1 título do capítulo

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1
MODELOS DE ESTADO: UMA NECESSÁRIA TRAJETÓRIA NA
CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO
Elaine Falcão Silveira1
RESUMO
A importância de se retomar os modelos de Estado, sua conformação política, sócioeconômica e jurídica, se impõe porque é nesse contexto que determinada atividade
ganha relevância na sociedade e é erigida como serviço público. A pesquisa busca
alcançar tais pressupostos com o fim de relacionar esses modelos estatais e o seu
papel de prestador de serviços públicos na sociedade. Torna-se imprescindível o
estudo do surgimento da noção, bem como da sua teorização, a fim de se
caracterizar os seus elementos informadores, principalmente na Escola francesa.
Consolidadas essas noções preliminares, o enfoque será dado na doutrina clássica
e atual brasileira para se investigar a recepção da doutrina francesa de serviço
público. Confirmadas as premissas lançadas e a análise das mutações do instituto
sofridas pelas crises da concepção do Estado, busca-se uma configuração atual da
noção do serviço público na doutrina pátria.
PALAVRAS
CHAVE:
modelos
de
Estado;
direitos
fundamentais;
reforma
administrativa; serviço público.
INTRODUÇÃO
A importância de se retomar os modelos do Estado, seus limites de atuação
na sociedade, bem como as concepções que o informam como um ente histórico,
jurídico, cultural, ideológico e sócioeconômico, se impõe como pressuposto para um
repensar da noção do serviço público. Sabe-se que é esse contexto que faz com
que o Estado eleja determinada atividade como serviço público e positive na sua
ordem jurídica a sua conformação, de modo a justificar a sua atuação na sociedade
como prestador de tal atividade.
1
Acadêmica de Direito das Faculdades Integradas do Brasil – Unibrasil, orientada pela
Profa. Ms. Adriana da Costa Ricardo Schier.
2
1 ESTADO MÍNIMO E SERVIÇO PÚBLICO
Compreender a forma pela qual cada modelo de Estado2 consagra o serviço
público,3 no âmbito político bem como jurídico, impõe como requisito fundamental
um enfoque a partir da compreensão do Estado de Direito. Isso porque, embora não
se ignore as organizações políticas antigas,4 tampouco, o oferecimento de alguns
serviços essenciais desde a Antigüidade, na época da Roma Republicana,5
considera-se que somente com o advento do Estado Liberal foram lançados os
instrumentos políticos e jurídicos à compreensão e desenvolvimento da noção de
serviço público ora adotada.
Para tanto, não se pretende o esgotamento da Teoria do Estado, mas sim
fornecer uma moldura ou pano de fundo para a monografia, que no âmbito deste
capítulo restringe-se ao serviço público prestado como atividade Estatal em cada
modelo de Estado que se pretende analisar. Afinal, “cada povo diz o que é serviço
público em seu sistema jurídico. A qualificação de uma dada atividade como serviço
público reflete ao plano da concepção do Estado sobre o seu papel. É o plano da
escolha política, que pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na
jurisprudência e nos costumes vigentes em um tempo histórico.”6
2
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7.
ed. Coimbra: Almedina, [2003?]. p. 89.
3
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 18. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 628; JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2006. p. 487.
4
GUGLIELMI, Gilles J.; KOUBI, Geneviève. Droit de service public. 2. ed. Paris:
Montchrestien, 2007. p. 21.
5
Idem.
6
GROTTI, Dinorá Adelaide Mussetti. O Serviço Público e a Constituição Brasileira de
1988. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 87. No mesmo sentido afirma Raquel Dias da SILVEIRA que “o
caráter cambiante da noção de serviço público está, pois, diretamente relacionado à sua identificação
com os interesses definidos como públicos pelo Estado, em determinado momento econômico,
histórico e social.” SILVEIRA, Raquel Dias da. O repensar da noção de serviço público sob o
paradigma da realidade brasileira.In: FERRAZ, Luciano; MOTTA, Fabrício. (Coords.). Direito público
moderno. Homenagem ao Professor Paulo Neves de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 97117; p.100. Cármen Lúcia Antunes ROCHA também expõe: “o que é serviço público cada povo o diz
em seu sistema jurídico, que é onde se definem as atividades como tal consideradas.” ROCHA,
Cármen Lúcia Antunes Rocha. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo:
Saraiva, 1999. p. 507. Ressalta Odete MEDAUAR que, “saber quando e por que uma atividade é
considerada serviço público remete ao plano da concepção política dominante, que pode estar fixada
na Constituição do país, na lei e na tradição.” MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno.
12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 314.
3
Sob o prisma histórico no qual foi desencadeado o movimento político que
culminou no Estado Liberal, tem-se a insegurança causada pela falta de
previsibilidade decorrentes das ações arbitrárias do monarca. Como bem aponta
Jorge Reis NOVAIS, tratava-se de um contexto “em que o entendimento dos
conceitos de soberania e jus politiae impeliam o monarca ao livre desenvolvimento
dos seus desígnios e à intromissão em todas as esferas da vida social e privada.”7
Desse cenário, no qual a falta de liberdade era um problema diante da
realidade Estatal, emergiu como resposta uma reação política e cultural da classe
burguesa que culminou nas revoluções liberais, que consistiram “em instrumento de
luta política da burguesia contra o Estado absolutista centralizador e os resquícios
feudais e estamentais.”8
A classe em ascensão, embora favorecida com a política mercantilista,9 não
dispunha de uma esfera de liberdade em face do monarca, e assim, passou a
defender um espaço privado de direitos e a conseqüente racionalização do Estado,
como bem pondera Jorge Reis NOVAIS. 10
O processo político desencadeado pela burguesia, que até então era a
classe dominada, despertou o povo ao fazer suas reivindicações. A burguesia
generalizou suas ideias como hegemônicas e apresentou seu projeto político
“doutrinariamente como ideais comuns a todos os componentes do corpo social.”11
A classe burguesa forneceu o substrato sociológico ao Estado de Direito,
com fundamento na necessidade de um Estado racional, que previsse uma esfera
7
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito: do Estado
Liberal ao Estado Social e Democrático de Direito. Coimbra: Coimbra, 1987. p. 30.
8
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos paradigmas em face da
Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 192.
9
Para José Paschoal ROSSETTI, “O comércio internacional transformou-se nesse período
em um dos mais poderosos instrumentos da política econômica. Os Estados ambicionavam o poder e
quando não possuíam metais preciosos deveriam recorrer ao comércio como meio para acumulá-los:
o excesso das exportações sobre as importações deveria ser recebido não em mercadorias, mas em
lingotes de ouro e prata. A essas práticas econômicas atribuiu-se a denominação geral de
mercantilismo.” ROSSETTI, José Paschoal. Introdução à Economia. 15. ed. São Paulo: Atlas, 1993.
p. 98.
10
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 31.
11
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8 ed. São Paulo: Malheiros,
2007. p. 43. Para Clèmerson Merlin CLÈVE “por trás da formulação e defesa dos direitos formais,
aparece uma certa teoria do Estado, que defende a participação popular nos negócios públicos; que
reclama a democracia (formal) contra a autocracia.” CLÈVE, Clèmerson Merlin. Temas de Direito
Constitucional. São Paulo: Acadêmica, 1993. p. 123.
4
privada de direitos indisponíveis, mediante uma limitação jurídica, como contraponto
ao ancien regime.
Esse movimento político-cultural, teorizado supostamente em nome de toda
a sociedade, no contexto do ideário da Revolução Francesa,12 importou no
paradigma do Estado Liberal, assente na racionalização voltada à esfera
assecuratória de liberdades e direitos fundamentais do homem. Acerca da sua
realização histórica.13
O Estado liberal correspondeu ao triunfo da ideologia burguesa, uma vez
que passou a garantir um núcleo de direitos fundamentais interpretados “à luz dos
valores supremos da iniciativa privada, da segurança da propriedade e das
exigências
de
calculabilidade
requeridas
pelo
funcionamento
do
sistema
capitalista”.14
Nesse sentido, a limitação do Estado foi operada para o fim de garantir os
direitos e as liberdades públicas, nos moldes da expectativa burguesa, que
finalmente consagrava um espaço de autonomia em face do Estado.
15
Cabe ressaltar, ainda, que esses direitos, concebidos hodiernamente como
de 1.ª dimensão,16 no âmbito do Estado Liberal, são os entendidos como “direitos do
homem individual, isolado e abstracto, tais como a liberdade de consciência, a
liberdade pessoal, a inviolabilidade do domicílio, o sigilo de correspondência, a
propriedade privada.”17
É nesse contexto que a adjetivação liberal do Estado de direito encontrou
fundamento: na tradução dos interesses da classe burguesa dominante bem como
em decorrência desses, na teoria clássica liberal que previa a separação entre o
Estado e a economia. Assim, com Adam SMITH, acreditava-se que “o bem-estar
12
Jorge MIRANDA considera que o ”ponto culminante de viragem é a Revolução Francesa
(1789 – 1799).” MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense,
2007. p. 44.
13
Ibidem, p. 47.
14
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 68.
15
Ibidem, p. 74.
16
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
p. 46.
17
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 74.
5
coletivo seria conseguido pela capacidade empresarial dos detentores dos meios de
produção e não através da interferência estatal no meio econômico.”18
Nesse sentido, Vital MOREIRA, ao se referir ao modelo clássico liberal
pondera que
O crescimento da economia e o maior bem-estar da sociedade assentam no livre
empreendimento privado, na auto-determinação individual, na procura da maior vantagem,
na defesa do interesse pessoal. É do livre desenvolvimento das faculdades pessoais,
movidas pelo interesse (: pelo lucro), por parte de todos e de cada um dos membros de uma
19
sociedade, que resulta automaticamente a máxima vantagem do conjunto da sociedade.
Convém, contudo, salientar que essa ideal separação do Estado e da
Economia não se aperfeiçoou, na prática, de forma absoluta, somente na medida em
que satisfazia os interesses da burguesia, eis que algumas atividades não lhe
aprouveram. Como decorrência desse sistema liberal, Adam SMITH, “propôs, aliás,
que o orçamento do Estado fosse apenas para a manutenção de serviços públicos
indispensáveis.”20
Observa-se dessa assertiva que desde Adam SMITH já se reconhecia uma
esfera de serviços públicos exclusivos do Estado, mesmo que fosse mínima. Inferese daí que a prestação desses serviços públicos, pelo Estado, naquele modelo
Liberal, detém um caráter residual, na medida em que são úteis aos interesses
dominantes e quando não lucrativas aos empresários da iniciativa privada. De
qualquer forma, a atividade de serviço público é reduzida na medida em que
prevalece a proteção do espaço da iniciativa privada.
Situação essa bem evidenciada com Adam SMITH, que ao discorrer sobre
as funções do Estado, impõe limites na sua intervenção na já consagrada iniciativa
privada.21 como se vê:
(...) de acordo com o sistema da liberdade natural o soberano tem somente três funções a
desempenhar: em primeiro lugar, proteger, tanto quanto possível, cada um dos membros da
sociedade da injustiça ou da opressão de qualquer outro membro, isto é, estabelecer uma
rigorosa administração da justiça; e, em terceiro lugar, criar e manter certos serviços
18
19
38.
20
21
ROSSETTI, José Paschoal. Op. cit., p. 337.
MOREIRA, Vital. A Ordem Jurídica do Capitalismo. 3. ed. Coimbra: Centelho, 1978, p.
Ibidem, p. 337.
Ibidem, p. 153.
6
públicos e certas instituições públicas, que jamais sejam susceptíveis de interessarem
22
qualquer indivíduo, ou um pequeno número de indivíduos na sua criação.
Bem por isso, inicialmente as prestações do Estado Liberal são somente
aquelas indispensáveis ao desenvolvimento da sociedade, fora do âmbito da
possibilidade de exploração econômica, tais como infraestruturas, vias férreas e
pontes. 23
Essas atividades, embora interessantes à classe burguesa no que tangia
ao incremento dos seus negócios, necessitavam de grandes investimentos e, por
isso, a sua atribuição ao Estado. Tal ideia fundamenta-se em Eros Roberto GRAU,
que afirmou “Em outros termos, não existiria o capitalismo sem que o Estado
cumprisse a sua parte, desenvolvendo vigorosa atividade econômica, no campo dos
serviços públicos. O Estado desempenha, marcadamente, função de integração
capitalista como prestador de transporte público de carga – aí a constituição do
sistema de transporte ferroviário e, após, marítimo.”24
Ainda, quanto à prestação de serviços pelo Poder Público no Estado Liberal,
Alexandre Santos de ARAGÃO, pondera que, como o fim das corporações de ofício,
o Estado teve que se organizar com um certo aparato com o fim de suplementar as
atividades prestadas por esses grupos intermédios.25
Veja-se, por exemplo, o papel que a Igreja desempenhava até o advento do
Estado Liberal. Com efeito, suas ações estavam voltadas aos miseráveis, cuidando
e atenuando o sofrimento. Estavam direcionados para aqueles que não dispunham
de recursos, e as incursões revelavam a carência de atividades públicas. Essas
ações voltavam-se à prevenção de doenças e compreendiam até operações de
esvaziamento de pântanos, local considerado como foco de diversas doenças à
época. Visava-se, também, insuflar o senso coletivo da necessária higienização. 26
22
Idem.
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 55. É o que mais tarde fundamenta a lógica do princípio
da subsidiariedade. GABARDO, Emerson. O jardim e a praça: para além do bem e do mal.
Disponível
em:
<http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/19053/1/TESE_Emerson_Gabardo_Correta.pdf>.
Acesso em: 05/06/2009.
24
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 24.
25
ARAGÃO, Alexandre Santos. Direitos dos Serviços Públicos. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2008. p. 33-34.
26
GUGLIELMI, Gilles J.; KOUBI, Geneviève. Op. cit., p. 27.
23
7
Com a expropriação pelo Estado dessas prestações em face do interesse
burguês pela negação de qualquer tipo de organização privada, Alexandre Santos
de ARAGÃO, comentando autores da época, ilustra a preocupação que admitia,
mesmo no contexto da liberalização da economia, a atuação do Poder Público
naqueles casos em que se tinha como desagradável a presença dos pobres, bem
porque considerava-se que essa situação de falta de higiene favorecia o contágio de
doenças.27
Note-se que a preocupação era com o perigo social que representava o risco
de doenças, por isso a “drenagem dos pântanos, a abertura de canais, favorecendo
a prevenção de epidemias”,28 assunto que incomodava os burgueses e por isso,
“proteger a saúde das camadas mais pobres, modificar-lhes os hábitos de higiene,
passa a ser um objetivo nacional, pois simultaneamente se estaria lutando contra a
miséria que ameaça a ordem pública.”29
Nesse sistema liberal, em que o Estado tinha como função principal a
proteção dos direitos de liberdade e só podia intervir na economia em caráter
residual, nas demandas que não geravam lucros ou, ainda, nas atividades até então
tomadas como assistencialistas, havia a necessidade de uma técnica que limitasse
juridicamente os seus poderes e funções.
Essa ideia se concretiza através da teoria da tripartição do poder. Bem por
isso, “a filosofia política do liberalismo, preconizada por Locke, Montesquieu e Kant,
cuidava que, decompondo a soberania na pluralidade dos poderes, salvaria a
liberdade.”30 Essa doutrina previa a repartição do poder31 e tinha como técnica-
27
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 34.
DALLARI, Sueli Gandolfi. Políticas de Estado e políticas de governo: o caso da saúde
pública. In: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas reflexões sobre o conceito jurídico.
São Paulo: Saraiva, 2008. p. 243-264; p. 249.
29
Ibidem, p. 250.
30
BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 45.
31
Para Clèmerson Merlin CLÉVE “A proposta do Estado Constitucional era de limitar o
poder político, mantendo-o concentrado. E isso ocorreria da seguinte forma. Primeiro, tratava-se de
organizar o político de tal modo que o poder se encarregasse de controlar o próprio poder. Aqui,
sustenta-se o núcleo da teorização conducente à separação dos poderes. Depois, deslocando a
soberania das mãos do monarca para as mãos do povo ou da nação. (...) O que a doutrina liberal
clássica pretende chamar de separação de poderes, todavia, não poderia consistir numa estratégia
de partição de algo, por natureza uno e indivisível. (...) A separação de poderes corresponde a uma
separação de poderes corresponde a uma divisão de tarefas estatais, de atividades entre distintos
órgãos, e aí sim, autônomos órgãos assim denominados de poderes.” CLÈVE, Clèmerson Merlin.
Atividade legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 26.
28
8
organizativa a tripartição de poderes, sendo que a cada um caberia uma função
própria, que correspondia aos órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário. Claro
está que essa divisão de poderes fazia parte de uma filosofia que visava pulverizar o
poder que estava nas mãos do monarca,32 como técnica de organização
indispensável à proteção dos direitos liberais.33
Na vertente da política liberal, a separação dos poderes representou muito
mais que a pulverização do poder, pois embora formalmente correspondesse a um
equilíbrio de forças, acabou por concretizar a ascensão da classe burguesa, agora
no aparelho do Estado, notadamente no Poder Legislativo. Esse domínio foi possível
pelo esquema do voto censitário. Nesse sentido, bem ilustrou Jorge Reis NOVAIS
que “a divisão de poderes do Estado de Direito liberal não reflecte um equilíbrio
abstracto e neutral, antes traduzindo o predomínio do <<poder supremo>> (...), ou
seja, do corpo legislativo e, sobretudo, da força social que progressivamente o
hegemoniza – a burguesia.”34
Por essas razões, José Joaquim Gomes CANOTILHO expõe que o Estado
liberal permitiu “a ascensão da burguesia através da influência parlamentar.”35 Vale
ressaltar, que “ao fazer coincidir a regra do acesso dos particulares às funções
políticas com o esquema censitário, o constitucionalismo ratificava, sob a forma
jurídica, um status conquistado economicamente.”36 (grifos do autor.)
32
De acordo com José Afonso da SILVA, tratou-se “como se vê, de uma forma de
organização jurídica das manifestações do Poder” Isso porque, “vale dizer, portanto, que o poder
político, uno, indivisível e indelegável, se desdobra e se compõe de várias funções, fato que permite
falar em distinção das funções, que fundamentalmente são três: a legislativa, a executiva e a
jurisdicional. (...) A divisão de poderes consiste em confiar cada uma das funções governamentais
(legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes, que tomam os nomes das respectivas
funções, menos o Judiciário (órgão ou poder legislativo, órgão ou poder executivo e órgão ou poder
judiciário). Se as funções forem exercidas por um órgão apenas, tem-se concentração de poderes.“
(grifos do autor.) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 108-109. Já para Dalmo de Abreu DALLARI “embora seja clássica a
expressão separação de poderes, que alguns autores desvirtuam para divisão de poderes, é ponto
pacífico que o poder do Estado é uno e indivisível. É normal e necessário que haja muitos órgãos
exercendo o poder soberano do Estado, mas a unidade do poder não se quebra por tal circunstância.
Outro aspecto importante a considerar é que existe uma relação muito estreita entre as ideias de
poder e de função do Estado, havendo mesmo quem sustente que é totalmente inadequado falar-se
numa separação de poderes, quando o que existe de fato é apenas uma distribuição de funções.”
(grifos do autor.) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 16. ed. São
Paulo: Saraiva, 1991. p. 181.
33
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 83.
34
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 86.
35
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p.109.
36
Ibidem, p. 110.
9
Para completar o quadro de hegemonia burguesa, na perspectiva da
estrutura do Estado Liberal exsurge o princípio da legalidade, elemento fundamental
para consagrar a fórmula do Estado de Direito. Isso porque, sem o cumprimento das
leis, não há como se falar em segurança jurídica, na qual assentou a comunidade
liberal37, ideia central para o desenvolvimento do capitalismo.
Nesse ambiente, surge no Liberalismo, a ideia de Constituição. Nos moldes
liberais, a Lei fundamental foi concebida especialmente para o fim da limitação do
Estado, mediante a regulação do poder, por isso era dirigida ao Poder Público. A
sociedade dependia, ainda, de uma legislação infraconstitucional, por isso
Clèmerson Merlin CLÈVE pontua que “A Constituição não passava de juridicização
da política tal como compreendida pela burguesia. A Constituição era do Estado. A
sociedade seria regida por outra sorte de domínio normativo, especialmente o direito
privado elaborado a partir da noção de autonomia da vontade.“ 38
Sobre o tema, pontua Paulo Ricardo SCHIER quanto a estrutura da
Constituição no Estado Liberal que
(...) o referente da Constituição é o Estado (...); - o telos é fundamentalmente a
racionalização e limitação do poder; - a força normativa da constituição traduz-se na sua
pretensão de regular juridicamente o estatuto organizatório dos órgãos do Estado separado
da sociedade (dualismo Estado-sociedade); - estrutura essencialmente negativa, pois (i)
conforma a sociedade negativamente através do estabelecimento de limites ao poder
estatal e (ii) consagra direitos, liberdades e garantias essencialmente concebidos como
direitos de defesa (direitos negativos) do cidadão perante o Estado (o cidadão apenas pode
39
exigir abstenção do Estado; excepcionalmente pode exigir intervenção). (grifos do autor.)
Veja-se que, nesse contexto, não se atribuía à Constituição a função de
concretizar
os
direitos
fundamentais
–
ao
contrário,
numa
perspectiva
abstencionista, a Carta Magna impunha ao Estado um non facere para manter a
esfera de liberdade e autonomia do indivíduo. Os direitos fundamentais aparecem
tão somente em uma perspectiva de defesa.40
Tanto assim, que a preocupação com a garantia jurídica da liberdade e
igualdade estava presente na mentalidade burguesa. Note-se que foi a partir da
37
MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 215.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito
brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 18.
39
SCHIER, Paulo Ricardo. Direito constitucional: anotações nucleares. Curitiba: Juruá,
2008. p. 54-55.
40
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 46.
38
10
ideia de representação popular no Parlamento que se resolveu o problema da
igualdade no Estado liberal, pelo menos do ponto de vista formal. Isso porque, se a
lei resulta da vontade geral41 – expressa no Poder Legislativo -, também não haveria
de falar-se em arbitrariedades, afinal a lei não era mais “entendida como expressão
incondicionada da vontade política do soberano.”42
Por essas razões, fala-se em supremacia da lei,43 que, enquanto
representação da vontade geral, limita a atuação do Poder Público na sua atividade
(princípio da legalidade estrita)44 e admite a atuação do Judiciário tão-somente na
sua aplicação estrita – entendimento calcado nas Escolas Positivistas.45
Não por outro motivo, há quem denomine o Estado liberal de Estado
Legislativo, justamente em face da “subordinação do executivo que na vinculação do
poder judicial aos comandos da lei.”46 A busca pela segurança jurídica para que o
41
O art. 6.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelece que “a lei é a
expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou por seus
representantes, para a sua formação.”
42
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 87.
43
Isso porque “na vertente liberal, lei implica separação de poderes e primado dos direitos
individuais.” MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 243.
44
Para Jorge MIRANDA “o princípio da legalidade (corolário do império da lei) constituir-seia, assim, como eixo decisivo do Estado Liberal e da específica divisão de poderes que este
consagrou, o que proporcionaria a sua ulterior identificação com o próprio conceito de Estado de
Direito. Há que verificar, também, que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, trata do
princípio da legalidade em relação aos homens no art. 4.º, que diz “tudo o que não está proibido pela
lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser obrigado a fazer o que ela não ordena.” Ibidem, p. 9394.
45
Para Écio Oto Ramos DUARTE e Susanna POZZOLO, “o modelo de Estado de Direito é
constituído em torno do princípio da legalidade, da secularização do jurídico como coisa à parte da
justiça, e a conformação hierárquica que transmite validade às normas do sistema. Sob essa leitura, o
Estado de Direito vive uma única dimensão legalista. Com o termo “legalista” não se indica
simplesmente uma doutrina formalista qualquer de interpretação e de aplicação do direito positivo,
mas sim uma ideologia de legalidade que a identifica com a aplicação da lei, com separação de
poderes.” DUARTE, Écio Oto Ramos; POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e Positivismo
Jurídico. São Paulo: Landy, 2006. p. 104. Já para Jorge Reis NOVAIS, “a absolutização do princípio
da legalidade como valor em si e a proclamação incondicional do dever de obediência às leis
positivas – que, no fundo, constituem os traços caracterizadores da ideologia do positivismo e
formalismo jurídicos – não podem deixar de ser entendidos como cúmplices daquela perversão dos
ideais da limitação jurídica do Estado, na medida em que funcionam como objectivamente como
instrumentos de legitimação de toda ordem vigente, enquanto ordem jurídica estabelecida.” NOVAIS,
Jorge Reis. Op. cit., p. 126-127. Nesse contexto, para Jorge MIRANDA, “a lei tende a dominar todo o
ordenamento jurídico estatal e chega a querer-se reduzir a tarefa dos juristas à sua exegese.”
MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 243.
46
Para Jorge Reis NOVAIS significa a supremacia do Poder Legislativo em face da
“subordinação do executivo quer na vinculação do poder judicial aos comandos da lei.” NOVAIS,
Jorge Reis. Op. cit., p. 90.
11
Poder Executivo não fizesse investidas arbitrárias na esfera privada implicou na
vinculação de toda a atividade da Administração à lei.47
Decorre daí que o princípio da legalidade vem não só a proteger a esfera
privada da ingerência arbitrária do Estado, bem como cria a possibilidade de que os
cidadãos venham a participar formalmente do controle, uma vez que “(...) titulares de
direitos, possam opô-los ao próprio Estado.”,48 mesmo que inicialmente restringido à
esfera do contencioso.49 A estrutura montada nesse período, apresentava-se, como
um aparato formal.
A burguesia no corpo legislativo,50 mediante a separação de poderes, ao
invés de instaurar um equilíbrio entre os poderes,51 mediante um controle
recíproco,52 passou a condicionar toda a atividade da Administração Pública, bem
como a do Poder Judiciário. Bem por isso, a divisão de poderes no Estado Liberal
não foi representativa de “um equilíbrio abstracto e neutral, antes traduzindo o
predomínio do poder supremo (...), ou seja, do corpo legislativo e, sobretudo, da
força social que progressivamente o hegemoniza – a burguesia.”53
De todo o exposto, não se pode olvidar que o Estado organizado pela lógica
liberal tinha por principal função a proteção de direitos fundamentais na perspectiva
de defesa e sob a compreensão formalista e é nessa ótica que se pode vislumbrar o
alcance da noção de serviço público desde o seu surgimento: tratam-se de
atividades residuais do Poder Público que almejavam a implementação de
infraestrutura e função de cunho assistencialista.
Com o advento do Estado Social o serviço público despontou como principal
atividade do poder público, isso porque, nesse projeto, reconheceu uma ampliação
47
Ibidem, p. 92.
BACELLAR FILHO. Romeu Felipe. Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 223.
49
Idem.
50
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 86.
51
De acordo com Lucas Rocha FURTADO “A necessidade de que toda e qualquer atividade
desenvolvida pelo Estado esteja sujeita a diferentes níveis ou mecanismos de controle se faz
presente desde que se concebeu o Estado de Direito. Nos estudos de Montesquieu sobre a
separação (ou distribuição) dos poderes ou funções do Estado, a importância e a necessidade de
controle resultam evidentes. De fato, é perfeitamente correto afirmar que a essência da teoria da
separação dos poderes se sustenta na ideia de que nenhum poder do Estado deve assumir
atribuições que não possam ser, de algum modo, controladas por outro poder.” FURTADO, Lucas
Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p.1050.
52
BACELLAR FILHO. Romeu Felipe. Direito... p. 223.
53
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 86.
48
12
no rol de direitos fundamentais (admitindo a atuação do poder público na sua
realização). Por tal razão, torna-se “positivamente atuante para ensejar o
desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do nível cultural e a
mudança social) e a realização de justiça social (é dizer, a extinção das injustiças
sociais na divisão do produto econômico)”,54 em face das mazelas do capitalismo
selvagem do modelo liberal.
2 ESTADO INTERVENCIONISTA E SERVIÇO PÚBLICO
A primeira parte deste capítulo teve por objetivo permitir a compreensão dos
pressupostos que possibilitaram o surgimento dos serviços públicos no Estado
liberal, nesta segunda parte propõe-se um estudo acerca do processo de ampliação
na prestação desses serviços à sociedade, socializando o Estado, 55 ou ainda,
estatalizando a sociedade.56
A ideal separação entre o Estado e a sociedade, traduzida nas ideias liberais
de exaltação do individualismo, da propriedade e da abstenção do Estado, provocou
muitas injustiças sociais.57 O impacto do capitalismo liberal foi devastador “à massa
anônima dos que não possuem.”58 Por conseqüência, esses excluídos não
vislumbravam um mínimo de condições materiais de existência; a situação era de
miséria, o estopim para desencadear a crise do Estado Liberal.59
54
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 55.
55
Para Jorge Reis NOVAIS, a reavaliação da caracterização liberal da sociedade, ou seja, a
separação do Estado sociedade, se traduz “(...) como intenção de estadualização da sociedade e
recíproca socialização do Estado que confere sentido ao novo “Estado social”.” NOVAIS, Jorge Reis.
Op. cit., p. 188-189.
56
No mesmo sentido, Norberto BOBBIO entende também “(...) que a este processo de
estatalização da sociedade correspondeu um processo inverso mas não menos significativo de
socialização do Estado através do desenvolvimento das várias formas de participação nas opções
políticas, do crescimento das organizações de massa que exercem direta ou indiretamente algum
poder político, donde a expressão “Estado social” pode ser entendida não só no sentido de Estado
que permeou a sociedade mas também no sentido de Estado que permeado pela
sociedade(...).”BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: por uma teoria geral da política.
14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 51.
57
SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 115.
58
BONAVIDES, Paulo. Do Estado... p. 188.
59
Idem.
13
Nesse cenário de opressão e escravidão social60 de vários trabalhadores,
sob o manto da liberdade política e da igualdade formal do Estado liberal,
prenunciou-se a crise de legitimidade que assolou as bases desse modelo. É que
nesse sistema, o Estado se revelou insuficiente, pois não trazia respostas às
questões sociais.
À luz desses acontecimentos, a crise do Estado liberal foi agravada na I
Guerra Mundial, porque, até então, ainda se acreditava na sustentação do modelo
liberal de mercado. Nesse sentido, a guerra mundial veio a romper de vez com o
paradigma liberal.
Concorreu à crise, ainda, o desenvolvimento na Europa das ideologias
antiliberais,61 as quais continham na sua essência, resguardadas as suas diferenças,
uma intenção de superar a concepção liberal,62 afetando as bases estruturais do
Estado de direito.
O Estado social emergiu com a proposta de manutenção dos princípios do
Estado de Direito.63 Esse modelo de Estado superou a concepção liberal não pelo
quadro autoritário ou totalitário, mas sim pela democracia política. Isso porque, se
reconheceu “(...) os mecanismos da democracia política, como único quadro capaz
de permitir o desenvolvimento de um processo de efetiva socialização do Estado
(...).”64
Esse novo modelo surgiu diante das insurgências sociais daqueles que
“sofriam as consequências da irracionalidade burguesa”65 diante da liberdade e
igualdade formais proclamadas nos ideais liberais. Pode-se afirmar que foi uma
resposta à questão da exclusão social do sistema liberal. 66
Esse Estado assumiu a promoção da igualdade material com o propósito de
reduzir concretamente as diferenças sociais e econômicas, que a esta altura,
60
Ibidem, p. 29.
Pode-se citar entre as principais experiências a Itália fascista, a Alemanha nacionalsocialista e a Revolução Russa. Idem.
62
Ibidem, p. 188.
63
Mário Lúcio Quintão SOARES acrescenta que Heller preconizou a “superação do Estado
de direito formal para o Estado social de direito como alternativa única para se evitar a ditadura.”
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Op. cit., p. 204.
64
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 202.
65
Ibidem, p. 192.
66
Ibidem, p. 193.
61
14
debilitavam a dignidade humana.67 Por essa razão, passou a intervir na sociedade
para assegurar condições mínimas de existência digna dos cidadãos.
Ocorreu que essas incursões, em contraponto às omissões do Estado
liberal, passaram a significar aos cidadãos “direitos a uma ação positiva do
Estado”,68 tais como a prestação de bens, serviços e infraestrutura indispensáveis à
concretização
dos
direitos
fundamentais.69
Esse
modelo
social
impõe
à
Administração Pública um objeto, uma tarefa ou fim:70 de um lado assegura um
direito subjetivo dos cidadãos a prestações materiais, e de outro, implica um dever
objetivo atribuído ao sujeito Estado em prestá-los.
Como se vê, tratou-se de uma aproximação “global”71 entre o Estado e a
sociedade, de forma que a questão da justiça social passou a ser problema do
Estado. Assim, diante da necessidade de instituir uma ordem jurídica materialmente
justa, de distribuição do produto social, o Estado passou a intervir na esfera
econômica.72
Sob o prisma histórico, as primeiras declarações que inauguraram esse
modelo foram as Constituições mexicana de 1917, Russa de 1918 73 e a de Weimar
de 1919,74 bem como a da Polônia e Iugoslávia de 1921.75
Essas novas exigências no âmbito econômico, que surgiram principalmente
no pós-guerra76 e foram recepcionadas pelas Constituições, são aquelas que dizem
respeito ao incremento de políticas econômicas destinadas à redistribuição da
riqueza,77 bem como a intervenção direta do Estado na produção de bens
essenciais. Neste sentido, “o Estado passa a atuar como agente econômico,
substituindo os particulares e tomando a si a tarefa de desenvolver atividades
67
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público: em
busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da
constituição. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 212.
68
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 433.
69
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 194.
70
SANTIAGO, José Maria Rodríguez de. La administración del Estado social. Madrid:
Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales, 2007. p. 18.
71
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 194.
72
Idem.
73
CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Controle... p. 212.
74
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Op. cit., p. 205.
75
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 14. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2008. p. 82.
76
MOREIRA, Vital. Op. cit., p. 178.
77
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 196.
15
reputadas importantes ao crescimento: surgem as empresas estatais.”78 (grifos do
autor), como superação da ordem econômica liberal.
Cabe ressalvar que no desenvolvimento dessas novas funções, o Estado
mesmo aprendido uma postura ativa de implementação de políticas públicas, na
busca de uma justiça social, manteve o sistema capitalista.79 Isso ocorreu porque
embora se tenha exigido uma intervenção intensa na sociedade, esse modelo de
Estado manteve protegida a esfera de iniciativa privada.80
Em contraponto à ideia liberal de segurança jurídica, compreendida como
uma limitação às investidas do Estado na sociedade,81 também coube ao Estado,
nesta nova dimensão de direitos fundamentais, a promoção de prestações culturais.
Nesse sentido, José Joaquim Gomes CANOTILHO, bem pontuou que “a
criação dos pressupostos concretos do direito à cultura e ensino (pressupostos
materiais da igualdade de oportunidades) é condição ineliminável de uma real
liberdade de formação de desenvolvimento da personalidade.” 82 O Estado assumiu
prestações, reconhecendo o direito à educação, à cultura, ao ensino, ao desporto, 83
dentre outros, com o fim especial de promover a emancipação dos cidadãos e o
acesso às fontes culturais nacionais. Pode-se indicar, também, o incentivo à
pesquisa e à capacitação tecnológica.
Diante
da
exigência
de
socialização
do
Estado,84
esses
direitos
fundamentais proclamados tiveram como correspondência direta as prestações
materiais. Toda essa mudança da perspectiva liberal para a social ocorreu porque se
percebeu que sem a prestação desses serviços aos cidadãos, de nada adiantaria a
proclamação de direitos fundamentais.85
Pode-se afirmar, então, que o Estado social surgiu para concretizar a
dimensão material dos princípios da igualdade e liberdade, ultrapassando a
78
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos… p. 55.
GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 43.
80
MEDAUAR,Odete. Direito... p. 28.
81
Elaine Rosseti BEHRING e Ivanete BOSCHETTI pontuam que a sociedade burguesa era
“uma sociedade fundada no mérito de cada um em potenciar as suas capacidades supostamente
naturais.” (grifos das autoras.) BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política social:
fundamentos e história. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 60.
82
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 349.
83
Idem.
84
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 201.
85
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 194.
79
16
perspectiva formal, até então proclamada. Essas transformações na ordem
econômica, cultural e social, consagraram um sistema indispensável à dignificação
da sociedade. 86
Quanto à abrangência desses direitos econômicos, culturais e sociais, que
além dos direitos às ações positivas do Estado,87 traduzem novas liberdades
negativas, tais como as que Ingo Wolfgang SARLET chama de “liberdades sociais,
do que dão conta os exemplos da liberdade de sindicalização, do direito de greve,
bem como do reconhecimento de direitos fundamentais aos trabalhadores, tais como
o direito a férias e ao repouso semanal remunerado, a garantia de um salário
mínimo, a limitação da jornada de trabalho.”88
Não há de se olvidar que desde há muito a preocupação com a questão
social do trabalho esteve presente. Nesse sentido, o decreto de 25 de fevereiro de
1848, na II República Francesa, impunha ao governo “garantir a existência do
trabalhador através do trabalho, o Governo se compromete a garantir um trabalho a
todos os cidadãos.”89 No entanto, muito haveria de vir até a consagração de uma
efetiva mudança social.
Esses direitos estavam direcionados a uma parcela da população, aos
necessitados e ainda, essa concessão de trabalho só foi ofertada na medida dos
limites do Estado, por meio de obras públicas.90 O que indica que se tratava tãosomente de uma tentativa tímida, destinada à contenção de insurgências sociais.
Quanto à questão do seguro social, o reconhecimento de que determinadas
condições geravam incapacidade laborativa, tais como a velhice, a enfermidade e o
desemprego, bem como de que diante destas situações haveria de ter uma proteção
por parte do Estado, só ocorreu em 1883, na Alemanha. 91
Há que se referir, ainda, que “(...) alguns autores franceses consideram que
o marco de emergência desse modelo de Estado-providência é o ano de 1898, com
86
Ibidem, p. 196.
ALEXY, Robert. Op. cit., p. 433.
88
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 48.
89
HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituição e direitos sociais. In: SOUZA NETO,
Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (Coords.). Direitos Sociais. Fundamentos, judicialização e
direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 7.
90
Ibidem, p. 11-12.
91
BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Op. cit., p. 64.
87
17
a aprovação da primeira lei cobrindo os acidentes de trabalho (...), que estabelece a
proteção social obrigatória aos trabalhadores, sob responsabilidade estatal.”92
Sem negar essas primeiras políticas sociais surgidas há muito, como já se
referiu antes, tem-se que somente com o advento da Constituição do México, em
1917, houve a inclusão na Carta Constitucional dos direitos do trabalho e dos
relativos à sua proteção. Neste sentido, condensou-se no art. 123 o salário mínimo,
a jornada legal de trabalho de oito horas, o direito de associação, o direito de greve,
a participação dos trabalhadores nos lucros da empresa, a responsabilidade patronal
nos acidentes de trabalho, bem como o estabelecimento de Juntas de conciliação
para regular os conflitos e a indenização em casos de dispensa.93
Observe-se que a Constituição mexicana, ao prever tais direitos, coloca-os
em contrapartida à limitação da propriedade privada. Pode-se concluir, então, que
“(...) não há direitos sociais, como projeto de realização de uma ordem social
diferente, sem uma limitação correlata do direito da propriedade.”94
Na Constituição de Weimar, de 1919, verifica-se a consagração de direitos a
determinados grupos tomados por desprotegidos na sociedade: “(...) família,
juventude, menores, mães, funcionários (...).”95 Para eles, consagrou-se “(...) o
reconhecimento de direitos à educação e moradia.”,96 bem como direitos
considerados econômicos e aos trabalhadores.97
Vale ressaltar, na Constituição de Weimar, “que o art. 151, com seu
proclamado
objetivo
de
garantir
uma
existência
humana
digna
(“eine
menschenwürdigen Dasein”), consagrava uma concepção material da justiça que (e
condiciona) os chamados direitos capitalistas de propriedade, contrato e livre
empresa.”98
A Constituição de Weimar, pela sua sistematização e reconhecimento dos
direitos fundamentais, foi considerada a Constituição paradigma para os demais
Estados, inclusive o brasileiro.99 Por isso, “(...) representou inquestionável modelo de
92
Ibidem, p. 66.
HERRERA, Carlos Miguel. Op. cit., p. 16.
94
Ibidem, p. 14.
95
Ibidem, p. 16.
96
Idem.
97
Idem.
98
Ibidem, p. 17.
99
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle... p. 213.
93
18
avanço constitucional na evolução histórica dos direitos de segunda dimensão, fonte
do Estado de bem-estar social na Alemanha e, posteriormente no Brasil.”100
Pode-se afirmar, então, que dado o alcance desses direitos sociais, esses
importaram um alargamento das funções do Estado, bem como o crescimento da
atividade administrativa101. É nesse momento que o serviço público passa a ser a
principal atividade do Estado, voltada à concretização de direitos fundamentais.102
Demonstra-se, nesse modelo, uma mudança na conformação da lógica
existente entre o público e o privado na ordem liberal. Como demonstra Romeu
Felipe BACELLAR FILHO, “No Estado Social, a relação entre o público e o privado
inverte-se: ao superdimensionamento do espaço privado sobrepor-se-á a hipertrofia
do público que tende a se esgotar no Estado.”,103 dada a sua importância nesse
contexto. Ocorreu, assim, uma relativização entre os setores público e privado. É
que como explica Paulo Ricardo SCHIER “(...) Tem-se aí, em certa medida, uma
atividade tão intensa que, em alguns setores, o Direito Privado passa a se
“socializar” ou “publicizar”, (...) nada mais era do que o reflexo de um
redimensionamento dos direitos fundamentais.”104
Nessa viragem, o Estado passou a organizar todo um aparato com o fim de
prestar os serviços públicos condicionados à promoção dos direitos fundamentais e,
“com isso a máquina administrativa cresceu em quantidade e complexidade.”105 Por
isso se fala em alargamento dos fins do Estado, bem como do crescimento da
função administrativa.106
Convém salientar, nesse contexto, a importância da atividade atribuída ao
Estado como responsável pela efetivação dos direitos fundamentais, pois de acordo
com Adriana da Costa Ricardo SCHIER
A atuação positiva do Estado legitima-se, neste contexto, na medida em que se atribuiu a
ele a função de garantir a todos as mínimas condições de sobrevivência, o que se tinha
mostrado impossível na conjuntura do Estado Liberal. O serviço público, nesta dimensão,
100
Idem.
MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 50.
102
Marçal JUSTEN FILHO define a atividade de serviço público como “um instrumento de
satisfação direta e imediata, dos direitos fundamentais.” JUSTEN FILHO, Marçal. Curso... p. 487.
103
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Op. cit., p.173.
104
SCHIER, Paulo Ricardo. Direito... p..46.
105
MEDAUAR, Odete. Direito... p. 28.
106
MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 50.
101
19
desponta como direito fundamental direcionado à concretização do princípio da dignidade
107
humana.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar com escopo nessa autora, que o serviço
público é uma garantia fundamental, posto que essencial à concretização dos
direitos fundamentais. No Estado Social, essa atividade administrativa do Estado
está correlacionada de forma absoluta à concretização da dignidade dos seus
cidadãos.
A partir da socialização do Estado, é o princípio da dignidade da pessoa
humana que legitima esse Estado a determinadas ingerências na sociedade. 108 É
sob esse prisma que o Estado Social mantém a estrutura central do Estado de
Direito, tomando-se a liberdade como limite estatal e ao mesmo tempo a intervenção
para a concretização da liberdade. Isso significa a interação nesse modelo dos
direitos fundamentais de 1.ª dimensão com os direitos fundamentais sociais de 2.ª
dimensão.
A lógica é que “a garantia dos direitos fundamentais e a tutela da autonomia
individual – fulcro do Estado de Direito – exigem tanto a ausência de invasões
ilegítimas das esferas individuais quanto a promoção positiva da liberdade.” 109 É que
se entende que o cidadão tem que ter condições para exercer a sua liberdade, e é
nesse sentido que se toma a promoção de direitos fundamentais mediante a
prestação de serviços públicos pelo Estado. Na prática, significa que para que o
cidadão possa ter escolhas nos limites da sua liberdade, precisa ter um mínimo de
condições dignas que o permitam se desenvolver na sociedade.
Nesse sentido é o entendimento de Agustín GORDILLO, para quem o
Estado social é Estado de Bem-estar
A diferença básica entre a concepção clássica do liberalismo e a do Estado de Bem-Estar é
que, enquanto naquela se trata tão-somente de colocar barreiras ao Estado, esquecendo-se
de fixar-lhe também obrigações positivas, aqui, sem deixar de manter as barreiras, se lhe
agregam finalidades e tarefas às quais antes não se sentia obrigado. A identidade básica
entre o Estado de Direito e o Estado de Bem-Estar, por sua vez, reside em que o segundo o
107
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Administração Pública: apontamentos sobre os
modelos de gestão e tendências atuas. In: GUIMARÃES, Edgar (Coord.). Cenários do direito
administrativo: estudos em homenagem ao Professor Romeu Felipe Bacellar Filho. Belo Horizonte:
Fórum, 2004. p. 21-56; p. 35-36.
108
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 210.
109
Ibidem, p. 211.
20
toma e mantém do primeiro o respeito aos direitos individuais e é sobre esta base que
110
constrói seus próprios princípios (...).
Conclui-se, então, com José Joaquim CANOTILHO, que no Estado social há
“uma relação indissociável entre direitos econômicos, sociais e culturais e direitos,
liberdades e garantias. Se os direitos econômicos, sociais e culturais pressupõem a
“liberdade”, também os direitos, liberdades e garantias estão ligados a referentes
econômicos, sociais e culturais.”111
Como se vê, a proteção dos direitos fundamentais manteve-se, como no
Estado Liberal, como telos do Estado Social. Contudo, “a própria ideia dos direitos
fundamentais sofreu sensível deslocamento.”,112 pois para além dos direitos
clássicos conquistados no Estado liberal, agregou-se ainda prestações positivas à
concretização da dignidade da pessoa humana.113
Para tanto, o Estado reorganizou a sua estrutura para o fim de dar
operatividade à nova dimensão social dos direitos fundamentais. Isso para atender a
necessidade de se conformar aos “(...) novos papéis do Estado e aqueles
postulados (provenientes ainda do liberalismo), já incluídos entre as conquistas
civilizatórias: a sujeição do Estado ao direito; o respeito aos direitos individuais, e a
contenção do poder, especialmente, por meio da técnica da separação, agora com
nova roupagem.”114
Com a democracia política, foi possível a preservação do princípio da
separação de poderes inaugurado no Estado Liberal, que passou a se “reconduzir
definitivamente a um plano técnico-organizatório de divisão racionalizada e integrada
de funções visando evitar a concentração, o excesso ou o exercício arbitrário do
Poder.”115
As novas tarefas do Estado criadas pela demanda da sociedade implicaram
a necessidade de diferentes mecanismos de controles dessas atividades. 116 Dentre
110
GORDILLO, Agustín. Princípios Gerais de Direito Público. Trad. Marco Aurélio Greco.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 74.
111
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 480.
112
CLÉVE, Clèmerson Merlin. Atividade... p. 34.
113
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 213.
114
CLÉVE, Clèmerson Merlin. Atividade... p. 39.
115
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 214.
116
FURTADO, Lucas Rocha. Op. cit., p. 1051.
21
esses, o controle judicial tem importância especial117 na sindicabilidade dos direitos
em face da Administração no que tange aos limites demarcados pelo princípio da
legalidade e quanto à sua conformação com os princípios constitucionais.118
Ademais, a lei foi instrumentalizada para o fim de se adequar às
intervenções do Estado social. Isso porque, “destruída a crença liberal na pretensa
consubstancialidade entre lei e direitos fundamentais, havia que preservar estes das
eventuais violações actuadas pela função legislativa.” 119 Nesse sentido, também “a
fiscalização judicial ou jurisdicional da constitucionalidade afirma-se, então,
progressivamente, como verdadeiro <coroamento do Estado de Direito>(...).”120
Verifica-se, então, a mudança do “Estado legislativo de Direito para Estado
Constitucional de Direito, consolidando a passagem da Lei e do Princípio da
Legalidade para a periferia do sistema jurídico e o trânsito da Constituição e do
Princípio da Constitucionalidade para o centro de todo o sistema.”121
Contudo, não há de se olvidar que é no âmbito do Poder Executivo que se
operaram as principais mudanças. A Administração, diante dos seus novos papéis e
funções,122 passou a ser uma Administração prestadora de serviços essenciais à
coletividade. Despontou, assim como uma Administração autônoma, “como função
imbuída da mesma intenção de realização da ideia material de direito que
caracterizava as funções legislativa e judicial.”123 O Executivo ressurge no modelo
social como o órgão competente à concretização de direitos fundamentais mediante
o oferecimento de serviços públicos à sua coletividade.
As transformações pelas quais passaram o Estado, que assumiu novos
papéis diante do redimensionamento dos direitos fundamentais, fomentaram uma
ampliação das prestações, bem como um “enriquecimento das funções e crescente
tecnização das atividades.”124
117
Ibidem, p. 1050.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 7. ed. Salvador:
Juspodivm, 2008. p. 574.
119
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 219.
120
Idem.
121
CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle... p. 10.
122
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003. p. 126.
123
NOVAIS, Jorge. Op. cit., p. 222.
124
MEDAUAR, Odete. O Direito... p. 128.
118
22
Verifica-se que a Administração se tornou fundamental à coletividade, no
sentido que se toma a prestação de serviço público como essencial à satisfação dos
direitos fundamentais sociais, bem como de redistribuição de riquezas.125
3 ESTADO CONTEMPORÂNEO E SERVIÇO PÚBLICO
A intervenção do Estado, na vigência do modelo social, deu-se em vários
setores da sociedade e da economia. A “máquina administrativa cresceu em
quantidade e complexidade.”,126 inaugurando novo entorno às relações econômicas
e sociais da sociedade.
Esse específico modo de atuar do Estado sofreu várias críticas, como bem
demonstra Dinorá Adelaide Mussetti GROTTI, “(...) generalizou-se a convicção de
que o Estado se tornou grande demais e é notória a sua incapacidade; alarmante a
ineficiência econômica de setor público; mínima a qualidade dos serviços; e o
cidadão tornou-se cativo e sufocado pelo próprio Estado (...).”127
Assim
principalmente
pode-se
diante
afirmar,
da
“(...)
que
mediante
amplitude
e
esse
“senso
profundidade
das
comum”,128
mudanças
experimentadas na segunda metade do século – e muito especialmente desde o
desencadeamento da terceira revolução industrial nos anos 70.”,129 as ideias da
chamada crise do Estado Social se tornaram um consenso.
Na abordagem de Diogo de Figueiredo MOREIRA Neto, “É inegável que o
atual modelo de Estado, colhido nesse processo de mudança acelerada, regendo os
destinos de sociedades cada vez mais conscientes de seus interesses e da
125
OLIVEIRA, Odília Ferreira da Luz. Situação jurídica do usuário de serviço público.
Revista de Direito Administrativo, [S.l.], a. XVII, n. 69, p. 55-77, jan./mar. 1984. p. 59.
126
MEDAUAR, Odete. Direito... p. 28.
127
GROTTI, Dinorá Adelaide Mussetti. Teoria dos serviços públicos e sua transformação. In:
SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito Administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. p.
39-71; p. 43.
128
Para Atilio BORON “A criação de um “senso comum” neoliberal, de uma nova
sensibilidade e de uma nova mentalidade que penetraram muito profundamente no chão das crenças
populares (...).”com o único e exclusivo interesse de “(...) produzir uma duradoura lavagem cerebral
que permita a aplicação aceita das políticas promovidas pelos capitalistas.” BORON, Atilio A. Os
“novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da
democracia na América Latina. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo II: que
Estado para que democracia? Petrópolis: Vozes, 1999. p. 7-67; p. 10.
129
Idem.
23
importância de garanti-los, e demandantes de serviços e organizadas para exigi-los,
tornou-se uma instituição em crise.”130 (grifos do autor.)
Nesse influxo de ideias, o cenário se alterou substancialmente. A partir da
obra de Claus OFFE, é possível identificar fatos que foram determinantes para fazer
eclodir a crise do Estado Social. Cita o autor como preponderante o excesso de
expectativas voltadas ao Estado diante do extenso rol de direitos sociais e
democráticos e a incapacidade do Poder Público para suprir essas demandas. Ele
identifica assim a crise de legitimidade e governabilidade desse modelo de
Estado.131
Diante dessa situação em que se encontrava o Estado, tido como grande,
caro ineficiente e fraco,132 tomou-se como pressuposto a incapacidade estatal de
satisfazer as demandas sociais. Por essas razões, “o novo papel do Estado passou
a ser vigorosamente questionado.”133 Assinala Dinorá Adelaide Mussetti GROTTI,
que “Criou-se a consciência generalizada de que deve haver um enxugamento da
máquina estatal e a devolução de atividades à iniciativa social, ou seja, deve-se
devolver ao cidadão e à sociedade seu protagonismo, sua iniciativa e, no fundo, sua
liberdade de escolha do prestador de serviço.”134
Passou-se, então, à busca de soluções para a crise do Estado social, que
teve a sua origem atribuída ao amplo conjunto de direitos prestacionais e protetivos
dos cidadãos. Ao mesmo tempo houve uma “convergência, entre as diversas
correntes do pensamento econômico, de que o sistema econômico mundial enfrenta
uma crise.”,135 era a crise do sistema capitalista136.
Para Eros Roberto GRAU, a crise do capitalismo se deu porque “O
comprometimento, a partir dos anos setenta do século XX, dos níveis necessários
de lucros das empresas e o desencadeamento de processos inflacionários que
130
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005. p. 19.
131
OFFE, Claus. Problemas estruturais do estado capitalista. Trad. Bárbara Freitag. Rio
de Janeiro: Tempo Universitário, 1984. p. 82.
132
FURTADO, Lucas Rocha. Op. cit., p. 33.
133
GRAU. Eros Roberto. Op. cit., p. 44.
134
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Teoria... p. 44.
135
ARANTES, Aldo. O FMI e a nova dependência brasileira. São Paulo: Alfa Omega,
2002. p. 42.
136
Idem.
24
inevitavelmente conduziriam a uma crise generalizada das economias de mercado
(...).”137
A questão emergente era identificar saídas para a crise, pois, cada vez mais
se tornava necessária a adoção de medidas de contenção para superá-la. Nesse
contexto, entendia-se que a crise que assolava o Estado residia, “(...)
essencialmente, nas demandas excessivas dos trabalhadores e no excessivo papel
do Estado na economia e propõem a política neoliberal de menos Estado e mais
mercado.”138
Nesse contexto pregava-se que o intervencionismo estatal era a razão da
crise fiscal do Estado, além de fator desestimulante para o investimento do
capital.139 “Sob esse ponto de vista, a solução da crise consiste em reconstruir o
mercado, a competição e o individualismo.”140
Fazia-se acreditar que as soluções se pautavam na eliminação da atuação
estatal, bem como o enxugamento das funções atinentes às funções sociais.141
Aliás, propunham-se programas públicos assistencialistas direcionados aos
comprovadamente indigentes.142 Dessa forma, verifica-se que essas ideias
rechaçavam os “direitos sociais e a obrigação da sociedade de garanti-los através
da ação estatal.”143
Para Ana Cláudia FINGER a crise do Estado Social, “(...) surgiu basicamente
com os ventos da ideologia do Estado Neoliberal.”144 Para ela, essa crise foi
estimulada com o advento das críticas a esse modelo de Estado, disseminadas pela
onda do neoliberalismo.
A ideologia neoliberal surge, desse modo, como alternativa, que se impõe,
distinta do liberalismo clássico,145 Essa política não defendia a total abstenção do
137
GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 47.
ARANTES, Aldo. Op. cit., p. 48.
139
LAURELL, Asa Cristina. Avançando em direção ao passado: a política social do
neoliberalismo. In: _____ (Org.). Estado e políticas sociais no liberalismo. Trad. Rodrigo Léon
Contrera. São Paulo: Cortez, 1995. p. 151-178; p. 162.
140
Idem.
141
Idem.
142
Ibidem, p. 163.
143
Idem.
144
FINGER, Ana Cláudia. Serviço Público: Um Instrumento de Concretização de Direitos
Fundamentais. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, a. 3, n.
12, p. 141-165, abr./jun. 2003. p. 157.
145
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 229-230.
138
25
Estado, mas sim a “(...) retirada do Estado da atividade econômica, mas sua
presença nas demais esferas da atividade econômica, como garantidor da
acumulação capitalista.”146 Resta claro que a questão central está na manutenção
do capitalismo. E se verifica que esse valor é incompatível com as políticas de
solidariedade e justiça social adotadas pelo Estado social. O curioso é que como se
viu, essas políticas só emergiram em face das mazelas do próprio capitalismo
selvagem.
Perry ANDERSON afirmou que a corrente neoliberal “foi uma reação teórica
e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar.”147 Há que se
ressaltar, ainda, que para esse autor a concepção neoliberal representou “um
ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte
do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente
econômica, mas também política.”148
O pensamento neoliberal foi uma crítica à política da redistribuição social, ao
Keynesianismo que dominou o período anterior de desenvolvimento. 149 Ressalte-se
que essa política foi considerada como entrave ao sistema de acúmulo de capital,
“(...) ou seja, a intervenção anticíclica e a redistribuição social, as quais haviam tão
desastrosamente deformado o curso normal de acumulação e do livre mercado.” 150
Nesse sentido, Aldo ARANTES cita HAYEK como um dos principais
precursores dessa ideia que se opunha à justiça social e ao solidarismo, em especial
à redistribuição de renda:
Frederick Hayek, um dos teóricos mais importantes do neoliberalismo, combatia a
intervenção do Estado na economia e pregava a completa liberdade do capital. Considerava
ser necessário recorrer às forças espontâneas da sociedade, ao mercado, e, o menos
possível, à coerção, ao Estado. Falando em igualdade formal e igualdade substantiva, o
autor afirmava que não cabe ao Estado promover uma igualdade substantiva, porque isso
afetaria o Estado de Direito e a liberdade individual. Com isto, o autor expressa, de forma
clara, a posição dos neoliberais contrários à intervenção do Estado para reduzir as
151
diferenças sociais.
146
ARANTES, Aldo. Op. cit., p. 49.
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In.: SADER, Emir; GENTILI, Pablo
(Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1998. p. 9-23; p. 9.
148
Idem.
149
ARANTES, Aldo. Op. cit., p. 48.
150
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 11.
151
ARANTES, Aldo. Op. cit., p. 48.
147
26
Para os neoliberais, as razões do déficit estatal “(...) estavam localizados no
poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento
operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões
reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado
aumentasse cada vez mais os gastos sociais.”152
Diante dessas razões, assistiu-se ao que Pierre BOURDIEU chamou de
(...) „retorno ao individualismo‟, espécie de profecia auto-realizante que tende a destruir os
fundamentos filosóficos do welfare state e, em particular, a noção de responsabilidade
coletiva (nos acidentes de trabalho, na doença ou na miséria), essa conquista fundamental
do pensamento social (e sociológico). O retorno ao indivíduo é também o que permite
“acusar a vítima”, única responsável por sua infelicidade, e lhe pregar a “auto-ajuda”, tudo
153
isso sob o pretexto da necessidade incansavelmente de diminuir os encargos (...).
Não por outra razão entende-se que essa volta ao individualismo era
imprescindível à eliminação do princípio da solidariedade, bem como da ideia de
coletividade. É justamente esse entendimento que afasta a possibilidade de se
universalizar os direitos sociais. Conseqüentemente operou-se uma involução no
sentido que propõe Perry ANDERSON, “Estamos saindo do século XX, mas para
entrar no século XIX, ressuscitando o Estado assistencialista.”154
O pensamento neoliberal, presente no ambiente acadêmico desde a década
de 40, só ganhou força diante da recessão provocada pela crise econômica do
capitalismo, generalizada pela combinação das “baixas taxas de crescimento com
altas taxas de inflação.”155 quando se percebeu que uma das saídas da crise era
“(...) mais mercado e menos Estado.”156
Na prática, essa política foi implementada pela primeira vez na Inglaterra,
com o governo da Margareth Thatcher, em 1979, e, depois, nos Estados Unidos,
com a chegada ao poder de Ronald Reagan, em 1980.157
Ressalte-se que “um trabalho constante foi feito, associando intelectuais,
jornalistas, homens de negócio, para impor como óbvia uma visão neoliberal que, no
152
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 10.
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 16.
154
LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., p. 175
155
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 10.
156
ARANTES, Aldo. Op. cit., p. 49.
157
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 11.
153
27
essencial, reveste com racionalizações econômicas os pressupostos mais clássicos
do pensamento conservador de todos os tempos e de todos os países.” 158
É com a globalização que se dá a hegemonia da ideologia neoliberal, que
para além da consagração dessas ideias na maioria dos países do mundo, foi
também adotada por organizações internacionais, tais como, o Fundo Monetário
Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC) 159.
Nesse sentido, Michel CHOSSUDOVSKI alertou que,
Desde o começo dos anos 80, os programas de “estabilização macroeconômica” e de
“ajuste estrutural” impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial aos países em desenvolvimento
(como condição para renegociação da dívida externa) têm elevado centenas de milhões de
pessoas ao empobrecimento (...). O mesmo cardápio de austeridade orçamentária,
desvalorização, liberalização do comércio e privatizações é aplicado simultaneamente em
mais de cem países devedores. Estes perdem a soberania econômica e o controle sobre a
160
política monetária e fiscal.
Acerca da deficiência política dos governantes em face das recomendações
neoliberais, apontou Pierre BOURDIEU, que
Emparedados pelo economismo estreito e de curto alcance da visão-de-mundo-FMI, que
também faz (e fará) tantos relações Norte-Sul, todos esses semi-habilitados em matéria de
economia evitam, evidentemente, levar em conta os custos reais, a curto e sobretudo a
longo prazo, da miséria material e moral que é a única conseqüência certa da Realpolitik
economicamente legitimada: delinqüência, criminalidade, alcoolismo, acidentes de trânsito,
etc. Mais uma vez, a mão direita, obcecada com a questão do equilíbrio financeiro, ignora o
que faz a mão esquerda, confrontada com as conseqüências sociais freqüentemente muito
161
dispendiosas das “economias orçamentárias. (grifos do autor.)
A tese que se impunha era a do caminho único, ou seja, “(...) o
neoliberalismo se apresenta sob as aparências da inevitabilidade.” 162 Assim, “Foi
armando-se da matemática (e do poder da mídia) que o neoliberalismo se tornou a
forma suprema da sociodicéia conservadora que se anunciava, há 30 anos, sob o
nome de „fim das ideologias‟, ou, mais recentemente, de „fim da história‟.” 163
158
BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 43.
ARANTES, Aldo. Op. cit., p. 50.
160
CHOSSUDOVSK, Michel. A globalização da pobreza: impactos do FMI e do Banco
Mundial. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo: Moderna, 1999. p. 26.
161
BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 14
162
Ibidem, p. 44.
163
Ibidem, p. 50.
159
28
Isso porque, sem embargo do que mostra Adriana da Costa Ricardo
SCHIER, ao invés de se
(...) reestruturar o Estado para que pudesse vir a ser uma instituição que efetivamente
assegurasse os mínimos direitos capazes de garantir a sobrevivência digna dos cidadãos,
preferiu-se, mais uma vez na história, conceder tal tarefa ao mercado, à iniciativa privada.
Optou-se, então, pela diminuição do Estado em relação ao atendimento de demandas
sociais. Contudo, sem embargo de seu enfraquecimento em relação às preocupações
sociais, o Estado torna-se mais “forte” em outros aspectos, sendo altamente repressivo com
os movimentos sociais e estando sempre pronto a garantir o livre mercado, salvando, se
164
necessário for, instituições privadas.
Por essas razões, “a participação direta do Estado na prestação de serviços
públicos e exploração de várias atividades econômicas sofreu um refluxo a partir da
década de oitenta do século passado”,165 sob a suposta “razão do elevado déficit
fiscal decorrente de anos de investimentos estatais não lucrativos (...).”166
No Brasil, as ideias neoliberais inspiraram a reforma do Estado na década
de 90, conforme se depreende de Luiz Carlos Bresser PEREIRA, que ao discorrer
acerca do tema, aponta que assim
como as demais reformas dessa natureza, respondeu ao grande aumento do tamanho do
Estado que implicou em sua transformação em um Estado Social; ao tomar a administração
pública ou a organização do Estado mais eficiente, legitimou os grandes serviços sociais de
educação, saúde, previdência e assistência social que a partir de dois marcos – a
Revolução de 1930 e a transição democrática de 1985 – resultaram na transformação do
regime político de oligárquico-liberal brasileiro em regime democrático social. (...) Essa
inadequação aumentara muito quando, a partir da transição democrática de 1984, as
despesas sociais crescem extraordinariamente e o Estado brasileiro assume a forma de um
Estado Social. A partir dessa transformação, uma reforma gerencial se impunha, e seu
167
início se tornara uma questão de tempo.
Foi nesse contexto que, conforme acentuado por Celso Antônio Bandeira de
MELLO, o Brasil se retrai “(...) das preocupações sociais e abraça uma política
econômica que é um projeto de reforma antinômico aos valores que presidiram a
Constituição-Cidadã, a Constituição de 1988.”168
164
SCHIER, Adriana. Administração... p. 43.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 43.
166
Idem.
167
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Os primeiros passos da reforma gerencial do Estado
de 1995. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp.> Acesso em: 26 jul 2009.
168
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Privatização e serviços públicos. Revista
Trimestral de Direito Público, [S.l.], n. 22, p. 174-180, [1990?] p. 177.
165
29
A transformação pela qual passou o Estado diminuiu significativamente o
seu papel perante a sociedade. Sustenta Asa Cristina LAURELL que “a retração do
Estado e a cessão de espaços ao capital privado ocorre tanto na esfera econômica
como na do bem-estar social.”169 Por certo a reforma impôs o desmonte do Estado
social, isso porque a estratégia – neoliberal - adotada era incompatível com a
concepção de Estado prestador.
Quanto à estrutura do Estado, Luiz Carlos Bresser PEREIRA afirma que
essas reformas são essenciais ao seu fortalecimento. Nesse campo, entende que “A
organização e macro-estrutura adequadas ao Estado forte e democrático tornam-se
concretas quando as entidades estatais realizam apenas as funções que lhe são
próprias, descentralizando suas atividades não-exclusivas, especialmente os
serviços sociais e científicos que presta (...).”170
Essas ideias foram tomadas num sentido de se operar uma flexibilização
quanto ao modo de Administração, passando-se assim de uma Administração
burocrática para uma Administração gerencial.
Conforme destacou Adriana da Costa Ricardo SCHIER,
No Brasil, as ideias neoliberais ganham juridicidade com a edição de uma série de leis e de
emendas constitucionais (destacando-se a Emenda n.º 19/98), que pretendem, em última
análise, traçar um novo desenho do Estado e da Administração Pública brasileiros.
Retratam, nesta medida, a tentativa de implantação de um Estado neoliberal, que deixa à
iniciativa privada o trato das questões sociais, e uma Administração Pública estruturada de
forma gerencial, preocupada com o alcance de bons resultados, independentes dos meios
171
utilizados para alcançá-los.
Luiz Carlos Bresser PEREIRA entende que a mudança no quadro da
Administração Púbica brasileira se operou justamente porque a burocracia guardava
relação com a política liberal e a primeira forma de democracia, considerada por ele
de democracia de elites. Nesse sentido, assinalou que “Era uma administração
pública sem condições de prestar com a necessária eficiência os grandes serviços
169
LAURELL, Asa Cristina. Op. cit. p. 166.
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; PACHECO, Regina Silvia. A reforma do Estado
brasileiro e o desenvolvimento. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp.>
Acesso em: 26 jul 2009.
171
SCHIER, Adriana da Costa. Administração... p. 44-45.
170
30
sociais e científicos de relevância pública como a educação, os cuidados de saúde e
a assistência social.”172
O curioso é que com a reforma gerencial esses mesmos serviços sociais
tidos como de relevância pública, perderam o seu investimento pelo Estado a partir
do momento que ocorreu uma fuga para o setor privado. Com isso, não se
estabeleceu no Brasil nem bem um padrão mínimo desses serviços públicos sociais
e já se desincumbiu a Administração Pública da sua prestação. Ou seja, operou-se
uma redução de competências diretas do Estado em detrimento da sociedade.
Quanto às políticas adotadas, há que se observar que mesmo que se
entenda que o neoliberalismo possa ter tido algum sucesso173 em determinados
países desenvolvidos, no que tange à detenção da inflação, à recuperação dos
lucros, à derrota sindical, à queda da greve, à contenção dos salários e, claro, o
aumento da taxa de desemprego,174 não há de se olvidar que esse sucesso estava
adstrito à tentativa de “reanimação do capitalismo avançado”,175 numa vertente do
mundo globalizado.
Isso não significa que seja uma política boa para outros países,
notadamente quanto ao Brasil, que não chegou nem sequer a assegurar plenamente
aos seus cidadãos os direitos sociais. Principalmente na perspectiva adotada nessa
monografia, a de que só é possível a justiça social mediante a redistribuição de
riquezas e a conseqüente consagração do princípio da dignidade da pessoa
mediante a atuação do Estado na implementação e na devida prestação de serviços
públicos aos cidadãos.
Ressalta-se que mesmo com todas as políticas favoráveis ao capitalismo,
adotadas em detrimento dos cidadãos, a ideologia neoliberal não equilibrou o custo
do Estado. É que, segundo Perry ANDERSON, “(...) o peso do Estado de bem-estar
não diminuiu muito, apesar de todas as medidas tomadas para conter os gastos
sociais.”176
As razões apontadas para que as políticas neoliberais não triunfassem na
redução do custo do Estado estão na própria conseqüência das suas medidas no
172
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Op. cit., p. 3.
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 14-15.
174
Idem.
175
Idem.
176
Ibidem, p. 16.
173
31
âmbito social. Aponta-se que os custos sociais aumentaram muito diante do
desemprego, o que representou uma demanda de bilhões ao Estado, bem como o
aumento dos aposentados, com conseqüente aumento nos gastos com pensões
pelo Estado.177 Conclui-se na crítica de que essas políticas implicaram desempregos
em massa e conseqüente desigualdade social, ou seja, diminuiu-se o investimento
social e não os encargos do Estado. Ademais, a política adotada com o fim de
restaurar as taxas de lucro no mercado promoveu “uma acelerada redistribuição
regressiva da riqueza. Como resultado direto do desemprego ou do subemprego, do
arrocho salarial e de medidas fiscais regressivas, o neoliberalismo provoca então um
processo maciço de empobrecimento e uma crescente polarização da sociedade
entre ricos e pobres”.178
Daí entender-se no presente trabalho essas políticas como um retrocesso,
ou seja, o desfinanciamento das instituições públicas dirigidas às questões sociais
resultam no agravamento da questão social, que se impõe com urgência na ordem
contemporânea. O que se faz constatar pela “(...) „irreversibilidade‟ do Estado de
bem-estar.”179
Nesse contexto, compreende-se que os serviços públicos encontram o seu
fundamento no Estado Democrático de direito, que se legitima pela soberania
popular. Não dá para olvidar que na prática “(...) não tem sido possível desmantelar
as instituições sociais básicas, (...)”180 e isso se dá em razão do sufrágio.181
Sobre a relação entre globalização e o neoliberalismo, Eduardo Teixeira
SILVEIRA sustenta:
(...) é preciso ter claro que há uma nítida vinculação (francamente ideológica) entre
globalização e neoliberalismo, que não são necessariamente indissociáveis. (...)
ressaltamos que no grau de desenvolvimento tecnológico em que a sociedade se encontra,
em que as comunicações entre o mundo são momentâneas, o fenômeno da globalização é
realmente inevitável, mas não o que está por trás dela, tal como vem sendo apresentada.
Ou seja, há que se salientar que as iniqüidades já mencionadas que a mundialização vem
provocando, ocorrem tão-somente pelo fato de existir uma ideologia fulcrada na
177
Ibidem, p. 18.
LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., p. 166.
179
Ibidem, p. 165.
180
Ibidem, p. 164.
181
Idem.
178
32
desigualdade social comandando a globalização, que sutilmente também quer se
182
apresentar como inevitável, o que não é verdade.
Nesse cenário de reforma estrutural e de gestão do Estado, também ocorreu
em conseqüência uma crise da noção dos serviços públicos. Isso porque, o Estado
devolveu à iniciativa privada algumas atividades tradicionalmente assumidas como
tais serviços.
Nesse sentido, ressalta Alexandre Santos de ARAGÃO que essa crise dos
serviços públicos “iniciada na década de 80 do século passado, ao contrário da
primeira, que em seus principais aspectos representou um avanço da esfera pública
sobre a privada, se consubstancia em um aumento da atuação da iniciativa privada
na economia, com a devolução ao mercado de uma série de atividades que dele
foram retiradas ao longo do século passado.”183
Nessa perspectiva, Dinorá Adelaide Mussetti GROTTI, ao se referir sobre as
transformações ocorridas na estrutura do Estado, principalmente na deplubicatio
constata que a estratégia é a descentralização, com técnicas de privatização e
terceirização, visando assim o desmonte desse modelo de Estado e o consequente
aumento de governabilidade.184
A crise da noção do serviço público tem correspondência direta com os
setores que foram liberalizados nas reformas recentes.185 A questão mais
problemática é a de como foram devolvidos à iniciativa privada esses serviços
públicos. Daí concluir-se que não foram repassadas como uma atividade privada
entendida
como
antes
da
publicatio.
Isso
ocorreu
porque,
conforme
os
apontamentos de Odete MEDAUAR,
A quebra de monopólios e exclusividades, a transferência de atividades do setor estatal
para o setor privado, a flexibilização de normas incidentes sobre atividades não vão
acarretar necessariamente a ausência do Estado nessas atividades. Tratando-se de
serviços públicos que passam a ser desempenhados por particulares, o Estado jamais se
186
desliga.
182
SILVEIRA, Eduardo Teixeira. Globalização e neoliberalismo: o direito da concorrência
entre empresas nacionais e transnacionais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São
Paulo, n. 40, p. 68-88, jul./dez. 2002. p. 72.
183
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 243-244.
184
GROTTI, Dinorá Adelaide Mussetti. As agências reguladoras. Disponível em:
<http://www.direitodoestado.com.br> Acesso em: 25 ago 2009.
185
Idem.
186
MEDAUAR, Odete. O Direito... p. 253.
33
Sob esse influxo de ideias sustenta Alexandre Santos de ARAGÃO que “Os
liames de tais atividades com o interesse público continuam a existir; apenas se
passou a acreditar que o interesse público seria melhor atendido em regime de
mercado e com a maior concorrência possível, preservada, no entanto, uma forte
regulação (não mais acompanhada da titularidade estatal e do conseqüente título de
concessão).”187
Nesse contexto, ao promover a desestatização de determinados setores,
houve um redimensionamento da atuação do Estado, emergindo como agente
regulador desses âmbitos de atuação, daí sua intervenção deixa de ser na prestação
dos serviços para ser direcionada à atividade de controle, de agências reguladoras.
No decorrer da segunda metade dos anos 90, foram criadas essas agências
reguladoras setoriais, “dotadas de autonomia e especialização, com a natureza
jurídica de autarquias com regime especial.”188 Ressalte-se que de acordo com
Dinorá Adelaide Musseti GROTTI, a expressão autarquia especial, foi empregada na
Lei n.º 5540, de 28/11/68, com a intenção de ressaltar um grau de autonomia maior
e para diferenciá-la em face das demais autarquias.189
A crise hodierna da noção de serviço público se enquadra na problemática
dessas mudanças operadas na sua prestação. Isso em razão da relativização dos
elementos formal e subjetivo da noção. A questão versa justamente na dificuldade
que se impõe de distinguir o serviço público das atividades econômicas.
Para Alexandre Santos de ARAGÃO, o centro da crise está no fato de se
considerar ou não como serviço público de titularidade estatal essas atividades
liberalizadas.190 Para ele, elas deixam de se incluir na noção de serviço público,
significando apenas atividades privadas regulamentadas, bem como pela possível
exclusão de atividades tidas como essenciais à coesão social.191 O autor ressalva
que não basta a essencialidade de uma atividade para que seja qualificada como
serviço público, para ele se faz necessário ainda a incapacidade de satisfação na
prestação pela iniciativa privada. Como exemplo, cita os alimentos e os
187
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 244.
GROTTI, Dinorá Adelaide Mussetti. As agências...
189
Idem.
190
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 244.
191
Idem.
188
34
medicamentos como essenciais nessa situação, porque considera que são
satisfatoriamente fornecidos pela iniciativa privada.192
O problema reside justamente no regime de exploração dessas atividades. É
que, segundo Carlos Ari SUNDFELD, essa reestruturação do Estado operada nos
serviços de titularidade estatal produziu uma alteração total no enfoque da noção do
serviço público. Atribui a crise da noção de serviço público, em princípio, ao
englobamento dos mais distintos serviços, bem como o fato de estar vinculada a um
modelo de exploração monopolista, não concorrencial, mediante empresas
públicas.193 Entende esse autor que essa crise ocorre porque a realidade se
transformou radicalmente, e que diante da complexidade da sua disciplina jurídica
“cada serviço estatal, hoje, é objeto de um universo jurídico com peculiaridades
muito próprias, não sendo mais viável, explicar tudo globalmente.”194 Sustenta que é
preciso identificar analiticamente cada serviço, razão pela qual chega a duvidar da
possibilidade de existência de um conceito sintético de serviço público.195
Novamente impõe-se o problema a partir da tendência dos modelos
econômicos de exploração de serviços de titularidade estatal, tal como a
autorização.196 Ocorre que para o autor não é mais possível a discussão sobre o
caráter público ou privado de determinada atividade para determinar o regime
jurídico da exploração,197 ressalta que há hoje a necessidade de se verificar qual é a
regulação do Estado, bem como ainda sob quais aspectos.198
O autor vai mais longe ainda ao sustentar, aplicando artigo da Lei 9472, de
1997, que há a possibilidade de que um serviço exclusivo, tal como as
telecomunicações, de titularidade estatal, seja prestado sob regime privado. Defende
essa possibilidade sob a absurda tese de uma desregulação parcial do setor, por
meio de lei infraconstitucional.199
192
Idem.
SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às Agências Reguladoras. In: _____. Direito
Administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 17-38; p. 32.
194
Idem.
195
Idem.
196
Confira-se a respeito ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. São
Paulo :Saraiva, 2005. p. 170.
197
SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução... p. 33.
198
Idem.
199
Idem.
193
35
Ora, como se vê, o autor não vislumbra na sua doutrina uma hermenêutica
constitucional no que tange aos elementos subjetivo e formal da noção, porque
refuta uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. Sob esse raciocínio
entende que tem o legislador infraconstitucional poder para liberalizar ou promover
uma desregulamentação parcial de um dado setor de serviços públicos exclusivos
do Estado, bem como, disciplinar os serviços públicos quanto ao seu regime de
prestação.
Não há de se olvidar que a Constituição de 1988 impõe a prestação de
serviço público adequado, o que se depreende do seu art. 175, § único, IV,
concomitantemente com a Lei n.º 8987, de 1995. Como se vê, resta que só há uma
possibilidade decorrente dessa disciplina jurídica: a de que qualquer atividade de
serviço público prestada tanto diretamente pelo Estado ou indiretamente pelo
particular deve ser no regime jurídico de direito público.
CONCLUSÃO
Da pesquisa realizada na presente monografia emergem algumas
conclusões do presente trabalho.
Inicialmente, conclui-se que foi no Estado mínimo que despontou a noção de
serviço público. Isso porque, mesmo organizado na ótica liberal - o que implica
reconhecer que tinha como função apenas a proteção de direitos fundamentais de
defesa -, forneceu o substrato ao desenvolvimento do instituto. Serviço público
entendido como atividade estatal dirigida à uma comodidade material e sob regime
especial. Embora as principais atividades estivessem no âmbito residual, tal como a
de cunho assistencialista e de implementação de infraestruturas, é inobjetável
reconhecer nesse período serviços públicos típicos (energia elétrica, saneamento
básico, saúde, por exemplo).
Não há de se olvidar que foi com o advento do Estado Social que se
verificou uma maior intensidade na prestação desses serviços, tanto como resposta
às mazelas sociais do capitalismo, como pela consagração de um novo catálogo de
direitos fundamentais, chamados de segunda dimensão. Esse modelo ampliou
sobremaneira a execução de tais atividades com o fim de concretizar esses novos
direitos sociais, culturais e econômicos, bem como o de realizar a justiça social
36
através da (re)distribuição da riqueza. Por essa razão, o Estado assumiu novos
papéis e nesse sentido tem-se que a Administração se tornou fundamental à
coletividade, tida como garantidora de direitos fundamentais por meio da prestação
de serviços públicos.
Contudo, com essas novas relações econômicas e sociais, o Estado passou
a ser questionado diante do redimensionamento de seu papel. Assim, norteada
pelas ideias capitalistas, difundiu-se a suposta incapacidade e ineficiência pública na
gestão dos serviços públicos. Era a chamada crise do Estado Social. Sob as ideias
neoliberais proclamou-se que a saída para a crise era o enxugamento do aparelho
do Estado, devolvendo à iniciativa privada algumas atividades. No Brasil essa
política ganhou azo com a Reforma da Administração na década de 1990, operada
com o fim de reduzir a prestação de serviços públicos pelo Estado para se equilibrar
a crise fiscal, atribuída principalmente ao excesso de demandas sociais. Nesse
contexto, O Estado brasileiro promoveu a desestatização de determinados setores,
almejando o redimensionamento da atuação do Estado. O poder público assume o
papel de agente regulador desses âmbitos de atuação, daí sua intervenção deixa de
ser na prestação dos serviços para ser direcionada à atividade de controle,
principalmente mediante a função de fiscalização das agências reguladoras.
A crise hodierna da noção de serviço público decorreu dessas mudanças
operadas na prestação dos serviços. Tem-se, com isso, a relativização dos
elementos formal e subjetivo da noção. A questão restou na dificuldade que se
impôs na distinção do serviço público das atividades econômicas. Por essa razão,
alguns autores propõem que a crise que assolou a noção de serviço público é
insuperável, entendimento esse diverso do sustentado nesse artigo.
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