2607 O STATUS ARGUMENTAL DO CLÍTICO REFLEXIVO SE EM PORTGUÊS Luisa Godoy – UFMG/Capes Introdução Neste texto, partiremos de uma hipótese de pesquisa para desenvolver uma discussão lingüística, como um exercício de raciocínio científico. A hipótese de que trataremos é a de que o clítico se, chamado muitas vezes de reflexivo, é um clítico não-pronominal, pois não tem status argumental na sentença. A discussão será desenvolvida do ponto de vista da morfologia e da sua interface com a sintaxe e a semântica, partindo de trabalhos na literatura que tratam especificamente do tema. Algumas sugestões de análise serão delineadas, ainda como idéias para um trabalho futuro mais aprofundado. Os objetivos deste texto são portanto, em poucas linhas, o de uma revisão bibliográfica comentada, com o levantamento de problemas e questões e a sugestão de soluções. Na seção 2, apresentamos uma fundamentação para a hipótese a ser perseguida e, na seção 3, será feita uma discussão sobre algumas conseqüências da hipótese para a morfologia e suas interfaces, como a função gramatical do se, o tipo de processo que o deriva, a origem das diferentes interpretações nas construções com o clítico e o lugar de sua anexação – no léxico ou na sintaxe. Na seção 4, concluímos o texto. 1. A Hipótese de que Se Não É um Clítico Pronominal Na vasta bibliografia acerca do se (ou si) nas línguas românicas, aparecem diferentes listagens e descrições das construções em que o clítico ocorre. Observemos exemplos de algumas dessas construções citadas na literatura, em português: (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7) João se ama. João e Maria se amam. O grego se traduz facilmente. Vendem-se ovos. Em BH se vê muitos fuscas. O galho se quebrou. João se levantou. Em (1), temos a construção reflexiva, que descreve uma eventualidade na qual um mesmo participante desempenha dois papéis semânticos. Em (2), temos uma construção ambígua entre a leitura reflexiva e a leitura recíproca, na qual os participantes nutrem uma relação de reciprocidade em relação à eventualidade de amar. Em (3), temos a construção chamada de “medial” ou “média”, na qual se generaliza acerca de uma propriedade de certo objeto (Levin, 1993). Nos exemplos em (4) e (5), temos as chamadas “passiva sintética” e “impessoal”, nas quais o argumento agente não está presente. Observe-se que na primeira, mas não na segunda, há concordância do NP (ovos) com o verbo e que a segunda, apesar de considerada uma “incorreção” na norma padrão (regula-se que apenas verbos intransitivos ou intransitivizados podem ser impessoalizados), é bastante comum no português brasileiro falado (Nunes, 1995). Em (6) temos a construção “incoativa” (Grimshaw, 1982, Dobrovie-Sorin, 2006) ou “ergativa” (Nunes, 1995), na qual o argumento interno (paciente ou tema) ocupa a posição de sujeito. Em (7), temos o que Câmara Jr. (1972) denominou de construção “média dinâmica”, na qual o único participante age e sofre a ação que, à diferença da reflexiva, não sai de seu próprio âmbito. Postulam-se ainda outras construções com se, de que não trataremos aqui. Na maioria dessas construções, conforme a maioria dos autores, não é atribuído ao se um status argumental, 2608 ou seja, ele não é visto como um pronome. Por exemplo, para a construção ergativa/incoativa, como em (6), é proposto, conforme Grimshaw (1982), que ela seja fruto de uma operação que apaga o argumento externo (agente) do verbo transitivo e um aloca o argumento interno (tema ou paciente) na posição de sujeito. Estando presente apenas o argumento interno e tendo havido um apagamento do externo, fica evidente que se não é encarado como um argumento na sentença. Porém, ainda que a literatura encare o se da maioria das construções como nãoargumental, há algumas construções que suscitam mais controvérsia. Trata-se, principalmente, da reflexiva/recíproca e da impessoal. Se desejamos perseguir a hipótese de que o se, de maneira geral, é não-argumental, devemos aprofundar um pouco mais a discussão sobre o clítico nas construções reflexiva/recíproca e impessoal. O se de sentenças reflexivas/recíprocas é tradicionalmente encarado como pronominal, paralelamente aos demais pronomes pessoais acusativos (Mioto, 2000, Ilari et al., 1996, Bechara, 2000, Camacho, 2003, para citar alguns). Se se é um argumento, ele recebe papel temático do verbo e exerce uma função gramatical na sentença, fazendo com que o verbo mantenha a sua transitividade inalterada. Kayne (1975), porém, apresenta exemplos claros nos quais os verbos reflexivizados no francês (como em Jean s’aime) se comportam, na verdade, como verbos intransitivos, ao passo que os verbos com clíticos pronominais acusativos (como le em Jean l’aime) se comportam como transitivos. Dentre as evidências que mostra, está a diferente seleção de auxiliar no tempo passado composto. Sentenças com pronomes pessoais acusativos – argumentais – selecionam ter como auxiliar, mas sentenças com se reflexivo/recíproco selecionam estar, como o mesmo verbo: (8) Ils les ont embrassé. ‘Eles os abraçaram’ (9) Ils se sont embrassés. “Eles se abraçaram’ (10) *Ils se ont embrassé. Até hoje, as evidências do francês (além da seleção de auxiliar, a posposição do sujeito e a posição do clítico no complemento de verbos causativos), primeiramente apresentadas por Kayne (1975), são citadas por autores que advogam contra a idéia de o se reflexivo ser argumental nas línguas românicas. Seria desejável, no entanto, encontrar evidências também nas outras línguas românicas, como no português. Segundo Dobrovie-Sorin (2006), Burzio (1986) tenta adaptar as evidências do francês para o italiano, mas o assunto ainda “permanece em aberto” (p. 124). Passemos à construção impessoal como em (5) acima, muito comum em italiano, objeto de muitos trabalhos em lingüística (como Dobrovie-Sorin, 1998 e Raposo e Uriagereka, 1996) e considerada “incorreta” normativamente em português, ainda que amplamente usada no PB. Dobrovie-Sorin (2006) classifica os tipos de se por caso, separando a construção impessoal das demais construções com o clítico, por ser a única construção na qual o NP não concorda com verbo. A autora postula que, na impessoal, se recebe o caso nominativo, ficando o NP com o caso acusativo, enquanto que, nas demais construções com se, o NP é nominativo (nutrindo concordância com o verbo) e se é acusativo. Por causa dessas diferenças de distribuição de casos, a autora postula que, nas construções com se acusativo, o clítico não é argumental, mas na impessoal, em que se recebe caso nominativo, ele é pronominal1. Neste trabalho, não vamos propor uma atribuição de caso ao se, pois, se encaramos, conforme Chomsky (1981), que caso é atribuído localmente, deveríamos entender que se é gerado em posição A, onde receberia caso e, em seguida, movido para a posição anexa (cliticizada) ao verbo. Essa derivação é contra toda a argumentação que vimos fazendo, uma vez que o clítico, não sendo argumental, não pode ser gerado em posição A. Uma segunda opção seria valer-nos de um outro mecanismo, talvez um pouco custoso, como o proposto por Dobrovie-Sorin (2006): o clítico seria gerado já em posição anexa ao verbo, mas possuiria um 1 No caso do se acusativo, então, ele seria como um expletivo, que recebe caso, mas não papel temático. 2609 traço em posição A, que, no entanto, não seria fruto de um movimento de NP. O caso seria atribuído a essa posição em que se encontra o traço e este se ligaria ao se em cadeia. Se não assumirmos uma atribuição de caso ao se, não há necessidade de postular uma diferença radical entre a construção impessoal e as demais construções com o clítico. Não há outras evidências, além do caso, que sugerem que o se impessoal seja pronominal, como afirma a própria Dobrovie-Sorin (2006): “a seleção de auxiliar, a ordem relativa com relação ao clítico objeto e a negação parecem tratar os dois se do mesmo modo” (p. 136, trad. minha). Portanto, vamos considerar, juntamente com Reinhart e Siloni (2005), que, também na impessoal, o se é não-argumental. Em resumo, na maioria das construções, se já é considerado não-pronominal. Em algumas construções mais controversas, encontramos na literatura evidências empíricas e teóricas de que o clítico não é argumental. A hipótese de que o se é, de maneira geral, um elemento não-argumental é, portanto, bastante plausível. 2. Conseqüências da Hipótese para a Morfologia e suas Interfaces Sintática e Semântica Nesta seção, vamos tratar das conseqüências da hipótese de que o se é um elemento não-argumental (em qualquer construção) e propor alguns esboços de explicação. 2.1 Valor Morfológico e Função do Se Se se não é um pronome, qual o seu valor morfológico? Podemos pensar, conforme as análises do se não-argumental de Dobrovie-Sorin (2006), Grimshaw (1982), dentre outros, que ele seja um afixo. Se em todas as construções trata-se de um afixo idêntico em forma, podemos, também, propor que ele seja idêntico em função. Há, na literatura, algumas propostas de unificação da função de se, como, dentre outras, a de Burzio (1986), para quem se é um marcador de inacusatividade, a de Grimshaw (1982), para quem é um afixo-operador lexical que reflexiviza ou medializa um verbo e a de DobrovieSorin (2006), para quem se é uma anáfora não-argumental. No entanto, esses autores excluem da sua generalização alguns tipos de construções, como a passiva e a impessoal (como vimos, na seção anterior, sobre o trabalho da última autora). Reinhart e Siloni (2005) traçam uma generalização mais ampla, abarcando todas as ocorrências de se. Para as autoras, a função de se é ser um redutor de caso. Ou seja, a aplicação de se em uma construção ou em um verbo causa a incapacidade de atribuição de um dos casos abstratos, seja o nominativo, o acusativo ou mesmo o dativo (como em João se deu um presente). Não havendo a possibilidade de atribuição de um caso, um NP não pode ser expresso, pois todo NP tem de ter caso. De fato, em todas as construções com se, observamos que o número de argumentos do verbo está reduzido (tendo sempre em mente que se não é um argumento do verbo). Ou seja, um verbo de n argumentos, quando ocorre com se, apresenta n-1 argumentos. Retomando o exemplo da média dinâmica em (7), por exemplo, temos que, apesar de muitas vezes o verbo levantar ser considerado pronominal, existe a contraparte com um argumento a mais, como em João levantou a cadeira. Podemos, pois, postular que a sua transitividade básica (n) é a transitiva, com dois argumentos, e que, na aplicação de se, um argumento é reduzido (n-1), ficando a construção com um argumento apenas. Poderíamos ainda discutir sobre qual argumento é reduzido em cada construção. Por exemplo, na passiva e na impessoal, é claro que argumento externo é que é reduzido (basta notar os rótulos “passiva” e “impessoal”, que indicam que o argumento externo, agente ou não, não está presente). Há uma grande controvérsia na literatura, porém, com relação à construção reflexiva/recíproca. Para Burzio (1986), dentre outros, o argumento reduzido é o externo, derivando um verbo inacusativo (não possui argumento externo e não pode atribuir caso acusativo). Reinhart e Siloni (2004), por outro lado, argumentam que o verbo derivado é inergativo, fruto de redução do argumento interno. Já no caso do exemplo João se deu um presente, apresentado acima, o argumento reduzido não seria nem o externo, nem o interno, mas o oblíquo, ou preposicionado. Deixando para um trabalho futuro essa discussão e sem poder entrar nas distinções entre argumento semântico, NP sintático e caso, vamos assumir que se é 2610 um afixo que marca a redução de um lugar na transitividade básica de um verbo, seja a redução de um argumento semântico – externo, interno ou oblíquo – ou simplesmente a redução do NP que expressa sintaticamente esse argumento. Se é, enfim, um afixo marcador de uma redução valencial. 2.2 As Operações de Anexação do Se e a Semânticas das Construções com o Clítico Para Grimshaw (1982), cada operação de anexação de se é uma: a passivização é diferente da reflexivização, que é diferente da medialização, etc. Se considerarmos todas as várias construções com se listadas na literatura, dentro dessa proposta, deveria haver uma operação diferente para cada anexação de se, o que é bastante custoso. Reinhart e Siloni (2005) sugerem uma solução: que se desvincule a função de se (marcar uma redução valencial) da operação que altera a estrutura argumental do verbo, entendendo a anexação de se como uma conseqüência da operação, e não como parte integrante da mesma. Assim, haveria a operação de reflexivização, por exemplo, que reduz a valência de um verbo; apareceria, então, a anexação de se, marcando sintaticamente a redução. Na operação de medialização, também haveria redução de um argumento e a mesma anexação do se se daria em seguida. Não seria necessário, portanto, como na proposta de Grimshaw (1982), postular ses diferentes, cada um pertencendo a cada operação, mas apenas um, cuja função é mais geral, a de marcar redução valencial. Se, no entanto, a função de se fosse apenas a de marcar reduções, teríamos de explicar porque o clítico não aparece em toda e qualquer redução valencial da língua, como, por exemplo, nas sentenças com verbos transitivos intransitivizados (como em Eu comi muito)2. Se parece ser mais que apenas um afixo marcador de redução; ele parece ter um sentido. Poderíamos pensar que é na composição do verbo com o se e com seus argumentos (e até com os adjuntos) que se criam os diferentes sentidos da reflexivização, da medialização, da passivização etc. Talvez não seja necessário postular uma operação específica de reflexivização, por exemplo, como propõem Reinhart e Siloni (2005). Verifica-se que a reflexividade é um sentido que pode ser expresso de diferentes formas em português brasileiro: (11) (12) (13) João ama a si próprio. João ama ele mesmo. João se ama. Tanto em (11) quanto em (12) a idéia de reflexividade é dada composicionalmente, na combinação do verbo, seus argumentos e das expressões anafóricas si próprio e ele mesmo. Assim, é possível pensar que a idéia de reflexividade em (13) também é dada composicionalmente, da combinação do verbo, cuja valência foi reduzida, de sua grade temática, mais o sentido do afixo se e do argumento. A idéia de que um item funcional pode ter sentido já está presente nos trabalhos de Berg (2005), Corrêa e Cançado (2006) e Godoy (2008), todos sobre as preposições no PB. Berg (2005), em sua tese de doutorado, lança a hipótese de que mesmo as preposições que não atribuem papel temático, servindo apenas para atribuir caso a um NP, não são vazias de sentido lexicalmente. Corrêa e Cançado (2005) estendem essa idéia na descrição dos verbos de trajetória, mostrando que, apesar de o papel temático do argumento interno de um verbo como vir ser acarretado pelo próprio verbo (uma visão diferente das análises tradicionais, que propõem que vir é intransitivo), a preposição que o sucede (vir de/ para/ em/ a) contribui para o sentido geral da sentença, especificando a direção do movimento descrito pelo verbo. Godoy (2008) também aponta casos de verbos transitivos indiretos nos quais a preposição que encabeça o argumento interno especifica alguma faceta do sentido da relação de predicação do verbo com seu argumento. Ou seja, itens funcionais como as preposições funcionais de verbos transitivos indiretos, apesar de não predicarem, podem contribuir na composição semântica da sentença, 2 Uma análise alternativa à da intransitivização é a seguinte: o verbo transitivo não sofreria redução valencial, e o seu argumento interno continuaria sendo implicitamente interpretado, estando presente na sintaxe sob a forma de um pro. 2611 pois podem ter sentido. O mesmo pode ser dito em relação ao se: mesmo se o encararmos como destituído de status argumental, exercendo a função gramatical de marcar redução de valência, é possível que ele tenha sentido, contribuindo para a composição semântica da sentença em que ocorre. Em resumo, nesta seção, discutimos sobre como tratar a relação entre o se, encarado como redutor valencial (ou marca de redução valencial), e as diferentes construções em que ocorre. Vimos que é mais parcimonioso separar a função de se das operações que alteram a estrutura argumental dos verbos. A anexação de se é sempre a mesma, ocorrendo sempre no mesmo contexto (o de uma redução valencial); as operações é que são diferentes, reduzindo a valência de um verbo de diferentes formas. Ponderamos que talvez nem seja necessário postularem-se essas operações gramaticais, pois é possível encarar a semântica das construções com se como fruto de uma composição léxico-semântica, entendendo que se tem sentido, apesar de ser um item não-argumental. Ou seja, a nossa proposta para um trabalho futuro difere de Reinhart e Siloni (2005) em dois pontos: i) o clítico se será encarado como contendo um sentido semântico inerente, além de ter a função gramatical de marcar uma redução valencial; e ii) as interpretações medial, reflexiva, recíproca, passiva etc serão tratadas composicionalmente, eliminando as operações gramaticais de reflexivização, medialização etc. Será necessário postular qual é o sentido inerente do clítico se e explicitar como o sentido do verbo e dos argumentos determinam composicionalmente cada interpretação. Essa faceta semântica da questão será investigada em Godoy (em prep.). 2.3 O lugar da Afixação de Se Finalmente, vamos tratar do lugar da afixação de se: no léxico ou na sintaxe? Grimshaw (1982), partindo das idéias da Lexical-Functional-Grammar, teoria a que se filia, afirma que as operações de alternância argumental se dão todas no léxico. Assim, por exemplo, haveria uma operação chamada “reflexivização”, que se aplicaria sobre a entrada lexical de um verbo, derivando um novo verbo de sentido reflexivo, com a adição do afixo se. Retomando a linha de pensamento que vimos fazendo, em vez de postular uma operação para cada afixação de se, podemos pensar que há uma única operação (cujo nome devemos ainda propor), que anexa o afixo se a um verbo, reduzindo a sua valência e alterando o seu sentido. Essa operação pode ser encarada como uma derivação, por suas características: mudança de classe e alteração de sentido. Apesar de não alterar a classe de palavras, pois deriva um verbo de outro, a redução de valência vai alocar o verbo em uma outra classe de transitividade. Esse novo verbo terá um sentido (que deve ser ainda postulado) e, a partir da sua composição com os argumentos e adjuntos na sintaxe é que as interpretações medial, reflexiva, recíproca etc serão inferidas. Essa abordagem composicional pode explicar porque há variação na listagem das construções com se na literatura, porque há tantas construções com se e porque algumas delas são ambíguas (como em (2)): se a interpretação final depende da composição, são inúmeras as composições possíveis. Em uma abordagem da questão na qual existem várias operações diferentes, uma para cada interpretação, essas questões sobre a multiplicidade de sentidos das construções com se não seriam bem explicadas. Adotando uma abordagem lexicalista como a de Grimshaw (1982), diremos, portanto, que essa operação de anexação do se, com a redução valencial na estrutura argumental de um verbo – uma operação de derivação morfológica – se dá no léxico. Na sintaxe, esse novo verbo se compõe com outros itens e, no módulo semântico, a sentença é interpretada. Esse esboço de proposta lexicalista para a anexação do se românico encontra um problema na argumentação de Reinhart e Siloni (2005). Segundo as autoras, a reflexivização é, nas línguas românicas, uma operação sintática, não lexical. Há uma evidência forte para isso, em sentenças cujo complemento é uma small clause: (14) Ele se considera inteligente. Na sentença acima, o argumento reduzido por se é o sujeito da small clause (Ele considera ele inteligente). No entanto, o clítico está anexado ao verbo principal. As autoras argumentam que, 2612 se a anexação se desse no léxico, essa sentença seria agramatical, pois anexa ao predicador considerar um afixo que reduziu um argumento de outro predicador, inteligente, mas a sentença é gramatical. Essa proposta parece plausível e fundamentada, e talvez tenhamos que reformular a concepção de se como um afixo de uma operação morfológica derivacional lexical. Talvez ele possa ser encarado como um item sintático autônomo, não mais como um afixo. Ainda mantendo o status não-pronominal, se atuaria como um item funcional, como as preposições gramaticais e a sua anexação ao verbo (cliticização) seria uma operação da sintaxe superficial ou até mesmo do componente fonológico, pós-sintático. Um encaminhamento bastante diferente e possivelmente muito interessante para a questão do local da afixação do se poderia ser dado pela Morfologia Distribuída, cuja concepção de gramática é a de um módulo sintático anterior à inserção lexical, que organiza apenas traços gramaticais abstratos e não faz diferença entre regras “morfológicas” (i.e., que se aplicam dentro da palavra) ou propriamente sintáticas. Também seria interessante ouvir o que tem a dizer a gramática construcional de Goldberg (2005), que apaga a distinção nítida entre o léxico e a sintaxe, encarando, indistintamente, palavras, afixos e estruturas sintáticas como construções, sempre concebidas como pares de forma e sentido. Obviamente, porém, não há espaço neste texto para uma discussão teórica como essa. Em resumo, vimos que, na concepção mais tradicional de gramática como composta de léxico e sintaxe separados e de uma ordenação desses componentes (o léxico precedendo a sintaxe), pode-se encarar a anexação do se ao verbo como uma operação morfológica, que se dá no léxico, ou meramente como uma composição sintática de itens lexicais (com a ulterior cliticização). Sem poder ainda respondê-la, nosso objetivo foi justamente o de apresentar a discussão. Considerações Finais O raciocínio deste texto seguiu as seguintes linhas. Primeiramente, assumimos que todo se é não-argumental, caracterizando-se mais como afixo que como pronome. Em seguida, argumentamos que a sua função gramatical é a de marcar uma redução valencial sofrida por um verbo. Sugerimos então a hipótese de não haverem operações de reflexivização, medialização etc, mas uma operação única sofrida pelo verbo, a de redução de um dos seus argumentos. O que geraria as diferentes interpretações seriam as diferentes composições semântico-lexicais entre o verbo reduzido, o sentido inerente do afixo se e os argumentos expressos na sintaxe. Por fim, discutimos o lugar da operação de anexação do se, apontando um possível problema para a idéia de que anexação é uma derivação lexical. Apontamos também a curiosidade despertada pela possibilidade de explicação dessa questão em outras perspectivas teóricas. Obviamente, restam ainda muitas questões a serem tratadas, tais como o tipo de elemento lingüístico reduzido por se – um argumento semântico, um NP subcategorizado ou um caso? –, o argumento que é reduzindo em cada construção – interno ou externo? –, o lugar da regra de anexação do se e a comprovação da hipótese da composição lexical, pela explicitação da semântica do se e das construções em que ocorre. Respondidas essas questões, ainda restaria uma discussão mais teórica: a morfologia seria um módulo autônomo, parte do léxico ou caberia no módulo sintático? Em suma, que teoria morfológica estamos adotando na explicação desse fenômeno? Neste texto, apenas assinalamos uma preferência lexicalista, entendendo o léxico como um módulo anterior à sintaxe e no qual se encontra a morfologia. Este trabalho foi um exercício de reflexão lingüística sobre um fenômeno, a partir de olhar específico – o da morfologia – e de uma pesquisa bibliográfica. As principais questões sobre o status argumental do se românico foram levantadas e algumas sugestões de análise foram delineadas. Uma investigação futura mais aprofundada poderá trazer as amplas generalizações que buscamos. Referências 2613 BECHARA, E. (2000) Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna. BERG, M. (2005) O comportamento semântico-lexical das preposições do PB. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. BURZIO, L. (1986) Italian syntax: a government-binding approach. Dordrecht: Reidel. CAMACHO, R. G. (2003) Em defesa da categoria de voz média no português. DELTA, v. 19, n. 1, p. 91-122. CÂMARA Jr., J. M. (1972) Princípios de lingüística geral. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica. CHOMKSY, N. (1981) Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris. CORRÊA, R.; CANÇADO, M. (2006) Verbos de trajetória no PB: uma descrição sintáticosemântica. 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