Todos os maridos deveriam saber que, em cada mulher, há uma

Propaganda
1345
“TODOS OS MARIDOS DEVERIAM SABER QUE, EM CADA MULHER, HÁ UMA
RAPARIGUINHA MEIO ADORMECIDA”: FEMINILIDADE E EXUALIDADE FEMININA
HEGEMÔNICAS NO BRASIL E EM PORTUGAL NA IMPRENSA FEMININA
Constantina Xavier Filha
Universidade de São Paulo
RESUMO
A imprensa feminina constituiu-se como uma das fontes privilegiadas deste estudo evidenciando os
discursos produzidos acerca da feminilidade e da sexualidade feminina em dois espaços, Brasil e
Portugal, nas décadas de 50, 60 e 70 do século XX. Em Portugal foi selecionado o suplemento
semanal “Modas e Bordados” (1950 - 1974 e, posteriormente, de 1974 até 1977, com a denominação
“Mulher: Modas e Bordados”); no Brasil foram priorizadas as revistas femininas “Capricho” (década
de 50) e “Cláudia” (1962 -1980). O estudo seguiu os preceitos teórico-metodológicos dos estudos
sócio-histórico comparados, fundamentando-se nos pressupostos de Gênero e de alguns conceitos dos
estudos foucaultianos. Pautou-se no sentido de identificar os discursos produzidos e veiculados pela
imprensa feminina com a temática da feminilidade e da sexualidade feminina nos dois contextos. Os
textos selecionados, dentre eles, artigos, reportagens, testes, cartas, dentre outros, têm características
comuns a destacar: expressam conceitos das diversas ciências que se conceituam como referência de
“verdade”; propõem enunciados com o objetivo de normalizar condutas femininas; sugerem e indicam
como a própria leitora pode ser capaz de produzir subjetividades; expressam o ideal de feminilidade e
de vivência da sexualidade para mulheres no Brasil e em Portugal, no período histórico citado. Tais
enunciados se constituem como discursos de saber-poder que acabam por produzir modelo de
subjetividade, nomeadamente do que se considera conduta esperada para as mulheres. O discurso da
imprensa feminina apresentou-se por meio de vários sujeitos e linguagens, segundo a análise
realizada. O discurso médico e o das ciências psi são preponderantes e produzem saberes e verdades
acerca da questão estudada. Esse discurso, como prática que produz saberes, contribui no processo de
constituição dos sujeitos e dos próprios discursos que as mulheres-leitoras proferem sobre si mesmas.
Tais discursos, considerados hegemônicos, mediante enunciados prescritivos e normalizadores,
constituem-se como instrumento dos dispositivos pedagógicos com o objetivo de “conduzir as
condutas” femininas brasileiras e portuguesas, cada um a sua maneira, observando aspectos
semelhantes nas duas realidades investigadas. Observa-se também que se apresentam como “verdade”,
apoiados em códigos morais e, especialmente, em preceitos que se apropriam de enunciados de
diversas teorias científicas e que passam a ser aplicáveis à conduta feminina. O aspecto “verdade” está
ligado a sistemas de poder que o produzem e o reforçam. Os poderes podem ser observados na
diversidade de temas ressaltados pelos textos que demonstram regimes de verdade que não se mostram
necessariamente negativos ou repressivos, mas, fundamentalmente, produtivos, porque incitam à
reflexão e propiciam possibilidades de trabalhos pessoais capaz de produzir novas identidades a partir
do que está sendo social e culturalmente objetivado. Percebem-se, na análise dos textos da imprensa
feminina no Brasil e em Portugal, várias aproximações e distanciamentos quanto às temáticas
levantadas nas duas realidades investigadas. Apesar disso, há semelhanças quanto aos discursos
hegemônicos que convergem no quesito do que consideram ser o ideal de mulher e o ideal de mulher
sexuada em ambos os espaços. Num primeiro momento, especialmente nas décadas de 50 e 60, há a
primazia de uma mulher recatada sexualmente, como um ser “adormecido”, no entanto, com uma
sexualidade latente a espera de ser descoberta pelo marido no leito conjugal. Posteriormente, década
de 70, um outro ideal de mulher passa a ser construído nas páginas da revista, o da mulher
sexualmente ativa. O saber proposto pela Sexologia definiu e criou novas possibilidades de vivência
da sexualidade feminina ao prescrever “fórmulas” e “métodos” para a prática sexual. Percebe-se,
portanto, que há a presença de dois “modelos” da vivência da sexualidade e, consequentemente, da
feminilidade nos dois países em questão, a saber – a frígida e a hiper-sexualizada.
1346
TRABALHO COMPLETO
O presente texto, parte de pesquisa mais ampla, visa a apresentar considerações acerca dos
discursos da feminilidade e da sexualidade feminina, tendo como fonte privilegiada a imprensa
feminina, no Brasil (“Cláudia” e “Capricho”) e, em Portugal, (“Modas & Bordados”), no período
histórico das décadas de 50, 60 e 70 do século XX. O estudo fundamenta-se nos preceitos teóricometodológicos dos estudos sócio-histórico-comparados, tomando como pressupostos os estudos de
gênero e alguns conceitos dos estudos foucaultianos. Pautou-se no sentido de identificar e analisar os
discursos produzidos e veiculados pela imprensa feminina, nos dois espaços, com a temática da
feminilidade e da sexualidade feminina em textos como: artigos, reportagens, testes, cartas, dentre
outros. Outro objetivo foi discutir as formas pelas quais os discursos se organizam e se constituem
como referência de “verdade” acerca da conduta ideal de ser mulher e de vivenciar a sexualidade nos
dois contextos. A seguir, descrevem-se mais detidamente as fontes selecionadas e os enunciados da
imprensa.
1. Fontes selecionadas
De Portugal, foi selecionado o suplemento semanal Modas & Bordados, complemento do
jornal de grande circulação denominado O Século. A revista1 teve seu início de publicação em 1912 e
circulou ininterruptamente até 1974; logo após, contou com reestruturações, que resultaram em
mudanças editoriais significativas, privilegiando temáticas de cunho feminista, além de incluir a
palavra “Mulher” em seu título. A veiculação foi definitivamente interrompida em 1977. No estudo,
privilegiaram-se, inicialmente, vinte e quatro anos de publicação (de 1950 a 1974), perfazendo um
total de 1.249 edições consultadas, e, num segundo momento, a publicação sob a denominação
Mulher: Modas e bordados, de 1975 a 1977. Na primeira parte da pesquisa, as revistas foram
consultadas individualmente, folha a folha. Foram selecionados artigos e textos com os mais diversos
formatos (testes, correspondências, pequenos lembretes, artigos...), que versavam sobre temas de
sexualidade feminina, educação sexual e vivência da feminilidade. A segunda parte da seleção foi
realizada via catálogo, publicado na revista Mulher: Modas e Bordados (n. 3.375, 1977).
No Brasil2 não foi encontrada revista feminina com periodicidade análoga à da revista lusitana. A
produção de revistas brasileiras para o público feminino teve maior impulso na década de 50, como foi
salientado no livro “A revista no Brasil”, da Editora Abril (2000). Em São Paulo, a referida editora é
responsável pela publicação, em 1952, da revista feminina Capricho3, considerada “um sucesso de
vendagem”, não só no País, mas em alguns países da América do Sul, com a marca de 500.000
números editados na década de 1950. Esta revista era composta - em sua primeira fase, na década de
50 - por fotonovelas e alguns pequenos textos referentes à questão da vivência feminina e amorosa.
Em 1961, a editora lança a revista Cláudia, cuja publicação perdura até os dias atuais, com formato e
conteúdo semelhantes aos do início.
Após uma primeira análise dos impressos no próprio acervo4, Cláudia foi considerada a que mais
se aproximava da publicação portuguesa; mesmo assim, para o trabalho de comparação necessitava-se
de edições da década anterior ao de sua criação. Com base no exposto, foram selecionados textos da
revista Capricho5 somente da década de 50, mais especificamente, da primeira edição no ano de 1952
1
Neste estudo, optou-se pela denominação de revista em vez de suplemento.
A seleção da revista feminina no Brasil deveria seguir algumas características de semelhança com as da revista
portuguesa, como: ter periodicidade regular (preferencialmente semanal); ser direcionada ao público feminino de
jovens senhoras, donas de casa ou jovens mães; ter artigos direcionados à temática da sexualidade e assuntos
ligados à feminilidade; ser editada e publicada em território nacional e com ampla circulação.
3
A revista Capricho é publicada periodicamente até os dias de hoje no Brasil; no entanto, passou por grandes
transformações na sua forma e conteúdo, especialmente em relação ao público ao qual se destina. Hoje, é
dedicada ao público adolescente.
4
A pesquisa brasileira foi realizada no acervo do Centro de Documentação da Editora Abril/SP. Em Portugal,
consultou-se o acervo da Biblioteca Nacional/Lisboa. Alguns números foram adquiridos em livrarias.
5
As revistas selecionadas no Brasil eram direcionadas ao sexo feminino; no entanto, existem algumas diferenças
entre elas. Uma delas é o público a que se destinam. A revista Capricho destina-se mais à jovem moça ou à
jovem senhora, que acabou de contrair matrimônio. Em seus artigos, porém, há muitas indicações para a futura
2
1347
até 1960. Para o período subseqüente, de 1961 a 19756, optou-se pela revista Cláudia, de publicação
mensal. Do montante das edições brasileiras visualizadas, 334 foram consultadas. Tal como ocorreu
com os dados levantados na revista portuguesa, foi realizada na revista brasileira pesquisa
complementar relativa ao período de 1976-1980. Os textos selecionados foram fotocopiados para
análise, totalizando 27 anos de periodização nas fontes dos dois países.
Vale ressaltar que, apesar de adotar os textos das revistas selecionadas como fonte, não se
pretendeu analisá-las exaustivamente em nenhum dos espaços investigados. Fez-se uma seleção de
textos7 que abordassem o tema estudado. Na análise dos dados, em certos momentos, fizeram-se
algumas generalizações; as constatações, porém, são fruto do estudo específico de alguns textos
apenas e não da imprensa feminina em sua amplitude.
2. Ser mulher e ser mulher sexuada no Brasil e em Portugal na imprensa – década de 50
Na década de 50, as revistas “Modas & Bordados” (PT) e “Capricho” (Brasil) tinham
características bem distintas. A revista brasileira era dirigida a um público jovem, o da moça que
almejava casamento ou da jovem mulher recém-casada. A revista portuguesa, por sua vez, parecia
indicada à senhora8 já casada há algum tempo, com filhas e/ou filhos; também era indicada à senhora
na fase da menopausa. Portanto, esse diferencial de público-alvo indica textos diversos acerca do tema
estudado. Um desses diferenciais está nos temas privilegiados. Na revista brasileira, por exemplo,
predominam os seguintes temas: casamento; relacionamento homem-mulher; afetividade; relação
amorosa (paixão e amor); manifestação de sexualidade (beijo e namoro). Já a revista portuguesa trata
da vivência da mulher casada e mãe, em temas como: saúde materna; exames de pré-natal; doenças
sexualmente transmissíveis (dentre elas a sífilis); estética corporal (cuidado com a beleza dos seios);
manifestação de afetividade/sexualidade (o beijo).
Os textos têm caráter informativo nas duas realidades; os estudos fundamentam-se em conceitos
científicos. A linguagem adotada na abordagem dos temas é impositiva e diretiva. A peculiaridade da
revista Capricho é instigar a leitora à auto-reflexão. Já na revista Modas & Bordados9, os textos
assemelham-se a receitas e orientações a serem realizadas pelas possíveis leitoras. A Estatística, a
Psicologia e a Psicanálise fundamentam os textos da década de 50 na revista brasileira; em
contrapartida, Medicina, História e Antropologia contribuem com seus ensinamentos nos textos da
revista portuguesa. A influência dos estudos norte-americanos é marcante na revista Capricho e, na
revista portuguesa, os estudos europeus.
O tema da sexualidade feminina aparece de forma implícita nas referidas revistas. A preocupação
com a contaminação da sífilis pelas mulheres é salientada em M&B (n. 2.025, 1950). Nesse texto, há
um alerta feito por uma médica acerca da necessidade do diagnóstico clínico prévio da enfermidade
para não haver a transmissão vertical (para o bebê). Apesar de enfatizar a questão da eugenia da prole,
dona de casa ou para a mulher que já desempenha essa função. Neste sentido, a aproxima das revistas Cláudia e
Modas & Bordados, que tinham como leitoras as mulheres casadas, em sua maioria com filhos e/ou filhas.
6
No intuito de fazer a comparação, foram coletados textos das publicações femininas, já citadas, dos dois países,
do período entre 1952 e 1975 (revistas brasileiras) e de 1950 a 1974 (revista portuguesa). No transcorrer da
pesquisa, necessitou-se de novos dados não contemplados na coleta realizada. Recorreu-se, então, aos textos da
revista brasileira Cláudia, nas edições de 1976 a 1980. O mesmo deveria ser realizado em Portugal, mas a revista
Modas & Bordados encerra suas publicações no ano de 74 e volta no ano seguinte com reestruturações e com um
novo título: Mulher: Modas & Bordados. Com a estrutura de revista e não mais de suplemento, continua sua
publicação até o ano de 1977. Para a obtenção dos textos publicados nessa reestruturação, foi realizada nova
pesquisa a partir de títulos dos artigos dispostos no catálogo veiculado pela própria revista (n. 3.375, 1977). A
pesquisa, portanto, abrangeu 27 anos nos dois espaços investigados: Brasil – Revista Capricho (1951-1960);
Revista Cláudia (1962-1980); Portugal – Revista Modas & Bordados; Mulher: Modas e Bordados (1950 a
1977).
7
Os textos analisados totalizam, na primeira pesquisa, 84 textos e 58 testes das revistas brasileiras (1952-1975);
39 textos e 37 testes da portuguesa (1950-1974). Na segunda pesquisa, 27 textos e 01 teste na revista Cláudia; 9
textos na revista Mulher: Modas e Bordados.
8
Nem sempre as revistas especificam o público ao qual se destinam, exceto o de serem indicadas, em geral, ao
feminino. No entanto, os textos selecionados direcionam-se a um determinado tipo de leitora pelos temas de que
tratam: ora a mulher mais jovem, ora a mais experiente, ora a casada, ora a solteira.
9
Será utilizada no decorrer do texto a sigla M&B para a designação da revista.
1348
não se discute a possibilidade de contaminação da doença por relação sexual. O texto chega até a
enfatizar o aborto como uma das conseqüências da doença. Mesmo salientando a interrupção da
gravidez, não se discute a respeito. Apesar desse aparente silêncio, há outro texto intitulado “O que as
raparigas devem saber” (M&B, n. 2.041, 1951), que merece destaque. Revela preocupação com a
beleza corporal, algo que não é enfatizado nos textos selecionados da revista no Brasil. A brasileira
Capricho (n. 7, 1952) salienta a sensualidade feminina e discute o conceito de mulher atraente. Há
preocupação com o autoconhecimento da leitora relativamente à sua capacidade amorosa e, de forma
declarada, em contribuir com a reflexão acerca das condutas femininas para favorecer um
relacionamento amoroso feliz e bem-sucedido, algo que parece ser de exclusiva responsabilidade da
mulher. Atrelado a isso, a mulher deve possuir elementos para se auto-analisar e entender, como o
demonstram os artigos “Como as mulheres se apaixonam” (Capricho, n. 76, 1958), ou “Como e
porque a gente se apaixona” (Capricho, n. 102, 1960). Este último texto trata da sexualidade feminina
utilizando termos como: sexo; atração sexual; prazer. Tais conceitos não são amplamente debatidos,
porém, fazem parte da mensagem pretendida pelo texto, especialmente de fazer com que as mulheres
se conheçam em sua capacidade de amar e, especialmente, consigam resistir às investidas masculinas.
O conceito de feminilidade encontrado nas páginas das revistas analisadas possibilita entender
alguns discursos constitutivos para a vivência da sexualidade da mulher nesse período. Os enunciados
sobre a feminilidade são caracterizados pelos papéis que demarcam os territórios a serem ocupados
pelos gêneros. O homem é o provedor, o “sexo forte”, o “príncipe encantado”, desejado pelos
“brotinhos” – denominação de moça no Brasil - da época, dentre outras características que denotam
atividade, objetividade, poder econômico e decisão no mundo público e também no ambiente
doméstico. A mulher é alguém que vive “enclausurado” (e feliz) no mundo privado do lar, apesar dos
indicativos de que algumas delas desempenhavam também funções fora de casa, já “conquistando” o
mercado de trabalho. As funções de esposa, mãe e dona de casa são vivências esperadas das mulheres
da época estudada.
Outros aspectos relacionados à feminilidade e à vivência da sexualidade, além da rígida
delimitação das condutas femininas, ressaltam características como: o desejo de seduzir o parceiro
para levá-lo ao altar ou para garantir a permanência no casamento; o conhecimento do parceiro para,
além de entendê-lo, conquistá-lo (já que era esse o principal objetivo da mulher na relação amorosa).
Cumpre repetir que o espaço provável para a vivência sexual era o leito conjugal. Pelo menos este era
o objetivo dos códigos morais da época e que constituíam a tônica dos enunciados das revistas.
3. Ser mulher e ser mulher sexuada no Brasil e em Portugal na imprensa – década de 60
Na década de 60, segundo Buitoni, “a mulher já havia sido introduzida na sociedade de consumo.
As revistas femininas trazem cada vez mais anúncios a testar a capacidade compradora de seu público.
(...) O conteúdo é portanto instrumental: serve a objetivos empresariais bem delimitados” (1981, p.
93). As revistas discutem os assuntos acerca da condição e de outros aspectos relacionados à
feminilidade da época, como um novo fator, preponderante, ou seja, o “projeto editorial de cada
veículo dirigido às mulheres tem em vista o consumo” (BUITONI, 1981, p. 93). As matérias revelam
que são organizadas também com este intento. Os informes publicitários tornam-se mais freqüentes;
ganham maior espaço e visibilidade nas revistas estudadas. A veiculação de propagandas de
eletrodomésticos, com mulheres extasiadas com os produtos, é a marca desses informes. Vale
salientar, e tudo leva a crer, que nem sempre tais produtos eram acessíveis à grande maioria das
habitações nos dois países, mas vendia-se “o sonho”, especialmente para a dona de casa que poderia
reduzir o árduo trabalho doméstico pela comodidade que alguns aparelhos elétricos poderiam oferecer.
A tônica da propaganda era de que tais produtos poderiam contribuir para diminuir o desgaste físico
sofrido pelas denominadas rainhas do lar, como eram chamadas as donas de casa nesse período,
principalmente as que residiam no espaço urbano10.
10
Não se está analisando a situação de forma homogênea de um sujeito feminino genérico, mas os discursos
veiculados pelas revistas nos mais diversos enunciados, tanto escritos quanto em desenhos e gravuras dos
anúncios publicitários. Indagando acerca desses anúncios e da vida cotidiana de mulheres nas primeiras décadas
do século XX, vale ressaltar o abismo entre o que se veiculava nas revistas e a prática das atividades no lar, tal
1349
A visão da dona de casa como rainha do lar, satisfeita com a condição de vida que aparece na
década de 50, vai sendo desconstruída nas décadas de 60 e 70, como o revelam os estudos de Buitoni
(1981). O castelo dessa rainha é visto como prisão ou um local onde a realeza manda pouco, mas
trabalha muito e se desgasta. Assim escreve Carmen da Silva, no texto “Uma pequena rainha triste”
(Cláudia, n. 26, 1963). Objeto dessa matéria é a insatisfação da mulher consigo mesma e com a sua
condição diante da família e da sociedade. A autora se pergunta se as causas dessa insatisfação não
poderiam estar quiçá diretamente ligadas à falta de sentido que a mulher-dona-de-casa passou a ver
nas funções desenvolvidas e esperadas como ideais para a vivência de sua feminilidade. A autora
propõe novos papéis para essa mulher. Dentre eles, estariam atividades práticas e condutas de maior
independência, como o trabalho fora do lar, sem deixar de realizar as tarefas de mãe e dona de casa.
Os temas acerca da sexualidade publicados nas revistas também abordavam o universo da
afetividade e da vivência sexual da mulher casada; no entanto, a castidade e virgindade também estão
presentes tanto na revista brasileira quanto na portuguesa, especialmente ao questionar o período do
noivado a fim de evitar um envolvimento íntimo entre o casal. Vários textos tinham como tema a
ansiedade sofrida pelas moças pressionadas por seus noivos a “ceder” e a iniciar um relacionamento
sexual antes do casamento.
Nessa década, especialmente na revista brasileira Cláudia, há textos fundamentados em
depoimentos e pesquisas de opinião acerca da vida sexual dos casais, buscando obter idéias e
sentimentos do que acontecia na “alcova matrimonial”. As concepções masculinas e femininas são
rastreadas pela revista com o objetivo de montar um panorama sobre a temática da prática sexual no
casamento na realidade brasileira.
A sexualidade feminina é tratada como manifestação de afetividade. Observa-se a vivência
conjugal; destaca-se o corpo feminino, em particular o aparelho reprodutor, que é descrito e, em
alguns casos, ilustrado com gravuras. A fertilidade da mulher é amplamente salientada nessa década e
constitui tema central dos textos na década seguinte, a de 1970, especialmente em Modas & Bordados,
no que tange à contracepção. A revista brasileira começa a analisar o tema da frigidez, inexistente, no
mesmo período, na revista de Portugal.
As diferenças de abordagem da temática da sexualidade feminina nas revistas em questão serão
detalhadas a seguir.
1. Revista Cláudia - A virgindade para a moça solteira e a vivência sexual para a mulher casada
são explicitadas nos textos; o corpo feminino é teorizado e passa a ser objeto de explicação,
com a utilização de recursos, como desenhos do aparelho reprodutor feminino; passa-se a usar
a nomenclatura dos órgãos sexuais como: vulva, vagina; alguns textos manifestam
preocupação com a frigidez e a “pseudofrigidez” feminina sob o prisma físico e também
psicológico; a sexualidade no casamento é salientada como instrumento de reflexão sobre
como a mulher deveria agir diante do parceiro; a “revolução sexual” é vista como ato ilhado,
de que alguns homens ou grupos usufruíam, embora na mentalidade do povo brasileiro,
especialmente dos homens, ainda prevalecesse uma tradição conservadora; o uso da pílula
anticoncepcional, apesar de tratado com alguma reserva, devido aos problemas físicos que
poderia acarretar, em alguns poucos textos é encarado como uma das possibilidades de a
mulher vivenciar a sexualidade com mais prazer e sem medo da gravidez. Os discursos
continuam a representar a vivência da mulher como dona de casa, mas tratam com
ambigüidade a relação entre a satisfação e a insatisfação de permanecer em casa ou sair do lar
para competir no mercado de trabalho. Em alguns textos, a mulher “torna-se” infeliz e
questiona o “mundo do lar”. O desejo feminino volta-se para a conquista do “espaço público”,
sem deixar de realizar as tarefas domésticas. A mulher é descrita como um ser sexuado,
como afirmam autoras que analisaram outras revistas femininas brasileiras. Veja-se o que Marina Maluf e Maria
Lúcia Mott escrevem a respeito: “Apesar da aparente facilidade, traduzida por uma gama variada de aparelhos
elétricos oferecidos ao público e por anúncios, nos quais as mulheres executavam os mais difíceis e sujos
serviços domésticos sempre sorrindo, ainda era muito restrito o acesso a novos utensílios e a serviços como
eletricidade e água encanada. Os novos bens de consumo beneficiariam apenas uma parcela da população,
composta daqueles que podiam pagar e aqueles que se decidiram pela novidade, já que a relação dos
consumidores com o novo não foi automática e nem sem conflitos”. (2001, p. 403)
1350
embora haja sempre o temor de torná-la muito “afoita” ou ativa nessa área. Outro assunto que
emerge é a homossexualidade masculina; não se menciona a homossexualidade feminina.
2. Revista Modas & Bordados - Enfatiza a sedução feminina a partir dos cuidados corporais
(estética, higiene) e dos cuidados com os “deveres domésticos”: o cuidado com a casa e a
obrigação em constituir um ambiente harmonioso para garantir o êxito do casamento.
Praticamente não se faz menção ao tema da sexualidade feminina, ao menos em enunciados
explícitos, mas, indiretamente, ao enfatizar o pudor na vestimenta feminina, assim como nas
atitudes consideradas ideais para a mulher. Há vários temas sobre a convivência no namoro e
noivado, embora sem abordar questões de sexualidade. O pudor aparece como garantia de
preservação da intimidade e também do sucesso no relacionamento. Um dos textos, que
salienta sutilmente a reivindicação de carinhos “nas horas da intimidade”, só alude ao
orgasmo sem denominá-lo ou conceituá-lo. Tal como ocorreu na década anterior, a de 1950,
alguns textos revelam preocupação com a saúde da mulher a respeito do contágio de doenças
sexualmente transmissíveis ou das denominadas “doenças das senhoras”. Aparecem vários
termos sobre o aparelho sexual feminino, mas sem explicações a propósito. Um tema evidente
é a preocupação em “aparelhar” a mulher a tornar-se “sedutora” para o seu companheiro.
Enfatizam-se aspectos externos e momentos de carinho (com sorrisos e beijos), mas sem
aprofundamentos sobre os momentos de maior intimidade do casal. Também há preocupação
com a manifestação do beijo; a abertura é maior, admitindo-se que “o perigo do beijo é
relativamente pequeno, a não ser que uma das pessoas que beija sofra de um mal contagioso”
(M&B, n. 2.993, 1969). Já se começa a vislumbrar uma mulher menos passiva, agora
trabalhando e iniciando por questionar os condicionamentos sociais. Ao mesmo tempo em que
se salienta a nova imagem da mulher, também se reforçam os chamados “papéis” de
submissão desempenhados por ela. Continuam presentes temas cuja atenção repousa em
caracterizar os sentimentos da mulher, seja para nomeá-los para ela própria, seja para decifrar
como os homens amam, ou para entender melhor as condutas de homens e mulheres no
convívio do casamento.
Os textos publicados na revista portuguesa ganham características diferenciadas na década de 60.
Começam a aparecer artigos mais longos, com fundamentação teórica clara, assemelhando-se ao
gênero jornalístico; reportagens visando a entender a opinião de homens e mulheres acerca da
sexualidade e de sua vivência. Os textos tornam-se mais informativos; predominam enunciados
normativos, que propõem à mulher como deveria vivenciar a sexualidade em relação aos conceitos de
“verdade” repassados.
A feminilidade, nas duas revistas, na década de 60, ainda é representada pela rígida demarcação
do que se considerava correto para o padrão feminino. Ser mulher era ser dona de casa, mãe e esposa,
funções agora atenuadas em comparação aos textos da década de 50. Os predicativos para ser esposa
aparecem especialmente nos testes, com questionamentos como: “A leitora é uma esposa perfeita?”
(M&B, n. 2.680, 1963); “Esposa modelo” (M&B, n. 2.902, 1967); “Leitora: será você uma esposa
perfeita?!” (M&B, n. 2.962, 1968); “Precisa-se espôsa ciumenta” (Cláudia, n. 2, 1961); “Você é uma
companheira ideal?” (Cláudia, n. 5, 1962); “Você é uma boa espôsa?” (Cláudia, n. 15, 1962). Os
títulos dos textos analisados revelam o que se esperava da mulher; enquanto esposa, era que fosse
alguém “ideal” ou um “ser-modelo” sem defeitos e excessivas qualidades, enfim, alguém perfeito.
Mas que modelo seria esse? O modelo vigente no período em questão é o da mulher-esposa
conciliadora, que tem como um de seus objetivos a “diplomacia conjugal”, superando qualquer limite
para garantir o êxito do matrimônio – mesmo que para isso fosse preciso uma pitada de ciúme na
relação amorosa11. Uma das orientações à mulher era que deveria refletir sobre seus desejos e
condutas.
11
O teste publicado em Cláudia (n. 02 de 1961) discute a relação conjugal a partir da conduta da esposa. A
autora, com o codinome “Dona Letícia”, assegura que a mulher deve ser um pouco ciumenta para garantir a
continuidade do amor conjugal. Chega até a estimular a mulher a ser uma “verdadeira onça” diante do esposo.
Um fato curioso, que aparece no final do texto, é a nota da redação da revista isentando-se do conteúdo expresso
pela autora. A nota diz o seguinte: “A direção de ‘Cláudia’ (sendo composta em grande parte por representantes
1351
As revistas também analisam o desempenho da mulher dentro e fora do lar. Para a prática
profissional, que algumas delas estariam conquistando, exigiam-se as mesmas características das
funções desempenhadas no interior do lar. Um teste sobre este assunto questiona a leitora desde seu
título: “Considera-se boa secretária?” (M&B, n. 2.517, 1960). Algumas das questões sugeridas são as
seguintes:
“Fica voluntàriamente depois da hora se tem um trabalho urgente a
terminar?”; “Os seus vestidos são sóbrios e em perfeita condição? São
apropriados ao seu trabalho?”; “É cuidadosa tanto com a maquilhagem
como com os cabelos ou as unhas? Mantém-se impecável todo o dia?”;
“Procura não ser morosa, ainda mesmo que ache o trabalho insípido e pouco
digno das suas capacidades?”
A profissão de secretária, comumente desempenhada por pessoas do gênero feminino, já que eram
poucas as oportunidades de trabalho remunerado para a mulher, requer dela, segundo o texto, que seja
prestativa, comedida, recatada, boa ouvinte, dedicada, dentre outras características também propostas
para sua vivência dentro e, conseqüentemente, fora do lar, no desempenho profissional.
4. Ser mulher e ser mulher sexuada no Brasil e em Portugal na imprensa – década de 70
A primeira metade da década de 1970 registra, nos textos estudados, mudanças significativas,
especialmente na revista portuguesa. Modas & Bordados, na maioria dos textos, publica conceitos e
reivindicações próprios da militância feminista, com questionamentos e exigências de cumprimento de
direitos da mulher diante de seu próprio corpo, como o do aborto e sua legalização, o acesso ao serviço
de planejamento familiar. A atuação da associação de Planejamento Familiar, a APF12, é amplamente
divulgada. Estas inovações nos textos da revista tornam-se mais explícitos após o 25 de Abril de 1974,
que marcou o momento de abertura política naquele país.
Em compensação, na revista Cláudia há certo silenciamento sobre questões relativas à sexualidade
feminina, que ressurgirá com intensidade na segunda metade dessa década. Nos primeiros anos da
década de 70, destacam-se os temas sobre o uso da pílula anticoncepcional, a frigidez feminina, a
beleza corporal (corpo belo para a sedução), a saúde da mulher.
Os textos de Cláudia apresentam as seguintes características:
• Estruturação dos textos - Podem ser divididos entre os artigos de autoria de Carmen da
Silva, os de reportagem, os informativos sobre a saúde e beleza da mulher. Os da primeira
categoria são longos, tendo por temática a condição feminina. Os depoimentos e fatos
vividos por leitoras são debatidos e discutidos pela articulista com fundamento em
conceitos da Psicanálise e em estudos feministas. Os textos de caráter jornalístico
discutem a temática feminina a partir de depoimentos designados de “verídicos” de
mulheres, e há reportagens especialmente com médicos. Os textos informativos, em
particular sobre a saúde da mulher, oferecem orientações, em tom didático, sobre a
temática tratada. Os textos trazem quadros informativos com a síntese do assunto e
desenhos que facilitam o entendimento.
• Temáticas abordadas - Não há nenhum texto específico sobre sexualidade feminina com
título explícito; no entanto, a sexualidade “transpira” nas páginas. A explicação é a tônica
dos artigos que tratam da fecundação, utilizando gravuras do aparelho reprodutor. Nos
textos de Carmen da Silva, a sexualidade aparece na discussão sobre o namoro, ou na
“culpa feminina” diante da vivência da sexualidade antes do ou durante o casamento; o
do sexo forte) deixa à dona Letícia a inteira responsabilidade de suas afirmações”. Nota-se que a direção,
composta pelo “sexo forte”, discorda, de forma irônica, expressando e demarcando espaço diante da pauta da
revista.
12
A Associação para o Planeamento da Família – APF - é uma instituição particular de solidariedade social,
criada em 1967. Tem como objetivos fundamentais promover o planejamento familiar e a educação sexual em
todo o território português. Desde sua criação até o início dos anos 70, procurou influenciar a integração dos
cuidados de planejamento familiar nos serviços de saúde, o que aconteceu em 1976. Fonte: APF. O que é a APF.
Lisboa, s.d.
1352
órgão sexual feminino e o aparelho reprodutor são designados pelo nome (vulva; vagina;
útero; ovário...). O aborto, embora citado sem detalhes, é apontado como uma das causas
de esterilidade de muitas mulheres (somente numa pequena parte de um texto de Carmen
da Silva menciona-se o aborto como mais um elemento de culpa para muitas mulheres que
o praticam).
A ênfase na preocupação estética da mulher é mais freqüente nessa década, especialmente na
revista brasileira. A cirurgia estética é encarada como uma das possibilidades para a aquisição da
beleza ou do corpo perfeito.
Em Modas & Bordados, a linguagem adotada na década de 70 assemelha-se à do cotidiano das
portuguesas e dos portugueses daquele período. Aliás, é nessa década que aparecem em maior número
palavras e expressões com sentidos coloquiais cujos significados se aproximam da língua portuguesa
falada no Brasil. Os textos, muitos deles mais extensos, fazem parte de uma seqüência de publicações,
como a série acerca do tema “Quem tem medo da contracepção?” (M&B, n. 3.259; n. 3.260; n. 3.261;
n. 3.262, 1974). Os textos e reportagens são assinados, especialmente após o 25 de Abril. Também são
mais extensos e começam a trazer depoimentos de pessoas, inclusive de supostas cidadãs e cidadãos
comuns, e não mais exclusivamente de cientistas, médicos, médicas, psicólogas ou psicólogos. Os
textos de cunho jornalístico, com ênfase em reportagens, constam da maioria das edições.
A sexualidade feminina, na revista portuguesa, é ressaltada sob o prisma da saúde da mulher e de
sua capacidade biológica de gestação, paralelamente ao direito de escolha mediante técnicas
contraceptivas. A função e atuação da APF, como um local privilegiado para o desenvolvimento do
planejamento familiar, é tema preponderante nos textos sobre a questão do direito de escolha de ter ou
não filhas e/ou filhos. Um dos aspectos do planejamento era a discussão e a idéia de liberalização do
aborto como um dos direitos da mulher - a revista brasileira, nessa mesma época, não fala nisso.
Paradoxalmente, junto a temáticas inovadoras - liberalização do aborto, direito ao planejamento
familiar e opção de ter ou não filhas e filhos -, havia discursos conservadores, ancorados nos códigos
da moral, reforçando ideais de manutenção do casamento e da felicidade conjugal como
responsabilidade exclusiva da mulher, assim como o fora na década de 50.
A sexualidade feminina, nas revistas analisadas, especialmente Cláudia, é constituída segundo
uma linguagem médica para falar do corpo fértil da mulher (a pílula era assunto tratado com temor),
da beleza corporal; do planejamento familiar (devido ao discurso do aumento demográfico) e do
sentimento constante de culpa da mulher diante da prática de sua sexualidade.
A feminilidade, nos textos da imprensa feminina propostos nessa década, é marcada por mudanças
em relação aos modelos anteriores. Alguns enunciados visam a preservar antigos estereótipos, já
amplamente analisados; outros, visavam a uma certa militância feminista, com assuntos referentes ao
direito ao acesso ao planejamento familiar; ao direito a ter direitos, dentre outros.
5. A mulher sexualmente ativa – os discursos da Sexologia na imprensa
A sexualidade feminina, nos discursos hegemônicos dos anos 50 a 75, como já exposto, produz,
no Brasil e em Portugal a imagem da mulher sexuada, embora de sexualidade latente. A mulher não é
vista como assexuada, mas com um tipo de sexualidade potencial, porém inativa, capaz de se
visibilizar e ativar, à condição de que haja um homem habilidoso para isso. Pensar nessa imagem de
mulher sexuada nos leva também a construir a imagem do homem sexuado, presente nos discursos das
revistas. Os problemas sexuais femininos são apresentados como de inteira responsabilidade
masculina. Surge a figura do homem sexualmente habilidoso ou do homem egoísta, o que pensa
somente em seu prazer, desconsiderando os limites e dificuldades da parceira.
A mulher é tida como “bela adormecida” para o sexo, tal como sugere o título deste artigo. A
sexualidade atrelada a enunciados como amor, romantismo, recato, aparece em enunciados normativos
e normalizadores para a vivência da sexualidade da mulher casada, visto que “todos os maridos
1353
deviam saber que, em cada mulher, há uma rapariguinha meio adormecida” (M&B, n. 3.010, 1969),
cabendo a ele o papel de príncipe para tirá-la da “sonolência”, acordando-a para o sexo.
Esta representação de mulher e, conseqüentemente, de sua sexualidade, passará por profundas
mudanças nos enunciados das revistas na segunda metade da década de 70. Os temas sobre a
sexualidade da mulher abordados na imprensa feminina, diferentemente das décadas anteriores,
passam por mudanças que irão construir um discurso próximo ao que temos hoje, ou seja, da mulher
que exige seus direitos sexuais, preocupada com a performance no sexo, enfim, não mais adormecida,
mas exigente de prazer sexual dentro ou fora do casamento. A virgindade passa a ser questionada e
não é mais imposta como norma para todas as mulheres; o ato sexual começa a ser monitorado com a
explicitação de detalhes até então reclusos na “alcova conjugal”. A mulher na fase da menopausa
ganha novas possibilidades para o exercício de sua sexualidade. A menstruação se transforma em
assunto corriqueiro. O corpo feminino ganha contornos de sensualidade e erotismo, além de ser um
instrumento de prazer para a própria mulher, seja na relação sexual, seja no auto-erotismo, algo até
então inimaginável nos enunciados das revistas.
Estas mudanças sofreram influência de normatizações, de saber-poder de uma ciência
emergente: a Sexologia13. As revistas começam a veicular conceitos oriundos de tal especialidade,
com artigos nela fundamentados. Estudiosos e estudiosas como: William Masters e Virgínia Johnson;
Albert Ellis; Symour Fisher; Shere Hite; Willem Reich, constituem referência por seus estudos na área
da sexualidade humana, especificamente a feminina.
Privilegiaram-se as temáticas que envolvem o sexo em seu aspecto genital, buscando saber
sobre a resposta sexual feminina e masculina; a anatomia genital e seus pontos eróticos, as técnicas
sexuais, dentre outras. A masturbação, até então condenada ou silenciada, passa a ser obrigatória para
atingir o orgasmo. A mulher frígida é encorajada a ter múltiplos orgasmos... enfim, há, em pouco
tempo, uma mudança radical nos discursos e enunciados da imprensa feminina. Tais enunciados
acabam por afetar a subjetividade de homens e mulheres na vivência de suas sexualidades. Isto se
observa nos depoimentos de pessoas [leitores e leitoras] que escrevem para as revistas, ansiosas por se
tornar sexualmente ativas e capazes de exigir “orgasmos múltiplos”.
Como ficou evidenciado no texto, o discurso da imprensa feminina apresenta-se mediante
vários sujeitos e linguagens. Há semelhanças e diferenças nos discursos produzidos no Brasil e em
Portugal. No entanto, observam-se aproximações no que tange aos discursos considerados
hegemônicos (porque revestidos de poder), ao que se esperava para a vivência da feminilidade e da
sexualidade nos dois espaços estudados. O discurso médico e o das ciências psi são preponderantes e
produzem saberes e verdades acerca da questão estudada. Esses discursos, como prática que produz
saberes, acabam por produzir efeito na constituição dos sujeitos e dos próprios discursos das mulheresleitoras a respeito de si próprias e do mundo. Os discursos hegemônicos, por seus enunciados
prescritivos e normalizadores, serviram de instrumento para os dispositivos pedagógicos com o
objetivo de “conduzir as condutas” femininas e foram bem mais eficientes quando puderam se valer
do exame e da confissão para tornar visível e verbalizar a intimidade. Observa-se também que se
apresentam como “verdade”, apoiados em códigos morais e, especialmente, em preceitos apropriados
de teorias científicas e aplicáveis à conduta feminina. O aspecto “verdade” está ligado a sistemas de
poder que o produzem e o reforçam. Os poderes podem ser observados na diversidade de temas
ressaltados pelos textos que demonstram regimes de verdade que não se mostram necessariamente
negativos ou repressivos, mas, fundamentalmente, produtivos, porque incitam à reflexão e propiciam
um trabalho pessoal capaz de produzir novas identidades a partir do que está sendo social e
culturalmente objetivado. O saber proposto pela Sexologia definiu e criou novas possibilidades de
vivência da sexualidade feminina ao prescrever “fórmulas” e “métodos” para a prática sexual,
13
A Sexologia, como ciência, emerge no final do século XIX. Gomes (et al., 1987) afirma que entre 1908 e 1933
se assiste ao nascimento deste campo do conhecimento. Após a Segunda Guerra Mundial, a Sexologia ganhará
grande impulso com os estudos americanos de Alfred Kinsey, publicando em 1948 e 1953 os seus dois
inquéritos sobre o comportamento sexual do homem e da mulher americanos. Seguem-se William Masters e
Virgínia Johnson com os seus trabalhos experimentais sobre a resposta sexual humana em 1966 e sua aplicação à
clínica em 1970. É, pois, a partir dos anos 70 que a Sexologia (agora também denominada de Nova Sexologia)
vai ter o seu grande desenvolvimento e expansão em nível mundial.
1354
especialmente do casal. No entanto, percebe-se nos discursos da imprensa feminina brasileira e
portuguesa a constituição de seres sexuados e femininos sob dois “modelos” – o da frígida e o da
hiper-sexualizada.
Referências Bibliográficas:
ABRIL, Editora. A revista do Brasil. São Paulo: Ed. Abril, 2000.
APF. O que é a APF. Lisboa: Folheto, s.d.
BUITONI, Dulcília H. S. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina
brasileira. São Paulo: Loyola, 1981.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Vol I. 12 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1997.
_____. A ordem do discurso. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2003.
GOMES, Francisco Allen et al. Sexologia em Portugal. Lisboa: Texto Editora, 1987.
GUIMARÃES, Maria Alice Ramalhete Pinto. Saberes, modas & pó de arroz: modas & bordados.
Vida feminina (1933-1955). Coimbra, Portugal: Faculdade de Letras, 2002. (dissertação de mestrado).
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando A.
(coord.). História da vida privada no Brasil. 4. ed. Volume 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Download