POR UMA RENOVAÇÃO DO ENSINO DA FILOSOFIA NO BRASIL Dr. Pe. Pier Luigi Bernareggii I – Diagnóstico da situação As Faculdades de Filosofia no Brasil continuam se ressentindo hoje de uma tradição filosófica, cujas raízes se fundamentam ainda no período colonial, e que já se tornou um “estilo cultural”, praticamente obrigatório na formação dos pensadores brasileiros; nessa tradição, confluem dois elementos, desde a origem, completamente separados e antagônicos, mas que, no processo de formação brasileira, acabaram dando-se as mãos, para estabelecer o estilo filosófico atual em nosso País. Com efeito, basta ter uma experiência limitada e superficial do ensino filosófico me nossas faculdades, para logo percebermos uma característica típica e inconfundível desse ensino: a constante citação repetitiva e explicativa dos autores em todos os cursos. O bom professor é aquele que mais constantemente sabe substanciar o seu curso pela vasta e competente citação do maior número possível de autores, proporcionando cabal prova de riqueza e sutileza de sua assimilação e pronta capacidade de exibição do pensamento alheio. Por sua vez, o aluno ideal é aquele que, lançando-se faminto e cabisbaixo no acervo da mais bem fornecida biblioteca, sabe, num “trabalho de pesquisa-modelo”, apresentar evidentes provas de saber: assimilar, armazenar, classificar e apresentar não só as idéias, mas até o frasear e a terminologia específica de cada autor a respeito de qualquer assunto proposto. Houve quem dissesse, num recente congresso de Filosofia em Salvador, que o pensamento no Brasil se substancia num “repensamento” da filosofia de além mar. Com efeito, o saldo de contribuição original das escolas filosóficas brasileiras para o pensamento mundial, em trezentos anos de história, é extremamente baixo. Dizíamos que, para criar essa pouco invejável situação em nossa sociedade, e, conseqüentemente, em nossa Universidade, contribuíram duas diretrizes que, apesar de antagônicas, aliaram-se para produzir o resultado atual. a) – A primeira causa, é, sem dúvida, o colonialismo cultural que marcou as origens do ambiente espiritual brasileiro. Colonialismo cultural que acompanhou o colonialismo econômico e político, mas que, após a aparente (e só aparente) eliminação do segundo, continuou explicitamente e de forma marcante através da francolatria do século XIX, na onda do entusiasmo positivista. Não só os dizeres da bandeira nacional, mas a própria substância do pensamento e da prática escolar superior do século passado, foram subservientes em tudo aos “slogans” de além-mar. b) – Falando no Positivismo do século passado, tocamos na segunda razão que explica o clima repetitivo e infecundo do atual ensino da filosofia no Brasil. Os ideais do Positivismo Clássico, que dominou o Brasil na época crucial de sua formação como país independente no século passado, são profunda e radicalmente hostis e toda forma de colonialismo, escravização e tradição humana de subserviência, exaltando a libertação dos povos pela ciências e pela técnica, e profetizando o surgimento de um novo mundo, no qual o homem seja finalmente livre e independente. Nesse ponto, o positivismo clássico fielmente repetido no Brasil, podia ser (como de fato o foi) mentor de transformações importantes, em sua sociedade. Todavia, há no Positivismo um elemento fundamental que serviu, em filosofia, para produzir o efeito oposto: trata-se de seu enciclopedismo erudito, que faz a cultura consistir numa soma de dados, e o processo aquisitivo do saber num armazenamento cientificamente planejado dos mesmos. Assim, abraçando entusiasticamente o novo verbo positivo, rompendo (ou imaginando romper) definitivamente com as tradições e com as dominações estrangeiras, inconscientemente, o pensamento brasileiro afundava-se, cada vez mais, na sua já secular tendência à repetição, ao nocionismo estéril e erudito, capaz de enfeitar e ornamentar o “status” de figuras importantes da sociedade, mas radicalmente incapaz de fazer brotar do íntimo da mesma um fato genético, novo e original. Assim, o colonialismo atávico e o nocionismo cultural positivista acabaram por fixar uma sina à cultura filosófica brasileira: a do infinito esforço (realmente tantálico) para receber, catalogar, armazenar, e difundir os produtos alhures elaborados. A função da Universidade, dentro desse esquema, definiu-se conseqüentemente, como função transmissora do cabedal já efetivamente armazenado, e como habilitação para que os espíritos (os mais “vastos”, isto é, mais volumetricamente enciclopédicos) se condicionassem para uma assimilação ainda maior. 2) – As conseqüências tristes duma semelhante situação são inúmeras: a) – A primeira entre todas é a incapacidade atávica do universitário brasileiro de ser realmente criativo, dentro do processo educacional. A respeito desse ponto, há uma dupla observação a fazer: uma sobre o sistema atual de ensino com sua filosofia implícita, outra sobre o próprio aluno. A orientação global do ensino no Brasil, em todos os graus, é atualmente uma cópia fiel do modelo em voga (pelo menos até alguns anos atrás) nos Estados Unidos: a convicção básica que anima todo o processo é diretamente decorrente do pragmatismo pedagógico dos povos anglo-saxônicos, reformulada pelos estudos psicológicos a respeito do condicionamento do comportamento e da aprendizagem, e, mais, recentemente, enriquecida pelos progressos da cibernética aplicada à racionalização da aprendizagem. Em substância, o aluno é visto como um elemento potencialmente produtivo dentro do sistema econômico-social vigente, a ser condicionado no menor tempo possível e pelo menor custo possível para realizar, com perfeição, a tarefa de armazenar dados e memorizar técnicas elaboradoras dos mesmos, para futuramente atuar no setor de “feed-back” do sistema acima referido. A Clássica contraprova flagrante dessa mentalidade fundamental é a maneira pela qual, em geral, se processa a avaliação da aprendizagem nessa orientação pedagógica: o teste de múltipla escolha. É esse, com efeito, um instrumental psicológico adaptado, desde as suas origens, para controlar o condicionamento dos reflexos. Nessa linha de pensamentos, aparece claramente a inutilidade, e até a periculosidade duma intervenção “criadora”, capaz de fugir, por sua força própria e espontânea (não prevista na programação do processo) ao elemento condicionador, inserido, na rígida programação prefixada, uma perda de tempo, uma complicação, que até chega a invalidar toda a estrutura lógica do processo predeterminado. Destarte, o ensino atual no Brasil, continuando na tradição conhecida de copiar os modelos elaborados por outros, e, desta vez, um modelo entre os mais prejudiciais para uma autêntica educação para a criatividade, consiste numa imensa máquina condicionadora dos reflexos mentais (e, a longo prazo, espirituais) dos jovens, que, mais que educados, estão sendo “treinados”, para “bem funcionar” no esquema fixado, cujas razões de fundo lhes escapam, e cujos controles finais estão nas mãos não deles, mas do poder constituído, que os pode tornar cada vez mais inacessíveis à massa universitária, justamente pelo alto nível de condicionamento ao qual a mesma se acha submetida. Nesse sistema de ensino, que, não esqueçamos, funciona com a mesma orientação, rigorosamente a partir do pré-primário, o aluno, só por uma rara exceção, poderá permanecer criadora, não incentivada, não cultivada, não desenvolvida, leva-lo-á muito mais para a área do auto-didatismo, da marginalização, para não falar da aberta contestação e subversão em todos estes casos, a universidade não é atingida, o conjunto não é solicitado a uma transformação real, e tudo permanece como estava: renova-se aqui a observação, já inúmeras vezes feita, de que um sistema como o americano é indefinidamente capaz de absorver e imunizar-se contra os seus competidores. Na realidade, a situação do aluno no atual esquema de ensino universitário, é extremamente deplorável: já trabalhado pelo regime de “condicionamento” na escola secundária, e pela degradante farsa do vestibular que eleva este condicionamento a níveis obsessivos, ao ingressar na instituição que lhe deveria restituir a força e a intuição criadora, o jovem é definitivamente tragado pela eficiência pragmática da universidade, dobrando-se, por necessidade de sobrevivência econômica e social, ao processo em ato, perdendo a sua identidade criadora, a sua personalidade crítica. Nas faculdades de filosofia, isso acontece -2- especialmente, como já vimos, pela dura sobrevivência do colonialismo cultural e do ideal repetitivo da erudição positivista. O aluno, acostumado ao trabalho de pesquisa repetitivo e acumulativo, adapta-se, sem querer, à orientação geral de toda a universidade, adquirindo o gosto da citação erudita, do frasear complicado (porque repetido sem perceber-lhe a inspiração interior que o gerou), do “show” atordoante e surpreendente, exotérico e confuso. A sua própria mente vai-se perdendo na floresta das citações e dos conceitos desbaratadamente coadunados; torna-se alienado, vazio, impotente. Na maioria dos casos, acaba por procurar, em outros cursos ou faculdades, a experiência de realismo e de eficácia histórica e social, que o curso de filosofia lhe negou completamente. b) – Uma segunda conseqüência do atual estado do ensino da Filosofia no Brasil é a esterelidade social e cultural da filosofia no nosso ambiente. Reduzida a passatempo para privilegiados, ou a cacoete perdoável para filhos de famílias abastadas, na realidade, a Filosofia nunca teve um papel efetivamente crítico e fundante acerca dos problemas do mundo real do homem brasileiro, que lhe permaneceu sempre irredutivelmente estranho. Vindo a faltar a importantíssima função crítica e reflexiva da filosofia na sociedade, esta última ficou entregue a todo vento da ideologia expoliativa e colonialista, apesar das pretensões contrárias dos homens que fizeram o Império, a República, etc.. No âmbito universitário, é realmente lamentável o clima de decepção que, na maioria das nossas faculdades, invade os idealistas, jovens aspirantes à profissão de filósofos, ao constatarem o quanto os estudos os fazem, cada vez mais, desencarnar-se do mundo em que vivem, inclusive através da prática ainda colonialista da “reciclagem” no exterior (especialmente, segundo a melhor tradição do século XIX na França). Seria interessante analisar o que se passa então com os jovens filósofos, em paralelo com o que se passa com os jovens tecnólogos e cientistas reciclados nos Estados Unidos. Remodelado segundo as mais recentes sutilezas do “esprit” cartesiano da mais pura tradição intelectualista francesa, o jovem filósofo, se regressar ao País, assume uma cadeira universitária com toda a glória e a fama de ter-se formado no exterior, pretendendo “enquadrar” (embora falando os novos verbos estruturalistas e fenomenológicos) o espírito do seu antigo país de origem, dentro dos quadros mentais determinados alhures, e fracassa assim redondamente na sua mais autêntica e genuína missão, que é a de suscitar a criatividade especulativa do povo e da terra em que nasceu. Ornamenta-se ele de infindáveis citações e reminiscências eruditas: obriga os alunos a violentarem a sua própria sensibilidade e intuição naturais, para se codificarem nos termos das últimas novidades européias; e finalmente consegue formar gerações de espíritos esotericamente presunçosos, fechados numa ciência de elite, impenetrável até pelo seu vocabulário, abstrata e abstrusa diante da realidade e do pensar espontâneo brasileiro. 3) – Ainda uma palavra se faz necessária aqui, a respeito da atitude do regime atual com relação às Faculdades de Filosofia no nosso País. Temos dois aspectos: de um lado, a filosofia é considerada uma peça quase que inútil no conjunto social ao qual se pretende chegar – a sociedade tecnocrática ideal (utópica), do outro lado é sentida como um possível elemento de questionamento e de contradição. a) – Não há dúvida de que o menosprezo da função filosófica em nossa sociedade provém, em parte, da ideologia capitalista tecnocrática, profundamente inimiga da primazia do espiritual sobre o material, da pretensão axiológico-normativa da filosofia, e do desmascaramento por ela operado das ideologizações indevidas da ciência e da técnica que esta sociedade realiza. Todavia, para compreendermos completamente esta minimização do papel da filosofia na sociedade, não devemos perder de vista a situação lamentável de alienação de que falávamos acima, em que se encontra a própria filosofia em nosso País. Até os olhos imparciais e nãoideologizados, a filosofia no Brasil se apresenta profundamente “rarefeita” e perfeitamente dispensável no contexto de um mundo concreto como o do País de hoje. Em decorrência disso, procura-se desestimular o cultivo da função crítica das Faculdades, universitárias em geral, e filosóficas em particular por instrumentos extremamente simples, como o fechamento do mercado de trabalho para a profissão de filósofo que, como bem se sabe, é fundamentalmente o ensino secundário da Filosofia. Com esse simples meio, impossibilitando qualquer perspectiva econômica compensadora, esvaziam-se os cursos de filosofia pura. Desestimulase também a presença de cursos de cunho filosófico em outras faculdades, reduzindo-os a matérias optativas e pouco valorizadas no conjunto curricular. -3- b) – A segunda tendência com relação ao ensino da filosofia é, porém, como já dissemos, a cautela diante da não remota possibilidade de a mesma vir a ser um elemento altamente questionante, diante da situação social vigente. Essa possibilidade evidentemente preocupa o poder, e meios eficazes são postos em ação para prevenir qualquer surpresa: desde o controle básico do ensino realizado extra-oficialmente (em nível policial), até o recrutamento para Instituições de orientações afins ao regime e por ele abundantemente financiadas, das personalidades filosóficas embora mais brilhantes, mias repetitivas e espiritualmente “colonizadas”, para fazerem delas a base ideológica da organização das diretrizes do ensino de todos os graus no País inteiro e, sobretudo, nas Universidades. Ambas as componentes da política oficial diante do ensino da Filosofia, aqui lembradas, levam evidentemente a um ulterior aumento da caracterização repetitiva, não-criativa e meramente decorativa deste mesmo ensino no País, de que falamos no começo. II – Pistas de trabalho Uma vez feito esse diagnóstico da realidade educacional brasileira de nível superior no campo filosófico, propomos aqui algumas linhas de trabalho para superar essa situação aviltante para a disciplina que tanto nos interessa. Elas são dirigidas especificamente aos educadores, que cientes de sua responsabilidade diante da sociedade e da sua própria consciência (e, mais ainda, quando for uma consciência de matriz cristã), estão preocupados, como nós estamos, em criar “escolas” filosóficas dignas deste nome no Brasil, isto é, marcadas por aquela alta carga de criatividade que o povo brasileiro evidentemente possui. 1) Uma questão preliminar pode ser colocada: o gênio brasileiro seria ele “filosófico” por natureza? Conhecemos vozes até autoráveis que sustentam que não. Até que ponto seriam estas vozes objetivas e não já impregnadas pelo colonialismo cultural descrito acima, é assunto para muitas discussões. O nosso parecer é extremamente aberto e oferece várias possibilidades a respeito. Uma comparação que, como todas as comparações só parcialmente serve, é aquela que se pode fazer com o mundo tecnológico e científico: ninguém teria dito, há alguns decênios atrás, que o Brasil serviria dentro do contexto do avanço tecnológico e científico mundial para muito mais do que para consumir os seus próprios produtos, importados numa eterna dependência de tecnologia estrangeira, pois o “gênio” mestiço e mulato do Brasil seria totalmente alérgico a qualquer racionalização de tipo científico. A história está demonstrando o contrário. Não só, atualmente, há uma fertilidade (super-incentivada pelo governo de orientação tecnocrática) nos empreendimentos, que chegaram ao ponto de estarem já exportando tecnologia, como também o próprio “parque” de pesquisa científica apresenta perspectivas muito alentadoras, especialmente em assuntos tipicamente “brasileiros” (vejam p/ ex., o centro de pesquisa do cacau em Itabuna, BA, o mais perfeito e procurado do mundo no seu campo específico). O que se pode realmente dizer (e que se torna uma qualidade e não um defeito) é que a alma brasileira é nativamente alérgica a especulações esquemáticas, que nada tenham a ver com a realidade vivida concretamente pelo povo desta terra. Nisso, sim, podemos reconhecer a profunda e altamente positiva contribuição na formação brasileira, por exemplo, do espírito “tribal” africano, e do seu vitalismo metafísico. Ninguém nunca conseguirá atrair o coração brasileiro para a impessoal e abstrata especulação “in vitro” de cartesiana ou leibnitziana memória. Isso quer dizer que “ipso facto”, o brasileiro é incapaz de filosofar? Quem assim pensar tem um conceito muito unilateral e acanhado de filosofia, além de uma boa dose de espírito neocolonialista e de limitação mental. Isso quer dizer, pelo contrário, que, no Brasil, existem as condições ideais para um pensamento que jorre da vida e que se coloque como vivente reflexão sobre a experiência real, sobre a evidência concreta, dentro da grandiosa e nunca interrompida tradição clássica, medieval, moderna e contemporânea da filosofia sem fronteiras, sem raças, sem cores, sem preconceitos, porque capaz de jorrar de todas as raças, cores, experiências realmente humanas. 2) Eliminada a objeção preliminar, vamos agora apresentar linhas para uma superação da situação no campo do ensino atual da Filosofia em nossas Universidades. a) Há uma luta concreta, da qual, em grande parte, vai depender o futuro de escolas filosóficas de gabarito no País: a luta para a implantação do ensino da filosofia na escola de 2° grau. Dupla é a razão dessa luta: primeiramente, só um curso de 2° grau que proporcione uma aproximação com a problemática filosófica em toda a sua extensão histórica ou teóretica -4- poderá permitir que a qualidade humana dos candidatos aos cursos universitários ofereça as condições materiais para o nascer de verdadeiras “escolas” criativas. Atualmente, os alunos chegam ao curso filosófico universitário extremamente pobres de condições humanas básicas para tal, como por exemplo, de uma sensibilidade aguda da problemática humana e social, de uma formação preliminar metodológica diante dessa problemática, de um gosto todo pessoal pela criatividade do pensar, condições essas que o ensino anterior, como vimos, propositadamente evitou criar. b) Em segundo lugar, o ensino da filosofia nas escolas de 2° grau representa aquele mercado de trabalho, aquela motivação concreta de influência social que só pode atrair as vocações dos jovens brasileiros, que, como já dissemos, estão profundamente ligados à experiência concreta, à concreta transformação do mundo e da civilização. Sem material humano já preparado, e sem perspectivas de influência social concreta, é bem difícil que uma “escola” superior de filosofia possa afirmar-se e crescer entre nós. Essa não é uma luta dispensável ou de importância secundária, como pensam os adeptos do pragmatismo tecnocrata dominante. A filosofia sempre esteve e estará entre os elementos estruturalmente vitais para que haja uma vida social rica de humanidade e de progresso civil, moral, cultural. Uma sociedade que, como parece querer fazer certa orientação do poder atual no País, sistematicamente desestimule a livre e criadora força do pensamento está se condenado à barbárie, e assinando o próprio atestado de óbito. Nessa perspectiva pela extensão do seu raio de influência na população, pela faixa etária particularmente sensível e aberta à qual se dirige, pela influência estável que pode exercer sobre a formação das personalidades dos alunos, não há dúvida nenhuma de que o ensino de 2° grau é o verdadeiro desafio para que se possam lançar as bases de uma renovação cultural no Brasil. E, lamentavelmente, talvez seja por estarem por demais conscientes disso, que os ideólogos do tecnologismo-capitalista dominante estão tolerando a Filosofia nas Universidades (para quem goste deste “inútil cacoete espiritual”), mas se opõem frontalmente às tentativas de implantação dessa disciplina no 2° grau do ensino nacional. Como realizar esta luta? Com os meios que a praxe social nos indica: a conscientização do corpo docente, a partir de núcleos de trabalho que se irão espalhando nas Universidades brasileiras; a influência sobre a opinião pública dos meios de comunicação normal, que estão em nossas mãos, antes de mais nada, sobre o corpo discente, através das aulas que por sua natureza intrínseca, estão abertíssimas para o debate e a conscientização do assunto; a influência sobre o público especializado no campo educacional, pelas publicações do setor, encontros e congressos (é interessante, a esse respeito, que um dos maiores congressos filosóficos brasileiros, recentemente realizado em Salvador, não tenha dito sequer uma palavra a respeito do problema do ensino da Filosofia na escola de 2° grau no Brasil); e assim por diante. Mas, até que esse desafio seja devidamente respondido, também outras linhas de ação devem ser, a nosso ver, empregadas, inclusive porque não será só pelo aparecimento de um campo de trabalho novo que a qualidade do ensino filosófico universitário poderá melhorar. Ela deve e pode melhorar desde já, preparando assim o terreno para o dia em que os preconceitos e barreiras cairão, e então uma “escola” universitária, qualitativamente preparada, poderá atuar em nossa sociedade, em ampla escala. A primeira medida concreta a ser tomada para superar o clima de repetição erudita acima notado, deve ser, a nosso ver, o trabalho junto ao corpo docente: por difícil que seja conciliar horários, encontrar espaços de tempo, convencer as administrações universitárias de que há necessidade de remunerar o docente pelo tempo que dedica ao aprimoramento comunitário de sua mentalidade e de seus métodos junto com os colegas, devemos lutar para que prevaleça entre os docentes universitários a convicção de que há um trabalho de aprimoramento sobre o estilo de ensino a ser realizado entre nós, e que não há esperança nenhuma de fazê-lo, a não ser pela troca de experiência, a experimentação comum, o aprimoramento recíproco. É verdade que esse trabalho pode ser impedido muito pela índole individualista e, às vezes, incapaz de mudanças de alguns professores, particularmente moldados pelos esquemas enciclopédicos repetitivos e inertes que presidiram à sua formação: mas, é verdade também que temos uma grande maioria de elementos que lecionam em nossas Universidades por verdadeiro espírito de idealismo, abertos e realmente angustiados com a situação presente: isso acontece entre as novas, como também (é significativo!) entre as velhas gerações. O problema, aqui, como em muitos outros casos, é que haja algum elemento de liderança, que assuma seriamente o desafio e saiba, aos -5- poucos, reunir em volta de si um grupo de colegas, capaz por sua vez de sensibilizar outra faculdade, e assim por diante. c) Uma segunda medida a ser tomada com urgência é começar a pesquisar, seriamente, no campo da pedagogia da filosofia educacional na história da cultura no Brasil, das Leis de Ensino no Brasil e no mundo, visando à colecionar dados e apoiar as teses apresentadas com documentações e estatísticas, segundo uma técnica de indagação sociológica, filosófica, legislativa, etc., pautada pelo rigor e clarividência, a fim de que sejam editadas publicações de extremo valor científico, a serem usadas como instrumentos de luta, não apenas espontâneos (como é o presente artigo), mas profundamente documentados por uma análise de fatos e das possibilidades. Abre-se aqui um campo muito grande para o trabalho de pesquisa, ao qual é realmente importante que a universidade se dedique. É necessário, no entanto, que se estabeleça a condição de não fazer da pesquisa a coleção positivista e erudita, abstrata e inerte de um saber arqueologicamente catalogável, mas um instrumento vivo de trabalho e de transformação da realidade concreta, em que se vive, como filósofos engajados nos processos que nos desafiam. d) Mas não é suficiente que os docentes abram os olhos sobre a realidade e se proponham a transformá-la pelo trabalho comum de experimentação e pesquisa: é também necessário que os alunos sejam despertados para a mesma finalidade. Como conseguir do aluno uma atitude ativa e criadora em filosofia? É evidente que a resposta detalhada a esta pergunta só poderá ser dada, através da experimentação de que falamos acima. Todavia, alguma coisa já podemos antever. Por exemplo: parece-nos importante que a atitude global na qual o aluno se coloca, na faculdade, passe de uma vivência funcional – profissionalizante (a universidade é para ele um mecanismo de escalada a um degrau social) para uma vivência críticopersonalizante (a universidade deve-se tornar, para ele, o lugar em que se sente ajudado a tomar consciência pessoal de todos os grandes problemas do homem e do mundo, bem como a ensejar caminhos de solução). e) Dentro dessa perspectiva educativa, parece-nos também importante passar de uma vivência “privatizada” da experiência universitária (os anos passados na universidade são, afinal, o itinerário individual de alguém interessado no seu futuro, no seu sucesso, no seu papel na sociedade) para uma vivência comunitária. Esse ponto é capital para o nosso assunto: com efeito, só pode haver criatividade e inventividade, onde houver diálogo, interpersonalidade, troca, comunicação profunda, integração de experiência. Basta observar a grande lição que os períodos mais fecundos na história da civilização e da filosofia nos apresentam: as “seitas” pitagóricas; a “academia” platônica, o Perípato de Aristóteles, o “Didascaléion” de Alexandria, as universidades medievais, modernas, e, onde realmente funcionam as contemporâneas, o denominador comum é a dimensão de integração comunitária, não-privatizante. Assim, não só é importante incentivar o trabalho em comum dos docentes, mas também a vivência comunitária dos alunos e de alunos docentes. Dimensão comunitária que, para ser verdadeira e humana, não poderá restringir-se evidentemente ao aspecto do estudo em sentido estrito, mas deverá tender a abranger a complexidade da experiência vivida em um ambiente comum, o da universidade. Destarte, o estudo poderá deixar o seu triste aspecto erudito e arqueológico, para se tornar, cada vez mais, o que só pode ser: “studium”, isto é, amor, ou melhor, meditação que nasce do amor. Grupos de interesse, de atividade, de discussão de fazer, de convivência, deverão ser ricamente incentivados, para que, de uma riqueza de experiência comum, possa brotar o gosto e a alegria da criatividade. A atitude criadora não pode jorrar num ambiente exclusivamente intelectualista. O trabalho intelectual verdadeiramente fecundo só encontra o seu terreno propício de desenvolvimento num “humus” comunitário global, isto é, numa riqueza completa de relações vitais humanas. Nessa linha, deverá também evoluir o clima em nossas faculdades, é o fim do “academicismo” estéril e intelectualista, que parece ter sido depois do modelo da “universidade” medieval, tão humano e vivente, a degeneração na qual caiu a instituição universitária, ao longo dos séculos até os nossos dias, impulsionada pelo intelectualismo abstrato burguês. f) Com relação à orientação propriamente intelectual dos estudos, o aluno deverá sempre mais ser levado a sentir que “estudar” não é apenas – conhecer e dominar o pensamento que já foi elaborado por outros, sobre a realidade e a experiência, mas é, essencialmente – o trabalho de reflexão pessoal, diretamente engajado em primeira pessoa, acerca da realidade e da -6- experiência. A “intenção” fundamental não se dirige ao pensamento, e sim à vida e à experiência; pensar não é saber o que já se pensou mas é saber o sentido da vida. E é só em vista dessa única e verdadeira finalidade que, também, se ouve o pensamento alheio, num diálogo que só será fecundo, se o olhar estiver constante e penetrantemente fixo na experiência e na vida, e, portanto constantemente capacitado de detectar a verdade e o erro, a utilidade e a vacuidade do pensamento alheio, em relação à maior ou menor capacidade que ele tem de explicar a experiência da vida (função crítica). Por esse caminho (aqui só delineado de forma bem geral) é possível, de um lado, evitar todas as formas de idolatria e endeusamento do pensamento “já feito” alhures e debaixo de outras condições de vida, de outras nuances de civilização, etc., evitando-se, assim, cair no colonialismo cultural, na esterilidade e no fixismo (que não deixam de ser desse modo, apesar de terem como objeto material as últimas e mais aprimoradas formas de pensar no mundo contemporâneo); e de outro lado, é possível aquela fidelidade à experiência da vida, que só pode motivar e estimular as forças eurísticas e criadoras do aluno. Com essas notas, que não quiseram ser um estudo profundo, e sim um esboço de intuições e de exigências que a experiência do ambiente do ensino universitário faz brotar, nós não pretendemos indicar todas as possíveis linhas de trabalho para tornarmos mais criador e vital o clima do ensino de Filosofia no Brasil. Só quisemos levantar o problema e começar a sugerir algumas pistas de soluções prováveis. Gostaríamos imensamente de que o assunto fosse aprofundado, seja teoricamente, seja, sobretudo, experimentalmente, pelos docentes interessados, a fim de criarmos, a longo prazo, um hábito mental de lidarmos com essa problemática, discuti-la, e fazê-la progredir dentro do nosso meio. Cremos firmemente que, com paciência e constância, novos horizontes poderão abrir-se para o ensino da Filosofia em nossa terra. i Professor de História da Filosofia Antiga e Medieval e Análise de Textos Filosóficos, no ICFT e no PCHACH, da Universidade Católica de Minas Gerais. Obs.: O texto foi escrito, muito provavelmente, em 1979. -7-