Fundamentos Filosóficos do Direito de Propriedade Lucas Abreu Barroso* O ESTADO DE NATUREZA Para que possamos adentrar o tema proposto, cabe-nos inicialmente abordar o estado de natureza, regido pelo direito natural, uma vez que neste encontra assento o direito de propriedade, e como nos ensina KELSEN1, “entre os chamados direitos naturais, inatos, sagrados, do homem, a propriedade privada representa um importante , senão o mais importante, papel. Quase todos os principais autores da doutrina do Direito natural afirmam que a instituição da propriedade privada corresponde à própria natureza do homem”. O estado de natureza é aquele no qual todos os homens se apresentam em igualdade para decidir suas ações, dispor de seus bens, assim como de suas pessoas. É claro que toda essa liberdade, como nos adverte LOCKE que não deve ser confundida com permissividade - é posta dentro dos limites do direito natural. Portanto, “o estado de natureza é regido por um direito natural que se impõe a todos, e com respeito à razão, que é este direito, toda a humanidade aprende que, sendo todos iguais e independentes, * Advogado, Professor da UCG - Universidade Católica de Goiás e Mestrando em Direito Agrário na Faculdade de Direito da UFG - Universidade Federal de Goiás. 1. KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. 2. ed. 1. reimp. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 17. Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7 (25): 11-18, 1997 11 ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens.”2 Objetivando aclarar ainda mais no que consiste esta norma regulamentadora do estado de natureza, trazemos a lume a lição de GRÓCIO, citada por BOBBIO3, quando se refere ao pensamento dos jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII: “O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme à própria natureza racional do homem, e a mostrar que tal ato é, em conseqüência disto vetado ou comandado por Deus, enquanto autor da natureza. (...) Os atos relativamente aos quais existe um tal ditame da justa razão são obrigatórios ou ilícitos por si mesmos.” No estado de natureza não se verifica o que entendemos por hierarquia, dada a igualdade em que é concebido. Destarte, cabe a cada indivíduo julgar seus pares, e esta execução da lei de natureza é “para fazer respeitar o direito natural que ordena a paz e a conservação da humanidade”4, estando, pois, cada um, habilitando para tal punição, mas esta deve ser aplicada na medida da transgressão praticada, e até a proporção que exigir a reparação do dano causado e a prevenção para que outros não incorram no mesmo erro, evitando, assim, que se reproduza. Uma vez caracterizados o estado de natureza e o direito natural que o rege, cumpre-nos ressaltar que “estos derechos naturales, resumidos en la fórmula de Locke de vida, libertad y propiedad (...) tenían mucho que ver com la protección de la persona individual”5. 2. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil - e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 84. 3. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 20-21. 4. LOCKE, John. Ob. cit. p. 85. 5. FRIEDRICH, Carl Joachim. La filosofia del derecho. 5. reimp. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993. p. 372-373. 12 Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7 (25), especial: 11-18, 1997 O DIREITO COMO DECORRÊNCIA DA VONTADE DIVINA Sustenta a doutrina do direito natural que “os direitos e deveres do homem, estabelecidos por essa lei natural, são considerados inatos ou congênitos ao homem, porque implantados pela natureza (...) e na medida em que a natureza manifesta a vontade de Deus, esses direitos e deveres são sagrados”6. A vontade de Deus é, portanto, a própria natureza; isto porque, a natureza foi por Ele criada, e as leis naturais são a manifestação dessa vontade. Esta concepção logrou grande relevância na Idade Média, período no qual “o direito natural é considerado superior ao positivo, posto seja o primeiro visto não mais como simples direito comum, mas como norma fundada na própria vontade de Deus e por este participada à razão humana”7. O que pretende demonstrar a doutrina do direito natural é justamente isso, que as leis da natureza não estão sujeitas ao poder arbitrário dos homens e nem às suas criações legislativas8, mas fundamentadas em “um ordenamento das relações humanas diferente do Direito positivo, mais elevado e absolutamente válido e justo, pois emana da natureza, da razão humana ou da vontade de Deus”9. A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE POLÍTICA OU CIVIL 6. KELSEN, Hans. Ob. cit. p. 17. 7. BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 25. 8. John LOCKE (Ob. cit. p. 88) afirma que a lei da natureza é “absolutamente inteligível e clara para uma criatura racional dedicada a seu estudo, como o são as leis positivas da comunidade civil”, e acrescenta: “possivelmente mais claras, pois a razão é mais fácil de ser compreendida que os sonhos e as maquinações intrincadas dos homens, buscando traduzir em palavras interesses contrários e ocultos; pois assim realmente se constitui grande parte das leis civis dos países, que só são justas na medida em que se baseiam na lei da natureza, pela qual devem ser regulamentadas e interpretadas”. 9. KELSEN, Hans. Ob. cit. p. 16. Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7 (25): 11-18, 1997 13 LOCKE afirma em sua obra Segundo tratado sobre o governo civil, que todos os indivíduos encontram-se em estado de natureza e que nele permanecem até que, por manifestarem seu consentimento, tornam-se membros de alguma sociedade política ou civil10. A respeito da formação da mesma, e iniciando seu discurso em torno da questão, LOCKE11 faz suas as palavras de HOOKER: “As leis aqui mencionadas (ou seja, as leis da natureza) obrigam os homens de maneira absoluta, porque eles são homens, ainda que na ausência de relações estabelecidas, ao acordo solene entre eles sobre o que farão ou não farão; mas como somos incapazes por nós mesmos de buscar uma quantidade suficiente de objetos necessários ao gênero de vida que nossa natureza deseja, uma vida à medida da dignidade do homem, e assim suprir os defeitos e as imperfeições que nos são inerentes quando vivemos sozinhos e solitários, somos naturalmente induzidos a buscar a comunhão com outros e sua companhia; esta foi a causa dos homens terem se unido em sociedades políticas.” Ao analisar especificamente a sociedade política ou civil, LOCKE 12 justifica o surgimento da mesma como emanação da vontade Divina ao afirmar que “tendo Deus feito do homem uma criatura tal que, segundo seu julgamento, não era bom para ele ficar sozinho, submeteu-o a fortes obrigações de necessidade, comodidade e inclinação para levá-lo a viver em sociedade, assim como o dotou de entendimento e linguagem para mantê-la e desfrutá-la”. LOCKE no decorrer de sua obra não se olvida de expressar a forma através da qual se dá a formação da sociedade política ou civil. Assinala ele que isso ocorre no momento em que um número qualquer de homens reúne- 10. Vale ressaltar que LOCKE não estabelece distinção entre sociedade política e civil. 11. LOCKE, John. Ob. cit. p. 89-90. 12. idem, ibidem, p. 128. 14 Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7 (25), especial: 11-18, 1997 se em sociedade, renunciando cada qual ao poder executivo das leis (naturais) que lhe é conferido no estado de natureza. E acrescenta que tal fato se verifica porque “entram em sociedade para fazerem de um mesmo povo um corpo político único, sob um único governo supremo; ou todas as vezes que um indivíduo se une e se incorpora a qualquer governo já estabelecido”13. Desta forma os homens passam do estado de natureza para a sociedade política ou civil, “instituindo um juiz na terra com autoridade para dirimir todas as controvérsias e reparar as injúrias que possam ocorrer a qualquer membro da sociedade civil; este juiz é o legislativo ou os magistrados por ele nomeados”14. Ainda, segundo LOCKE15: “quando qualquer número de homens, através do consentimento de cada indivíduo, forma uma comunidade, dão a esta comunidade uma característica de um corpo único, com o poder de agir como um corpo único, o que significa agir somente segundo a vontade e a determinação da maioria. Pois o que move uma comunidade é sempre o consentimento dos indivíduos que a compõem”. Essa comunidade deve mover-se em uma única direção, ou seja, aquela determinada pela maioria, pois de outra forma torna-se insubsistente. FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DO DIREITO DE PROPRIEDADE 13. idem, ibidem, p. 134. 14. idem, ibidem. 15. idem, ibidem, p. 139. Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7 (25): 11-18, 1997 15 Após inicialmente mencionarmos (nota n. 1) o dizer de KELSEN, afirmando corresponder a propriedade privada como algo inerente à própria natureza humana, estendemos agora este ponto de vista com a observação de FRIEDRICH16, para quem “la propiedad ofrece la salvaguardia esencial para la libertad del individuo. Sólo puede ser libre el hombre que tiene propiedad”. Portanto, para ele, o direito de propriedade é requisito fundamental à liberdade do homem. Todavia resta-nos verificar a origem deste direito, sua evolução ao longo da história e os aspectos filosóficos que o permeiam. Quando os homens ainda se encontravam no estado de natureza como vimos anteriormente, regido pelo direito natural decorrente da vontade Divina - estes apenas se apropriavam da quantidade de bens necessários à sua sobrevivência e de suas famílias. Isto porque não lhes era lícito apropriar-se de mais do que pudessem efetivamente utilizar, sob pena de estarem usurpando bens dos quais os outros indivíduos poderiam usufruir. Esta apropriação de bens da natureza sem o consentimento dos demais homens (desde que restasse quantidade suficiente destes mesmos bens para que outros pudessem se utilizar deles) era permitida, tendo em vista que ninguém possui o domínio privado sobre estes bens enquanto eles se encontram no estado de natureza, ou seja, comuns a toda a humanidade. Entretanto, o trabalho empreendido pelo homem para apanhá-los (como no caso dos frutos silvestres) e caçá-los ou domesticá-los (como ocorre com os animais selvagens) gera para si a propriedade sobre eles, pois o trabalho é quem cria a propriedade e “estabelece em tudo a diferença de valor”17. É ele quem os separa do bem comum, tornando-os seu direito privado. 16. FRIEDRICH, Carl Joachim. Ob. cit. p. 213. 17. LOCKE, John. Ob. cit. p. 106. 16 Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7 (25), especial: 11-18, 1997 Com o passar do tempo os homens não mais buscaram apropriar-se apenas dos frutos e dos animais, mas da própria terra. E LOCKE18 deixa bastante claro que a regra do caso anterior também se aplica no que tange à aquisição da propriedade da terra: “Na medida em que ela inclui e comporta todo o resto, pareceme claro que esta propriedade, também ela, será adquirida como a precedente”. Da mesma forma que antes, nesta fase o homem também não podia apropriar-se de mais do que conseguiria efetivamente cultivar com seu labor, sob pena de estar praticando usurpação, tirando do bem comum parcela que poderia ser apropriada pelos demais. Isto porque, o trabalho era o título que exteriorizava o domínio sobre aquela terra. E esta regra disciplinadora da propriedade teria permanecido em vigor, segundo LOCKE19, “se a invenção do dinheiro e o acordo tácito entre os homens para estabelecer um valor para ele não tivesse introduzido (por consentimento) posses maiores e um direito a elas”. Este fato se deu após a formação da sociedade política ou civil, pois uma vez instituído o uso do dinheiro e convencionado o seu valor, os homens não mais ficaram restritos unicamente ao fator sobrevivência, pois sendo um bem duradouro que se podia guardar, possibilitava a acumulação de riquezas. Assim sendo, o direito de propriedade passou a ser regulado por normas de direito positivo, e não somente por elas, mas, também, pelas leis de mercado. 18. idem, ibidem, p. 100. 19. idem, ibidem, p. 103. Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7 (25): 11-18, 1997 17