POR UMA RENOVAÇÃO DO ENSINO DA FILOSOFIA NO BRASIL

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POR UMA RENOVAÇÃO DO ENSINO DA FILOSOFIA NO BRASIL
Dr. Pe. Pier Luigi Bernareggii
I – Diagnóstico da situação
As Faculdades de Filosofia no Brasil continuam se ressentindo hoje de uma tradição
filosófica, cujas raízes se fundamentam ainda no período colonial, e que já se tornou um “estilo
cultural”, praticamente obrigatório na formação dos pensadores brasileiros; nessa tradição,
confluem dois elementos, desde a origem, completamente separados e antagônicos, mas que,
no processo de formação brasileira, acabaram dando-se as mãos, para estabelecer o estilo
filosófico atual em nosso País.
Com efeito, basta ter uma experiência limitada e superficial do ensino filosófico me
nossas faculdades, para logo percebermos uma característica típica e inconfundível desse
ensino: a constante citação repetitiva e explicativa dos autores em todos os cursos. O bom
professor é aquele que mais constantemente sabe substanciar o seu curso pela vasta e
competente citação do maior número possível de autores, proporcionando cabal prova de
riqueza e sutileza de sua assimilação e pronta capacidade de exibição do pensamento alheio.
Por sua vez, o aluno ideal é aquele que, lançando-se faminto e cabisbaixo no acervo da mais
bem fornecida biblioteca, sabe, num “trabalho de pesquisa-modelo”, apresentar evidentes
provas de saber: assimilar, armazenar, classificar e apresentar não só as idéias, mas até o
frasear e a terminologia específica de cada autor a respeito de qualquer assunto proposto.
Houve quem dissesse, num recente congresso de Filosofia em Salvador, que o pensamento no
Brasil se substancia num “repensamento” da filosofia de além mar. Com efeito, o saldo de
contribuição original das escolas filosóficas brasileiras para o pensamento mundial, em
trezentos anos de história, é extremamente baixo.
Dizíamos que, para criar essa pouco invejável situação em nossa sociedade, e,
conseqüentemente, em nossa Universidade, contribuíram duas diretrizes que, apesar de
antagônicas, aliaram-se para produzir o resultado atual.
a)
– A primeira causa, é, sem dúvida, o colonialismo cultural que marcou as origens do
ambiente espiritual brasileiro. Colonialismo cultural que acompanhou o colonialismo
econômico e político, mas que, após a aparente (e só aparente) eliminação do
segundo, continuou explicitamente e de forma marcante através da francolatria do
século XIX, na onda do entusiasmo positivista. Não só os dizeres da bandeira nacional,
mas a própria substância do pensamento e da prática escolar superior do século
passado, foram subservientes em tudo aos “slogans” de além-mar.
b)
– Falando no Positivismo do século passado, tocamos na segunda razão que explica o
clima repetitivo e infecundo do atual ensino da filosofia no Brasil. Os ideais do
Positivismo Clássico, que dominou o Brasil na época crucial de sua formação como
país independente no século passado, são profunda e radicalmente hostis e toda forma
de colonialismo, escravização e tradição humana de subserviência, exaltando a
libertação dos povos pela ciências e pela técnica, e profetizando o surgimento de um
novo mundo, no qual o homem seja finalmente livre e independente. Nesse ponto, o
positivismo clássico fielmente repetido no Brasil, podia ser (como de fato o foi) mentor
de transformações importantes, em sua sociedade. Todavia, há no Positivismo um
elemento fundamental que serviu, em filosofia, para produzir o efeito oposto: trata-se
de seu enciclopedismo erudito, que faz a cultura consistir numa soma de dados, e o
processo aquisitivo do saber num armazenamento cientificamente planejado dos
mesmos. Assim, abraçando entusiasticamente o novo verbo positivo, rompendo (ou
imaginando romper) definitivamente com as tradições e com as dominações
estrangeiras, inconscientemente, o pensamento brasileiro afundava-se, cada vez mais,
na sua já secular tendência à repetição, ao nocionismo estéril e erudito, capaz de
enfeitar e ornamentar o “status” de figuras importantes da sociedade, mas radicalmente
incapaz de fazer brotar do íntimo da mesma um fato genético, novo e original. Assim, o
colonialismo atávico e o nocionismo cultural positivista acabaram por fixar uma sina à
cultura filosófica brasileira: a do infinito esforço (realmente tantálico) para receber,
catalogar, armazenar, e difundir os produtos alhures elaborados.
A função da Universidade, dentro desse esquema, definiu-se conseqüentemente, como
função transmissora do cabedal já efetivamente armazenado, e como habilitação para que os
espíritos (os mais “vastos”, isto é, mais volumetricamente enciclopédicos) se condicionassem
para uma assimilação ainda maior.
2) – As conseqüências tristes duma semelhante situação são inúmeras:
a)
– A primeira entre todas é a incapacidade atávica do universitário brasileiro de ser
realmente criativo, dentro do processo educacional. A respeito desse ponto, há uma
dupla observação a fazer: uma sobre o sistema atual de ensino com sua filosofia
implícita, outra sobre o próprio aluno.
A orientação global do ensino no Brasil, em todos os graus, é atualmente uma cópia fiel
do modelo em voga (pelo menos até alguns anos atrás) nos Estados Unidos: a convicção
básica que anima todo o processo é diretamente decorrente do pragmatismo pedagógico dos
povos anglo-saxônicos, reformulada pelos estudos psicológicos a respeito do condicionamento
do comportamento e da aprendizagem, e, mais, recentemente, enriquecida pelos progressos
da cibernética aplicada à racionalização da aprendizagem. Em substância, o aluno é visto
como um elemento potencialmente produtivo dentro do sistema econômico-social vigente, a ser
condicionado no menor tempo possível e pelo menor custo possível para realizar, com
perfeição, a tarefa de armazenar dados e memorizar técnicas elaboradoras dos mesmos, para
futuramente atuar no setor de “feed-back” do sistema acima referido. A Clássica contraprova
flagrante dessa mentalidade fundamental é a maneira pela qual, em geral, se processa a
avaliação da aprendizagem nessa orientação pedagógica: o teste de múltipla escolha. É esse,
com efeito, um instrumental psicológico adaptado, desde as suas origens, para controlar o
condicionamento dos reflexos. Nessa linha de pensamentos, aparece claramente a inutilidade,
e até a periculosidade duma intervenção “criadora”, capaz de fugir, por sua força própria e
espontânea (não prevista na programação do processo) ao elemento condicionador, inserido,
na rígida programação prefixada, uma perda de tempo, uma complicação, que até chega a
invalidar toda a estrutura lógica do processo predeterminado. Destarte, o ensino atual no Brasil,
continuando na tradição conhecida de copiar os modelos elaborados por outros, e, desta vez,
um modelo entre os mais prejudiciais para uma autêntica educação para a criatividade,
consiste numa imensa máquina condicionadora dos reflexos mentais (e, a longo prazo,
espirituais) dos jovens, que, mais que educados, estão sendo “treinados”, para “bem funcionar”
no esquema fixado, cujas razões de fundo lhes escapam, e cujos controles finais estão nas
mãos não deles, mas do poder constituído, que os pode tornar cada vez mais inacessíveis à
massa universitária, justamente pelo alto nível de condicionamento ao qual a mesma se acha
submetida.
Nesse sistema de ensino, que, não esqueçamos, funciona com a mesma orientação,
rigorosamente a partir do pré-primário, o aluno, só por uma rara exceção, poderá permanecer
criadora, não incentivada, não cultivada, não desenvolvida, leva-lo-á muito mais para a área do
auto-didatismo, da marginalização, para não falar da aberta contestação e subversão em todos
estes casos, a universidade não é atingida, o conjunto não é solicitado a uma transformação
real, e tudo permanece como estava: renova-se aqui a observação, já inúmeras vezes feita, de
que um sistema como o americano é indefinidamente capaz de absorver e imunizar-se contra
os seus competidores.
Na realidade, a situação do aluno no atual esquema de ensino universitário, é
extremamente deplorável: já trabalhado pelo regime de “condicionamento” na escola
secundária, e pela degradante farsa do vestibular que eleva este condicionamento a níveis
obsessivos, ao ingressar na instituição que lhe deveria restituir a força e a intuição criadora, o
jovem é definitivamente tragado pela eficiência pragmática da universidade, dobrando-se, por
necessidade de sobrevivência econômica e social, ao processo em ato, perdendo a sua
identidade criadora, a sua personalidade crítica. Nas faculdades de filosofia, isso acontece
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especialmente, como já vimos, pela dura sobrevivência do colonialismo cultural e do ideal
repetitivo da erudição positivista. O aluno, acostumado ao trabalho de pesquisa repetitivo e
acumulativo, adapta-se, sem querer, à orientação geral de toda a universidade, adquirindo o
gosto da citação erudita, do frasear complicado (porque repetido sem perceber-lhe a inspiração
interior que o gerou), do “show” atordoante e surpreendente, exotérico e confuso. A sua própria
mente vai-se perdendo na floresta das citações e dos conceitos desbaratadamente
coadunados; torna-se alienado, vazio, impotente. Na maioria dos casos, acaba por procurar,
em outros cursos ou faculdades, a experiência de realismo e de eficácia histórica e social, que
o curso de filosofia lhe negou completamente.
b) – Uma segunda conseqüência do atual estado do ensino da Filosofia no Brasil é a
esterelidade social e cultural da filosofia no nosso ambiente. Reduzida a passatempo para
privilegiados, ou a cacoete perdoável para filhos de famílias abastadas, na realidade, a
Filosofia nunca teve um papel efetivamente crítico e fundante acerca dos problemas do mundo
real do homem brasileiro, que lhe permaneceu sempre irredutivelmente estranho. Vindo a faltar
a importantíssima função crítica e reflexiva da filosofia na sociedade, esta última ficou entregue
a todo vento da ideologia expoliativa e colonialista, apesar das pretensões contrárias dos
homens que fizeram o Império, a República, etc.. No âmbito universitário, é realmente
lamentável o clima de decepção que, na maioria das nossas faculdades, invade os idealistas,
jovens aspirantes à profissão de filósofos, ao constatarem o quanto os estudos os fazem, cada
vez mais, desencarnar-se do mundo em que vivem, inclusive através da prática ainda
colonialista da “reciclagem” no exterior (especialmente, segundo a melhor tradição do século
XIX na França). Seria interessante analisar o que se passa então com os jovens filósofos, em
paralelo com o que se passa com os jovens tecnólogos e cientistas reciclados nos Estados
Unidos. Remodelado segundo as mais recentes sutilezas do “esprit” cartesiano da mais pura
tradição intelectualista francesa, o jovem filósofo, se regressar ao País, assume uma cadeira
universitária com toda a glória e a fama de ter-se formado no exterior, pretendendo “enquadrar”
(embora falando os novos verbos estruturalistas e fenomenológicos) o espírito do seu antigo
país de origem, dentro dos quadros mentais determinados alhures, e fracassa assim
redondamente na sua mais autêntica e genuína missão, que é a de suscitar a criatividade
especulativa do povo e da terra em que nasceu. Ornamenta-se ele de infindáveis citações e
reminiscências eruditas: obriga os alunos a violentarem a sua própria sensibilidade e intuição
naturais, para se codificarem nos termos das últimas novidades européias; e finalmente
consegue formar gerações de espíritos esotericamente presunçosos, fechados numa ciência
de elite, impenetrável até pelo seu vocabulário, abstrata e abstrusa diante da realidade e do
pensar espontâneo brasileiro.
3) – Ainda uma palavra se faz necessária aqui, a respeito da atitude do regime atual com
relação às Faculdades de Filosofia no nosso País.
Temos dois aspectos: de um lado, a filosofia é considerada uma peça quase que inútil
no conjunto social ao qual se pretende chegar – a sociedade tecnocrática ideal (utópica), do
outro lado é sentida como um possível elemento de questionamento e de contradição.
a) – Não há dúvida de que o menosprezo da função filosófica em nossa sociedade provém, em
parte, da ideologia capitalista tecnocrática, profundamente inimiga da primazia do espiritual
sobre o material, da pretensão axiológico-normativa da filosofia, e do desmascaramento por ela
operado das ideologizações indevidas da ciência e da técnica que esta sociedade realiza.
Todavia, para compreendermos completamente esta minimização do papel da filosofia na
sociedade, não devemos perder de vista a situação lamentável de alienação de que falávamos
acima, em que se encontra a própria filosofia em nosso País. Até os olhos imparciais e nãoideologizados, a filosofia no Brasil se apresenta profundamente “rarefeita” e perfeitamente
dispensável no contexto de um mundo concreto como o do País de hoje. Em decorrência disso,
procura-se desestimular o cultivo da função crítica das Faculdades, universitárias em geral, e
filosóficas em particular por instrumentos extremamente simples, como o fechamento do
mercado de trabalho para a profissão de filósofo que, como bem se sabe, é fundamentalmente
o ensino secundário da Filosofia. Com esse simples meio, impossibilitando qualquer
perspectiva econômica compensadora, esvaziam-se os cursos de filosofia pura. Desestimulase também a presença de cursos de cunho filosófico em outras faculdades, reduzindo-os a
matérias optativas e pouco valorizadas no conjunto curricular.
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b) – A segunda tendência com relação ao ensino da filosofia é, porém, como já dissemos, a
cautela diante da não remota possibilidade de a mesma vir a ser um elemento altamente
questionante, diante da situação social vigente. Essa possibilidade evidentemente preocupa o
poder, e meios eficazes são postos em ação para prevenir qualquer surpresa: desde o controle
básico do ensino realizado extra-oficialmente (em nível policial), até o recrutamento para
Instituições de orientações afins ao regime e por ele abundantemente financiadas, das
personalidades filosóficas embora mais brilhantes, mias repetitivas e espiritualmente
“colonizadas”, para fazerem delas a base ideológica da organização das diretrizes do ensino de
todos os graus no País inteiro e, sobretudo, nas Universidades. Ambas as componentes da
política oficial diante do ensino da Filosofia, aqui lembradas, levam evidentemente a um ulterior
aumento da caracterização repetitiva, não-criativa e meramente decorativa deste mesmo
ensino no País, de que falamos no começo.
II – Pistas de trabalho
Uma vez feito esse diagnóstico da realidade educacional brasileira de nível superior no
campo filosófico, propomos aqui algumas linhas de trabalho para superar essa situação
aviltante para a disciplina que tanto nos interessa. Elas são dirigidas especificamente aos
educadores, que cientes de sua responsabilidade diante da sociedade e da sua própria
consciência (e, mais ainda, quando for uma consciência de matriz cristã), estão preocupados,
como nós estamos, em criar “escolas” filosóficas dignas deste nome no Brasil, isto é, marcadas
por aquela alta carga de criatividade que o povo brasileiro evidentemente possui.
1) Uma questão preliminar pode ser colocada: o gênio brasileiro seria ele “filosófico” por
natureza? Conhecemos vozes até autoráveis que sustentam que não. Até que ponto seriam
estas vozes objetivas e não já impregnadas pelo colonialismo cultural descrito acima, é assunto
para muitas discussões. O nosso parecer é extremamente aberto e oferece várias
possibilidades a respeito. Uma comparação que, como todas as comparações só parcialmente
serve, é aquela que se pode fazer com o mundo tecnológico e científico: ninguém teria dito, há
alguns decênios atrás, que o Brasil serviria dentro do contexto do avanço tecnológico e
científico mundial para muito mais do que para consumir os seus próprios produtos, importados
numa eterna dependência de tecnologia estrangeira, pois o “gênio” mestiço e mulato do Brasil
seria totalmente alérgico a qualquer racionalização de tipo científico. A história está
demonstrando o contrário. Não só, atualmente, há uma fertilidade (super-incentivada pelo
governo de orientação tecnocrática) nos empreendimentos, que chegaram ao ponto de
estarem já exportando tecnologia, como também o próprio “parque” de pesquisa científica
apresenta perspectivas muito alentadoras, especialmente em assuntos tipicamente “brasileiros”
(vejam p/ ex., o centro de pesquisa do cacau em Itabuna, BA, o mais perfeito e procurado do
mundo no seu campo específico). O que se pode realmente dizer (e que se torna uma
qualidade e não um defeito) é que a alma brasileira é nativamente alérgica a especulações
esquemáticas, que nada tenham a ver com a realidade vivida concretamente pelo povo desta
terra. Nisso, sim, podemos reconhecer a profunda e altamente positiva contribuição na
formação brasileira, por exemplo, do espírito “tribal” africano, e do seu vitalismo metafísico.
Ninguém nunca conseguirá atrair o coração brasileiro para a impessoal e abstrata especulação
“in vitro” de cartesiana ou leibnitziana memória. Isso quer dizer que “ipso facto”, o brasileiro é
incapaz de filosofar? Quem assim pensar tem um conceito muito unilateral e acanhado de
filosofia, além de uma boa dose de espírito neocolonialista e de limitação mental. Isso quer
dizer, pelo contrário, que, no Brasil, existem as condições ideais para um pensamento que jorre
da vida e que se coloque como vivente reflexão sobre a experiência real, sobre a evidência
concreta, dentro da grandiosa e nunca interrompida tradição clássica, medieval, moderna e
contemporânea da filosofia sem fronteiras, sem raças, sem cores, sem preconceitos, porque
capaz de jorrar de todas as raças, cores, experiências realmente humanas.
2) Eliminada a objeção preliminar, vamos agora apresentar linhas para uma superação da
situação no campo do ensino atual da Filosofia em nossas Universidades.
a) Há uma luta concreta, da qual, em grande parte, vai depender o futuro de escolas filosóficas
de gabarito no País: a luta para a implantação do ensino da filosofia na escola de 2° grau.
Dupla é a razão dessa luta: primeiramente, só um curso de 2° grau que proporcione uma
aproximação com a problemática filosófica em toda a sua extensão histórica ou teóretica
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poderá permitir que a qualidade humana dos candidatos aos cursos universitários ofereça as
condições materiais para o nascer de verdadeiras “escolas” criativas. Atualmente, os alunos
chegam ao curso filosófico universitário extremamente pobres de condições humanas básicas
para tal, como por exemplo, de uma sensibilidade aguda da problemática humana e social, de
uma formação preliminar metodológica diante dessa problemática, de um gosto todo pessoal
pela criatividade do pensar, condições essas que o ensino anterior, como vimos,
propositadamente evitou criar.
b) Em segundo lugar, o ensino da filosofia nas escolas de 2° grau representa aquele mercado
de trabalho, aquela motivação concreta de influência social que só pode atrair as vocações dos
jovens brasileiros, que, como já dissemos, estão profundamente ligados à experiência
concreta, à concreta transformação do mundo e da civilização. Sem material humano já
preparado, e sem perspectivas de influência social concreta, é bem difícil que uma “escola”
superior de filosofia possa afirmar-se e crescer entre nós. Essa não é uma luta dispensável ou
de importância secundária, como pensam os adeptos do pragmatismo tecnocrata dominante. A
filosofia sempre esteve e estará entre os elementos estruturalmente vitais para que haja uma
vida social rica de humanidade e de progresso civil, moral, cultural. Uma sociedade que, como
parece querer fazer certa orientação do poder atual no País, sistematicamente desestimule a
livre e criadora força do pensamento está se condenado à barbárie, e assinando o próprio
atestado de óbito. Nessa perspectiva pela extensão do seu raio de influência na população,
pela faixa etária particularmente sensível e aberta à qual se dirige, pela influência estável que
pode exercer sobre a formação das personalidades dos alunos, não há dúvida nenhuma de
que o ensino de 2° grau é o verdadeiro desafio para que se possam lançar as bases de uma
renovação cultural no Brasil. E, lamentavelmente, talvez seja por estarem por demais
conscientes disso, que os ideólogos do tecnologismo-capitalista dominante estão tolerando a
Filosofia nas Universidades (para quem goste deste “inútil cacoete espiritual”), mas se opõem
frontalmente às tentativas de implantação dessa disciplina no 2° grau do ensino nacional.
Como realizar esta luta? Com os meios que a praxe social nos indica: a conscientização do
corpo docente, a partir de núcleos de trabalho que se irão espalhando nas Universidades
brasileiras; a influência sobre a opinião pública dos meios de comunicação normal, que estão
em nossas mãos, antes de mais nada, sobre o corpo discente, através das aulas que por sua
natureza intrínseca, estão abertíssimas para o debate e a conscientização do assunto; a
influência sobre o público especializado no campo educacional, pelas publicações do setor,
encontros e congressos (é interessante, a esse respeito, que um dos maiores congressos
filosóficos brasileiros, recentemente realizado em Salvador, não tenha dito sequer uma palavra
a respeito do problema do ensino da Filosofia na escola de 2° grau no Brasil); e assim por
diante.
Mas, até que esse desafio seja devidamente respondido, também outras linhas de
ação devem ser, a nosso ver, empregadas, inclusive porque não será só pelo aparecimento de
um campo de trabalho novo que a qualidade do ensino filosófico universitário poderá melhorar.
Ela deve e pode melhorar desde já, preparando assim o terreno para o dia em que os
preconceitos e barreiras cairão, e então uma “escola” universitária, qualitativamente preparada,
poderá atuar em nossa sociedade, em ampla escala. A primeira medida concreta a ser tomada
para superar o clima de repetição erudita acima notado, deve ser, a nosso ver, o trabalho junto
ao corpo docente: por difícil que seja conciliar horários, encontrar espaços de tempo,
convencer as administrações universitárias de que há necessidade de remunerar o docente
pelo tempo que dedica ao aprimoramento comunitário de sua mentalidade e de seus métodos
junto com os colegas, devemos lutar para que prevaleça entre os docentes universitários a
convicção de que há um trabalho de aprimoramento sobre o estilo de ensino a ser realizado
entre nós, e que não há esperança nenhuma de fazê-lo, a não ser pela troca de experiência, a
experimentação comum, o aprimoramento recíproco. É verdade que esse trabalho pode ser
impedido muito pela índole individualista e, às vezes, incapaz de mudanças de alguns
professores, particularmente moldados pelos esquemas enciclopédicos repetitivos e inertes
que presidiram à sua formação: mas, é verdade também que temos uma grande maioria de
elementos que lecionam em nossas Universidades por verdadeiro espírito de idealismo,
abertos e realmente angustiados com a situação presente: isso acontece entre as novas, como
também (é significativo!) entre as velhas gerações. O problema, aqui, como em muitos outros
casos, é que haja algum elemento de liderança, que assuma seriamente o desafio e saiba, aos
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poucos, reunir em volta de si um grupo de colegas, capaz por sua vez de sensibilizar outra
faculdade, e assim por diante.
c) Uma segunda medida a ser tomada com urgência é começar a pesquisar, seriamente, no
campo da pedagogia da filosofia educacional na história da cultura no Brasil, das Leis de
Ensino no Brasil e no mundo, visando à colecionar dados e apoiar as teses apresentadas com
documentações e estatísticas, segundo uma técnica de indagação sociológica, filosófica,
legislativa, etc., pautada pelo rigor e clarividência, a fim de que sejam editadas publicações de
extremo valor científico, a serem usadas como instrumentos de luta, não apenas espontâneos
(como é o presente artigo), mas profundamente documentados por uma análise de fatos e das
possibilidades. Abre-se aqui um campo muito grande para o trabalho de pesquisa, ao qual é
realmente importante que a universidade se dedique. É necessário, no entanto, que se
estabeleça a condição de não fazer da pesquisa a coleção positivista e erudita, abstrata e
inerte de um saber arqueologicamente catalogável, mas um instrumento vivo de trabalho e de
transformação da realidade concreta, em que se vive, como filósofos engajados nos processos
que nos desafiam.
d) Mas não é suficiente que os docentes abram os olhos sobre a realidade e se proponham a
transformá-la pelo trabalho comum de experimentação e pesquisa: é também necessário que
os alunos sejam despertados para a mesma finalidade. Como conseguir do aluno uma atitude
ativa e criadora em filosofia? É evidente que a resposta detalhada a esta pergunta só poderá
ser dada, através da experimentação de que falamos acima. Todavia, alguma coisa já
podemos antever. Por exemplo: parece-nos importante que a atitude global na qual o aluno se
coloca, na faculdade, passe de uma vivência funcional – profissionalizante (a universidade é
para ele um mecanismo de escalada a um degrau social) para uma vivência críticopersonalizante (a universidade deve-se tornar, para ele, o lugar em que se sente ajudado a
tomar consciência pessoal de todos os grandes problemas do homem e do mundo, bem como
a ensejar caminhos de solução).
e) Dentro dessa perspectiva educativa, parece-nos também importante passar de uma vivência
“privatizada” da experiência universitária (os anos passados na universidade são, afinal, o
itinerário individual de alguém interessado no seu futuro, no seu sucesso, no seu papel na
sociedade) para uma vivência comunitária. Esse ponto é capital para o nosso assunto: com
efeito, só pode haver criatividade e inventividade, onde houver diálogo, interpersonalidade,
troca, comunicação profunda, integração de experiência. Basta observar a grande lição que os
períodos mais fecundos na história da civilização e da filosofia nos apresentam: as “seitas”
pitagóricas; a “academia” platônica, o Perípato de Aristóteles, o “Didascaléion” de Alexandria,
as universidades medievais, modernas, e, onde realmente funcionam as contemporâneas, o
denominador comum é a dimensão de integração comunitária, não-privatizante. Assim, não só
é importante incentivar o trabalho em comum dos docentes, mas também a vivência
comunitária dos alunos e de alunos docentes. Dimensão comunitária que, para ser verdadeira
e humana, não poderá restringir-se evidentemente ao aspecto do estudo em sentido estrito,
mas deverá tender a abranger a complexidade da experiência vivida em um ambiente comum,
o da universidade. Destarte, o estudo poderá deixar o seu triste aspecto erudito e arqueológico,
para se tornar, cada vez mais, o que só pode ser: “studium”, isto é, amor, ou melhor, meditação
que nasce do amor. Grupos de interesse, de atividade, de discussão de fazer, de convivência,
deverão ser ricamente incentivados, para que, de uma riqueza de experiência comum, possa
brotar o gosto e a alegria da criatividade. A atitude criadora não pode jorrar num ambiente
exclusivamente intelectualista. O trabalho intelectual verdadeiramente fecundo só encontra o
seu terreno propício de desenvolvimento num “humus” comunitário global, isto é, numa riqueza
completa de relações vitais humanas. Nessa linha, deverá também evoluir o clima em nossas
faculdades, é o fim do “academicismo” estéril e intelectualista, que parece ter sido depois do
modelo da “universidade” medieval, tão humano e vivente, a degeneração na qual caiu a
instituição universitária, ao longo dos séculos até os nossos dias, impulsionada pelo
intelectualismo abstrato burguês.
f) Com relação à orientação propriamente intelectual dos estudos, o aluno deverá sempre mais
ser levado a sentir que “estudar” não é apenas – conhecer e dominar o pensamento que já foi
elaborado por outros, sobre a realidade e a experiência, mas é, essencialmente – o trabalho de
reflexão pessoal, diretamente engajado em primeira pessoa, acerca da realidade e da
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experiência. A “intenção” fundamental não se dirige ao pensamento, e sim à vida e à
experiência; pensar não é saber o que já se pensou mas é saber o sentido da vida. E é só em
vista dessa única e verdadeira finalidade que, também, se ouve o pensamento alheio, num
diálogo que só será fecundo, se o olhar estiver constante e penetrantemente fixo na
experiência e na vida, e, portanto constantemente capacitado de detectar a verdade e o erro, a
utilidade e a vacuidade do pensamento alheio, em relação à maior ou menor capacidade que
ele tem de explicar a experiência da vida (função crítica). Por esse caminho (aqui só delineado
de forma bem geral) é possível, de um lado, evitar todas as formas de idolatria e
endeusamento do pensamento “já feito” alhures e debaixo de outras condições de vida, de
outras nuances de civilização, etc., evitando-se, assim, cair no colonialismo cultural, na
esterilidade e no fixismo (que não deixam de ser desse modo, apesar de terem como objeto
material as últimas e mais aprimoradas formas de pensar no mundo contemporâneo); e de
outro lado, é possível aquela fidelidade à experiência da vida, que só pode motivar e estimular
as forças eurísticas e criadoras do aluno.
Com essas notas, que não quiseram ser um estudo profundo, e sim um esboço de
intuições e de exigências que a experiência do ambiente do ensino universitário faz brotar, nós
não pretendemos indicar todas as possíveis linhas de trabalho para tornarmos mais criador e
vital o clima do ensino de Filosofia no Brasil. Só quisemos levantar o problema e começar a
sugerir algumas pistas de soluções prováveis. Gostaríamos imensamente de que o assunto
fosse aprofundado, seja teoricamente, seja, sobretudo, experimentalmente, pelos docentes
interessados, a fim de criarmos, a longo prazo, um hábito mental de lidarmos com essa
problemática, discuti-la, e fazê-la progredir dentro do nosso meio. Cremos firmemente que, com
paciência e constância, novos horizontes poderão abrir-se para o ensino da Filosofia em nossa
terra.
i
Professor de História da Filosofia Antiga e Medieval e Análise de Textos Filosóficos, no ICFT e no PCHACH, da
Universidade Católica de Minas Gerais.
Obs.: O texto foi escrito, muito provavelmente, em 1979.
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