, efetivamente, como canais
através dos quais os impulsos de poder comunicativo oriundos da esfera pública
possam influenciar os processos de tomada de decisão da Administração Pública.
Com isso, perde de vista o debate sobre a construção e o funcionamento da esfera
pública no Brasil, e negligencia questões relevantes, diretamente associadas às
condições de surgimento do poder comunicativo nesses ambientes, fazendo com
que sua análise se torne incompleta. Pois, ainda que os instrumentos de
166
participação pública sejam capazes de viabilizar um funcionamento de uma esfera
pública capaz de transmitir fluxos comunicativos gerados no âmbito de interações
pautadas pelo entendimento para as instâncias decisórias das agências
reguladoras, permanece sem resposta a questão da sustentação, no nível da
sociedade, desta formação espontânea de opinião, ancorada no mundo da vida 147.
147
“(...) uma cultura jurídica pós-autoritária e uma sociedade civil ativa não podem ser
simplesmente fabricadas. O poder administrativo não é o instrumento apropriado para a construção
de formas de convivência democráticas. Elas só podem ser gestadas no âmbito dos processos
comunicativos presentes nos diferentes níveis da vida social e que perpassam e conformam a
esfera pública em suas variadas dimensões. Os esforços – necessários e desejados! – de ‘tradução’
político-institucional de padrões político-culturais emergentes não podem, por isso, deixar de
observar o processo autônomo e socialmente difuso de construção desses padrões” (Cf. COSTA,
Sérgio. Movimentos Sociais, Democratização e a Construção de Esferas Públicas Locais..., p.
132).
5
Conclusão
Passados mais de dez anos do surgimento das primeiras agências
reguladoras no Brasil, as controvérsias acerca da legitimidade de sua atuação
permanecem. Longe de ser apenas um problema teórico, tal questão gera efeitos
concretos para o funcionamento das instituições do Estado brasileiro e, em última
análise, para a integração social. Numa cultura jurídica fundada, ainda, numa
concepção liberal clássica do Direito e da democracia, as agências reguladoras
parecem ter dificuldades para desempenhar de forma eficiente a função para a
qual foram criadas.
Indícios disso podem ser observados em pesquisa recente do Supremo
Tribunal Federal 1 sobre os Recursos Extraordinários e Agravos de Instrumento –
ao todo, 3.991 – recebidos entre julho e novembro de 2007, já distribuídos aos
ministros com a preliminar de repercussão geral por assunto. O estudo demonstra
que os processos judiciais que têm por objeto questões relativas à telefonia
constituem a terceira maior demanda do tribunal
2
(11,6%). É certo que a maior
parte desses casos tem sua origem nas relações de consumo entre as empresas de
telefonia e seus clientes. No entanto, o excessivo número de processos judiciais
envolvendo as empresas reguladas pela ANATEL pode, talvez, significar que a
atuação da agência encontra-se desvinculada das demandas legítimas a ela
dirigidas pelos atores da sociedade civil. A hipótese de que os consumidores de
serviços de telecomunicações não vislumbram a possibilidade de reconhecimento
e defesa de seus interesses pela ANATEL e, portanto, dirigem suas demandas em
face das empresas concessionárias, primordialmente, ao Judiciário, e não à
agência, parece, a meu ver, uma explicação bastante plausível para esse
fenômeno. Aquilo que Mattos identificou como “déficits democráticos” na
ANATEL – ver supra, item 4. 1 – corroboraria para tal hipótese explicativa, que,
naturalmente, teria que ser investigada mais a fundo.
1
Supremo Tribunal Federal. Gabinete Extraordinário de Assuntos Institucionais. Repercussão
Geral
no
Recurso
Extraordinário.
Dezembro
de
2007.
Disponível
em
http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudenciaRepercussaoGeral/arquivo/estudoRepercussaoGeral.pdf
(acesso em: 06.05.2008).
2
O número de processos envolvendo questões de regulação de telefonia representa 11,60% dos
processos que chegaram ao STF no período, ficando atrás apenas das demandas envolvendo
servidores públicos e militares (20,32%) e execuções fiscais e questões fiscais (20,17%).
168
No plano teórico, a compreensão do tema continua nebulosa. Estudos
como o de Pó e Abrúcio demonstram que o formato institucional e as regras às
quais uma agência reguladora está submetida interferem no comportamento da
burocracia e dos atores do respectivo setor regulado, permitindo a ampliação da
accountability e do espaço democrático. Contudo, no mesmo trabalho, os autores
também reconhecem que formato institucional e regras quanto ao funcionamento
das agências idênticos, não garantem, por si só, resultados iguais se aplicados em
contextos diferentes. Ou seja, se os mecanismos institucionais de participação
popular podem funcionar como um canal por meio do qual a atuação das agências
reguladoras pode ligar-se com as demandas da sociedade civil, sua mera previsão
legal parece não ser suficiente para garantir uma atuação legítima dessas
entidades.
No estágio atual da discussão, portanto, as análises, positivas ou negativas,
sobre a legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras, que
extrapolam o plano jurídico-formal, parecem se diferenciar a partir do ponto de
vista do qual observam o mesmo fenômeno. Aqueles que acreditam no potencial
de legitimação democrática da participação popular nos processos decisórios
ressaltam o caminho que já se percorreu, no Brasil, desde o fim do regime militar,
no sentido da democratização da Administração Pública e do controle – prévio e
posterior – de suas decisões. Outros, porém, concentram-se em destacar quanto
ainda falta percorrer neste mesmo caminho.
Nessa linha de raciocínio, ponto nuclear para se enfrentar tal controvérsia
parece residir na compreensão da maneira pela qual as diferentes realidades sóciopolíticas dos processos decisórios das agências reguladoras (facticidade) se
relacionam com as regras e o formato institucional aos quais estão submetidas
(validade), e de como essa relação de tensão entre esses elementos interfere no
processo – constante e ambíguo – de democratização do funcionamento dessas
entidades. Justamente por isso, procurei explorar uma perspectiva teórica que, a
meu ver, pode contribuir de maneira relevante para o enfrentamento dessa questão
crucial.
Ainda na introdução, alertei, porém, que não seria apresentada qualquer
resposta definitiva quanto à viabilidade da aplicação das idéias sustentadas pela
teoria discursiva do Direito e da democracia de Jürgen Habermas à questão da
169
legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras brasileiras. Agora, ao
final, as razões pela qual assumi postura tão cautelosa restam evidentes.
Na verdade, a principal conclusão do presente estudo, em torno da qual
gravitam as críticas que apresentei à proposta de Mattos, é a de que há muito o
que desenvolver entre o nível ultra-abstrato no qual Habermas concebe sua teoria
e os problemas concretos que se apresentam nas agências reguladoras brasileiras.
Existe um espaço considerável – diria mesmo um abismo – a ser preenchido por
teorias intermediárias que, inspiradas pela obra de Habermas, podem tentar
desenvolver um aparato conceitual mais adequado ao tratamento de problemas
sociais concretos, que surgem em contextos sociais distintos daquele no qual
Habermas desenvolveu sua obra.
O modelo teórico habermasiano fornece, sem dúvidas, pontos de
referência a partir dos quais a questão da legitimidade pode ser tratada de forma
mais adequada nas sociedades capitalistas contemporâneas. Mattos percebeu as
vantagens analíticas de tal modelo em relação ao conceito de legitimidade que, até
hoje, fundamenta os trabalhos que tratam do tema tanto no meio jurídico
brasileiro, quanto no âmbito da tradição teórica político-social de nosso país. Sua
obra evidencia as insuficiências de ambas as perspectivas e procura desenvolver
um conteúdo normativo para os mecanismos de participação popular, capaz de
apontar os potenciais e déficits democráticos desses instrumentos.
Por outro lado, sua proposta ousada e inovadora de operacionalização dos
conceitos de Habermas abre espaço para a discussão das etapas intermediárias que
devem ser percorridas numa tal empreitada. Ou seja, pensar o desenho
institucional dos mecanismos de participação popular a partir de sua relação com
as demais instituições do Estado Democrático de Direito; operacionalizar o
conceito de legitimidade para a construção de um modelo empírico de análise; e
explorar as repercussões dos recentes desenvolvimentos da concepção discursiva
de esfera pública na realidade brasileira para o estudo da participação popular nos
processo de tomada de decisão das agências reguladoras, são apenas exemplos de
questões a serem desenvolvidas nesse nível intermediário.
E, em última análise, construir a solução para tais questões nada mais é do
que responder à pergunta sobre a viabilidade da aplicação do modelo
habermasiano à realidade das agências reguladoras brasileiras.
6
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