O STATUS ARGUMENTAL DO CLÍTICO REFLEXIVO SE EM

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O STATUS ARGUMENTAL DO CLÍTICO REFLEXIVO SE EM PORTGUÊS
Luisa Godoy – UFMG/Capes
Introdução
Neste texto, partiremos de uma hipótese de pesquisa para desenvolver uma discussão
lingüística, como um exercício de raciocínio científico. A hipótese de que trataremos é a de que
o clítico se, chamado muitas vezes de reflexivo, é um clítico não-pronominal, pois não tem
status argumental na sentença. A discussão será desenvolvida do ponto de vista da morfologia e
da sua interface com a sintaxe e a semântica, partindo de trabalhos na literatura que tratam
especificamente do tema. Algumas sugestões de análise serão delineadas, ainda como idéias
para um trabalho futuro mais aprofundado. Os objetivos deste texto são portanto, em poucas
linhas, o de uma revisão bibliográfica comentada, com o levantamento de problemas e questões
e a sugestão de soluções.
Na seção 2, apresentamos uma fundamentação para a hipótese a ser perseguida e, na
seção 3, será feita uma discussão sobre algumas conseqüências da hipótese para a morfologia e
suas interfaces, como a função gramatical do se, o tipo de processo que o deriva, a origem das
diferentes interpretações nas construções com o clítico e o lugar de sua anexação – no léxico ou
na sintaxe. Na seção 4, concluímos o texto.
1. A Hipótese de que Se Não É um Clítico Pronominal
Na vasta bibliografia acerca do se (ou si) nas línguas românicas, aparecem diferentes
listagens e descrições das construções em que o clítico ocorre. Observemos exemplos de
algumas dessas construções citadas na literatura, em português:
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
(6)
(7)
João se ama.
João e Maria se amam.
O grego se traduz facilmente.
Vendem-se ovos.
Em BH se vê muitos fuscas.
O galho se quebrou.
João se levantou.
Em (1), temos a construção reflexiva, que descreve uma eventualidade na qual um mesmo
participante desempenha dois papéis semânticos. Em (2), temos uma construção ambígua entre
a leitura reflexiva e a leitura recíproca, na qual os participantes nutrem uma relação de
reciprocidade em relação à eventualidade de amar. Em (3), temos a construção chamada de
“medial” ou “média”, na qual se generaliza acerca de uma propriedade de certo objeto (Levin,
1993). Nos exemplos em (4) e (5), temos as chamadas “passiva sintética” e “impessoal”, nas
quais o argumento agente não está presente. Observe-se que na primeira, mas não na segunda,
há concordância do NP (ovos) com o verbo e que a segunda, apesar de considerada uma
“incorreção” na norma padrão (regula-se que apenas verbos intransitivos ou intransitivizados
podem ser impessoalizados), é bastante comum no português brasileiro falado (Nunes, 1995).
Em (6) temos a construção “incoativa” (Grimshaw, 1982, Dobrovie-Sorin, 2006) ou “ergativa”
(Nunes, 1995), na qual o argumento interno (paciente ou tema) ocupa a posição de sujeito. Em
(7), temos o que Câmara Jr. (1972) denominou de construção “média dinâmica”, na qual o único
participante age e sofre a ação que, à diferença da reflexiva, não sai de seu próprio âmbito.
Postulam-se ainda outras construções com se, de que não trataremos aqui. Na maioria
dessas construções, conforme a maioria dos autores, não é atribuído ao se um status argumental,
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ou seja, ele não é visto como um pronome. Por exemplo, para a construção ergativa/incoativa,
como em (6), é proposto, conforme Grimshaw (1982), que ela seja fruto de uma operação que
apaga o argumento externo (agente) do verbo transitivo e um aloca o argumento interno (tema
ou paciente) na posição de sujeito. Estando presente apenas o argumento interno e tendo havido
um apagamento do externo, fica evidente que se não é encarado como um argumento na
sentença.
Porém, ainda que a literatura encare o se da maioria das construções como nãoargumental, há algumas construções que suscitam mais controvérsia. Trata-se, principalmente,
da reflexiva/recíproca e da impessoal. Se desejamos perseguir a hipótese de que o se, de
maneira geral, é não-argumental, devemos aprofundar um pouco mais a discussão sobre o
clítico nas construções reflexiva/recíproca e impessoal.
O se de sentenças reflexivas/recíprocas é tradicionalmente encarado como pronominal,
paralelamente aos demais pronomes pessoais acusativos (Mioto, 2000, Ilari et al., 1996,
Bechara, 2000, Camacho, 2003, para citar alguns). Se se é um argumento, ele recebe papel
temático do verbo e exerce uma função gramatical na sentença, fazendo com que o verbo
mantenha a sua transitividade inalterada. Kayne (1975), porém, apresenta exemplos claros nos
quais os verbos reflexivizados no francês (como em Jean s’aime) se comportam, na verdade,
como verbos intransitivos, ao passo que os verbos com clíticos pronominais acusativos (como le
em Jean l’aime) se comportam como transitivos. Dentre as evidências que mostra, está a
diferente seleção de auxiliar no tempo passado composto. Sentenças com pronomes pessoais
acusativos – argumentais – selecionam ter como auxiliar, mas sentenças com se
reflexivo/recíproco selecionam estar, como o mesmo verbo:
(8) Ils les ont embrassé.
‘Eles os abraçaram’
(9) Ils se sont embrassés.
“Eles se abraçaram’
(10)
*Ils se ont embrassé.
Até hoje, as evidências do francês (além da seleção de auxiliar, a posposição do sujeito
e a posição do clítico no complemento de verbos causativos), primeiramente apresentadas por
Kayne (1975), são citadas por autores que advogam contra a idéia de o se reflexivo ser
argumental nas línguas românicas. Seria desejável, no entanto, encontrar evidências também nas
outras línguas românicas, como no português. Segundo Dobrovie-Sorin (2006), Burzio (1986)
tenta adaptar as evidências do francês para o italiano, mas o assunto ainda “permanece em
aberto” (p. 124).
Passemos à construção impessoal como em (5) acima, muito comum em italiano, objeto
de muitos trabalhos em lingüística (como Dobrovie-Sorin, 1998 e Raposo e Uriagereka, 1996) e
considerada “incorreta” normativamente em português, ainda que amplamente usada no PB.
Dobrovie-Sorin (2006) classifica os tipos de se por caso, separando a construção impessoal das
demais construções com o clítico, por ser a única construção na qual o NP não concorda com
verbo. A autora postula que, na impessoal, se recebe o caso nominativo, ficando o NP com o
caso acusativo, enquanto que, nas demais construções com se, o NP é nominativo (nutrindo
concordância com o verbo) e se é acusativo. Por causa dessas diferenças de distribuição de
casos, a autora postula que, nas construções com se acusativo, o clítico não é argumental, mas
na impessoal, em que se recebe caso nominativo, ele é pronominal1.
Neste trabalho, não vamos propor uma atribuição de caso ao se, pois, se encaramos,
conforme Chomsky (1981), que caso é atribuído localmente, deveríamos entender que se é
gerado em posição A, onde receberia caso e, em seguida, movido para a posição anexa
(cliticizada) ao verbo. Essa derivação é contra toda a argumentação que vimos fazendo, uma vez
que o clítico, não sendo argumental, não pode ser gerado em posição A. Uma segunda opção
seria valer-nos de um outro mecanismo, talvez um pouco custoso, como o proposto por
Dobrovie-Sorin (2006): o clítico seria gerado já em posição anexa ao verbo, mas possuiria um
1
No caso do se acusativo, então, ele seria como um expletivo, que recebe caso, mas não papel temático.
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traço em posição A, que, no entanto, não seria fruto de um movimento de NP. O caso seria
atribuído a essa posição em que se encontra o traço e este se ligaria ao se em cadeia.
Se não assumirmos uma atribuição de caso ao se, não há necessidade de postular uma
diferença radical entre a construção impessoal e as demais construções com o clítico. Não há
outras evidências, além do caso, que sugerem que o se impessoal seja pronominal, como afirma
a própria Dobrovie-Sorin (2006): “a seleção de auxiliar, a ordem relativa com relação ao clítico
objeto e a negação parecem tratar os dois se do mesmo modo” (p. 136, trad. minha). Portanto,
vamos considerar, juntamente com Reinhart e Siloni (2005), que, também na impessoal, o se é
não-argumental.
Em resumo, na maioria das construções, se já é considerado não-pronominal. Em
algumas construções mais controversas, encontramos na literatura evidências empíricas e
teóricas de que o clítico não é argumental. A hipótese de que o se é, de maneira geral, um
elemento não-argumental é, portanto, bastante plausível.
2. Conseqüências da Hipótese para a Morfologia e suas Interfaces Sintática e Semântica
Nesta seção, vamos tratar das conseqüências da hipótese de que o se é um elemento
não-argumental (em qualquer construção) e propor alguns esboços de explicação.
2.1 Valor Morfológico e Função do Se
Se se não é um pronome, qual o seu valor morfológico? Podemos pensar, conforme as
análises do se não-argumental de Dobrovie-Sorin (2006), Grimshaw (1982), dentre outros, que
ele seja um afixo. Se em todas as construções trata-se de um afixo idêntico em forma, podemos,
também, propor que ele seja idêntico em função.
Há, na literatura, algumas propostas de unificação da função de se, como, dentre outras,
a de Burzio (1986), para quem se é um marcador de inacusatividade, a de Grimshaw (1982),
para quem é um afixo-operador lexical que reflexiviza ou medializa um verbo e a de DobrovieSorin (2006), para quem se é uma anáfora não-argumental. No entanto, esses autores excluem
da sua generalização alguns tipos de construções, como a passiva e a impessoal (como vimos,
na seção anterior, sobre o trabalho da última autora). Reinhart e Siloni (2005) traçam uma
generalização mais ampla, abarcando todas as ocorrências de se. Para as autoras, a função de se
é ser um redutor de caso. Ou seja, a aplicação de se em uma construção ou em um verbo causa a
incapacidade de atribuição de um dos casos abstratos, seja o nominativo, o acusativo ou mesmo
o dativo (como em João se deu um presente). Não havendo a possibilidade de atribuição de um
caso, um NP não pode ser expresso, pois todo NP tem de ter caso.
De fato, em todas as construções com se, observamos que o número de argumentos do
verbo está reduzido (tendo sempre em mente que se não é um argumento do verbo). Ou seja, um
verbo de n argumentos, quando ocorre com se, apresenta n-1 argumentos. Retomando o
exemplo da média dinâmica em (7), por exemplo, temos que, apesar de muitas vezes o verbo
levantar ser considerado pronominal, existe a contraparte com um argumento a mais, como em
João levantou a cadeira. Podemos, pois, postular que a sua transitividade básica (n) é a
transitiva, com dois argumentos, e que, na aplicação de se, um argumento é reduzido (n-1),
ficando a construção com um argumento apenas.
Poderíamos ainda discutir sobre qual argumento é reduzido em cada construção. Por
exemplo, na passiva e na impessoal, é claro que argumento externo é que é reduzido (basta notar
os rótulos “passiva” e “impessoal”, que indicam que o argumento externo, agente ou não, não
está presente). Há uma grande controvérsia na literatura, porém, com relação à construção
reflexiva/recíproca. Para Burzio (1986), dentre outros, o argumento reduzido é o externo,
derivando um verbo inacusativo (não possui argumento externo e não pode atribuir caso
acusativo). Reinhart e Siloni (2004), por outro lado, argumentam que o verbo derivado é
inergativo, fruto de redução do argumento interno. Já no caso do exemplo João se deu um
presente, apresentado acima, o argumento reduzido não seria nem o externo, nem o interno, mas
o oblíquo, ou preposicionado. Deixando para um trabalho futuro essa discussão e sem poder
entrar nas distinções entre argumento semântico, NP sintático e caso, vamos assumir que se é
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um afixo que marca a redução de um lugar na transitividade básica de um verbo, seja a redução
de um argumento semântico – externo, interno ou oblíquo – ou simplesmente a redução do NP
que expressa sintaticamente esse argumento. Se é, enfim, um afixo marcador de uma redução
valencial.
2.2 As Operações de Anexação do Se e a Semânticas das Construções com o Clítico
Para Grimshaw (1982), cada operação de anexação de se é uma: a passivização é
diferente da reflexivização, que é diferente da medialização, etc. Se considerarmos todas as
várias construções com se listadas na literatura, dentro dessa proposta, deveria haver uma
operação diferente para cada anexação de se, o que é bastante custoso. Reinhart e Siloni (2005)
sugerem uma solução: que se desvincule a função de se (marcar uma redução valencial) da
operação que altera a estrutura argumental do verbo, entendendo a anexação de se como uma
conseqüência da operação, e não como parte integrante da mesma. Assim, haveria a operação de
reflexivização, por exemplo, que reduz a valência de um verbo; apareceria, então, a anexação de
se, marcando sintaticamente a redução. Na operação de medialização, também haveria redução
de um argumento e a mesma anexação do se se daria em seguida. Não seria necessário,
portanto, como na proposta de Grimshaw (1982), postular ses diferentes, cada um pertencendo a
cada operação, mas apenas um, cuja função é mais geral, a de marcar redução valencial.
Se, no entanto, a função de se fosse apenas a de marcar reduções, teríamos de explicar
porque o clítico não aparece em toda e qualquer redução valencial da língua, como, por
exemplo, nas sentenças com verbos transitivos intransitivizados (como em Eu comi muito)2. Se
parece ser mais que apenas um afixo marcador de redução; ele parece ter um sentido.
Poderíamos pensar que é na composição do verbo com o se e com seus argumentos (e até com
os adjuntos) que se criam os diferentes sentidos da reflexivização, da medialização, da
passivização etc. Talvez não seja necessário postular uma operação específica de reflexivização,
por exemplo, como propõem Reinhart e Siloni (2005). Verifica-se que a reflexividade é um
sentido que pode ser expresso de diferentes formas em português brasileiro:
(11)
(12)
(13)
João ama a si próprio.
João ama ele mesmo.
João se ama.
Tanto em (11) quanto em (12) a idéia de reflexividade é dada composicionalmente, na
combinação do verbo, seus argumentos e das expressões anafóricas si próprio e ele mesmo.
Assim, é possível pensar que a idéia de reflexividade em (13) também é dada
composicionalmente, da combinação do verbo, cuja valência foi reduzida, de sua grade
temática, mais o sentido do afixo se e do argumento.
A idéia de que um item funcional pode ter sentido já está presente nos trabalhos de Berg
(2005), Corrêa e Cançado (2006) e Godoy (2008), todos sobre as preposições no PB. Berg
(2005), em sua tese de doutorado, lança a hipótese de que mesmo as preposições que não
atribuem papel temático, servindo apenas para atribuir caso a um NP, não são vazias de sentido
lexicalmente. Corrêa e Cançado (2005) estendem essa idéia na descrição dos verbos de
trajetória, mostrando que, apesar de o papel temático do argumento interno de um verbo como
vir ser acarretado pelo próprio verbo (uma visão diferente das análises tradicionais, que
propõem que vir é intransitivo), a preposição que o sucede (vir de/ para/ em/ a) contribui para o
sentido geral da sentença, especificando a direção do movimento descrito pelo verbo. Godoy
(2008) também aponta casos de verbos transitivos indiretos nos quais a preposição que encabeça
o argumento interno especifica alguma faceta do sentido da relação de predicação do verbo com
seu argumento. Ou seja, itens funcionais como as preposições funcionais de verbos transitivos
indiretos, apesar de não predicarem, podem contribuir na composição semântica da sentença,
2
Uma análise alternativa à da intransitivização é a seguinte: o verbo transitivo não sofreria redução
valencial, e o seu argumento interno continuaria sendo implicitamente interpretado, estando presente na
sintaxe sob a forma de um pro.
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pois podem ter sentido. O mesmo pode ser dito em relação ao se: mesmo se o encararmos como
destituído de status argumental, exercendo a função gramatical de marcar redução de valência, é
possível que ele tenha sentido, contribuindo para a composição semântica da sentença em que
ocorre.
Em resumo, nesta seção, discutimos sobre como tratar a relação entre o se, encarado
como redutor valencial (ou marca de redução valencial), e as diferentes construções em que
ocorre. Vimos que é mais parcimonioso separar a função de se das operações que alteram a
estrutura argumental dos verbos. A anexação de se é sempre a mesma, ocorrendo sempre no
mesmo contexto (o de uma redução valencial); as operações é que são diferentes, reduzindo a
valência de um verbo de diferentes formas.
Ponderamos que talvez nem seja necessário postularem-se essas operações gramaticais,
pois é possível encarar a semântica das construções com se como fruto de uma composição
léxico-semântica, entendendo que se tem sentido, apesar de ser um item não-argumental. Ou
seja, a nossa proposta para um trabalho futuro difere de Reinhart e Siloni (2005) em dois
pontos: i) o clítico se será encarado como contendo um sentido semântico inerente, além de ter a
função gramatical de marcar uma redução valencial; e ii) as interpretações medial, reflexiva,
recíproca, passiva etc serão tratadas composicionalmente, eliminando as operações gramaticais
de reflexivização, medialização etc. Será necessário postular qual é o sentido inerente do clítico
se e explicitar como o sentido do verbo e dos argumentos determinam composicionalmente cada
interpretação. Essa faceta semântica da questão será investigada em Godoy (em prep.).
2.3 O lugar da Afixação de Se
Finalmente, vamos tratar do lugar da afixação de se: no léxico ou na sintaxe?
Grimshaw (1982), partindo das idéias da Lexical-Functional-Grammar, teoria a que se
filia, afirma que as operações de alternância argumental se dão todas no léxico. Assim, por
exemplo, haveria uma operação chamada “reflexivização”, que se aplicaria sobre a entrada
lexical de um verbo, derivando um novo verbo de sentido reflexivo, com a adição do afixo se.
Retomando a linha de pensamento que vimos fazendo, em vez de postular uma operação
para cada afixação de se, podemos pensar que há uma única operação (cujo nome devemos
ainda propor), que anexa o afixo se a um verbo, reduzindo a sua valência e alterando o seu
sentido. Essa operação pode ser encarada como uma derivação, por suas características:
mudança de classe e alteração de sentido. Apesar de não alterar a classe de palavras, pois deriva
um verbo de outro, a redução de valência vai alocar o verbo em uma outra classe de
transitividade. Esse novo verbo terá um sentido (que deve ser ainda postulado) e, a partir da sua
composição com os argumentos e adjuntos na sintaxe é que as interpretações medial, reflexiva,
recíproca etc serão inferidas. Essa abordagem composicional pode explicar porque há variação
na listagem das construções com se na literatura, porque há tantas construções com se e porque
algumas delas são ambíguas (como em (2)): se a interpretação final depende da composição, são
inúmeras as composições possíveis. Em uma abordagem da questão na qual existem várias
operações diferentes, uma para cada interpretação, essas questões sobre a multiplicidade de
sentidos das construções com se não seriam bem explicadas.
Adotando uma abordagem lexicalista como a de Grimshaw (1982), diremos, portanto,
que essa operação de anexação do se, com a redução valencial na estrutura argumental de um
verbo – uma operação de derivação morfológica – se dá no léxico. Na sintaxe, esse novo verbo
se compõe com outros itens e, no módulo semântico, a sentença é interpretada.
Esse esboço de proposta lexicalista para a anexação do se românico encontra um
problema na argumentação de Reinhart e Siloni (2005). Segundo as autoras, a reflexivização é,
nas línguas românicas, uma operação sintática, não lexical. Há uma evidência forte para isso,
em sentenças cujo complemento é uma small clause:
(14)
Ele se considera inteligente.
Na sentença acima, o argumento reduzido por se é o sujeito da small clause (Ele considera ele
inteligente). No entanto, o clítico está anexado ao verbo principal. As autoras argumentam que,
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se a anexação se desse no léxico, essa sentença seria agramatical, pois anexa ao predicador
considerar um afixo que reduziu um argumento de outro predicador, inteligente, mas a sentença
é gramatical.
Essa proposta parece plausível e fundamentada, e talvez tenhamos que reformular a
concepção de se como um afixo de uma operação morfológica derivacional lexical. Talvez ele
possa ser encarado como um item sintático autônomo, não mais como um afixo. Ainda
mantendo o status não-pronominal, se atuaria como um item funcional, como as preposições
gramaticais e a sua anexação ao verbo (cliticização) seria uma operação da sintaxe superficial
ou até mesmo do componente fonológico, pós-sintático.
Um encaminhamento bastante diferente e possivelmente muito interessante para a
questão do local da afixação do se poderia ser dado pela Morfologia Distribuída, cuja concepção
de gramática é a de um módulo sintático anterior à inserção lexical, que organiza apenas traços
gramaticais abstratos e não faz diferença entre regras “morfológicas” (i.e., que se aplicam dentro
da palavra) ou propriamente sintáticas. Também seria interessante ouvir o que tem a dizer a
gramática construcional de Goldberg (2005), que apaga a distinção nítida entre o léxico e a
sintaxe, encarando, indistintamente, palavras, afixos e estruturas sintáticas como construções,
sempre concebidas como pares de forma e sentido. Obviamente, porém, não há espaço neste
texto para uma discussão teórica como essa.
Em resumo, vimos que, na concepção mais tradicional de gramática como composta de
léxico e sintaxe separados e de uma ordenação desses componentes (o léxico precedendo a
sintaxe), pode-se encarar a anexação do se ao verbo como uma operação morfológica, que se dá
no léxico, ou meramente como uma composição sintática de itens lexicais (com a ulterior
cliticização). Sem poder ainda respondê-la, nosso objetivo foi justamente o de apresentar a
discussão.
Considerações Finais
O raciocínio deste texto seguiu as seguintes linhas. Primeiramente, assumimos que todo
se é não-argumental, caracterizando-se mais como afixo que como pronome. Em seguida,
argumentamos que a sua função gramatical é a de marcar uma redução valencial sofrida por um
verbo. Sugerimos então a hipótese de não haverem operações de reflexivização, medialização
etc, mas uma operação única sofrida pelo verbo, a de redução de um dos seus argumentos. O
que geraria as diferentes interpretações seriam as diferentes composições semântico-lexicais
entre o verbo reduzido, o sentido inerente do afixo se e os argumentos expressos na sintaxe. Por
fim, discutimos o lugar da operação de anexação do se, apontando um possível problema para a
idéia de que anexação é uma derivação lexical. Apontamos também a curiosidade despertada
pela possibilidade de explicação dessa questão em outras perspectivas teóricas.
Obviamente, restam ainda muitas questões a serem tratadas, tais como o tipo de
elemento lingüístico reduzido por se – um argumento semântico, um NP subcategorizado ou um
caso? –, o argumento que é reduzindo em cada construção – interno ou externo? –, o lugar da
regra de anexação do se e a comprovação da hipótese da composição lexical, pela explicitação
da semântica do se e das construções em que ocorre. Respondidas essas questões, ainda restaria
uma discussão mais teórica: a morfologia seria um módulo autônomo, parte do léxico ou caberia
no módulo sintático? Em suma, que teoria morfológica estamos adotando na explicação desse
fenômeno? Neste texto, apenas assinalamos uma preferência lexicalista, entendendo o léxico
como um módulo anterior à sintaxe e no qual se encontra a morfologia.
Este trabalho foi um exercício de reflexão lingüística sobre um fenômeno, a partir de
olhar específico – o da morfologia – e de uma pesquisa bibliográfica. As principais questões
sobre o status argumental do se românico foram levantadas e algumas sugestões de análise
foram delineadas. Uma investigação futura mais aprofundada poderá trazer as amplas
generalizações que buscamos.
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