UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE LILIAN FAERTES NASCIMENTO HUMANIZAÇÃO NO AMBIENTE HOSPITALAR À LUZ DA PSICANÁLISE RIO DE JANEIRO 2013 LILIAN FAERTES NASCIMENTO HUMANIZAÇÃO NO AMBIENTE HOSPITALAR À LUZ DA PSICANÁLISE Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação – Strictu sensu – Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Linha de Pesquisa: Subjetividade nas Práticas das Ciências da Saúde. ORIENTADORA: Profª Drª MARIA DA GLÓRIA SCHWAB SADALA RIO DE JANEIRO 2013 DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU E DE PESQUISA Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922 FOLHA DE APROVAÇÃO LILIAN FAERTES NASCIMENTO HUMANIZAÇÃO NO AMBIENTE HOSPITALAR À LUZ DA PSICANÁLISE Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação – Strictu sensu – Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Linha de Pesquisa: Subjetividade nas Práticas das Ciências da Saúde. Aprovado em ___ de ________ de 2013. Banca examinadora ___________________________________ Profª Drª Maria da Glória Schwab Sadala Universidade Veiga de Almeida ___________________________________ Profª Drª Sonia Borges Universidade Veiga de Almeida ___________________________________ Prof. Dr. Ademir Batista da Cunha Universidade Federal Fluminense À minha amada família. AGRADECIMENTOS Às minhas, infinitamente amadas, filhas, luzes de minha vida e razão absoluta de tudo que construí até aqui. Ao meu marido, companheiro de toda uma vida, que, através do próprio exemplo, sempre me impulsionou no caminho do progresso nos estudos e na busca de aprimoramento profissional. Ao meu querido e saudoso pai, cuja tenacidade impressionante me ensinou a sempre seguir em frente e jamais desistir de meus projetos. À minha querida mãe, brava guerreira, que com sua tolerância soube compreender minhas ausências decorrentes do mergulho nos meus estudos e na escrita. Ao meu grande companheiro Cauê, fiel cãozinho e escudeiro, cuja serena e incondicional presença foi determinante para a minha perseverança. Às minhas irmãs, pelo amor e apoio incondicional. Às minhas grandes companheiras de mestrado, Andrea e Margareth, cujo incentivo mútuo foi um grande motivador durante o mestrado. Ao Instituto Nacional de Cardiologia que apostou no aprimoramento de políticas de humanização no atendimento. Aos meus companheiros do serviço de saúde mental do Instituto, pelo apoio e motivação para a busca de novos conhecimentos. Um agradecimento especial à minha orientadora, Profª Drª Glória Sadala, grande mestra e incentivadora dos meus estudos. Por fim, a todos que aqui não foram mencionados, mas que direta ou indiretamente, contribuíram para o êxito desta jornada. “Todos os dias, quando acordo, vou correndo tirar a poeira da palavra amor”. (Clarice Lispector) . RESUMO Este trabalho tem como objetivo constituir-se em uma contribuição teórica da psicanálise para os profissionais de saúde, a fim de que possam entender a importância da transferência na adesão ao tratamento dos pacientes que se encontram em situação de internação hospitalar. A presente pesquisa aborda o fenômeno da transferência como instrumento nas ações da política de humanização, uma vez que este permite aprofundar a análise da relação profissional e paciente, ressaltando a importância da singularidade. A transferência atravessa todas as relações humanas e, por esta razão, entendese que ela esteja também operando nas relações que se estabelecem durante a internação, podendo influir diretamente na condução e na adesão ao tratamento. As formulações fundamentais sobre o conceito de transferência realizadas no campo da psicanálise são apresentadas, considerando-se especialmente as concepções teóricas de Sigmund Freud e Jacques Lacan. A pesquisa ainda apresenta uma breve revisão das políticas públicas de saúde no Brasil até a implantação da Política Nacional de Humanização. Palavras-chave: humanização, transferência, psicanálise. ABSTRACT This work aims to establish a theoretical contribution of psychoanalysis to health professionals, in order to understand the importance of transference for the adherence of patients to treatment during hospitalization. This research approaches the transference phenomenon as an instrument of actions of humanization policies, once it allows a deeper analysis of the relationship between professional and patient, emphasizing the importance of singularity. Transference crosses all human relations and for this reason it is understood that it is also operating in the relations that are established during hospital stay, which can directly influence treatment driving and the adherence to it. The fundamental formulations about the concept of transference conducted in the field of psychoanalysis are represented, considering especially the theoretical conceptions of Sigmund Freud and Jacques Lacan. The research also presents a brief review of brazilian public health until the implementation of the National Humanization Policy. Key-words: humanization, transference, psychoanalysis. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01 - Fachada do INC em 1977 .......................................................... 19 Figura 02 - Fachada do INC em 2013 .......................................................... 19 Figura 03 - Artérias coronárias ..................................................................... 29 Figura 04 - Cateterismo cardíaco ................................................................. 29 Figura 05 - Válvulas cardíacas ..................................................................... 35 Figura 06 - Grupo de pré-operatório infantil ................................................. 53 Figura 07 - Grupo de pré-operatório infantil ................................................. 53 Figura 08 - Questionário Anexo B ................................................................ 55 Figura 09 - Questionário Anexo B ................................................................ 55 Figura 10 - Questionário Anexo B ................................................................ 55 Figura 11 - Questionário Anexo B ................................................................ 55 Figura 12 - Questionário Anexo B ................................................................ 56 Figura 13 - Questionário Anexo C ................................................................ 58 Figura 14 - Questionário Anexo C ................................................................ 59 Figura 15 - Questionário Anexo C ................................................................ 59 Figura 16 - Questionário Anexo C ................................................................ 59 Figura 17 - Programa de Tratamento do Tabagismo.................................... 62 Figura 18 - Programa de Tratamento do Tabagismo.................................... 62 Figura 19 - Programa de Tratamento do Tabagismo.................................... 62 Figura 20 - Grupo de pré-operatório ............................................................ 63 Figura 21 - Grupo de pré-operatório ............................................................ 63 Figura 22 - Grupo de pré-operatório ............................................................ 63 Figura 23 - Capa do manual do Paciente .................................................... 65 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CAP Comunidade Ampliada de Pesquisa CIA Comunicação inter-atrial CIPA Interna de Prevenção de Acidentes CNS Conferência nacional de Saúde GTH Grupo de Trabalho de Humanização INC Instituto Nacional de Cardiologia PNH Política Nacional de Humanização SUS Sistema Único de Saúde SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 12 2 UMA UNIDADE DE CARDIOLOGIA NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE....... 17 2.1 O Instituto, sua história e organização hospitalar ...................................... 17 2.2 Adoecimento mental e cardiopatias ........................................................... 22 2.3 O paciente cardiopata ................................................................................ 28 3 A POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO E A HUMANIZAÇÃO NO AMBIENTE HOSPITALAR.......................................................................... 38 3.1 Breve histórico das Políticas Públicas de Saúde no Brasil......................... 38 3.2 A construção do Sistema Único de Saúde ................................................ 40 3.3 A humanização no atendimento e a Política Nacional de Humanização ... 43 3.4 A Política Nacional de Humanização ......................................................... 46 3.5 A Política Nacional e Humanização no Instituto ........................................ 51 4 A TRANSFERÊNCIA COMO INSTRUMENTO PARA A POLÍTICA DE HUMANIZAÇÃO.......................................................................................... 68 4.1 Um pouco de história ................................................................................. 70 4.2 O inconsciente: breve percurso sobre o seu conceito ............................... 73 4.3 A Transferência .......................................................................................... 78 5 CONCLUSÃO .............................................................................................. 87 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................... 89 7 ANEXOS ...................................................................................................... 95 8 APÊNDICE ................................................................................................ 110 12 1 INTRODUÇÃO Minha formação como psiquiatra, trabalhando também com portadores de doenças clínicas desde cedo, me ofereceu diversas oportunidades de me defrontar com a doença mental em suas mais variadas entidades nosológicas e em diferentes graus de gravidade e prognóstico. Proporcionou-me conhecer um pouco do funcionamento do sistema público de saúde. Acreditando na forma globalizante de visualizar o ser humano, não dissociada em corpo e mente, em 1987 fui trabalhar em um hospital de Cardiologia da rede pública, hoje uma unidade de alta complexidade, logo no início da proposta de implantação do Serviço de Saúde Mental nesta Instituição. A princípio minha atividade como psiquiatra era voltada para atendimento de pedidos de pareceres e interconsultas. Esse trabalho se desenvolveu, na medida em que o hospital foi se tornando predominantemente cirúrgico, em uma rotina sistematizada de avaliação, preparo e acompanhamento de pacientes encaminhados para cirurgias cardíacas, essas envolvendo os diversos grupos de cardiopatias, entre elas as coronarianas, valvulares e lesões congênitas do coração. Além de ter participado da construção do serviço de saúde mental do Instituto e de responder por sua coordenação atualmente, tive a grata oportunidade de me engajar, desde 2004, como representante do Instituto, na Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, voltada para as práticas do Sistema Único de Saúde. Para que fosse possível atender a demanda sempre crescente, a equipe de saúde mental foi sendo acrescida de novos profissionais, entre psicólogos e psiquiatras, organizando-se finalmente como um serviço de saúde mental, adquirindo dentro do hospital um espaço próprio onde ocorrem também as reuniões de equipe e discussões de casos. A equipe trabalha integrada com as outras categorias funcionais, participando das reuniões clínicas nos diversos departamentos e apostando na importância da interdisciplinaridade como a melhor forma de aprimorar a assistência. Esta forma de trabalhar foi determinante para a busca do mestrado profissional interdisciplinar. 13 Quanto à dinâmica de funcionamento do serviço, a equipe tem sempre em mente a magnitude do significado do papel das emoções na participação e na evolução das cardiopatias. Daí o atendimento a estes pacientes ter como premissa básica, oferecer uma escuta voltada para sua vida pessoal, sua interrelação com a doença e de como está sendo vivenciado o momento de enfrentar a internação e a cirurgia, situação essa, habitualmente acompanhada de fantasias, dúvidas e temores, uma vez que envolve o órgão a que se atribui não só o papel de centro da vida, mas também o de centro de nossos sentimentos. Ao atendimento individual, imprescindível no que se refere à singularidade de cada paciente e de sua forma única e pessoal de vivenciar a doença e a internação, foram sendo introduzidas diversas modalidades de atendimentos em grupo voltados para os pacientes internados e para algumas condições ambulatoriais. Quanto aos pacientes internados, o serviço atende a adultos e crianças, para tratamento cirúrgico ou clínico, distribuindo-se nos diversos departamentos, tentando manter os membros da equipe fixos nos mesmos, a fim de que possam dar continuidade aos atendimentos instituídos e manter preservada a relação terapêutica. Na cirurgia cardíaca, o trabalho desenvolve-se basicamente em duas etapas: o preparo pré-operatório e o acompanhamento pós-operatório. Quando possível, e de acordo com a demanda, o preparo pré-operatório é feito individualmente e, independentemente disso, os pacientes participam voluntariamente do grupo de preparo pré-operatório, que acontece regularmente toda semana, em um espaço denominado sala de convivência, uma das grandes conquistas do grupo de trabalho de humanização no hospital, onde os pacientes podem interagir, conversar, jogar, ver televisão e receber visitas, entre outras atividades, inclusive grupais e interdisciplinares. Na medida em que o grupo vai se desenvolvendo e pelas técnicas com as quais é conduzido, percebe-se que os pacientes ficam cada vez mais à vontade para se colocarem. Nestes grupos de pré-operatório, os pacientes têm a possibilidade de manusear equipamentos aos quais estarão ligados quando despertarem da 14 cirurgia, sendo estimulados a colocarem suas dúvidas, medos e fantasias acerca dos procedimentos pelos quais passarão, bem como se cuidar a partir daquele momento. Com muita frequência surgem questões sobre sexualidade, relações familiares, alimentação, risco de vida e possibilidades futuras, entre outras questões. Esta modalidade de atendimento em grupo oferece uma oportunidade especial para o exercício da interdisciplinaridade, uma vez que nele se encontram diversas categorias funcionais trabalhando em conjunto, na tentativa de melhor compreender e assistir ao paciente. Esta participação dos diversos profissionais é permanentemente estimulada, o que facilita e aprimora muito a comunicação. São realizados, em espaço e horário próprios, grupos específicos para os familiares dos pacientes cirúrgicos, para que eles também possam colocar suas questões. No pós-operatório, tanto na unidade fechada quanto na enfermaria, os acompanhamentos são mantidos para aqueles que já vinham sendo acompanhados, bem como podem ser instituídos para aqueles que venham a ter indicação neste momento. O atendimento aos pacientes internados nas enfermarias e em algumas unidades fechadas se inicia a partir de solicitação de qualquer um dos membros da equipe de saúde, sendo que por diversas vezes a demanda parte do próprio paciente ou de um familiar, estabelecendo-seassim a avaliação e o acompanhamento. Após a avaliação inicial, os pacientes passam a receber acompanhamento sob a forma de visitas diárias, focalizando especialmente as ansiedades, fantasias, preocupações e expectativas trazidas por cada um, buscando-se uma melhor evolução emocional diante das várias etapas envolvidas no contexto do adoecer. Com frequência, se evidenciam outras situações de sofrimento, pregressas à internação, que são assistidas, na medida do possível, durante a hospitalização e que recebem encaminhamento para prosseguimento ambulatorial. No serviço voltado para atendimento de crianças e adolescentes, devido à sua especificidade, foram implementadas práticas próprias que envolvem o 15 atendimento individual aos pacientes, seus pais e acompanhantes, bem como também trabalhos em grupo. Nesse serviço, os grupos de preparo préoperatório envolvem crianças e familiares que tem a oportunidade de vivenciar juntos a experiência cirúrgica, com as crianças vestindo-se de cirurgiões e brincando de operar bonecos preparados para este fim, abrindo a possibilidade de que possam perceber e expressar através do brincar, os múltiplos sentimentos envolvidos. Mais recentemente, foi estabelecido o atendimento regular aos pacientes que aguardam transplante cardíaco. O atendimento se estabelece tão logo recebem a indicação de serem transplantados, tendo profissionais da equipe de saúde mental trabalhando junto com a própria equipe do serviço de transplante do Instituto. Além do atendimento voltado para os pacientes internados, são realizados atendimentos ambulatoriais específicos, voltados para o tratamento do tabagismo e para aqueles que ingressam no programa de reabilitação. Face aos frutos decorrentes do trabalho sistematizado da equipe de saúde mental e de sua participação ativa na dinâmica de funcionamento do hospital, diversas propostas de aprimoramento do atendimento e refinamento da comunicação foram incorporadas às demandas do grupo de trabalho de humanização do Instituto, por serem consideradas bastante identificadas com a Política Nacional de Humanização, que será mais amplamente discutida nesta pesquisa. Como assinalado anteriormente, esta política é voltada para a prática dos preceitos preconizados pelo Sistema Único de Saúde, que apesar de trabalhar em ações voltadas para o coletivo, tem como enfoque um olhar totalmente voltado para o paciente em sua singularidade, apontando para a importância de seus valores próprios, crenças e sua inserção na cultura, considerando fundamental a valorização de sua forma absolutamente particular de experimentar o adoecimento e os seus desdobramentos. Este enfoque, muito identificado com minha maneira de pensar e exercer meu trabalho me estimulou a pesquisar a questão da humanização à luz da psicanálise, através de um dos seus principais operadores que é a transferência. Esta pesquisa tem como eixo norteador a seguinte hipótese: a Política Nacional de Humanização (PNH) pressupõe o fenômeno da transferência em 16 suas ações, embora sem explicitá-lo, uma vez que esta política surgiu no campo específico da medicina. A transferência é um conceito formulado no campo da psicanálise, mas que pode ser utilizado para compreender o que se passa nas relações profissionais de diferentes práticas. 17 2 Uma Unidade de Cardiologia da Rede Pública de Saúde O presente capítulo versa sobre o Instituto Nacional de Cardiologia, unidade da rede pública de saúde, focalizando sua organização, o corpo de trabalhadores e sua distribuição, as formas de atendimento, o desenvolvimento do trabalho até o momento e a integração entre as suas equipes. Aborda também, os principais grupos de cardiopatias e seus portadores, ressaltando a relevância de que sejam olhados de forma única e particular diante da vivência do adoecimento do coração, órgão que, por si só, já guarda múltiplos significados. Pontua ainda suas correlações com a esfera emocional. Por fim, faz um percurso sobre a implantação do Serviço de Saúde Mental do Instituto, falando sobre sua composição e dinâmica de trabalho. 2.1 O INSTITUTO, SUA HISTÓRIA E ORGANIZAÇÃO HOSPITALAR O Instituto Nacional de Cardiologia (INC) pertence à rede hospitalar pública federal e é oriundo do antigo Hospital Nossa Senhora das Vitórias, tendo sido fundado em 1973 com o nome de Hospital de Clínicas de Laranjeiras, onde funcionava a Casa da Comerciária. Localiza-seem um prédio de 20 mil metros quadrados no bairro de Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, e oferece serviços diferenciados na investigação diagnóstica e no tratamento das doenças cardiovasculares Foi construído verticalmente, em doze pavimentos, aproveitando a estrutura física de um pensionato, sendo, portanto, uma unidade de construção adaptada, porém, nem por isso mal instalada. Tornou-se Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras em maio de 2000, passando a ser considerado em 2004, como o centro de referência em Doenças Cardiovasculares do Ministério da Saúde. Abraçou a causa de avançar em estratégias de humanização e respeito aos direitos do paciente. Devido à sua participação ativa no processo de implantação da Política Nacional de Humanização, pouco tempo depois, foi escolhido como seu projeto 18 piloto. Posteriormente, passou a chamar-se Instituto Nacional de Cardiologia, focalizando o seu papel de relevância nacional. Seu contingente é de, aproximadamente, mil e setecentos trabalhadores. Destes, muitos são médicos especialistas, tais como cardiologistas clínicos, cardiologistas pediátricos, hemodinamicistas, cirurgiões cardiovasculares, anestesistas, pediatras, clínicos intensivistas, radiologistas, psiquiatras, neurologistas, pneumologistas, nefrologistas, hematologistas, entre outros. Conta com o trabalho imprescindível de diversas categorias profissionais, além dos médicos e enfermeiros, com psicólogos de múltiplas formações, assistentes sociais, fisioterapeutas, nutricionistas e terapeutas ocupacionais, acreditando na importância da interdisciplinaridade. O Instituto conta com cerca de 150 leitos ativos, entre enfermarias de adultos e crianças, unidades de terapia intensiva e de pós-operatório, com projeto de expansão de novos leitos. Seu organograma mostra, no ápice, a Direção e, ligadas diretamente a ela, as Coordenações às quais, por sua vez, estão ligados os departamentos e os serviços. Apresenta uma coordenação específica de Ensino e Pesquisa e oferece anualmente vagas para residência médica e estágio, inclusive multiprofissional, e vem buscando reconhecimento de sua qualidade por meio do processo de acreditação hospitalar. A acreditação hospitalar é uma certificação de qualidade que é fornecida para instituições de saúde baseada em métodos de avaliação periódicos. Estes consideram padrões previamente definidos, tendo como objetivo garantir a qualidade da assistência. “A acreditação propicia um compromisso visível, por parte da instituição, de melhorar a segurança e a qualidade do cuidado ao paciente, garantir um ambiente seguro, e trabalhar constantemente para reduzir os riscos ao paciente e aos profissionais”. (CONSÓRCIO BRASILEIRO DE ACREDITAÇÃO, 2005, p.1). Sua atividade principal consiste em oferecer assistência em cardiologia de alta complexidade que inclui prevenção, diagnóstico, tratamento clínico- 19 cirúrgico das afecções cardiovasculares e reabilitação cardíaca. Tornou-se um centro de referência do Ministério da Saúde para a realização de treinamento, pesquisa e formulação de políticas de saúde. O Instituto Nacional de Cardiologia considera como sua Missão: "Promover a saúde cardiovascular, formar profissionais, desenvolver e disseminar conhecimentos e tecnologias para o desenvolvimento social e econômico do país" (INSTITUTO NACIONAL DE CARDIOLOGIA, 2013). Sua Visão: "Ser referência nacional em atenção cardiovascular, com excelência na assistência, ensino e pesquisa, desenvolvimento tecnológico e na gestão em saúde, sendo centro de formulação de políticas para a prevenção e terapia cardiovascular no país” (idem, ibidem). Tem como seus Valores: “Ética / Qualidade / Responsabilidade Social /Humanização / Gestão Participativa” (idem, ibidem). O Instituto é voltado ao atendimento ambulatorial e de internação para aqueles pacientes que são encaminhados pela rede pública, portadores de cardiopatias mais complexas e necessitando de tratamento especializado através de equipamentos e procedimentos mais elaborados, originários não sódo Rio de Janeiro, mas também do outros estados. Por sua estrutura vertical, o Instituto se distribui da seguinte forma: o ambulatório se localiza no térreo e presta atendimento àqueles pacientes já matriculados e em acompanhamento no Instituto (Figuras 01 e 02). 20 Na sobreloja funciona a radiologia e o Serviço de Hemodinâmica, onde são realizados os procedimentos de cateterismo, incluindo a realização de angioplastias e plastias valvulares, entre outros. No segundo andar localiza-se a Direção e toda a administração do hospital, seguida dos métodos complementares, a grande maioria, localizados acima, no terceiro andar do prédio. São denominados métodos complementares aqueles que compreendem os exames para avaliação diagnóstica, de alta tecnologia, que propiciam orientação para os melhores cursos terapêuticos para cada paciente, entre eles a ecocardiografia, a cintilografia miocárdica e o teste de esforço, além de equipamentos para monitoramento e avaliação de Hipertensão Arterial e arritmias cardíacas. O quarto andar é ocupado pelo Serviço de Cardiopediatria da Infância e da Adolescência, onde ficam internados os pacientes menores, com o acompanhamento de familiares. É distribuído em enfermaria clínica e unidade de pós-operatório, tendo também repouso para os acompanhantes, auditório e brinquedoteca ampla e muito bem equipada. Acima, no quinto andar, localizase a Coordenação de Ensino e Pesquisa, com auditório para aulas e ambientes específicos para pesquisa, inclusive em células-tronco. A partir daí, subindo, encontram-se os serviços voltados para os pacientes adultos, entre enfermarias e unidades de terapia intensiva. As enfermarias, localizadas no sétimo, oitavo e nono andares, são mistas, acolhendo homens e mulheres, distribuídos de acordo com a patologia principal da qual o paciente é portador, possuindo cores distintas, o que transforma o ambiente em mais acolhedor e menos uniforme e facilita ao próprio paciente e seus familiares a localizar-se melhor enquanto internado. Durante a internação, eles são acompanhados pela equipe de saúde e orientados sobre o seu tratamento e suas possibilidades clínicas também por residentes e estagiários, mantidos em supervisão permanente. No sexto, décimo e décimo primeiro andares, encontram-se as unidades fechadas, de tratamento intensivo, onde os pacientes são internados de acordo com a sua condição clínica ou cirúrgica. 21 Finalmente no décimo segundo andar, encontra-se a biblioteca e um grande auditório onde ocorrem as sessões clínicas, cursos e os eventos maiores, incluindo as atividades voltadas para os próprios pacientes, inclusive aqueles direcionados para a prevenção e o tratamento do tabagismo, entre outros. Os pacientes atendidos no Instituto, como já pontuado, recebem o atendimento simultâneo das diversas categorias funcionais que compõem o corpo de saúde, contando também com o corpo de trabalhadores administrativos, aqueles especializados em tecnologia da informação e profissionais responsáveis pela alimentação, pela vigilância e pela limpeza. A equipe de saúde procura trabalhar de forma integrada, participando não só de reuniões para discussão de casos, bem como fazendo atendimentos em grupo e aos familiares, propondo ainda, através de parcerias, os encaminhamentos dos pacientes enquanto internados e após a sua alta hospitalar. O Instituto preserva um grupo de trabalho de humanização, desde o início desse movimento a nível federal, que se reúne regularmente, fazendo parte da câmara técnica de humanização do Ministério da Saúde. O grupo participa dos processos de trabalho do Instituto, servindo de elemento de ligação entre a unidade e a equipe que gerencia a política nacional de humanização, participando das atividades por ela desenvolvidas. Graças à participação ativa e persistente deste grupo no aprimoramento do atendimento, várias conquistas foram alcançadas tais como as salas de convivência para pacientes, com televisão, revistas e jogos, tentando reduzir a solidão e o isolamento durante a internação. Partiu também deste grupo, o movimento de conscientização da importância da identificação da equipe de saúde para cada paciente, permitido que a assistência realmente se transforme em uma relação individualizada. Mais recentemente, este grupo de trabalho teve uma conquista há muito tempo almejada: a construção e a distribuição de um manual de orientação ao paciente internado. Este manual é entregue ao paciente logo que chega para a internação e fornece informações próprias à sua permanência no hospital, abrindo-se, a 22 partir daí, o convite para que possam discutir melhor suas questões, estimulados pelo que vêm contemplado nesse texto. 2.2 ADOECIMENTO MENTAL E CARDIOPATIAS Ao longo da história, o atendimento ao adoecimento mental passou por várias fases, marcadas pela rejeição social e pelo isolamento. Em um primeiro momento, a loucura foi cercada pela superstição e pelas ideias mágicas, levando a sociedade a abandonar ou a punir seus portadores. A seguir, o adoecer psíquico passou a ser isolado e agrupado, criandose instituições com esse fim, os asilos, destinados àqueles tidos como incuráveis que ali eram mantidos afastados e não poderiam mais ameaçar à sociedade. Esses estabelecimentos não tinham como objetivo a reintegração desses indivíduos à sociedade ou qualquer outra finalidade terapêutica, reforçando ainda mais a alienação e a exclusão. Somente no final do século XVIII, a partir de Phillipe Pinel entre outros expoentes da psiquiatria francesa, defende-se uma nova concepção de loucura, que passa então a denominar-se como doença mental. Mais tarde, com o desenvolvimento da psiquiatria esses conceitos foram se aprimorando, surgindo hospitais psiquiátricos específicos, onde os doentes submetiam-se a diversas modalidades de tratamento. Durante muito tempo a psiquiatria, enquanto especialidade médica, foi considerada como forma de trabalho “à parte”, isolada, de maneira semelhante àqueles doentes aos quais se dedicava. Na medida em que o desenvolvimento científico foi progredindo e ampliando os recursos diagnósticos e de tratamento, tornou-se cada vez mais clara a íntima relação corpo-mente, o que fez com que não mais se admitisse a visão setorizada do indivíduo. Houve uma compreensão maior do ser humano como uma totalidade, com seus órgãos diretamente relacionados com sua mente e vice-versa, já se vislumbrando esta inter-relação como determinante das condições de saúde ou doença do indivíduo. Esta visão globalizante levou auma maior aproximação entre a psiquiatria e a medicina, permitindo à primeira ser, finalmente, respeitada 23 enquanto especialidade. O ato de isolar os pacientes perde o sentido e esses passam a ser considerados doentes como quaisquer outros, passíveis e merecedores de tratamento. A partir daí surge o posicionamento, intensificado na década de oitenta, de proporcionar aos doentes mentais, aos portadores de queixas psicossomáticas e àqueles com sofrimento emocional das mais diversas formas, um espaço dentro dos hospitais gerais, enfocando-se o cuidado integral do indivíduo. Isto, porsua vez, gerou um olhar diferenciado para aqueles que, ao buscarem tratamento para doenças clinicas, apresentassem também sofrimento emocional, propiciando a eles um acompanhamento especializado. Ao longo da história, o enfoque dado ao adoecer foi marcado pelasmais diversas maneiras de conceituar e abordar as doenças e seus portadores. O filósofo francês Michel Foucault (1998), em seu livro O Nascimento da Clínica, aponta para uma mudança radical na forma de lidar com a doença e o doente a partir do fim do século XVIII e início do XIX.Em sua obra é possível perceber o desenvolvimento a partir da medicina clássica, baseada na história natural, para a medicina moderna, baseada em princípios biológicos, onde o saber médico se estrutura na clínica, em um olhar sobre os sintomas e signos apresentados pelo corpo doente, de forma individual. Analisa a doença de forma mais ampla, a partir de uma mudança no discurso médico. Foucault (ibidem) faz um histórico conceitual acerca do pensamento médico. Este passa de uma visão meramente nosográfica, no final do século XIX, para uma visão clínica, através de um olhar voltado para o corpo doente, para além de vê-lo como um mero portador de doença, de maneira puramente classificatória, situando a linguagem médica na experiência do que é visto e percebido. Observa que o enfoque da medicina moderna é na busca do conhecimento sob o aspecto do olhar e de sua articulação com a linguagem, utilizada como instrumento daquilo que é percebido ao visualizar o corpo doente de maneira particular. Focaliza uma nova leitura sob o aspecto do olhar e de sua articulação com a linguagem no discurso médico. O olhar médico passa a ser voltado para a observação cuidadosa do doente, para o estudo dos casos de forma individualizada, o que permite, inclusive, que através dessa 24 medicina moderna o indivíduo entre em contato com uma melhor compreensão acerca de sua finitude. Essa rutura da medicina clássica para a moderna enuncia a evolução de uma medicina restrita a classificar as doenças, para outra onde o foco é cada caso de forma individual. É neste período que desponta a clínica médica, determinando mudanças fundamentais no desenvolvimento de novos conhecimentos, bem como no exercício de novas práticas. “O que caracteriza esta reforma é que a reequilibração da medicina em torno da clínica é correlata de um ensino teórico ampliado. No momento em que se define uma experiência prática feita a partir do próprio doente, insiste-se na necessidade deligar o saber particular a um sistema geral de conhecimentos’’. (FOUCAULT,1998, p.80). O surgimento da medicina clínica, portanto, aponta para mudanças nas dimensões fundamentais do saber. Ao passar a conduzir-se para o foco no doente de maneira individual, propicia-se ao mesmo que esse possa ser visto para além da doença da qual é portador. Esse olhar clínico passa a dirigir-se para o conjunto de sinais e sintomas (para o indivíduo enquanto doente), transformando o que é percebido em linguagem. Enfim, o que é percebido através do exercício da clínica, vai muito além, propiciando, que possam ser vistos os significados do que é percebido, na relação que se estabelece com o doente. Desse modo, a medicina deixa de ser meramente morfológica, permitindo, através da linguagem, que sejam descortinados os significantes daquilo que é percebido por meio de um novo olhar da medicina. A medicina moderna, tal como Foucault (1998) conceitua, se baseia num olhar médico, numa observação de sintomas e signos, com capacidade para intervir e decidir sobre os encaminhamentos a serem propostos para o doente. “A formação do método clínico está ligado à emergência do olhar do médico nocampo dos signose dos sintomas. O reconhecimento de seus direitos constituintes acarreta o desaparecimento de sua distinção absoluta e o postulado que doravante o significante (signo e sintoma) será inteiramente transparente ao significado que aparece, sem ocultação ou resíduo, em sua própria realidade e que o ser do significado - o 25 coração da doença - se esgotará inteiramente na sintaxe inteligível do significante’’. (FOUCAULT, 1998, p.102-103). O pensamento de Foucault (ibidem), especialmente na obra O Nascimento da Clínica, se constitui em instrumento de imensa valia para aqueles que pensam acerca dos processos de aprimoramento na humanização do atendimento, porque ajuda a refletir sobre o papel que o profissional de saúde deve desempenhar junto às políticas de saúde na contemporaneidade. Portanto, é possível verificar que o conceito de integralidade do ser humano vem se aprimorando ao longo dos anos e se dirigindo para a identificação da importância da valorização do sujeito, enquanto singular, diante de sua história, crenças e vivências pessoais. Reforça por sua vez, ainda mais, os fundamentos defendidos pelas políticas de humanização, focalizando o doente em vez da doença de forma generalizada. Muito se caminhou e avançou, até que fosse possibilitado àquele que portasse qualquer transtorno psíquico ser tratado em condições de igualdade, juntamente com doentes portadores de outras entidades clinicas. Diversas barreiras precisaram ser ultrapassadas para que quadros de comorbidades clínicas, incluindo-se aqui as doenças cardíacas e psiquátricas pudessem ter acesso equalitário em hospitais clínicos. Daí todo o movimento criado por profissionais de saúde mental para que fossem instituídos serviços com especialistas nessa área em hospitais gerais, inaugurando uma nova abordagem ao doente de modo mais amplo. Em relação às cardiopatias, ao longo do tempo, elas tenderam a ser direta ou indiretamente relacionadas às condições psíquicas. Para Aristóteles, médico e filósofo, o coração seria o centro das emoções humanas. Essa ideia foi modificada por Hipócrates, considerado o pai da medicina por lidar com a doença em termos científicos, ao eleger o cérebro como o centro das funções mentais e suas patologias. No caso de coronariopatas e cardiopatas, de forma geral, poderia se dizer que o “coração aristotélico” teria ainda sua atualização representativa, uma vez que até hoje a dor no peito é, com frequência, relacionada pelos seus portadores a situações emocionalmente dolorosas e que envolvem casos de 26 perdas e eventos inesperados. São frequentes os quadros depressivos e ansiosos nesses pacientes. Somente em meados do século XX as síndromes depressivas começam a ser melhor delineadas. E conforme nos diz Cordás (2002): “De fato, o homem sempre sofreu de depressão, talvez a mais íntima, a mais familiar de todas as doenças mentais. (...) Já muitos séculos antes de teorias etiopatológicas em Psiquiatria e das primeiras tentativas nosológicas, o ser humano sofria, e por vezes, desistia de continuar existindo em função da dor que dilacerava sua alma”. (idem, ibidem, p.13). Sigmund Freud, em 1917, publica sua obra Luto e Melancolia, relacionando elementos causais para determinados estados psíquicos. Aponta as diferenças entre o luto e a melancolia, focalizando em ambos o sentimento de perda de interesse pelo mundo que cerca o indivíduo. No luto, a perda do objeto seria real, enquanto na melancolia esta não representaria perdas reais, mas sim representações de perda de objetos amorosos. É importante que nos detenhamos um pouco nessas formulações freudianas, relacionando-as aos pacientes envolvidos neste trabalho. Ao adoecer, a vivência de perda da saúde (importante objeto amoroso) com a qual o indivíduo comumente se defronta, é somada à vivência de perda de controle sobre seu corpo (através de métodos investigativos invasivos, cirurgia, restrição dietética e prescrições medicamentosas). E ainda, à sensação de perda de seu controle na vida social, familiar e profissional (com a internação, e a consequente interrupção da vida profissional e da rotina familiar). Acrescentase a isso a presença frequente de sentimentos de impotência de diversas proporções diante dessas vivências, sendo possível correlacioná-las às condições favoráveis para o desencadeamento de sintomas ansiosos e depressivos que podem instalar-se, desde quadros leves a severos de ansiedade e depressão. A partir da instalação da cardiopatia, do diagnóstico e dos encaminhamentos terapêuticos, o paciente pode adquirir uma visão negativa de si mesmo, de suas experiências atuais e do futuro, necessitando de acompanhamentopela equipede saúde mental. 27 Além disso, como parte do tratamento das cardiopatias, incluem-se o uso de medicamentos, mudança de hábitos (dieta, exercícios, etc.), até a realização de procedimentos invasivos e de alta complexidade, assim como cirurgias, submetendo-se estes pacientes a diversas situações estressantes que favorecem o aparecimento ou a acentuação de transtornos na esfera psíquica. A literatura aponta para diversas manifestações emocionais apresentadas por pacientes portadores de cardiopatias agudas ou crônicas, em acompanhamento clínicoou cirúrgico, envolvendo várias estruturas e funções do coração. Por isso a importância de oferecer a estes pacientes um atendimento especializado, com uma escuta voltada para estas situações cruciais em suas vidas. No que se refere às coronariopatias, a doença arterial coronariana é atualmente a principal causa de morte em todo o mundo. Sabe-se que estaria frequentemente relacionada à existência de um tipo de personalidade prémórbida e que a ansiedade e a depressão estão intimamente associadas a ela, apresentando elevada prevalência e sendo um determinante de evolução negativa nesse contexto, de forma independente dos fatores de risco tradicionais. A depressão tem sido também implicada como um importante fator de risco de morbidade no pós-operatório de cirurgia de revascularização do miocárdio, tanto imediato quanto tardio. No estudo de Blumenthal (2003), foi demonstrado um aumento de duas vezes da mortalidade pós-operatória em pacientes com depressão moderada a grave. Mallik et.al. (2005) demonstraram uma associação interdependente entre depressão no pré-operatório e falta de benefícios funcionais seis meses após a cirurgia de revascularização. Os resultados desses estudos sugerem a necessidade de identificar e manejar adequadamente os pacientes com depressão, monitorando-a e tratando-a quando necessário. Por sua complexidade, as cirurgias cardíacas, entre elas a de revascularização, tem riscos inerentes, como complicações infecciosas, hemorrágicas, do ritmo cardíaco, dentre outras. Estas podem influenciar negativamente o humor do paciente, que já pode se encontrar deprimido pela 28 própria doença, pela internação, pela cirurgia e processos pós-operatórios, como a internação em unidade de tratamento intensivo. Devido a isso, torna-se imperativa a abordagem precoce das queixas emocionais nestes pacientes, com o objetivo de impedir que as mesmas causem impacto negativo no tratamento e no prognóstico. Vale assinalar a contribuição fundamental da política de humanização para o aprimoramento deste atendimento, voltado para as condições psíquicas, bem como para as possíveis intercorrências clínicas enfrentadas pelos pacientes neste percurso. 2.3 O PACIENTE CARDIOPATA O papel do coração diante de sua função vital para o ser humano vem carregado de simbologia e, para ilustrar isso, existem diversos ditos populares que traduzem a correlação direta que se costuma fazer entre ele e os sentimentos. Expressões como “Estou com o coração pequenino”, “Você mora bem aqui, do lado esquerdo do peito”, “Estou dizendo isso, do fundo do meu coração”, “Ele tem um grande coração”, entre outras, traduzem estes sentimentos. “A cardiologia é o ramo da medicina que se defronta com o adoecer de um órgão do corpo cuja representação para a maioria dos homens, de todas as culturas e em todas as épocas, é muito mais extensa do que aquela que a ciência reconhece e lhe atribui. Para além do prescrito pelo discurso científico objetivo sobre suas funções, o coração ainda é a fonte da vida, das emoçõesmais profundas, do amor e do ódio”. (GOMES, 2003, p.5) Na rotina diária de atendimento a estes pacientes não é incomum, deparar-se com as condições de desamparo enorme em que muitos se encontram, pelas mudanças, às vezes de grande porte, com que se defrontam a partir do seu adoecimento físico, da internação e da grande quantidade de procedimentos, inclusive os invasivos, a que são submetidos. Para que o universo do cardiopata seja melhor entendido, torna-se importante tecer algumas considerações sobre as doenças cardíacas 29 abordadas e as suas possíveis correlações com os aspectos psíquicos envolvidos em cada uma delas. Entre os principais grupos de patologias atendidas no Instituto estão as coronariopatias, valvulopatias, cardiopatias congênitas, miocardiopatias, a hipertensão arterial e as arritmias cardíacas. Além da assistência a estas patologias, existem especificidades voltadas para o programa de transplante cardíaco, aonde a equipe de saúde mental também vem se dedicando a atender. Meu foco de trabalho no hospital é a doença coronariana, a qualdecorre de um comprometimento das artérias coronárias que são as responsáveis pelo suprimento de sangue e oxigênio para o músculo cardíaco (denominado miocárdio). Isso acontece devido a três mecanismos básicos que podem ser isolados ou associados. Podendo ocorrer por obstrução das artérias envolvidas devido a arteriosclerose, por episódios de espasmos ou presença de coágulos intra-coronarianos, fatores esses, que podem ocasionar lesões transitórias ou definitivas ao coração (vide figuras 03 e 04). A doença apresenta-se basicamente de duas maneiras: através da angina de peito e do infarto agudo do miocárdio. Na angina de peito, o quadro se manifesta através de episódios de dor precordial importante, necessitando de uso regular de medicamentos e controle constante dos fatores de risco, para evitar as crises e a evolução da doença. 30 O infarto agudo do miocárdio também é decorrente de uma alteração no suprimento do músculo cardíaco, mas ao contrário da anterior, se origina de comprometimento agudo e prolongado nesse suprimento, levando a dor intensa e lesão permanente da região atingida. Na maioria dos casosos quadros se manifestam com sintomatologia importante e típica, embora em alguns os sintomas possam ser leves e até imperceptíveis, detectados somente em episódios dolorosos posteriores. Tal como na angina, os pacientes que sofreram infarto necessitam se manter sob cuidado permanente para evitar novos episódios, que podem se constituir realmente em maior risco para suas vidas. Essa doença já foi amplamente avaliada quanto à sua correlação com fatores emocionais, estes atualmente considerados tão significativos quanto os demais fatores de risco tais como: fumo, hipertensão, hipercolesterolemia e diabetes, entre outros. Inúmeras variáveis psíquicas estariam presentes no adoecimento físico, como sentimentos de ansiedade, medo, raiva e competitividade podendo estar envolvidos nesse processo. O paciente com potencial para desenvolver a doença coronariana seria, especialmente, aquele investido de sentimentos de responsabilidade excessiva e apresentaria um tipo de comportamento que teria valor preditivo para o desenvolvimento da doença e suascomplicações. Os autores Rosenman & Friedman (1974) formularam, há mais de 20 anos, uma classificação de personalidades onde desenvolveram o conceito de comportamento tipo A, conceituação essa interessante de se tecer breves comentários. Segundo esses autores, as características típicas do comportamento tipo A incluiriam agressividade, competitividade, ambição, inquietude, direcionamento para o sucesso, impaciência e devoção ao trabalho. Além disso, seriam aqueles que lutariam vigorosamente na perseguição de uma meta e apresentariam um subjetivo senso de urgência e tendência à hostilidade, habitualmente acompanhados de discurso e gesticulação compatíveis com esses sentimentos. Para ilustrar isto, seguem alguns exemplos de falas de pacientes obtidas em atendimentos no Instituto: 31 “Eu não posso ficar (internado) doutora. Tenho um contrato urgente para fechar”. “Eu já percebi tudo. Já entendi porque estamos aqui. Somos nós os para-raios”. “De tudo; nós é que temos que dar conta de tudo... Nós somos iguais...” “Imagine se o senhor não estivesse aqui hoje, hein? Ia ficar com isso guardado e ia passar mal”. “Deixar de controlar tudo é que é o problema!” “Eu também sou jeitoso, só que agora dependo de filho para pegar escada, mulher para pegar coisas para mim...”. Pontua-se, no entanto, que como o comprometimento coronariano se constitui essencialmente em uma doença multifatorial, a ausência dessas características comportamentais típicas não excluiria, em absoluto, a possibilidade de a pessoa vir a apresentar a doença. Ao contrário de outras, a doença coronariana acomete o paciente de forma súbita e, muitas vezes, sem manifestações prévias importantes, atingindo pessoas frequentemente em pleno desenvolvimento de suas atividades físicas e intelectuais, representando com isso, um duro golpe no narcisismo, obrigando-as a se defrontar de maneira abrupta e dolorosa com a falibilidade de seu corpo. Trazendo com isso a possibilidade de desestabilização de sua estruturação egóica e o surgimento de quadros agudos de sofrimento na esfera psíquica. O narcisismo se constitui em um importante conceito para a psicanálise, cujo termo se origina do mito grego de Narciso, que por rejeitar a jovem que tanto o desejava, recebeu como castigo apaixonar-se por sua própria imagem, culminando por afogar-se buscando alcançá-la. “Por referência ao mito de Narciso, é o amor pela imagem de si mesmo” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p.287). Sob o olhar psicanalítico, o narcisismo se constitui em uma maneira particular de relação com a sexualidade, não representando necessariamente uma situação patológica, mas também funcionando como um protetor do 32 psiquismo. Representaria na realidade um movimento necessário entre o autoerotismo e o amor objetal. Sigmund Freud publicou em 1914b o texto Sobre o narcisismo: uma introdução, no qual discute as origens do narcisismo, distinguindo dois tipos: o primário e o secundário. O narcisismo primário se constituiria em uma fase autoerótica, representando um primeiro movimento de satisfação libidinal, aonde o bebê busca satisfação no próprio corpo, não tendo ainda uma percepçãode sua diferenciação real do mundo. No narcisismo secundário, o bebê já consegue diferenciar seu corpo do mundo externo, já ocorrendo um investimento libidinal parcial dirigido para a mãe e seu seio que vai evoluindo para fazer-se amar pelo outro. Segundo Freud (ibidem): “(...) presumimos que ambos os tipos de escolha objetal estão abertos a cada indivíduo, embora ele possa mostrar preferência por um ou por outro. Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais - ele próprio e a mulher que cuida dele - e ao fazê-lo estamos postulando a existência de um narcisismo primário em todos, o qual, em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua escolha objetal”. (idem, ibidem, p.104). O narcisismo seria, portanto, decisivo para determinar como a pessoalidaria com o próprio corpo e nas relações com o outro, bem como com o surgimento de doenças, especialmente as crônicas, com as quais deverá conviver para toda a vida. O medo experimentado diante da dor intensa e o iminente risco de vida tornam-se, para alguns, insuportável, remetendo-os a recorrer a mecanismos defensivos, entre eles, a negação, complicando ainda mais as suas condições como doente. Para ilustrar o que foi relatado, serão utilizados alguns exemplos de pacientes que foram acompanhados, utilizando nomes fictícios para os mesmos. Cito como exemplo típico desse processo o caso de Pedro, que, após o aparecimento da doença coronariana, que inclusive necessitou procedimento cirúrgico precoce, passou a comportar-se como um adolescente, com um 33 discurso voltado para atividades atléticas e esportivas, rejeitando compromissos e se recusando a seguir as prescrições oferecidas para o seu caso. Lembro também as condições psíquicas de João, extremamente exigente consigo, em suas posições profissionais, que vivenciou seu primeiro episódio de infarto, no próprio ambiente de trabalho, em um período em que experimentava conflitos importantes relacionados às posições de poder e que, após o aparecimento da doença, passou a apresentar sentimentos de impotência e de enorme dependência, sentindo-se incapaz para prover a família e sair desacompanhado, embora não tenha recebido nenhuma restrição médica para tal. Além disso, considero interessante mencionar a história de Paulo, demonstrada durante as sessões, aonde foram evidenciados seus sentimentos de hostilidade e manifestações de raiva, frutos prováveis das sérias privações e frustrações experimentadas na infância e adolescência, deslocados, na vida adulta, para a esfera conjugal, que explodiram após o surgimento da doença. Tem-se também, a história de Clara que, demonstrou no começo do tratamento, a formação reativa como o seu principal mecanismo defensivo, numa franca tentativa de proteger-se da raiva e de sentimentos hostis decorrentes de inúmeras perdas e privações precoces, experimentadas ainda na sua vida adulta. Apresentava-se, no início, sempre amparada por uma bengala, com excessiva solicitude e descuido com sua aparência. Ao longo do acompanhamento, estes pacientes puderam encontrar, a partir da fala, algumas origens inconscientes de seus comportamentos podendo, apesar da doença, reconstruir projetos pessoais. Seria interessante tecer algumas considerações sobre os mecanismos de defesa. Tal como o nome indica, estes se constituem em processos inconscientes, através dos quais o eu (ego) busca proteção contra sensações de ansiedade, ameaça e desprazer oriundos do mundo interno ou externo. A concepção da utilização de defesas com o propósito de manter afastados perigos inconscientes foi detectada por Sigmund Freud já no início de sua obra, sendo progressivamente identificadas pela psicanálise e amplamente estudadas por Anna Freud (1946) em seu livro O ego e os mecanismos de 34 defesa. São diversos os mecanismos de defesa que o inconsciente pode lançar mão, entre eles a formação reativa mencionada anteriormente. Segundo Ana Freud (1946): “A palavra defesa que empreguei tão livremente nos três capítulos anteriores é a mais antiga representante do ponto de vista dinâmico na teoria psicanalítica. Surge pela primeira vez em 1894 no estudo de Freud The Defennce Neurophycosis, sendo empregada aí e em muitos de seus trabalhos subsequentes (The Aetiology of Hysteria, Further Remarks on the Defences on the Neuro-Psycoses), para descrever a luta do Ego contra idéias ou afetos dolorosos ou insuportáveis”. (idem, ibidem, p.36). A formação reativa se constitui como um processo psíquico que se caracteriza pela adoção de atitudes opostas a um desejo que tenha sido recalcado. Utiliza-se de impulsos opostos aos impulsos indesejáveis, eróticos ou agressivos, preservando estes impulsos longe do consciente. Desta forma, este mecanismo se manifesta através de atitudes opostas aos impulsos originais. Para ilustrar este mecanismo de defesa, pode-se utilizar como exemplo, um indivíduo que diante de uma situação que desencadearia nele impulsos agressivos, este os substitui por atitudes passivas e cordiais mantendo recalcados os impulsos indesejáveis originais. Entre as cardiopatias congênitas encontra-se a comunicação inter-atrial (conhecida pela abreviatura de CIA), resultante do não fechamento de uma abertura fetal ligando os dois átrios, as duas cavidades superiores do coração, que normalmente deveria fechar-se espontaneamente com o nascimento. Seus aspectos clínicos não costumam ser expressivos e só raramente, lactentes apresentam sintomas. O defeito é habitualmente bem tolerado, frequentemente só se manifestando clinicamente na vida adulta, com queixas de fadiga e falta de ar após exercício. É considerada a doença cardiológica congênita mais comum. Ao contrário das manifestações orgânicas, comumente leves na maioria das vezes e até imperceptíveis em alguns casos, sob o aspecto psíquico, talvez não devêssemos dizer o mesmo. O fato da pessoa, e a sua respectiva família, saber-se portadora de uma doença cardíaca, independente de sua 35 severidade ou prognóstico, por si só, pode determinar uma mudança radical no seudesenvolvimentopsíquico e na sua maneira de se colocar e ser colocado no mundo, sob as múltiplas esferas, incluindo as sociais, educacionais, afetivas e profissionais, entre outras. No caso da doença congênita, onde algumas vezes, sua detecção é feita precocemente, com o paciente ainda bebê ou com pouca idade, isso tende a adquirir um significado de dimensões importantes, com chances de realmente comprometer o desenvolvimento psíquico dapessoa em questão, dando origem a sentimentos de incapacidade e dependência, que são experimentados também por aqueles que apresentam outras doenças cardíacas precocemente adquiridas, na infância e adolescência. Esses sentimentos são habitualmente partilhados pelos familiares, contaminados pela ideia de fragilidade e sensação de risco iminente, dados os significados do coração em relação à vida e à morte. Pode-se brevemente descrever as valvulopatias, como patologias que acometem as válvulas cardíacas, que são elementos determinantes da direção do fluxo sanguíneo do coração, podendo ser congênitas ou adquiridas, estas últimas por sua vez, de origem inflamatória ou degenerativa (vide figura 05). No atendimento aos portadores de valvulopatias é possível observar, com certa frequência, o quanto o fato de o indivíduo saber, desde cedo, ser portador de uma cardiopatia, pode interferir no desenvolvimento de sua vida e 36 de suas escolhas em particular, podendo vir a desempenhar um papel decisivo na escolaridade, na vida afetiva, profissional e social, estimulando também, comportamentos de dependência, tendência ao isolamento e perspectivas empobrecidas de projetos pessoais. Nesses pacientes pode-se observar o que se costuma chamar de benefício secundário da doença, onde o paciente monopoliza a família e obtém concessões não oferecidas aos demais. Em contrapartida, seriam apenas supostos benefícios, importantes de serem melhores elaborados, pois costuma lhes custar falta de autonomia, de crescimento pessoal e de sua capacidade produtiva. O atendimento a estes pacientes às vezes se depara, praticamente com um “engatinhar”, um “reaprender” a conviver com o diagnóstico, o tratamento e a sintomatologia de uma doença cardíaca, sem abrir mão de conquistas pessoais. As miocardiopatias são doenças que acometem o músculo cardíaco de formas agudas ou crônicas, determinando uma série de sintomas limitantes, transitórios ou não, inferindo nos seus portadores as mesmas possibilidades de desenvolver sofrimento psíquico, tal como os descritos para as demais cardiopatias, dependendo, inclusive, da sua forma de apresentação e de sua evolução. Assim funcionam também as arritmias cardíacas, sendo que nestas o medo de síncopes com perda de consciência e do risco, às vezes real, de morte súbita, tornam-se fatores predisponentes ao sofrimento psíquico, desencadeando com certa frequência, quadros ansiosos e fóbicos. Quanto à hipertensão arterial, apesar de sua alta incidência na população adulta, nos deparamos com frequência com a resistência ao seu tratamento, uma vez que sua sintomatologia é algumas vezes silenciosa, em contrapartida com os efeitos colaterais dos medicamentos, que podem causar hipotensão, fraqueza e comprometimento importante na esfera sexual. Além disso, Luchina (1959) já apontava para a importância de propiciar a estes pacientes recursos para expressar melhor suas emoções, uma vez que sentimentos de raiva e ressentimento mal elaborados podem refletir negativamente no controle da pressão arterial. 37 Devido a tudo que foi dito, torna-se fundamental proporcionar a estes pacientes condições que possam propiciar a eles a possibilidade de encontrar mecanismos para lidar com as perdas, buscando recursos para recuperar sua identidade, confundida e até perdida pelo somatório dos golpes desintegradores do ego, diante do enfrentamento diagnóstico e terapêutico, muitas vezes instituído em caráter permanente. Nestes portadores de cardiopatias, especialmente aquelas graves ou crônicas, a concomitância de vivências significativas de perda, podem estar presentes, incluindo, além da doença propriamente dita, a aposentadoria, o comprometimento financeiro e de função sócio-profissional importante, a perda da função central na família e de papéis na esfera conjugal, bem como as situações de dependência intensificadas pelo adoecimento. Contudo, torna-se evidente que o atendimento a estes pacientes precisa estar norteado por uma escuta orientada por princípios humanizados, atenta a este momento crítico na vida desses indivíduos, escuta esta relacionada à Política Nacional de Humanização, que será apresentada a seguir. 38 3 A Política Nacional de Humanização a humanização no ambiente hospitalar 3.1 BREVE HISTÓRICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL A história do Brasil apresenta um longo e complexo período para organizar-se e assimilar o conceito de que a saúde é um direito de todos. No Brasil colonial, o processo de adoecer ficava reduzido ao conceito de corpo como uma máquina comprometida e o cuidado era focalizado na hospitalização e no isolamento do doente do convívio cotidiano. Não havia ainda direcionamento para as suas necessidades como indivíduo, vivenciando-se o adoecer focado na doença e não no doente. Como nos relata Baptista (2007), as primeiras ações de saúde pública no mundo se reproduziram também no Brasil colônia e voltaram-se especialmente para a proteção e saneamento das cidades, principalmente as portuárias, responsáveis pela comercialização e circulação dos produtos exportados. Além disso, direcionavam-se essencialmente para o controle e observação das doenças e doentes, inclusive e principalmente dos ambientes, e para a construção de conhecimento e adoção de práticas mais eficazes no controle das moléstias. A partir de 1903, Oswaldo Cruz coordena a reforma da saúde, propondo em seguida, um código sanitário que institui a desinfecção, inclusive domiciliar, o arrasamento de edificações consideradas nocivas à saúde pública, a notificação permanente dos casos de febre amarela, varíola e peste bubônica e a atuação sanitária, implementando sua primeira grande estratégia no combate às doenças, que foi a campanha de vacinação obrigatória. Nas décadas de 1910 e 1920 tem início uma segunda fase do movimento sanitarista com Oswaldo Cruz e o enfoque passa a ser no saneamento rural e no combate às endemias rurais. Como nos contam Merhy & Queiroz (1993), a corrente médico-sanitária tornou-se hegemônica na década de 20, organizando-se principalmente nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, entre outros. 39 “No decorrer da década de 20, a corrente médico-sanitária tornou-se hegemônica, organizando-se principalmente nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, entre outros. Dois núcleos foram especialmente ativos: o paulista, influenciado por Paula Souza e Borges Vieira (médicos sanitaristas formados pela John Hopkins University, com bolsas da Fundação Rockfeller), e o dos "jovens turcos", sanitaristas vinculados ao Departamento Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro, que defendiam a especialidade na carreira médica na área de saúde pública e o trabalho integral nas instituições estatais. Estes núcleos chegaram a organizar cinco congressos durante a década de 20 (os Congressos Brasileiros de Higiene) e tiveram tal influência no desenvolvimento da política de saúde no Brasil que sua presença se fez marcante até a reforma administrativa da década de 60/70, no interior da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo’’. (MERHY & QUEIROZ, 1993, p.178). Em torno da década de 30, dá-se início a uma política de proteção ao trabalhador e à expansão e consolidação de direitos sociais. Várias modalidades assistenciais são criadas pelo governo, que por sua vez continuam não includentes e insatisfatórias, dentre elas a ênfase na assistência médica, o crescimento progressivo do setor privado e a abrangência de parcelas sociais no sistema previdenciário. Nas décadas de 1960 e de 1970, múltiplas propostas de saúde foram apresentadas beneficiando especialmente aos trabalhadores, mas ainda pouco satisfatórias em sua abrangência e assistência à saúde de forma integral. “(...) mas, o desafio assumido a partir da década de 1970 pelos movimentos de mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde impunha tanto a redefinição do conceito de saúde, quanto a recolocação da importância dos atores implicados no processo de produção de saúde. Falar, portanto, de saúde pública ou saúde coletiva é falar também do protagonismo e da autonomia daqueles que, por muito tempo, se posicionavam como “pacientes” nas práticas de saúde, sejam os usuários dos serviços em sua paciência diante dos procedimentos de cuidado, sejam os trabalhadores eles mesmos, não menos passivos no exercício de seu mandato social. O que queremos ressaltar é que a força emancipatória na base do SUS só se sustenta quando tomamos como inseparáveis o processo de produção de saúde e o processo de produção de subjetividades protagonistas e autônomas que se engajam na reprodução e/ou na invenção dos modos de cuidar e de gerir os processos de trabalho no campo da saúde”. (BENEVIDES & PASSOS, 2005a, p.566). 40 O movimento da Reforma Sanitária, já na década de 80, propôs aexpansão da área de assistência médica da previdência, estimulando discussões que contribuíram para a realização da VII Conferência Nacional de Saúde (1980), que por sua vez, apresentou como proposta a reformulação da política de saúde e a formulação do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde. O debate enfocava questões fundamentais, tais como o fato da saúde ser um direito de todo cidadão, independente de contribuição ou de qualquer outro critério de discriminação; as ações de saúde deveriam estar integradas em um único sistema, garantindo o acesso de toda população a todos os serviços de saúde, seja de cunho preventivo ou curativo; a gestão administrativa e financeira das ações de saúde deveria ser descentralizada para estados e municípios cabendo ao Estado a promoção, a participação e o controle social das ações de saúde. No ano de 1986, acontece a VIII Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS), um verdadeiro marco histórico da política de saúde brasileira, envolvendo finalmente técnicos, gestores de saúde e usuários para uma discussão aberta sobre a reforma do sistema de saúde. Nela pôde-se discutir a definição de um modelo que garantisse o direito à saúde integral, consagrando a saúde com um direito de todos e um dever do Estado. O relatório oriundo desta conferência foi utilizado como base para a discussão da reforma da saúde e o Sistema Único de Saúde (SUS) foi finalmente aprovado pela Constituição Brasileira em 1988, regido por alguns princípios básicos considerados imprescindíveis para os cuidados em saúde, já conceituada de forma mais ampla, para além de medidas apenas curativas, envolvendo medidas preventivas e de saneamento básico, entre outras. 3.2 A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE O Sistema Único de Saúde (SUS) constitui-se em um sistema público, administrado pelos governos federal, estaduais e municipais, organizado e orientado no sentido do interesse coletivoe qualquer pessoa, independente de qualquer distinção, tem direito a ele. 41 Originou-se de um longo processo de discussão e de crescimento, envolvendo a sociedade civil, as instituições de ensino e pesquisa e o próprio Estado, o que gerou o desenvolvimentode um olhar integral diante do conceito de saúde, com uma abrangência muito maior, determinando a reformulação da formação e a inclusão de novas práticas profissionais. Incorporou-se o conceito de qualidade de vida à saúde, antes vista apenas como o estado de ausência de doença. “Na verdade, o SUS representa a materialização de uma nova concepção acerca da saúde em nosso país. Antes a saúde era entendida como "o Estado de não doença", o que fazia com que toda lógica girasse em torno da cura de agravos à saúde. Essa lógica, que significava apenas remediar os efeitos com menor ênfase nas causas, deu lugar a uma nova noção centrada na prevenção dos agravos e na promoção da saúde. Para tanto, a saúde passa ser relacionada com a qualidade de vida da população, a qual é composta pelo conjunto de bens que englobam a alimentação, o trabalho, o nível de renda, a educação, o meio ambiente, o saneamento básico, a vigilância sanitária e farmacológica, a moradia, o lazer, etc.”. (BRASIL, 2000). O Sistema Único de Saúde se norteia por princípios básicos que compreendem a universalidade, a equidade, a integralidade nos serviços e ações de saúde, a descentralização, a regionalização e a hierarquização da rede e a participação social ou popular. A universalidade do acesso às ações e serviços de saúde é considerada um dos princípios fundamentais da reforma, consistindo na garantia para todos os cidadãos, do acesso aos serviços de saúde públicos e privados conveniados, em todos os níveis do sistema. O acesso aos serviços deve ser garantido por uma rede de serviços hierarquizada, que propicie tecnologia apropriada para cada nível de necessidade, até o limite que o sistema pode oferecer. Este princípio significa na realidade, que cabe ao Sistema Único de Saúde, atender a toda população, seja através dos serviços estatais prestados pela União, pelos estados e municípios, seja através de serviços privados conveniados ou contratados com o poder público, enfatizando ainda a ações preventivas. 42 Quanto ao princípio da integralidade da atenção, este se refere à garantia do acesso a um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso, em todos os níveis de complexidade do sistema de saúde, cabendo a este oferecer ao indivíduo ou à coletividade, as condições de atendimento, de acordo com as suas necessidades. Através deste princípio, o Estado compromete-se na garantia a todo e qualquer tipo de atenção à saúde, do mais simples ao mais complexo, incluindo desde a vacina até o transplante. O princípio da equidade aponta para a necessidade de se reduzir as disparidades sociais e regionais existentes em nosso país e que isso deve ser proporcionado, também, por meio das ações e dos serviços de saúde. A descentralização, com direção única do sistema, apresenta-se como um princípio que visa propiciar uma maior democratização do processo decisório na saúde, sendo vista como uma estratégia para o enfrentamento das desigualdades regionais e sociais, prevendo a transferência de poder decisório do governo federal para as outras instâncias de governo, considerando uma redistribuição das responsabilidades quanto às ações e serviços de saúde entre os vários níveis de governo. A descentralização possibilita por sua vez, à população, um maior controle e acompanhamento das ações públicas, permitindo a esta, a interferência mais efetiva nos processos de formulação das políticas de saúde. Isto se baseia no pressuposto de que quanto mais perto o gestor estiver dos problemas de saúde de uma comunidade, maiores serão as chances de acertar na resolução dos mesmos. Este princípio vai exigir uma nova formatação na condução e organização dapolítica de saúde. Quanto ao princípio de regionalização e hierarquização dos serviços de saúde, este implica na organização de um sistema de referência e contrareferência, incorporando os diversos níveis de complexidade do sistema, sendo estes o primário, o secundário e o terciário. A partir da descentralização e dasdiretrizes de regionalização e hierarquização, forma-se uma proposta de organização e gestão do sistema de saúde bastante diferente dos adotados anteriormente no Brasil. Esta proposta só se realiza satisfatoriamente através da integração entre as esferas federal, estadual e municipal degoverno. Isto está relacionado às atribuições dos gestores estaduais e municipais que são 43 determinantes, através de uniões e parcerias, para garantir a eficiência e a efetividade do sistema de saúde. O princípio da participação popular ou social se refere à garantia constitucional de que a população, através das entidades representativas, envolvendo os mais diversos setores da sociedade (conselho nacional, municipais, entre outros), terá o direito de participar dos processos de construção das políticas de saúde, bem como do controle de sua execução. Esse princípio ratifica a capacidade de articulação do movimento social no contexto da formulação de políticas de saúde, levando em conta as reais necessidades da população. Muitos avanços em relação à saúde pública no Brasil foram conquistados a partir da criação do Sistema Único de Saúde, embora seja necessário avançar para que seus propósitos sejam cada vez mais inclusivos e amplamente distribuídos para toda a nossa população. 3.3 A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO E A POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO Segundo o dicionário Aurélio (HOLANDA, 1986), o termo humanizar tem entre suas proposições como verbo transitivo, os sinônimos de tornar humano, dar condições humanas, tornar afável e humanar, o que leva com frequência a aparecer, em encontros voltados para a humanização na saúde, o que se estaria buscando ao falar de humanização voltada para seres que já são, na realidade, humanos. A humanização sob a ótica do atendimento focalizaria não a característica enquanto humano dentro do reino animal, ou apenas a qualidade de vida do ser humano em si de forma genérica, mas sim, lançaria um olhar para a singularidade de cada ser humano, seu olhar sob a condição de doente, sua leitura sobre o conceito de saúde, suas crenças e seus valores, para que seu acompanhamento pudesse ser individualizado, respeitando as diversas dimensões de sua particular visão subjetiva. 44 “O que designa humanizar? Subentende-se que a prática em saúde era (des)humanizada ou não era feita por e para humanos? Tais provocações não raro ainda são feitas, revelando o estranhamento que o conceito propicia. Geralmente emprega-se a noção,de “humanização” para a forma de assistência que valorize a qualidade do cuidado do ponto vista técnico, associada ao reconhecimento dos direitos do paciente, de sua subjetividade e referências culturais. Implica ainda a valorização do profissional e do diálogo intra e interequipes”. (DESLANDES, 2004, p. 8). Esta leitura, feita pela política de humanização, chama a atenção para as suas correlações com a concepção de singularidade e de sujeito para a psicanálise, sendo este melhor discutido mais adiante. Conforme consta do HUMANIZA SUS (BRASIL, 2008), documento base para gestores e trabalhadores do SUS, a humanização é entendida como a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde, usuários, trabalhadores e gestores, considerando de fundamental importância, o desenvolvimento de uma série de ações voltadas para esse objetivo. Considera imprescindível a transversalidade e a transdisciplinaridade, sendo esta, muito mais uma mudança de atitude, do que apenas uma organização de saberes. Suas diretrizes e dispositivos enfocam elementos essenciais para a valorização da singularidade do ser humano, tais como o acolhimento, ambiência, clínica ampliada, protagonismo, e corresponsabilidade, entre outros, conceitos estes, que serão melhor desenvolvidos ao longo deste capítulo. “O termo "humanização" vem sendo utilizado com frequência no âmbito da saúde. As iniciativas identificadas com a humanização do parto e com o respeito aos direitos reprodutivos das mulheres vêm, há décadas, participando da pauta dos movimentos feministas em saúde (...). A legitimidade da temática ganha novo status quando, em maio de 2000, o Ministério de Saúde regulamenta o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) e a humanização é também incluída na pauta da 11ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em dezembro do mesmo ano. O PNHAH constitui uma política ministerial bastante singular se comparada a outras do setor, pois se destina promover uma nova cultura de atendimento à saúde (MS, 2000) no Brasil. O objetivo fundamental do PNHAH seria o de aprimorar as relações entre profissionais, entre usuários/profissionais (campo das interações face-a-face) e entre hospital e 45 comunidade (campo das interações sócio-comunitárias), visando à melhoria da qualidade e à eficácia dos serviços prestados por estas instituições (MS, 2000). Atualmente o Programa foi substituído por uma perspectiva transversal, constituindo uma política de assistência e não mais um programa específico (provisoriamente intitulada "Humaniza Sus")”. (DESLANDES, 2004, p. 8). A Política de Humanização baseia-se em processos de transformação de antigos modelos de atendimento, centrados apenas na doença, constituindo-se num outro muito mais abrangente e, consequentemente, alicerçado sobre novos paradigmas. “Em 2003, com a Política Nacional de Humanização (PNH), se intensifica esta aposta na humanização das práticas de gestão e de atenção (nos modos de gerir e nos modos de cuidar). A PNH emerge, então, no cenário da reforma sanitária brasileira, que se constitui pari passu à construção do campo da saúde coletiva e das experiências de humanização em curso no SUS, às quais propõem mudanças em seu sentido e forma de organização. Assim, é importante analisar o SUS como política pública – haja vista que a PNH é uma política do SUS, apresentando suas inspirações, conquistas e desafios. Nesta discussão é que se apresenta a PNH, tomando por referência sua construção discursiva e metodológica, bem como seus desafios para a qualificação da produção de saúde”. (PASCHE & PASSOS, 2008, p.92). Reafirmando as ideias de Foucault (1998) já apontadas anteriormente sobre a evolução da visão clínica do doente para além da doença, a proposta de humanização também se constitui em um novo modelo de atendimento, recriado a partir de sua forma inovadora de vislumbrar o atendimento com foco no sujeito e sua singularidade, levando em conta sua cultura e leitura própria do que está sendo vivenciado por ele. Eis o motivo da importância de seus instrumentos como elementos de aprimoramento nas relações que se estabelecem no percurso do cuidado, dando voz e vez ao paciente enquanto sujeito, para que ele possa ser escutado e realmentese fazer ouvir. “Mas a redefinição do conceito de humanização deve ganhar outra amplitude quando estamos implicados na construção de políticas públicas de saúde. Afinal, de que nos serve este esforço conceitual se isso não resultar em alteração nas práticas concretas dos serviços de saúde, na melhoria da 46 qualidade de vida dos usuários e na melhora das condições de trabalho dos profissionais de saúde? Neste sentido, impõe-se um outro desafio, o da alteração dos modos de fazer, de trabalhar, de produzir no campo da saúde. Neste sentido, a Política de Humanização só se efetiva uma vez que consiga sintonizar “o que fazer” com o “como fazer”, o conceito com a prática, o conhecimento com a transformação da realidade”. (BENEVIDES & PASSOS, 2005b, p.391). Enfim, o que a Política Nacional de Humanização propõe, sem se afastar de todo um arcabouço teórico, é fomentar o que ela costuma chamar de “modos de fazer”, ou seja, propiciar através de práticas, o aprimoramento na implementação do Sistema Único de Saúde. 3.4 A POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO O Sistema Único de Saúde, sob uma ótica humanizada, é aquele que reconhece o indivíduo como cidadão de direitos legítimos, valorizando os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde. A Política Nacional de Humanização existe desde 2003, buscando qualificar a saúde pública no Brasil e efetivar os princípios do Sistema Único de Saúde no cotidiano das práticas de atenção e gestão, incentivando trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e usuários. Para que a Política Nacional de Humanização possa ser melhor compreendida, torna-se necessário entender a nomenclatura utilizada, que traz em si a sua conceituação, bem como também os próprios instrumentos para colocar em práticas suas premissas básicas, que serão elucidados no que costuma-se chamar de glossário da política de humanização, constante do HUMANIZA SUS (BRASIL, 2008), que pode ser consultado no anexo A. A Política Nacional de Humanização considera a gestão e atenção inseparáveis, com a gestão dos processos de trabalho em interligação permanente com as práticas de cuidado. Sua principal meta é, na realidade, contribuir para a construção de novas práticas gerenciais e de saúde, criando para todos os envolvidos neste processo, desafios no sentido de superar limites e experimentar novas formas 47 de organização dos serviços e novos modos de produção e circulação do poder. “No momento em que se assume a humanização como aspecto fundamental nas políticas de saúde urge que o conceito de humanização seja reavaliado e criticado para que possa efetuar-se como mudança nos modelos de atenção e de gestão. Tal urgência se configura pela banalização com que o tema vem sendo tratado, assim como pela fragmentação das práticas ligadas a programas de humanização. Trata-se de um mesmo problema em uma dupla inscrição teórico-prática, daí a necessidade de redefinição do conceito de humanização, bem como dos modos de construção de uma política pública e transversal de humanização da/na saúde. Este segundo aspecto apontou para o debate sobre a dimensão pública das políticas de saúde em sua relação com o Estado”. (BENEVIDES & PASSOS, 2005a, p 561). Respeitando-se as premissas conceituais da Política Nacional de Humanização, optou-se por eleger a nomenclatura de usuário ao invés de paciente, justamente por ver o indivíduo de forma muito mais abrangente do que a palavra paciente, com a conotação passiva que ela possa representar. “Usuário, Cliente, Paciente: Cliente é a palavra usada para designar qualquer comprador de um bem ou serviço, incluindo quem confia sua saúde a um trabalhador da saúde. O termo incorpora a idéia de poder contratual e de contrato terapêutico efetuado. Se, nos serviços de saúde, o paciente é aquele que sofre, conceito reformulado historicamente para aquele que se submete, passivamente, sem criticar o tratamento recomendado, prefere-se usar o termo cliente, pois implica em capacidade contratual, poder de decisão e equilíbrio de direitos. Usuário, isto é, aquele que usa, indica significado mais abrangente, capaz de envolver tanto o cliente como o acompanhante do cliente, o familiar do cliente, o trabalhador da instituição, o gerente da instituição e o gestor do sistema”. (BRASIL, 2008). Entre as orientações gerais da Política Nacional de Humanização, conforme consta no HUMANIZA SUS (BRASIL, 2008), estariam a valorização da dimensão subjetiva e coletiva em todas as práticas de atenção e gestão no Sistema Único de Saúde. Isto representaria o fortalecimento do compromisso com os direitos de cidadania, respeitando-seas necessidades específicas de 48 gênero, étnico-racial, orientação sexual e de demais segmentos específicos da população. Encontram-se entre suas orientações gerais: o fortalecimento de trabalho em equipe multiprofissional, fomentando a transversalidade e a grupalidade; o apoio à construção de redes cooperativas, solidárias e comprometidas com a produção de saúde e com a produção de sujeitos; a construção de autonomia e protagonismo dos sujeitos e coletivos implicados na rede do Sistema Único de Saúde. Além destes, seriam também incluídas nas orientações gerais da Política Nacional de Humanização: a corresponsabilidade desses sujeitos nos processos de gestão e atenção; o fortalecimento do controle social, com caráter participativo em todas as instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde; o compromisso com a democratização das relações de trabalho e a valorização dos trabalhadores da saúde, estimulando processos de educação permanente e, por fim, a valorização da ambiência, com organização de espaços de trabalho saudáveis e acolhedores. A Política Nacional de Humanização (PNH) se estrutura a partir deprincípios, métodos, diretrizes e dispositivos. Os princípios seriam traduzidos por aquiloque dispara um determinado movimento no plano das políticas públicas. Entre eles encontra-se a transversalidade e a indissociabilidade entre atenção e gestão. A estes acrescentam-se o protagonismo, a corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e dos coletivos. A transversalidade pode ser definida como o aumento do grau de comunicação intra e intergrupos. Agindo também na transformação dos modos de relação e de comunicação entre os sujeitos implicados nos processos de produção de saúde, ampliando as fronteiras dos saberes, dos territórios de poder e dos modos instituídos na constituição das relações de trabalho. Quanto aos conceitos de protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e dos coletivos, estes significam que trabalhar implica na produção de si e na produção do mundo, das diferentes realidades sociais, ou seja, econômicas, políticas, institucionais e culturais. Para a política de humanização, as mudanças na gestão e na atenção conquistam maior 49 efetividade se construídas pela afirmação da autonomia dos sujeitos envolvidos, que contratam entre si responsabilidades compartilhadas nos processos de gerir e de cuidar. O que Política Nacional de Humanização chama de método, é a condução de um processo ou o seu modo de caminhar, abrangendo os gestores, trabalhadores e usuários como indispensáveis para a discussão conjunta na construção ou remodelação de políticas de saúde. Vale aqui reforçar que ao pensar a saúde desta forma, extrapola-se em muito o conceito dual de saúde-doença, indo-se muito além, lançando-se um olhar acima de tudo ao doente em sua singularidade, levando-se em conta seus valores individuais para enfrentar a doença e as consequências que dela pode advir em sua vida. A Política Nacional de Humanização entende como diretrizes, as orientações gerais de determinada política. Suas diretrizes expressam o método da inclusão no sentido da clínica ampliada, do acolhimento, da cogestão, da valorização do trabalho e do trabalhador, da defesa dos direitos do usuário, do fomento das grupalidades, coletivos e redes, e da construção da memória do Sistema Único de Saúde que dá certo. “A clínica ampliada considera fundamental ampliar o “objeto de trabalho” da clínica. Em geral, o objeto de trabalho indica o encargo, aquilo sobre o que aquela prática se responsabiliza. A Medicina tradicional se encarrega do tratamento de doenças; para a clínica ampliada, haveria necessidade de se ampliar esse objeto, agregando a ele, além das doenças, também problemas de saúde (situações que ampliam o risco ou vulnerabilidade das pessoas). A ampliação mais importante, contudo, seria a consideração de que, em concreto, não há problema de saúde ou doença sem que estejam encarnadas em sujeitos, em pessoas. Clínica do sujeito: essa é a principal ampliação sugerida. Além disso, considera-se essencial a ampliação também do objetivo ou da finalidade do trabalho clínico: além de buscar a produção de saúde, por distintos meios – curativos, preventivos, de reabilitação ou com cuidados paliativos –, a clínica poderá também contribuir para a ampliação do grau de autonomia dos usuários. Autonomia entendida aqui como um conceito relativo, não como a ausência de qualquer tipo de dependência, mas como uma ampliação da capacidade do usuário de lidar com sua própria rede ou sistema de dependências. A idade, a condição debilitante – hipertensão, diabete, câncer, etc., o contexto social e cultural, e, até mesmo, a própria subjetividade e a 50 relação de afetos em que cada pessoa inevitavelmente estará envolvida. A ampliação do grau de autonomia pode ser avaliada pelo aumento da capacidade dos usuários compreenderem e atuarem sobre si mesmoe sobre o mundo da vida. O grau de autonomia se mede pela capacidade de autocuidado, de compreensão sobre o processo saúde/enfermidade, pela capacidade de usar o poder e de estabelecer compromisso e contrato com outros. Essa alteração do “objeto” e do “objetivo” do trabalho clínico exigirá mudança nos meios de intervenção, sejam eles diagnósticos ou terapêuticos. Lidar com pessoas, com sua dimensão social e subjetiva e não somente biológica; esse é um desafio para a saúde em geral, inclusive para a clínica realizada em hospitais. Para que o diagnóstico consiga avaliar a vulnerabilidade, a equipe deverá colher dados e analisar o problema de saúde encarnado em um sujeito em um contexto específico; para esse fim, além de utilizar a semiologia tradicional, será necessário agregar elementos da história de vida de cada pessoa, identificando fatores de risco e de proteção. A terapêutica não se restringirá, em conseqüência, somente a fármacos e à cirurgia; há mais recursos terapêuticos do que esses, como, por exemplo, valorizar o poder terapêutico da escuta e da palavra, o poder da educação em saúde e do apoio psicossocial”. (CAMPOS & AMARAL, 2007, p.852). Como dispositivos da Política Nacional de Humanização, considera-se a atualização das diretrizes de uma política, em arranjos de processos de trabalho. Pela Política Nacional de Humanização, foram elaborados dispositivos que são postos a funcionar nas práticas de produção de saúde, abrangendo coletivos e objetivando promover mudanças nos modelos de atenção e de gestão. “Para fins didáticos, a Política Nacional de Humanização distingue arranjos/dispositivos de co-gestão em dois grupos: o primeiro grupo diz respeito à organização do espaço coletivo de gestão que permita o acordo entre desejos e interesses tanto dos usuários quanto dos trabalhadores e gestores. O segundo grupo refere-se aos mecanismos que garantam a participação ativa de usuários e familiares no cotidiano das Unidades de Saúde. Estes devem propiciar tanto a manutenção dos laços sociais dos usuários internados quanto sua inserção e de seus familiares nos projetos terapêuticos e acompanhamento do tratamento. Almejam, portanto, a participação do usuário, sua família e rede sociais, na perspectiva de garantir os direitos que lhes são assegurados e também o avanço no compartilhamento e co-responsabilização do tratamento e cuidados em geral”. (BRASIL, 2008, p.72) 51 Entre estes dispositivos estariam o acolhimento com classificação de risco; as equipes de referência e de apoio matricial; o projeto terapêutico singular e de saúde coletiva; projetos co-geridos de ambiência, colegiado gestor; o contrato de gestão; sistemas de escuta qualificada para usuários e trabalhadores da saúde, ouvidorias; grupos focais e pesquisas de satisfação. Além destes incluem-se ainda, a visita aberta e o direito à acompanhante; o programa de formação em saúde do trabalhador e a comunidade ampliada de pesquisa; os programas de qualidade de vida e saúde para os trabalhadores da saúde; os grupos de trabalho de humanização e as câmaras técnicas de humanização. “As diretrizes da PNH são suas orientações gerais e se expressam no método da inclusão de usuários, trabalhadores e gestores na gestão dos serviços de saúde, por meio de práticas como: a clínica ampliada, a congestão dos serviços, a valorização do trabalho, o acolhimento, a defesa dos direitos do usuário, entre outras. Os dispositivos, por sua vez, atualizam essas diretrizes por meio de estratégias construídas nos coletivos concretos destinadas à promoção de mudanças nos modelos de atenção e de gestão em curso, sempre que tais modelos estiverem na contramão do que preconiza o SUS. Entre os dispositivos propostos pela PNH, estão:acolhimento com classificação de risco, colegiado gestor, visita aberta e direito a acompanhante, equipe transdisciplinar de referência, Programa de Formação em Saúde e Trabalho (PFST), projetos cogeridos de ambiência. A implantação desses dispositivos se efetiva caso a caso, considerando-sea especificidade dos serviços, partindo sempre da análise dos processos de trabalho, processos que nunca se repetem”. (SANTOS FILHO; BARROS & GOMES, 2009, p.604). Estes marcos teóricos aqui apresentados, atrelados às ações por eles deflagradas, difundiram-se pelas diversas unidades públicas, não só no Rio de Janeiro como em vários locais do Brasil, incluindo hospitais universitários, desencadeando uma nova forma de olhar, bem como de praticar a extensão do conceito de saúde. 3.5 A POLÍTICA NACIONAL DEHUMANIZAÇÃO NO INSTITUTO Após a criação da Política Nacional de Humanização pelo Ministério da Saúde, atualmente denominada Política Nacional de Humanização da Atenção 52 e Gestão no Sistema Único de Saúde - Humaniza-SUS, em meados de 2003, o Instituto foi, logo de início, convidado a fazer parte de sua implantação, convite este que recebeu de muito bom grado. Iniciou sua participação constituindo, a princípio, um grupo de trabalho para implementação de políticas de humanização, levando em conta as características próprias à nossa unidade. O grupo foi composto por diversas categorias funcionais, exercitando, portanto, um dos fundamentos da política de humanização, que é a interdisciplinaridade. Enfocou, inicialmente, a leitura dos textos referentes à política, estudando-os e se inteirando de seus principais elementos conceituais. Vale assinalar que tive a oportunidade de participar ativamente de sua implantação, como uma das representantes do grupo de trabalho de humanização do Instituto, evoluindo para coordená-lo por cerca de quatro anos. “A Política Nacional de Humanização – PNH, criada em 2003, vem se firmando no SUS como política que atende a importantes reivindicações, já que inclui – em seusprincípios, método, diretrizes e dispositivos – todos os que estão envolvidos no processode produção de saúde. É uma política que destaca o aspecto subjetivo constituinte de qualquer ato de cuidado, voltando-se para a alteração de modelos de atenção e de gestão. A PNH é política que altera o modo tradicional com que habitualmente se constroem as relações entre as instâncias efetuadoras do SUS, como também nos Serviços, já que ela se faz transversalmente, num trabalho conjunto com outras áreas, programas, setores e outras políticas”. (SANTOS FILHO & BARROS, 2007, p.203). Este grupo de trabalho de humanização se estruturou de forma bem organizada, com local e horário pré-estabelecidos, propiciando maior possibilidade dos participantes estarem presentes aos encontros e reunindo-se semanalmente, com propostas marcadas para serem discutidas em cada reunião. Primeiramente, optou-se por fazer um levantamento das ações já estabelecidas no Instituto e o resultado nos surpreendeu positivamente, uma vez que constatamos uma extensa lista de atividades, voltadas especialmente para o usuário e que incluíam entre outras, os grupos de preparo para cirurgia de adultos e crianças. Nestes últimos, o preparo das crianças é realizado 53 através de uma dramatização, com as crianças vestindo-se de profissionais de saúde e reproduzindo o procedimento cirúrgico com bonecos e brinquedos, o que resulta em colaboração importante ao longo do processo de internação, recuperação cirúrgica e alta hospitalar (figuras 06 e 07). Chamou-nos atenção neste levantamento, a quantidade de atividades já desenvolvidas, embora ainda não integradas em uma política específica de humanização. Foram levantadas as ações voltadas para os servidores, sendo também encontradas várias atividades já em desenvolvimento. Após este primeiro momento, sabendo-se que a proposta da Política Nacional de Humanização visa reestruturar projetos que atendam satisfatoriamente não só aos usuários, mas também ao servidor, o grupo optou por estabelecer uma metodologia de avaliação das demandas primordiais deste servidor, elaborando e aplicando um questionário de satisfação, de caráter anônimo e voluntário que foi distribuído para todas as categorias de servidores do Instituto (vide anexo B). Este questionário foi constituído de oito questões estruturadas, com pontuações de zero a cinco, e de cinco semiestruturadas, com o objetivo básico de analisar o grau de satisfação do servidor, suas propostas e a integração ao Instituto, além de tentar dimensionar o seu conhecimento sobre o seu planejamento estratégico. Sua distribuição foi feita durante o período de uma semana, com o recolhimento realizado através 54 das diversas urnas distribuídas amplamente pelo hospital. Foi seguido da análise estatística das respostas obtidas, através da análise de proporção (univariada) e do teste do chi quadrado (bivariada). Vale assinalar que não houve questões em branco ou anuladas nos questionários respondidos, percebendo-se a boa receptividade e seriedade com que este movimento foi acolhido pelos servidores, tendo-se obtido uma adesão de 375 funcionários emum universo de cerca de mil e duzentos, apesar do curto prazo oferecido e a realização do mesmo em um mês onde habitualmente há um percentual maior de funcionários em férias. Durante o período em que foi realizada a avaliação dos resultados, chamou a atenção do grupo, a imensa possibilidade de percepção subjetiva de desejos dos servidores, através da forma como eles se colocaram nas respostas semi-estruturadas, gerando com isso informações importantes para uma análise mais apurada de suas expectativas. Nesse processo, portanto, foram obtidos resultados úteis e norteadores quanto às novas propostas de implementação de políticas de humanização dirigidas aos servidores, incluindose também as críticas, orientadoras para novos direcionamentos. Quanto aos resultados obtidos encontramos achados muito interessantes. Levantando-se os percentuais obtidos entre as pontuações quatro e cinco do questionário, encontramos os seguintes: 84,7% dos servidores que responderam aos questionários apresentavam prazer em trabalhar no instituto; 71% estavam satisfeitos com o ambiente de trabalho e 73,5% tinham satisfação com a chefia imediata; 94,6% tinham interesse em se qualificar e 89,3% tinham interesse em permanecer no instituto; 42,8% consideravam-se alvo de injustiças e apenas 29,2% se achavam valorizados quanto à categoria funcional e 18,4% consideravam sua remuneração justa (vide figuras 08 e 09). 55 Após esta etapa, prosseguindo na avaliação das respostas, foram realizadas análises bivariadas das questões estruturadas, também estas, geradoras de informações interessantes para orientar a implementação de políticas de humanização dirigidas aos servidores. Foi feito o cruzamento entre o quesito remuneração justa e alvo de injustiça e o resultado deste foi que sentir-se injustiçado estava diretamente ligado a sentir-se mal remunerado (vide figura 10). No cruzamento de valorização da categoria funcional e alvo de injustiça foi verificado que sentir-se injustiçado, estava diretamente ligado a sentir-se não valorizado (vide figura 11). Quando cruzadas remuneração profissional e valorização da categoria, verificou-se que sentir a categoria valorizada não estaria diretamente ligado a ter uma remuneração justa (vide figura 12) e quanto ao cruzamento de desejo de capacitação e alvo de injustiça, obteve-se que sentir-se injustiçado não tiraria a motivação na capacitação. 56 Esses dados obtidos fizeram o grupo refletir que a insatisfação com a remuneração, não excluía a demanda por valorização da categoria funcional e a motivação pela capacitação, achados estes que nos pareceram parâmetros fundamentais para nortear o desenvolvimento do trabalho voltado para políticas de humanização. A partir disso o grupo definiu duas propostas como ponto de partida, que seriam: buscar parâmetros para a implementação de uma política de valorização profissional de caráter permanente e a criação de uma rede de multiplicadores, visando promover integração, socialização, aprimoramento da comunicação interna e avaliação contínua das ações implementadas. Estes resultados foram esquematizados e publicados em artigo na revista Editorial Laranjeiras. Assim, o grupo de trabalho deu início à formação da rede de multiplicadores, seguida de um curso de formação oferecido aos trabalhadores do Instituto, organizado e ministrado pela equipe coordenadora da Política Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde. (NASCIMENTO, 2004, p.56-60). Paralelamente a isso foram realizados encontros com outras unidades, organizados pela equipe coordenadora, para troca de experiências e propostas, sendo a nossa, a eleita pela mesma coordenadoria, para representar o Projeto Piloto para a implantação da Política Nacional de Humanização no Rio de Janeiro, o que muito nos motivou. Ainda com a consultoria de Brasília, o nosso grupo de trabalho, com a participação dos multiplicadores e já funcionando como uma Comunidade Ampliada de Pesquisa 57 (CAP) (vide anexo A), elegeu, a princípio, como o tema a ser trabalhado no Instituto, a Política de Saúde do Trabalhador, tendo como primeiro foco contemplado para realização de pesquisa, a Dinâmica das Relações Interpessoais. Nosso objetivo apriori foi verificar se as relações interpessoais dos trabalhadores interferiam tanto na assistência prestada aos usuários, quanto na qualidade de vida e de trabalho destes servidores. Dentro do ciclo de reuniões da CAP, o grupo definiu como metodologia de trabalho, a realização de uma pesquisa do tipo quali-quantitativa, utilizando como instrumento a construção de um novo questionário semi-estruturado (vide anexo C) enfocando as seguintes variáveis: Comunicação, Valorização Profissional e Capacitação Profissional. Estas foram cruzadas com os diversos seguimentos de trabalhadores do Instituto e com a assistência prestada aos usuários. Esse questionário constou de questões objetivas (múltipla escolha) e questões abertas, distribuído entre os servidores, para serem respondidas novamenteem caráter voluntário, acompanhadas de um roteiro de observação participativa, para ser preenchido pelos aplicadores dos questionários, em cada serviço onde os mesmos foram distribuídos. Os resultados foram estratificados através de um método estatístico, que elegeu a Solução Ótima de Newman (Nº de pessoas x 70/Nº total de pessoas dos 17 serviços) para a análise das questões objetivas e a Análise de Conteúdos para as questões abertas. As respostas objetivas foram representadas graficamente utilizando o Gráfico de Setores e Boxplot, e quando analisadas bivariadamente, optou-se por utilizar o Gráfico de Barra 3 (ROSNER, 2010, p.26-29 e p.393-400). Foram obtidos vinte e cinco gráficos que traduziram as ideias acerca do cruzamento das variáveis comunicação, valorização e capacitação profissional, com as seguintes variáveis intervenientes: trabalhadores com a chefia; com colegas de mesma categoria/função; com colegas de diferentes categorias/funções; com colegas de diferentes vínculos empregatícios; e com os usuários. Verificou-se que existe associação diretamente proporcional entre o servidor se sentir valorizado pela sua chefia e a comunicação com os usuários. A mesma associação foi encontrada também, entre o servidor sentir-se 58 valorizado entre colegas de diferentes vínculos e sua comunicação com colegas de diferentes categorias/funções (vide figura 13). Quanto à capacitação, o estudo das associações demonstrou que há associação diretamente proporcional entre diferentes categorias/funções e a comunicação com os mesmos, bem como entre a capacitação de colegas de diferentes vínculos e a comunicação com os mesmos (vide figura 13). Observou-se também que há uma associação direta entre a capacitação na assistência aos usuários e a comunicação com os mesmos (vide figura 13). E ainda, pode-se perceber que há associação entre se sentir valorizado em relação à chefia e sua comunicação com os usuários, havendo também associação entre se sentir valorizado entre colegas de diferentes vínculos e sua comunicação com colegas de diferentes categorias/funções (vide figura 14). 59 Os dados obtidos ofereceram diversos comentários muito úteis (vide figuras 15 e 16), que sugerem que a melhoria da comunicação na unidade, da valorização e capacitação profissional dos trabalhadores do Instituto, representariam uma melhora no grau de satisfação, na qualidade de vida, no desempenho e na prestação de assistência aos usuários, este último de imensa relevância quanto ao aprimoramento assistencial. Esses resultados foram apresentados no Seminário Nacional Humaniza SUS, realizado em Brasília no período de 20 a 22 de setembro de 2004, com 60 muito boa repercussão, sendo também apresentado para todas as chefias do Instituto, para discussão e reflexão acerca dos mesmos. “Diferentes ângulos de observação ajudam a explicitar os aspectos mais amplos e também específicos relacionados ao que se consideram exposições, fatores associados e eventos que se expressam no corpo do trabalhador e nas relações sociais de trabalho. (...) O nível de satisfação é sugerido como indicador de qualidade dos serviços de saúde e os resultados demonstram o espectro de fatores organizacionais interferentes na percepção do trabalho e graus de satisfação. (...) Entre esses fatores, destacam-se as dificuldades quanto à oportunidade de discutir o trabalho com os superiores, cooperação na equipe e qualidade de comunicação entre os profissionais (...)”. (SANTOS FILHO & BARROS, 2012, p.102103). O grupo de trabalho de humanização organizou a Primeira Semana de Arte do Instituto, em outubro de 2004, onde puderam ser apresentados trabalhos artísticos de várias modalidades desenvolvidos pelos servidores, que incluíram convidados para diversas apresentações, entre elas a discussão de filmes e documentários. Nesta pode ser bem percebido o interesse dos servidores em participar e compartilhar interesses. No final daquele ano, quando ocorreram mudanças na equipe coordenadora da Política Nacional de Humanização, o grupo manteve-se estimulado e com o apoio da direção para continuar e progredir nos projetos já instituídos. O grupo de trabalho, que passou a denominar-se oficialmente de Grupo de Trabalho de Humanização (GTH), deu, portanto, continuidade, através do conhecimento acumulado, ao que já vinha organizando, mantendose com encontros regulares e semanais. Foram eleitos alguns temas voltados para a qualidade de vida dos trabalhadores e organizadas palestras específicas sobre os mesmos. Com esse objetivo foi criado um ciclo de palestras mensais. Para ministrá-las, foram convidados tanto palestrantes do próprio Instituto, como convidados de outras instituições. A agenda constou de palestras sobre Obesidade, constituição da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes CIPA e sobre Infecção Hospitalar, entre outras. Concomitantemente, foi organizada outra agenda de palestras, voltadas para as equipes multidisciplinares, já dentro de um programa de capacitação, 61 enfocando os grandes grupos de patologias abordadas no Instituto. Para isso convidamos, inicialmente, representantes dos diversos departamentos, visando uma melhor compreensão dessas patologias, para facilitar o atendimento aos seus portadores, fornecendo conhecimentos específicos aos profissionais das diversas áreas (Psicologia, Fisioterapia, Nutrição e Serviço Social) envolvidos no atendimento. Estas obtiveram ótima adesão, com resultados bastante positivos e contaram com palestrantes dos respectivos departamentos. Devido a grande quantidade de cardiopatas e de trabalhadores fumantes, foi criado pelo grupo, um projeto para instituir no Instituto, um programa de tratamento do tabagismo voltado para ambos os públicos. A partir disso, o grupo foi acrescido da participação de duas psicólogas interessadas na proposta e pertencentes ao Serviço de Saúde Mental e Consultoria Médica do Instituto. Foram buscadas informações em algumas entidades no Rio e em São Paulo, onde já existiam programas de tratamento do tabagismo instituídos, sendo obtidas não só orientações, como material científico útil acerca do assunto. Diante desse novo desafio para nosso grupo de trabalho, alguns componentes interessados em obter melhor formação para este fim, se inscreveram no Programa de Treinamento para Tratamento do Tabagismo da Secretaria Municipal de Saúde com apoio do Ministério da Saúde, com o objetivo de obter mais subsídios para a implantação do projeto em nossa unidade. A partir desta iniciativa, conseguimos finalmente instituir em caráter oficial o Programa de Tratamento do Tabagismo no Instituto, seguindo as diretrizes preconizadas pela Secretaria Municipal de Saúde/Ministério da Saúde (vide figuras17, 18 e 19). Para nossa grata satisfação o programa funciona até hoje regularmente, atendendo cada vez mais pessoas, tanto pacientes quanto aqueles trabalhadores que desejem parar de fumar. 62 Além dos projetos e atividades desenvolvidas para os servidores, o grupo de trabalho de humanização do Instituto vem desde o seu início, como já foi dito, enfocando projetos e atividades voltadas para os usuários. Entre elas destacamos a criação de salas de convivência para os pacientes nas enfermarias, propiciando um espaço confortável para receber visitas, leituras e jogos, entre outras atividades, na tentativa de abrandar as angústias decorrentes do afastamento de seu meio familiar, social e profissional, ocasionado pela internação. E ainda, foram melhores aprimorados, em conjunto com chefias de departamento e serviços multidisciplinares, os grupos de atendimento préoperatório, contando com profissionais das diversas categorias, para o preparo para cirurgias, bem como para orientações específicas voltadas para cada grupo de patologias, respeitando-se técnicas grupais próprias. Em relação a estes, observa-se, até o presente, resultados bastante favoráveis, refletidos não só na opinião dos pacientes e familiares como também dos profissionais envolvidos. Critérios imprescindíveis para a política de humanização como os conceitos de acolhimento e ambiência foram relevantes nesse aprimoramento, com os grupos de pré-operatório e atividades da terapia ocupacional passando a ser realizados nas salas de convivência, mais confortáveis e oferecendo mais possibilidade de interação entre os participantes (vide figuras 20, 21 e 22). 63 A grande maioria das atividades do grupo de trabalho, foi cuidadosamenteregistrada através de material escrito, apresentações em power-point seguidas de impressão, fotos e documentos diversos, o que não só propiciou a construção de sua memória, bem como o acompanhamento evolutivo da implementação da política de humanização no Instituto, facilitando o seguimento dos projetos e atualizando ainda facilmente os novos integrantes. Em outubro de 2005, consagrando o movimento da Política Nacional de Humanização no Rio de Janeiro, foi criada a Câmara Técnica de Humanização, que estabeleceu um cronograma de reuniões regulares entre os hospitais da rede participantes. Estes encontros propiciaram a troca de experiências, estratificação de ações em desenvolvimento e dificuldades encontradas, dando origem a metas e pactuações específicas, levando-se em conta a realidade de 64 cada unidade envolvida. A partir daí surge a proposta de construir-se o projetomemória da humanização, onde seriam retratadas as ações que vinham sendo desenvolvidas e que estariam identificadas com o atendimento humanizado de acordo com as diretrizes da política. Esta memória seria retratada através de compilação de escritos, fotos e filmagens, contando com pessoal especializado para a sua construção. Para isso foi aberta a inscrição para que os hospitais se candidatassem com roteiros para a construção de um filme, dentre os quais três seriam eleitos para serem filmados e apresentados, em novembro de 2006, em um grande fórum realizado no Rio de Janeiro, no Museu da República. Para nossa grata surpresa, nosso roteiro, que abordava as reuniões de pré-operatório infantil foi um dos selecionados, gerando um filme mostrando esse trabalho, que foi muito bem recebido pelo público. Em fins de 2006, teve início no Instituto o processo para acreditação hospitalar, ligado ao Comitê Brasileiro de Acreditação e, para isto, foram criados novosgrupos de trabalho, agoravoltados para estudos dos diversos capítulos constantes do Manual Internacional de Padrões de Acreditação Hospitalar. Justamente por estar engajada na implementação de políticas de humanização e, por vezes, representar o Instituto nos eventos relativos à esta, fui convidada para coordenar o grupo de estudos do capítulo correspondente aos direitos dos usuários, ao qual o de educação (no sentido de capacitação quanto aos cuidados em saúde) de pacientes veio posteriormente a se incorporar. Isto fez com que se formasse uma parceria natural entre o grupo de trabalho de humanização com este último, o que tornou este trabalho bem proveitoso devido às múltiplas identificações entre ambos, obtendo-se inclusive a inclusão de diversas propostas norteadas pela política de humanização às de acreditação hospitalar. Este trabalho em conjunto, entre outras ações, elegeu como uma de suas prioridades a construção do Manual do Paciente (vide figura 23). 65 O manual, cujo princípio básico era a preservação dos direitos do paciente, tornou-se efetivamente algo mais amplo, transformando-se não só em um instrumento de informação, mas também uma importante ferramenta de acolhimento, sendo oferecido ao paciente no momento de sua internação. Já de início, objetiva norteá-lo diante deste ambiente novo e desconhecido, ofertando de imediato, um instrumento de comunicação que o convida a desenvolver questões e apropriar-se de seu papel de protagonista diante de sua doença e de seu tratamento. Buscou-se, através da construção deste material escrito, aprimorar não só a relação do paciente com a instituição, como oferecer a seus acompanhantes, diversas vezes, tais como os próprios pacientes, desorientados e desalentados, a possibilidade de começar a minimamente decifrá-la, diminuindo as relações assimétricas frequentemente estabelecidas entre os pacientes, seus parentes e as equipes de saúde. A construção do Manual do Paciente foi fruto de um ciclo de encontros, onde puderam ser avaliadas as diversas experiências de criação de manuais voltados para os pacientes, desenvolvidas e já implantadas, tanto em instituições públicas quanto em privadas, sendo observadas as similaridades e diferenças entre as propostas, dando destaque ao lugar do conceito de usuário nos vários serviços de saúde. 66 O grupo de trabalho convidou todos os departamentos e serviços do Instituto para contribuírem na construção do manual, trazendo aquilo que considerassem relevante constar do texto e justamente por ter-se tornado uma produção interdisciplinar, congregando múltiplos saberes, pode transformar-se em uma rica fonte, contemplando desde aspectos de sinalização (como por exemplo, onde se localizam as enfermarias, os locais para realização de exames e procedimentos cirúrgicos, além da rotina hospitalar), até orientações mais específicas e preventivas, incluindo métodos de higiene oral, administração de medicação, prevenção de infecções e a oferta de atendimento pelo serviço de saúde mental, entre outras. Sua elaboração final demandou múltiplas etapas e reuniões com as diversas categorias funcionais, até que foi finalmente implantado no final de 2010, hoje já necessitando nova revisão. Ainda em relação à construção do Manual do Paciente, esta pode ser reconhecida como uma conquista bastante considerável no que diz respeito a produtos preconizados pela política de humanização, justamente porque coloca em prática diversos de seus instrumentos, tais como o acolhimento, como já dito, a clínica ampliada (através do exercício da interdisciplinaridade), bem como o estímulo ao protagonismo e a corresponsabilidade, objetivando através deles, diminuir o distanciamento, a passividade e o isolamento dos pacientes diante da doença e do tratamento. Sua construção dentro destes moldes, só tornou-se possível a partir do espaço alcançado pelo conceito de atendimento humanizado, estabelecido através da perseverança incansável e da credibilidade conquistada por aqueles que acreditam na importância da humanização para a construção de sujeitos, diante do enfrentamento da doença e da necessidade de encontrar novas formas de viver. A partir de 2007 até o presente, entre alternâncias na direção do Instituto e na coordenação da Política Nacional de Humanização, os trabalhos iniciados ou implementados desde o início da implantação desta política, foram mantidos em desenvolvimento, agora já integrados à Divisão de Recursos Humanos e retomando sua participação mais sistemática na Câmara Técnica de Humanização do Rio de Janeiro, contando também com uma reestruturação da constituição e funcionamento do grupo de trabalho de humanização. Este 67 grupo participou também de um curso extenso, ao longo de 2011, para capacitação e aprimoramento daqueles que trabalham pela política de humanização, seja na qualidade de formadores, apoiadores ou multiplicadores, onde conceitos, diretrizes e diversas situações efetivas, puderam ser mais profundamente discutidas e acordadas. A partir daí, surgiram novos temas, sempre voltados para o aprimoramento das relações mais humanizadas entre usuários, trabalhadores e serviços de saúde, que se mantém em discussão em caráter permanente. O que principalmente fica de tudo isso que aqui foi apresentado é que atualmente o conceito de humanização foi realmente incorporado ao discurso do Instituto, não mais como uma terminologia banalizada, e sim, como um instrumento de grande valia para a população hospitalar, tanto de usuários quanto de trabalhadores, traduzida como ferramenta portadora de objetivos, diretrizes e fundamentos, propiciando uma nova abordagem da dimensão do humano, no que diz respeito à saúde e qualidade de vida. Após tudo que foi discutido neste capítulo, torna-se possível ver com mais clareza a íntima correlação que guardam entre si as formulações da política de humanização e alguns conceitos da psicanálise, em especial um dos seus operadores principais, que é a transferência. Segundo a psicanálise, a transferência é um dos seus conceitos fundamentais e será abordada no próximo capítulo desta pesquisa. Pode-se supor que o estabelecimento da transferência é fundamental para a adesão ao tratamento, com repercussões importantes para o desenvolvimento da terapêutica proposta. 68 4 A TRANSFERÊNCIA COMO INSTRUMENTO PARA A POLÍTICA DE HUMANIZAÇÃO Este capítulo apresenta o conceito de transferência proposto por Sigmund Freud, que foi determinante para a criação da psicanálise, traçando um breve percurso feito por este autor para alcançar suas descobertas, consideradas paradigmáticas e que culminaram por conquistar reconhecimento mundial. Incluem-se neste capítulo os principais acréscimos efetuados por Jacques Lacan, psicanalista francês, ao estudo sobre a transferência. A transferência está presente em todas as relações humanas, sendoconsiderada como um dos conceitos fundamentais para a psicanálise e tratando-se do principal instrumento usado no tratamento psicanalítico, cujo manuseio pode levar ao sucesso ou ao fracasso terapêutico. Justamente porque o fenômeno da transferência atravessa todas as relações humanas, entende-se que ele esteja operando nas relações que se estabelecem entre o profissional de saúde e o paciente durante a internação hospitalar, podendo influir diretamente na condução do tratamento. Tal qual na psicanálise, os instrumentos da política de humanização tem acima de tudo, como principal objetivo, escutar o sujeito adoecido, respeitando sua singularidade, levando em conta suas crenças e valores próprios; sujeito este, cuja estrutura será determinante para lidar com as novas condições geradas pelo adoecimento físico. Da mesma forma que Freud aponta entre os principais sofrimentos humanos, o do corpo e as relações humanas, a política de humanização também se fundamenta nesses elementos, o sofrimento do corpo pela doença e as relações que se estabelecem entre o sujeito adoecido, a instituição e a equipe de saúde. Podemos considerar, portanto, que está embutida no conceito de humanização a consideração do sujeito da psicanálise e como este sujeito vai lidar com o adoecimento físico. Em relação ao sujeito da psicanálise, torna-se imprescindível que sejam feitos alguns comentários sobre a teoria concebida por Jacques Lacan, considerando o Outro como a base da constituição do sujeito. Para ele, o sujeito da psicanálise se constitui a partir do desejo do Outro. O sujeito do 69 inconsciente, segundo Lacan, é estruturado como uma linguagem. Sendo assim, o sujeito se constitui a partir da linguagem, do que lhe é dito, em especial nas suas relações parentais. Lacan (1949) em seu comentário O estádio do espelho como formador do eu, tal como nos é revelado na experiência analítica, esclarece a relevância da concepção do estádio do espelho no que tange a psicanálise. Neste trabalho o autor aponta para a importância desse momento no desenvolvimento do ser, que tem como função estabelecer a relação entre o mundo interno com o externo. Ocorre por volta dos seis meses de idade, quando o bebê adquire a percepção de sua imagem refletida no espelho; antes tomada como um corpo despedaçado esta imagem agora passa a ser percebida como uma unidade, embora ainda confundida entre o eu e o outro. “A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á, pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito”. (idem, ibidem, p.97). Lacan (ibidem) aponta, portanto, para a relação direta da influência exercida pelo desejo do Outro, intermediado pela linguagem em especial, de familiares e de pessoas próximas, para constituição do sujeito da psicanálise. “Esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme, a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas. É esse momento que decisivamente faz todo o saber humano bascular para a mediatização pelo desejo do outro, constituir seus objetos numa equivalência abstrata pela concorrência de outrem”. (idem, ibidem, p. 101). Estabelecendo-se uma relação entre o que se inicia como abordagem instrumentalizada pela humanização e que se encaminha para implicação subjetiva desse sujeito que se depara com o processo de adoecer, a finitude e angústia de morte, pode-se perceber o papel fundamental do estabelecimento 70 da transferência nas relações que esse sujeito vai desenvolver com a equipe de saúde, com as demais instâncias do cuidar e diante da própria vida. Pode-se, inclusive, no atendimento ao doente internado, estabelecer-se um paralelo entre as entrevistas preliminares da psicanálise e as primeiras consultas com este doente e as possibilidades advindas desse contexto. Em caso de transferências negativas, estas podem vir a ter resultados extremamente danosos, pois ao suscitar sentimentos de desvalorização e ressentimento no doente, podem levá-los a abandonar o tratamento, com prováveis resultados desastrosos. Em contrapartida, ao convidar-se este sujeito, através dessa escuta humanizada, a falar livremente, pode-se facilitar o estabelecimento deuma transferência favorável ao tratamento. Como a política de humanização traz em seu escopo a valorização do sujeito, buscando aproximar o profissional de saúde do paciente através do respeito à sua singularidade, propomos pensar a respeito do fenômeno da transferência como instrumento nas ações da política de humanização. Desse modo, o presente trabalho aponta para a hipótese de que a política nacional de humanização pressupõe a transferência em suas ações, embora isto não esteja explicitado, conforme já referido anteriormente, uma vez que esta política surgiu no campo específico da medicina. Pode-se pensar que esta política só se efetiva realmente tendo como suporte a transferência. Partindo dessa premissa, portanto, esse trabalho pretende ser uma contribuição teórica da psicanálise para os profissionais de saúde, a fim de que possam entender a importância da transferência para o resultado e para a adesão ao tratamento destes pacientes que se encontram em situação de internação hospitalar. 4.1 UM POUCO DE HISTÓRIA Sigmund Freud nasceu em 1856 na Morávia, localizada na Europa Central, que depois veio a ser a Tchecoslováquia, mudando-se com sua família para Viena aos quatro anos de idade. Desde cedo mostrou-se um aluno brilhante, ingressando na faculdade de medicina da universidade de Viena aos 17 anos e formando-se com louvor. 71 Após incursões na anatomia patológica e na clínica, Freud recebeu uma bolsa para estudar em Paris, no Hospital de Salpêtrière, onde iniciou seus estudos sobre histeria com o neurologista Jean Martin Charcot, que por sua vez, utilizava a hipnose para tratar seus pacientes. Esses estudos foram fundamentais para o nascimento da psicanálise e o encaminharam para a construção da etiologia sexual das neuroses, afirmando que o inconsciente é sexual e infantil. Freud manteve suas buscas após seu retorno para Viena, onde se estabeleceu como especialista em doenças nervosas, culminando com a descoberta do inconsciente e da transferência. Como já dito, a partir da descoberta da transferência Freud funda a psicanálise. Apresenta-a para o meio científico como uma forma de tratamento baseada no método da associação livre e trazendo a proposta da cura através da fala. Em seu início, a inovação trazida pelo método enfrentou muitas resistências junto ao pensamento médico vigente, mas não inibiu seu criador que continuou avançando, progredindo em suas observações e acreditando em suas buscas e descobertas, não hesitando em difundi-las apesar das críticas, o que permitiu que a psicanálise conquistasse o seu lugar de destaque enquanto método de tratamento eficaz e respeitado pelo pensamento cientifico. Durante o início de seus estudos sobre as neuroses, Freud manteve uma parceria intelectual com Josef Breuer, antigo amigo de faculdade, com quem escreveu Estudos sobre a histeria, publicado em 1895, sobre o caso da jovem paciente Anna O. Nesta obra percebeu que o analista tinha a capacidade de influenciar, alterar ou até mesmo gerarnovossintomas. Freud se deu conta então, que o problema não se restringia apenas à investigação dos processos psíquicos conscientes, mas que havia também processos inconscientes, onde era imprescindível algum instrumento especial. Esses estudos o estimularam cada vez mais a se utilizar do procedimento de fazer o paciente falar através da associação livre, esperando que conteúdos recalcados viessem à luz e constatando a ação do recalque. Freud (1905a) nos diz: 72 “O tratamento não foi levado até seu final previsto, tendo sido interrompido por desejo da própria paciente quando já ia a certa altura. Nesse ponto, alguns dos problemas do caso não tinham sequer sido tocados eoutros só imperfeitamente tinham sido elucidados; ao passo que, se o trabalho tivesse prosseguido teríamos sem dúvida obtido o maioresclarecimento possível sobre cada particularidade do caso (...). Agora deixo o próprio paciente escolher o assunto do trabalho do dia, e desta forma parto de qualquer aspecto que seu inconsciente esteja apresentando a sua percepção no momento. Mas desse modo, tudo o que se relaciona com a solução de determinado sintoma emerge em fragmentos, entremeado com vários contextos e distribuído por épocas amplamente dispersas. Apesar dessa aparente desvantagem, a nova técnica é muito superior à antiga, e é incontestavelmente a única possível”. (FREUD, 1905a, p.9-10). Estas pesquisas todas o levaram à descoberta do conceito de resistência, observando a relutância dos pacientes em cooperarem na própria cura. “Assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como a arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência”. (FREUD, 1912, p.139). Em relação ao método da associação livre, torna-se de grande relevância ressaltar o seu papel indispensável para o processo analítico, dai ser considerada a regra fundamental da psicanálise. Através dela o paciente é estimulado a falar livremente tudo que lhe vier à cabeça, tendo como objetivo a emergência de conteúdos inconscientes até então mantidos recalcados. “Finalmente, desenvolveu-se a técnica sistemática hoje utilizada, na qual o analista abandona a tentativa de colocar em foco um momento ou problema específicos. Contenta-se em estudar tudo o que se ache presente, de momento, na superfície da mente do paciente, e emprega a arte da interpretação principalmente para identificar as resistências que lá aparecem, e torná-las conscientes ao paciente. Disto resulta um novo tipo de divisão de trabalho: o médico revela as resistências que são desconhecidas ao paciente; quando essas tiverem sido vencidas, o paciente amiúde relaciona as situações e vinculações esquecidas sem qualquer dificuldade”. (FREUD, 1914a, p. 193). 73 Freud descobriu e nomeou o fenômeno da transferência, ao perceber que na relação analítica surgem sentimentos amorosos e agressivos em relação ao analista, sentimentos e modos de relação que estão relacionados à história pregressa do paciente. A origem do conceito de transferência se deu, portanto, a partir do seu reconhecimento e de sua utilização por Freud desde o seu abandono da hipnose, sendo motivo de sua atenção até o fim da vida, devido à recorrência do fenômeno. 4.2 O INCONSCIENTE: BREVE PERCURSO SOBRE O SEU CONCEITO Para se compreender melhor como Sigmund Freud descobriu e nomeou o fenômeno da transferência, fundamental para a criação da psicanálise, tornase interessante percorrer brevemente os caminhos que o levaram à descoberta do inconsciente, bem como os processos que envolveram o desenvolvimento do seu conceito. Ao descobrir o inconsciente, Freud acabou por anunciar para a humanidade que existe um Outro dentro de nós mesmos. Segundo Freud, no inconsciente estaria aquilo que é desconhecido pela consciência e se manifestaria através do chiste, do ato falho, do sintoma e do sonho. Estes serão abordados mais detalhadamenteadiante, bem como os mecanismos de condensação e deslocamento. A importância capital da descoberta do inconsciente está no fato de que, como pontua Coutinho Jorge (2010), “o inconsciente não resiste, ele insiste em se manifestar” (idem, ibidem, p.43), sendo, portanto, determinante de todo comportamento humano. Serão feitas também algumas considerações sobre a visão de Jacques Lacan a respeito do inconsciente. Para este autor, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, utilizando-se das operações da metáfora e da metonímia, provenientes da linguística e consideradas, por ele, como as leis fundamentais que regem a formação do inconsciente. Como já foi dito, para Freud o inconsciente manifesta-se através do sintoma, do ato falho, do chiste e do sonho, fenômenos estes que Lacan nomeia como formações do inconsciente. 74 Em diversas obras, como A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900),A Psicopatologia da vida cotidiana (idem, 1901) e Os chistes e suas relações com o insconsciente (idem, 1905b),Freud não só desenvolve sua teoria sobre o inconsciente, como articula o conteúdo do inconsciente ao ato da fala, enfocando a importância de tudo que é dito. Segundo ele, o conteúdo do inconsciente é, muitas vezes, recalcado e para driblar o recalcamento as ideias inconscientes apelam aos mecanismos definidos em sua obra A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900), como condensação e deslocamento. Lacan nomeou como metáfora e metonímia, os mecanismos de condensação e deslocamento apontados por Freud. São considerados os mecanismos básicos no funcionamento do inconsciente. Lacan nomeia então, esses dois mecanismos como as duas leis do inconsciente. A primeira lei seria a metáfora e implica numa superposição (substituição) de significantes e a segunda lei, a metonímia que, por sua vez, funciona como uma articulação de um significante ao outro por deslizamento. Segundo este autor, portanto, essas duas leis da linguagem seriam as leis que regem o inconsciente e o valor e a função da fala, relacionados à movimentação dos significantes. Os Estudos sobre a histeria publicados por Freud em 1893-1895, que já foram apontados anteriormente, costumam ser considerados um ponto importante da teoria psicanalítica. A partir daí Freud passou cada vez mais a valorizar o fluxo de associações livres do paciente, descortinando-se assim, o caminho para a análise dos sonhos. Essa análise permitiu-lhe, adquirir o recurso técnico da interpretação, deparando-se em seguida com a observação dos processos transferenciais, reconhecendo-os não só como um obstáculo, mas também como um instrumento fundamental da técnica psicanalítica. Os chistes, a princípio meramente conectados à comicidade e ao lúdico, tomaram significância para Freud (1905b) em sua obra Os chistes e a sua relação com o inconsciente, na medida em traduziam algo oculto, fundindo ideias constituídas de conteúdo interno cujo desdobramento só poderia vir à tona através da análise deste conteúdo. Eles são, segundo Freud, uma forma de nos libertarmos de nossas inibições para expressar aquilo que, de outra forma, não ganharia expressão a nível consciente, e se manifestariam através de um contraste de ideias, de um sentido de nonsense e de desconcerto e 75 esclarecimento, associando-os aos mecanismos do sonho que são a condensação e o deslocamento. Nos chistes o que é focalizado é o jogo de palavras, a aparente destituição de sentido, remetendo, a posteriori, a uma nova representação, a um outro significante para o sujeito. O chiste não se realiza sozinho e só se efetiva com a comunicação da ideia a alguém. Sob a ótica de Lacan, o chiste joga com a cadeia de significantes, promovendo a articulação de algo novo, outro significante que deixe de ter para o sujeito o peso do sofrimento e dos determinantes infantis. Em 1901, Freud publicou o artigo intitulado Psicopatologia da vida cotidiana, no qual aborda o tema dos atos falhos (Fehlleistung, em alemão e parapraxis na tradução inglesa), que seriam um erro na fala, na memória ou em uma ação, causados por fixações do inconsciente. Através do ato falho o inconsciente fura os bloqueios da razão e o desejo inconsciente é realizado, constituindo-se em compromisso entre o intuito consciente da pessoa e o recalcado. Lacan por sua vez, considera que o ato falho seria na realidade, um ato bem sucedido sob o aspecto do inconsciente, uma vez que seria uma formação do inconsciente que irromperia na consciência à revelia do sujeito. Bem mais tarde, através de uma série de conferências denominada Teoria geral das neuroses, Freud (1917b) observa que os sintomas neuróticos, tal como os atos falhos e os sonhos, possuem um sentido e têm íntima conexão com a vida de quem os produz. Ele considera que os sintomas possuem uma intenção e um sentido e que revelam traços singulares, específicos de cada um, e que também evidenciam a determinação de uma íntima conexão entre o sintoma e o inconsciente. O sintoma é o substituto de algo que foi afastado pelo recalque. O recalque para Freud é aquilo que o sujeito empurra para oinconsciente e que retorna sob a forma de sintoma. Os sintomas são ou uma satisfação de algum desejo sexual ou medidas para impedir tal satisfação, representando a conciliação, a formação de compromisso entre as duas forças que entraram em luta, entre a libido insatisfeita, que representa o recalcado e a força do recalque, que compartilhou 76 de sua origem. Seriamna realidade uma forma de satisfazer algo que não conseguiu caminho para a consciência e se apresenta, portanto, de maneira deformada, trazendo realização através de sofrimento. Para Lacan, o sintoma representa metaforicamente o desejo, funcionando como uma formação substitutiva do significante recalcado, aí encontrando satisfação. O sintoma é na realidade, o lugar paradoxal onde o sujeito, sem que ele o saiba, tem a sua satisfação, o gozo e, também, o seu sofrimento. Freud (1900) em sua obra, A interpretação dos sonhos, considerou que o sonho é a estrada de excelência que conduz ao inconsciente e construiu os principais fundamentos da teoria psicanalítica. Para ele, a essência do sonho é a realização de um desejo infantil recalcado, servindo-se desse princípio como base para o método psicanalítico. “Em minha A Interpretação dos Sonhos, publicada em 1900, mostrei que os sonhos em geral podem ser interpretados e que, após concluído o trabalho de interpretação, podem eles ser substituídos por pensamentos perfeita e corretamente construídos, aos quais se pode atribuir uma posição reconhecível na cadeia de acontecimentos mentais”. (FREUD, 1900, p.13). O sonho é justamente o fenômeno da vida psíquica em que os processos inconscientes da mente são revelados de forma bastante clara e acessível ao estudo. Na concepção freudiana, o sonho é um produto da atividade do inconsciente e tem sempre um sentido intencional, a realização ou a tentativa de realização de um desejo. Para Freud, do mesmo modo como o conceito de recalque realça a atividade do inconsciente, a teoria dos sonhos indica os caminhos indiretos que este toma para se expressar. Considerando o sonho como um trabalho do simbólico, Freud o dividiu em conteúdo manifesto e latente, podendo a partir daí, analisar um justaposto ao outro e compreendê-lo. As operações mentais inconscientes por meio das quais o conteúdo latente do sonho se transforma em manifesto, chamam-se de elaboração do sonho. Nos sonhos, as forças recalcadas burlam as resistências alcançando satisfações proibidas. 77 “(...) o sonho é um dos caminhos pelos quais a consciência pode ser alcançada pelo material psíquico que, em virtude da oposição criada por seu conteúdo, foi extirpado da consciência e reprimido, tornando-se assim patogênico. O sonho é, em suma, um dos desvios por onde se pode fugir á repressão; é um dos principais meios empregados pelo que se conhece como método indireto de representação da mente”. (FREUD, 1900, p.13). Segundo Freud, os mecanismos do sonho são os mesmos que regem o funcionamento do inconsciente, que são a condensação e o deslocamento. A função desses mecanismos é distorcer o desejo recalcado, burlando dessa forma a censura, utilizando-se de representações nas quais o pensamento é traduzido em imagens visuais e simbolismos substituindo ideias, pessoas ou ações. Lacan, como dito anteriormente, nomeou os mecanismos de condensação e deslocamento, também presentes no sonho, como os dois mecanismos da linguística, metáfora emetonímia, considerando-os como mecanismos do inconsciente. Conforme seu pensamento, as imagens do sonho só deveriam ser consideradas pelo seu valor de significantes. Por fim, Freud com seu pensamento ímpar e genial, ao fundar a psicanálise, apresentou as consequências de sua descoberta do inconsciente. Para ele, o sentido da palavra, o que é dito, é o que representa o sujeito com seus mecanismos inconscientes, e através da fala, se alcançaria a possibilidade de revelá-los. Através do método da associação livre ele permitiu que o material recalcado atingisse a consciência, que o afeto se transformasse em palavras, propiciando a cura de incontáveis aspectos do sofrimento humano. Lacan, por sua vez, trouxe contribuições inovadoras, considerando que o simbólico é linguagem e queo sujeito se constitui a partir do discurso do Outro, sendo, portanto, efeito da linguagem. Segundo ele, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e através das leis da linguística inaugura outra maneira de compreender o homem em sua enorme complexidade. 78 4.3 A TRANSFERÊNCIA Sigmund Freud ao fundar a psicanálise, traduziu-a como um método de investigação, baseado principalmente na associação livre, que se constitui pela fala livre das regras do discurso. Devido a isso, a associação livre é considerada a regra de ouro da psicanálise e através dela, diversos fenômenos transferenciais serão identificados e clarificados. A transferência para a psicanálise representa o deslocamento do sentido atribuído a pessoas do passado para pessoas do presente, sendo esta transferência resultante da movimentação inconsciente. Para a teoria freudiana, esse fenômeno é fundamental para o processo de cura. No contexto analítico, a transferência é um fenômeno que ocorre na relação entre o paciente e o terapeuta, quando o desejo do paciente irá se apresentar atualizado, como uma repetição dos modelos infantis. Nele as figuras parentais e seus substitutos serão transferidos para o analista e sentimentos, desejos e impressões dos primeiros vínculos afetivos serão vivenciados e reeditados na atualidade. O manejo da transferência é definitivo para a técnica de análise e determinante para o resultado do tratamento. Freud descobriu que a transferência corresponde, na realidade, à projeção de impulsos e fantasias, de natureza erótica ou sexual, para a pessoa do analista, proporcionando uma situação passível de reviver os traumas infantis. O fenômeno da transferência foi considerado pelo próprio Freud como um dos pontos básicos de sua teoria, sendo, segundo ele, sua dinâmica e seu funcionamento fundamentais para o trabalho do analista. Somente a partir do momento em que se estabelece a transferência é que se pode dar início ao tratamento analítico. Como é possível apreender até aqui, a psicanálise se constitui não só em um método de investigação, como também em um poderoso recurso de tratamento, que se baseia na fala através das associações livres, pretendendo trazer à tona conteúdos inconscientes e lançando mão dos fenômenos transferenciais. 79 Diante da fala do paciente em análise, é preciso identificar o sentido oculto, algo que está para além do que é dito, para que isto possa ser devolvido para o paciente através da interpretação, ganhando novo sentido. Freud (1905a) teceu algumas considerações sobre a transferência em Fragmentos sobre um caso de histeria. Neste artigo relata o Caso Dora, tendo percebido na época que não soube manejar a transferência adequadamente, o que a levou ao abandono precoce do tratamento, tendo durado apenas três meses. Este caso por sua vez, também serviu de base para o desenvolvimento do conceito de resistência, com sua enorme potência de paralisar o progresso do tratamento. Na década de 1910, Freud aprofundou sua pesquisa sobre a transferência e publicou diversos artigos. No primeiro deles, A dinâmica da transferência, Freud (1912) explica como a transferência ocorre necessariamente no tratamento psicanalítico e como ela exerce seu papel. Nele afirma que cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e das influências sofridas durante os primeiros anos, adquire um método próprio de conduzir-se na vida erótica. Ele adquire aquilo que o autor denomina clichê estereotípico, o qual é constantemente repetido no decorrer de sua vida, sem que exista consciência dessa reedição de padrões de relacionamento. Na transferência, portanto, seriam evidenciadas as repetições de experiências infantis que determinariam a maneira do paciente relacionar-se com os seus objetos. Na neurose, haveria uma fixação ainda maior nesses protótipos afetivos e seria dessa forma que o indivíduo se dirigiria ao analista, bem como na relação com os demais. Essa forma de transferência pode se estabelecer no processo analítico e se apresenta como a resistência mais poderosa. Isso porque, se as associações do paciente faltam, é porque ele está pensando na figura do analista, ou algo a ele relacionado. Estes dois fenômenos, portanto, a transferência e a resistência, estariam presentes o tempo todo no tratamento e exigiriam cuidado terapêutico especial, para identificá-los e conduzi-los de forma adequada. 80 “A resistência acompanha o tratamento passo a passo. Cada associação isolada, cada ato da pessoa em tratamento tem de levar em conta a resistência e representa uma conciliação entre as forças que estão lutando no sentido do restabelecimento e as que se lhe opõem, já descritas por mim. Se acompanharmos agora um complexo patogênico desde sua representação no consciente (seja ele óbvio, sob a forma de um sintoma, ou algo inteiramente indiscernível) até sua raiz no inconsciente, logo ingressaremos numa região em que a resistência se faz sentir tão claramente que a associação seguinte tem de levá-la em conta a aparecer como uma conciliação entre suas exigências e as do trabalho de investigação. É neste ponto, segundo prova nossa experiência, que a transferência entra em cena. Quando algo no material complexivo (no tema geral do complexo) serve para ser transferido para a figura do médico, essa transferência é realizada; ela produz a associação seguinte e se anuncia por sinais de resistências - por uma interrupção, por exemplo. Inferimos desta experiência que a idéia transferencial penetrou na consciência à frente de quaisquer outras associações possíveis, porque ela satisfaz a resistência. Um evento deste tipo se repete inúmeras vezes no decurso de um análise”. (FREUD, 1912,p. 138). Freud enfoca que a transferência é a condição essencial para o sucesso da análise. Por isso a necessidade do analista estar sempre atento para manejar a transferência, no sentido de deixar a resistência em níveis que permitam que o processo analítico aconteça, sem, no entanto, paralisá-lo. Aponta ainda, que a transferência é a arma mais forte da resistência e que todo conflito psíquico deve ser abatido na esfera da transferência. “Quanto mais um tratamento analítico demora e mais claramente o paciente se dá conta de que as deformações do material patogênico não podem, por si próprias, oferecer qualquer proteção contra sua revelação, mais sistematicamente faz ela uso de um tipo de deformação que obviamente lhe concede as maiores vantagens — a deformação mediante a transferência. Essas circunstâncias tendem para uma situação na qual, finalmente, todo conflito tem de ser combatido na esfera da transferência. Assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como a arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência”. (idem, ibidem, p.139). 81 Em relação ao conceito de transferência como instrumento de resistência, Freud distingue a transferência positiva, carregada de sentimentos afetuosos, da transferência negativa, que se apresenta sob a forma de sentimentos hostis dirigidos ao analista. Focalizando com mais precisão as idéias de transferência positiva e negativa, pode-se dizer que a positiva facilita a associação livre e a negativa a dificulta ou impede. Freud observa que os conflitos psíquicos determinantes dos sintomas precisam ser transferidos para a figura do analista, pois precisam ser revividos na relação com este, para que possam ser decifrados e suspensos através do processo analítico. Essa é a ideia de neurose de transferência, que se constituiria na realidade em uma condição neurótica artificial, propiciada pela situação analítica, na qual se manifestariam as relações transferenciais. “Tal como acontece aos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seus impulsos inconscientes como contemporâneos e reais; procura colocar suas paixões em ação sem levar em conta a situação real. O médico tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos emocionais ao nexo do tratamento e da história de sua vida, a submetê-los à consideração intelectual e a compreendê-los à luz de seu valor psíquico. Esta luta entre o médico e o paciente, entre o intelecto e a vida instintual, entre a compreensão e a procura da ação, é travada, quase exclusivamente, nos fenômenos da transferência. É nesse campo que a vitória tem de ser conquistada - vitória cuja expressão é a cura permanente da neurose. Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente”. (FREUD, 1912, p.143). A partir da visão da importância da figura do analista para o tratamento, Freud nunca perde o referencial da transferência no norteamento de suas descobertas teóricas. A insistência do amor de transferência pode ser considerada a mola propulsora da técnica analítica. Em 1915, em seu texto Observações sobre o amor transferencial, Freud, discute as dificuldades a serem enfrentadas pelos analistas no manejo da transferência, reconhecendo que é difícil lidar com este fenômeno, mas 82 reafirmando os pressupostos éticos e técnicos necessários, para seu manejo como instrumento decisivo para o tratamento. Neste texto de 1915, Freud chama atenção para o fato de que o amor de transferência não seja confundido com um amor verdadeiro e que ao analista seria necessário reconhecer que o apaixonamento do paciente não deveria ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa, devendo este, estar atento para saber exatamente com o que estaria lidando, utilizando a transferência erótica para uma maior compreensão do paciente. “Para o médico, o fenômeno significa um esclarecimento valioso e uma advertência útil contra qualquer tendência a uma contratransferência que pode estar presente em sua própria mente. Ele deve reconhecer que o enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica e não deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa; de maneira que não tem nenhum motivo para orgulhar-se de tal ‘conquista’, como seria chamada fora da análise. E é sempre bom lembrar-se disto. Para a paciente, contudo, há duas alternativas: abandonar o tratamento psicanalítico ou aceitar enamorar-se de seu médico como um destino inelutável”. (FREUD, 1915,p.209). É interessante observar que o amor de transferência traz em si um verdadeiro paradoxo, por ser ao mesmo tempo genuíno e falso. É genuíno porque trata-se de um sentimento verdadeiro, mas falso porque na realidade ele não pertence à pessoa do analista. Para Freud, o analista deve aprender a identificar e a dominar o amor transferencial, porém tratá-lo como algo irreal, como uma situação que se deve atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes, o que pode ajudar a trazer tudo que se acha muito profundamente oculto na vida erótica para a consciência. É preciso deixar que a transferência surja, persista e assim analisá-la, desvendar as escolhas objetais infantis e as fantasias tecidas ao redor delas, pois o amor transferencial reproduz protótipos infantis de relacionamento. “Já deixei claro que a técnica analítica exige do médico que ele negue à paciente que anseia por amor a satisfação que ela exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência. Com isto não quero significar apenas a abstinência física, nem a privação de tudo o que a paciente deseja, pois talvez 83 nenhuma pessoa enferma pudesse tolerar isto. Em vez disso, fixarei como princípio fundamental que se deve permitir que a necessidade e anseio da paciente nela persistam, a fim de poderem servir de forças que a incitem a trabalhar e efetuar mudanças, e que devemos cuidar de apaziguar estas forças por meio de substitutos. O que poderíamos oferecer nunca seria mais que um substituto, pois a condição da paciente é tal que, até que suas repressões sejam removidas, ela é incapaz de alcançar satisfação real. Ele tem de tomar cuidado para não se afastar do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente; mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição. Deve manter um firme domínio do amor transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situação que se deve atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se acha muito profundamente oculto na vida erótica da paciente para sua consciência e, portanto, para debaixo de seu controle. Quanto mais claramente o analista permite que se perceba que ele está à prova de qualquer tentação, mais prontamente poderá extrair da situação seu conteúdo analítico”. (FREUD, 1915, p.214-216) Lacan considera a transferência como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, confirmando-a como um dos instrumentos centrais do tratamento analítico. No seu seminário A transferência (LACAN, 1960-1961), apontaque desde o começo, o elemento central da análise é o amor, sendo ele a base da experiência analítica e base de sua teoria. Diz que, em se tratando de psicanálise, o amor, no ponto máximo de sua elaboração teórica, é, antes de tudo, uma prática, e o amor de transferência deveria ser traduzido como uma relativização da falta, como uma formação sintomática em relação à castração. Ele desenvolve o conceito de transferência considerando-a não apenas como repetição, mas algo que vai além, constituindo-se em uma atualização, uma colocação em ato, da realidade do inconsciente, atribuindo o amor de transferência como fundamento da própria transferência. Conforme afirma Lacan (1964) “a transferência é a atualização da realidade do inconsciente” (idem, ibidem, p.144). Segundo Lacan, é através da transferência, que os traços de memória inconsciente constitutivos do desejo seriam atualizados, sendo revividos como forças em atividade. Desta forma, o paciente atualizaria seus desejos inconscientes, que seriam revividos como forças atuais. Isto proporcionaria a 84 possibilidade de que o que foi experimentado no passado pudesse ser reavaliado a partir dessa atualização, podendo ser decifrado e determinante de novas possibilidades na conduçãode seu modo de viver. Segundo Miller (1987) "a transferência tem seu valor porque permite ver o funcionamento de um mecanismo inconsciente na própria atualidade da sessão” (idem, ibidem, p.62). Este autor diz ainda, que na presença do analista o inconsciente se presentifica na fala, se atualiza. O passado seria pensado a partir do presente da transferência. Seria pela atualização na transferência, que o sujeito poderia vivenciar aquilo que lhe determina, produzindo novas condições para se relacionar com o Outro e com seu próprio modo de gozo. Lacan afirma que no começo da psicanálise está o amor e para melhor explicitar isto, retoma o texto filosófico de Platão, chamado O Banquete. Este refere-se a um banquete que reuniu diversos filósofos onde o tema central era o amor. Baseando-se neste texto, Lacan dedica um seminário inteiro sobre o tema da transferência, nele mostrando a importância do amor para a relação transferencial. Para desenvolver melhor o seu conceito de transferência, Lacan introduziu as noções de agalma, sujeito suposto saber e desejo do analista que serão melhores explicadas ao longo do texto. Tal como nos diz Freud, Lacan confirma a transferência com um amor genuíno. Por sua leitura, todavia, esse amor não é considerado como repetição de um protótipo infantil. Para ele, esse amor seria na realidade a crença de que encontra-se na pessoa amada, o objeto precioso que perdeu-se desde sempre e que busca-se a vida inteira. O agalma, palavra grega que designa um objeto precioso ou caixa de jóias, também um local onde se guarda objetos preciosos, constitui-se nesse objeto que o sujeito acredita ter encontrado na pessoa amada. Para Lacan, portanto, o agalma significa esse objeto que nos captura, algo do outro que nos apreende e nos fascina, nos deixando enamorados, embora isso que o outro tem não é o que o sujeito busca. Sendo assim, não haveria sintonia no amor, seria uma condição ilusória. Lacan pontua dois termos para falar do par numa relação amorosa: érôménos (amado), aquele que tem alguma coisa; e érastès (amante), aquele 85 que sai em busca daquilo que lhe falta. Aponta que seu interesse no amor é por aquilo que auxilia a esclarecer o fenômeno da transferência. “É na medida em função érastès, do amante, na medida que é ele o sujeito da falta, vem no lugar substitui a função do érômémos o objeto amado, que se produz a significação do amor”. (LACAN, 1960-1961), p.57). Quanto ao conceito de sujeito suposto saber, torna-se importante teceralgumas considerações sobre o mesmo, uma vez que Lacan o considera como a base de tudo o que se apresenta em termos de transferência analítica. A análise se inicia com um amor dirigido pelo analisante ao analista. Trata-se de um amor ao saber, saber suposto ao analista e por essa razão o lugar que este ocupa neste momento da análise é designado como sujeito suposto saber. O sujeito suposto saber é estabelecido por Lacan como uma função inédita no fundamento da transferência, considerando-a como o “pivô” dos fenômenos da transferência. Focaliza que não é o analista o sujeito de quem se trata na concepção de sujeito suposto saber, mas um lugar a que se supõe um saber. Lacan afirma que a transferência é o amor que se endereça ao saber. O analisante, em princípio, coloca-se na posição daquele que não sabe e situa o analista no lugar de quem tem um saber, ou seja, o coloca no lugar de sujeito suposto saber, lugar este de alguém que poderia tamponar sua falta. “Se Lacan situa o sujeito suposto saber na entrada do processo analítico é porque, neste momento, a demanda fundamental do paciente é relativo ao enigma, a interrogação que seu próprio sintoma lhe faz”. (MILLER, 1987, p.114). No processo analítico, o analista, no início, é colocado pelo analisante na posição de amado, daquele que tem uma resposta para o sofrimento do sujeito. O analista, por sua vez, deve direcionar o tratamento sem responderdeste lugar de sujeito suposto saber que o analisante o coloca. “O psicanalista não sedeve deixar enganar por esse efeito de sujeito suposto saber intrínseco à experiência analítica. O 86 psicanalista não deve identificar-se com o sujeito suposto saber: o sujeito suposto saber é um efeito da estrutura da situação analítica, o qual é muito diferente de se identificar com essa posição”. (MILLER, 1987, p. 74-75). O analista deve entender que esse amor do paciente não se direciona a ele como pessoa, que ele não tem o agalma. Colocando o paciente para falar sobre seu sofrimento e não lhe dando resposta, o analista permite que o analisante caminhe do amor ao desejo numa análise, saindo do lugar de amado, passando para o lugar de amante, daquele que sai em busca do que lhe falta, permitindo, então, que surja o desejo do sujeito. Segundo Lacan, esse desejo surge no deslizamento significante, no deslocamento de um objeto a outro, já que não há nenhum objeto que complete o sujeito. “O segundo ponto, que por si mereceria um longo desenvolvimento, é o final da analise. A analise da transferência consiste em descobrir que não há, em sentido real, sujeito suposto saber. Isso é o que constitui o desejo do analista, desejo muito singular que Freud localizou em um momento da história, o desejo do analista de não se identificar com o Outro, de respeitar o que Freud, em sua linguagem, chama de a individualidade do paciente, não ser um ideal, um modelo, um educador, e sim deixar espaço para a emergência do desejo do paciente”. (MILLER, 1987, p.89). Para o analista permitir que se dê essa passagem do amor ao desejo, ele precisa estar regido sob seu desejo, o que Lacan nomeia de desejo do analista. Esse desejo se constitui em fazer surgir o desejo do sujeito, desejo de colocar o paciente para associar livremente. Este, somente estando sob a égide do desejo do analista, é que pode conduzir a cura, não ocupando o lugar de sujeito suposto saber e permitindo que, ao final do tratamento, ele se transforme em um resto, algo sem importância e sem função, para o analisante. Desta forma, o paciente terá finalmente a possibilidade de buscar aquilo que ele realmente deseja. “A esse respeito, é o psicanalista quem representa o resíduo da operação analítica. E Lacan elaborou a teoria que faz do psicanalista o dejeto de toda a operação e, ao mesmo tempo, a causa que desde sempre animava o desejo do paciente”. (idem, ibidem, loc.cit.). 87 5 CONCLUSÃO O desenvolvimento da presente pesquisa permite constatar que a psicanálise, fundada por Sigmund permanente, trazendo incontáveis Freud, estabeleceu-se em contribuições enquanto caráter método de tratamento e tornou-se recurso inestimável para as práticas das ciências da saúde. Ao propor ao paciente que falasse o que lhe viesse à cabeça, Freud revolucionou sua época, criando um método de cura através da fala, que, considerando os mecanismos inconscientes, possibilita a cura de males psíquicos das mais variadas ordens e intensidades. Lacan afirmou o papel central do amor na transferência e estendeu seu conceito para algo muito além da repetição, definindo-a como uma manifestação do inconsciente em ato, enriquecendo mais ainda a nossa compreensão acerca do conceito e nos fornecendo mais instrumentos para melhor manejá-la. O fenômeno da transferência, no cotidiano da clínica, tanto para Freud como para Lacan, confirmou-se como um conceito fundamental da psicanálise, sem o qual o tratamento analítico sequer pode considerar-se iniciado. A entrada em análise é marcada pelo estabelecimento da transferência. Sabe-se que a transferência está presente em todas as relações humanas e, portanto, no trabalho institucional. Deve ser considerada para que se atinjam os objetivos a serem alcançados, podendo-se examinar permanentemente ao longo do trabalho aquilo que facilita ou dificulta as relações profissionais. “Não é fato que a transferência surja com maior intensidade e ausência de coibição durante a psicanálise que fora dela. Nas instituições em que doentes dos nervos são tratados de modo não analítico, podemos observar que a transferência ocorre com a maior intensidade e sob as formas mais indignas, chegando a nada menos que servidão mental e, ademais, apresentando o mais claro colorido erótico”. (FREUD, 1912, p.135-136). Como foi bem acentuado neste trabalho, a psicanálise é uma ciência do singular e cada paciente deve ser visto como único, devendo o profissional de 88 saúde estar atento à maneira particular como ele está vivendo o enfrentamento do diagnóstico e dos procedimentos propostos. Os recursos propostos pela Política Nacional de Humanização se emparelham com muitas concepções da psicanálise, tais como: o poder da palavra, a valorização da singularidade e a importância da prática interdisciplinar. Assim como no tratamento psicanalítico, o paciente caminha para a cura ao rememorar pela fala o que foi traumático, a Política Nacional de Humanização, acolhe a fala dos pacientes acreditando na importância desse procedimento para o curso do tratamento. Além disso, tanto a psicanálise quanto a Política Nacional de Humanização valorizam a condição singular de cada paciente, procurando conhecer sua história, seus desejos e possibilidades. Desde a sua criação, a psicanálise caracterizou-se pela interdisciplinaridade, buscando elementos provenientes de outras áreas do saber para a pesquisa sobre o campo psíquico. Da mesma forma, a política de humanização promove uma troca de saberes para melhor atender a cada um dos pacientes. Na prática hospitalar, o profissional depara-se também com obstáculos e resistências do próprio paciente que impedem em algumas situações o curso adequado do tratamento, o que reforça a importância do reconhecimento de fenômenos inconscientes operando neste contexto. “Pode-se levantar ainda a questão de saber por que os fenômenos de resistência da transferência só aparecem na psicanálise e não em formas indiferentes de tratamento (em instituições, por exemplo). A resposta é que eles também se apresentam nestas outras situações, mas têm de ser identificados como tal. A manifestação de uma transferência negativa é, na realidade, acontecimento muito comum nas instituições. Assim que um paciente cai sob o domínio da transferência negativa, ele deixa a instituição em estado inalterado ou agravado”. (FREUD, 1912, p. 141). Através do conceito de transferência, os profissionais de saúde estarão melhor equipados para entender as mais diversas situações com as quais se deparam no cotidiano hospitalar, podendo já traduzi-las como algo representativo do paciente e que não estão necessariamente dirigidas a eles, o que tenderia a contribuir diretamente na condução e na adesão ao tratamento. 89 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAPTISTA, T. História das políticas de saúde no Brasil: a trajetória do direito à saúde. In: CORRÊA, G. & MOURA, A. (Orgs.). Políticas de saúde: a organização e operacionalização do Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/FIOCRUZ, 2007. BARTOLOMEI, T. & FULGENCIO, L. Notas para a compreensão do conceito de transferência na psicanálise de Sigmund Freud. In: ______. Anais do XIII Encontro de Iniciação Científica da PUC/Campinas. Realizado nos dias 21 e 22 de outubro de 2008. BENEVIDES, R. & PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? 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Ouvindo sua queixa, considerando suas preocupações e angústias, fazendo uso de uma escuta qualificada que possibilite analisar a demanda e, colocando os limites necessários, garantir atenção integral, resolutiva e responsável por meio do acionamento/articulação das redes internas dos serviços (visando à horizontalidade do cuidado) e redes externas, com outros serviços de saúde, para continuidade da assistência quando necessário. Alteridade Alter: “outro”, em latim a alteridade refere-se à experiência internalizada da existência do outro, não como um objeto, mas como outro sujeito co-presente no mundo das relações intersubjetivas. Ambiência Ambiente físico, social, profissional e de relações interpessoais que deve estar relacionado a um projeto de saúde voltado para a atenção acolhedora, resolutiva e humana. Nos serviços de saúde a ambiência é marcada tanto pelas tecnologias médicas ali presentes quanto por outros componentes estéticos ou sensíveis apreendidos pelo olhar, olfato, audição, por exemplo, a luminosidade e os ruídos do ambiente, a temperatura, etc. Muito importante na ambiência é o componente afetivo expresso na forma do acolhimento, da atenção dispensada ao usuário, da interação entre os trabalhadores e gestores. Devem-se destacar também os componentes culturais e regionais que determinam os valores do ambiente. Apoio matricial Lógica de produção do processo de trabalho na qual um profissional oferece apoio em sua especialidade para outros profissionais, equipes e setores. Inverte-se, assim, o esquema tradicional e fragmentado de saberes e fazeres já que ao mesmo tempo em que o profissional cria pertencimento à sua equipe/setor, também funciona como apoio, referência para outras equipes. 96 Apoio institucional Apoio institucional é uma função gerencial que reformula o modo tradicional de se fazer coordenação, planejamento, supervisão e avaliação em saúde. Um de seus principais objetivos é fomentar e acompanhar processos de mudança nas organizações, misturando e articulando conceitos e tecnologias advindas da análise institucional e da gestão. Ofertar suporte ao movimento de mudança deflagrado por coletivos, buscando fortalecê-los no próprio exercício da produção de novos sujeitos em processos de mudança é tarefa primordial do apoio. Temos entendido que a função do apoio é chave para a instauração de processos de mudança em1 grupos e organizações, porque o objeto de trabalho do apoiador é, sobretudo, o processo de trabalho de coletivos que se organizam para produzir, em nosso caso, saúde. A diretriz do apoio institucional é a democracia institucional e a autonomia dos sujeitos. Assim sendo, o apoiador deve estar sempre inserido em movimentos coletivos, ajudando na análise da instituição, buscando novos modos de operar e produzir das organizações. É, portanto, em, uma região limítrofe entre a clínica e a política, entre o cuidado e a gestão – lá onde estes domínios se interferem mutuamente – que a função de apoio institucional trabalha no sentido da transversalidade das práticas e dos saberes no interior das organizações. O apoiador institucional tem a função de: 1) estimular a criação de espaços coletivos, por meio de arranjos ou dispositivos que propiciem a interação entre os sujeitos; 2) reconhecer as relações de poder, afeto e a circulação de conhecimentos propiciando a viabilização dos projetos pactuados pelos atores institucionais sociais; 3) mediar junto ao grupo à construção de objetivos comuns e a pactuação de compromissos e contratos. Para maiores detalhes consultar CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. Um método para análise e cogestão de coletivos – a construção do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o Método da Roda. São Paulo: Hucitec, 2000. 4) Trazer para o trabalho de coordenação, planejamento e supervisão os processos de qualificação das ações institucionais; 5) propiciar que os grupos possam exercer a crítica e, em última instância, que os profissionais de saúde sejam capazes de atuar com base em novos referenciais, contribuindo para melhorar a qualidade da gestão no Sistema Único de Saúde. A função apoio se apresenta, nesta medida, como diretriz e dispositivo para ampliar a capacidade de reflexão, entendimento e análise de coletivos, que assim poderiam qualificar sua própria intervenção, sua capacidade de produzir mais e melhor saúde com os outros. 97 Atenção Especializada / Serviço de Assistência Especializada Unidades ambulatoriais de referência, compostas por equipes multidisciplinares de diferentes especialidades que acompanham os pacientes, prestando atendimento integral a eles e a seus familiares. Autonomia No seu sentido etimológico, significa “produção de suas próprias leis” ou “faculdade de se reger por suas próprias leis”. Em oposição à heteronomia, designa todo sistema ou organismo dotado da capacidade de construir regras de funcionamento para si e para o coletivo. Pensar os indivíduos como sujeitos autônomos é considerá-los como protagonistas nos coletivos de que participam corresponsáveis pela produção de si e do mundo em que vivem. Um dos valores norteadores da Política Nacional de Humanização é a produção de sujeitos autônomos, protagonistas e corresponsáveis pelo processo de produção de saúde. Classificação de Risco (Avaliação de Risco) Mudança na lógica do atendimento, permitindo que o critério de priorização da atenção seja o agravo à saúde e/ou grau de sofrimento e não mais a ordem de chegada (burocrática). Realizado por profissional da saúde que, utilizando protocolos técnicos, identifica os pacientes que necessitam de tratamento imediato, considerando o potencial de risco, agravo à saúde ou grau de sofrimento e providencia, de forma ágil, o atendimento adequado a cada caso. Clínica Ampliada O conceito de clínica ampliada deve ser entendido como uma das diretrizes impostas pelos princípios do Sistema Único de Saúde. A universalidade do acesso, a integralidade da rede de cuidado e a eqüidade das ofertas em saúde obrigam a modificação dos modelos de atenção e de gestão dos processos de trabalho em saúde. A modificação das práticas de cuidado se faz no sentido da ampliação da clínica, isto é, pelo enfrentamento de uma clínica ainda hegemônica que: 1) toma a doença e o sintoma como seu objeto; 2) toma a remissão de sintoma e a cura como seu objetivo; 3) realiza a avaliação diagnóstica reduzindo-a a objetividade positivista clínica ou epidemiológica; 4) define a intervenção terapêutica considerando predominantemente ou exclusivamente os aspectos orgânicos. Ampliar a clínica, por sua vez, implica: 1) tomar a saúde como seu objeto de investimento, considerando a vulnerabilidade, o risco do sujeito em seu contexto; 2) ter como objetivo produzir saúde e ampliar o grau de autonomia dos sujeitos; 3) realizar a avaliação diagnóstica considerando não só o saber clínico e epidemiológico, como também a história dos sujeitos e os 98 saberes por eles veiculados; 4) definir a intervenção terapêutica considerando a complexidade biopsíquicossocial das demandas de saúde. As propostas da clínica ampliada: 1) compromisso com o sujeito e não só com a doença; 2) reconhecimento dos limites dos saberes e a afirmação de que o sujeito é sempre maior que os diagnósticos propostos; 3) afirmação do encontro clínico entre dois sujeitos (trabalhador de saúde e usuário) que se coproduzem na relação que estabelecem; 4) busca do equilíbrio entre danos e benefícios gerados pelas práticas de saúde; 5) aposta nas equipes multiprofissionais e transdisciplinares; 6) fomento da corresponsabilidade entre os diferentes sujeitos implicado no processo de produção de saúde (trabalhadores de saúde, usuários e rede social); 7) defesa dos direitos dos usuários. Colegiado Gestor Em um modelo de gestão participativa, centrado no trabalho em equipe e na construção coletiva (planeja quem executa), os colegiados gestores garantem o compartilhamento do poder, a co-análise, a co-decisão e a co-avaliação. A direção das unidades de saúde tem diretrizes, pedidos que são apresentados para os colegiados como propostas/ofertas que devem ser analisadas, reconstruídas e pactuadas. Os usuários/familiares e as equipes também têm pedidos e propostas que serão apreciadas e acordadas. Os colegiados são espaços coletivos deliberativos, tomam decisões no seu âmbito de governo em conformidade com as diretrizes e contratos definidos. O colegiado gestor de uma unidade de saúde é composto por todos os membros da equipe ou por representantes. Tem por finalidade elaborar o projeto de ação da instituição, atuar no processo de trabalho da unidade, responsabilizar os envolvidos, acolher os usuários, criar e avaliar os indicadores, sugerir e elaborar propostas. Controle Social (Participação Cidadã) Participação popular na formulação de projetos e planos, definição de prioridades, fiscalização e avaliação das ações e dos serviços, nas diferentes esferas de governo, destacando-se, na área da Saúde, as conferências e os conselhos de saúde. Diretrizes da Política Nacional de Humanização Por diretrizes entendem-se as orientações gerais de determinada política. No caso da PNH, suas diretrizes apontam no sentido da: 1) Clínica Ampliada; 2) Co-Gestão; 3) Valorização do Trabalho; 4) Acolhimento; 5) Valorização do trabalho e do trabalhador da Saúde do Trabalhador; 6) Defesa dos Direitos do Usuário; 7) Fomento das grupalidades, coletivos e redes; e 8) Construção da memória do Sistema Único de Saúde que dá certo. 99 Dispositivos da PNH Dispositivo é um arranjo de elementos, que podem ser concretos (ex.: uma reforma arquitetônica, uma decoração, um manual de instruções) e/ou imateriais (ex.: conceitos, valores, atitudes) mediante o qual se faz funcionar, se catalisa ou se potencializa um processo. Na Política Nacional de Humanização, foram desenvolvidos vários dispositivos que são acionados nas práticas de produção de saúde, envolvendo coletivos e visando promover mudanças nos modelos de atenção e de gestão: - Acolhimento com Classificação de Risco; - Equipes de Referência e de Apoio Matricial; - Projeto Terapêutico Singular e Projeto de Saúde Coletiva; - Projetos Co-Geridos de Ambiência - Colegiado Gestor; - Contrato de Gestão; - Sistemas de escuta qualificada para usuários e trabalhadores da saúde: gerência de “porta aberta”; ouvidorias; grupos focais e pesquisas de satisfação, etc.; - Visita Aberta e Direito à Acompanhante; - Programa de Formação em Saúde do trabalhador (PFST) e Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP); - Programas de Qualidade de Vida e Saúde para os Trabalhadores da Saúde; - Grupo de Trabalho de Humanização (GTH); - Câmaras Técnicas de Humanização (CTH); - Projeto Memória do Sistema Único de Saúde que dá certo. Educação Permanente em Saúde As ações de educação permanente em saúde envolvem a articulação entre educação e trabalho no Sistema Único de Saúde, visando à produção de mudanças nas práticas de formação e de saúde. Por meio da Educação Permanente em Saúde articula-se o ensino, gestão, atenção e participação popular na produção de conhecimento para o desenvolvimento da capacidade pedagógica de problematizar e identificar pontos sensíveis e estratégicos para a produção da integralidade e humanização. 100 Eficácia / Eficiência (Resolubilidade) A resolubilidade diz respeito à combinação dos graus de eficácia e eficiência das ações em saúde. A eficácia fala da produção da saúde como valor de uso, da qualidade da atenção e da gestão da saúde. A eficiência refere-se à relação custo/benefício, ao menor investimento de recursos financeiros e humanos para alcançar o maior impacto nos indicadores sanitários. Equidade No vocabulário do Sistema Único de Saúde, diz respeito aos meios necessários para se alcançar a igualdade, estando relacionada com a idéia de justiça social. Condições para que todas as pessoas tenham acesso aos direitos que lhe são garantidos. Para que se possa exercer a eqüidade, é preciso que existam ambientes favoráveis, acesso à informação, acesso a experiências e habilidades na vida, assim como oportunidades que permitam fazer escolhas por uma vida mais sadia. O contrário de eqüidade é iniqüidade, e as iniqüidades no campo da saúde têm raízes nas desigualdades existentes na sociedade. Equipe de Referência / Equipe Multiprofissional Grupo que se constitui por profissionais de diferentes áreas e saberes (interdisciplinar, transdisciplinar), organizados em função dos objetivos/missão de cada serviço de saúde, estabelecendo-se como referência para os usuários desse serviço (clientela que fica sob a responsabilidade desse grupo/equipe). Está inserido, num sentido vertical, em uma matriz organizacional. Em hospitais, por exemplo, a clientela internada tem sua equipe básica de referência e especialistas e outros profissionais organizam uma rede de serviços matriciais de apoio às equipes de referência. As equipes de referência em vez de ser um espaço episódico de integração horizontal passam a ser a estrutura permanente e nuclear dos serviços de saúde. Familiar Participante Representante da rede social do usuário que garante a articulação entre a rede social/familiar e a equipe profissional dos serviços de saúde na elaboração de projetos de saúde. Gestão Participativa Modo de gestão que incluiu novos sujeitos no processo de análise e tomada de decisão. Pressupõe a ampliação dos espaços públicos e coletivos, viabilizando o exercício do diálogo e da pactuação de diferenças. Nos espaços de gestão é possível construir conhecimentos compartilhados considerando as subjetividades e singuralidades dos sujeitos e coletivos. 101 Grupalidade Experiência que não se reduz a um conjunto de indivíduos nem tampouco pode ser tomada como uma unidade ou identidade imutável. É um coletivo ou uma multiplicidade de termos (usuários, trabalhadores, gestores, familiares, etc.) em agenciamento e transformação, compondo uma rede de conexão na qual o processo de produção de saúde e de subjetividade se realiza. Grupo de Trabalho de Humanização (GTH) Espaço coletivo organizado, participativo e democrático, que funciona à maneira de um órgão colegiado e se destina a empreender uma política institucional de resgate dos valores de universalidade, integralidade e aumento da eqüidade no cuidado em saúde e democratização na gestão, em benefício dos usuários e dos trabalhadores da saúde. É constituído por lideranças representativas do coletivo de profissionais e demais trabalhadores em cada equipamento de saúde, (nas SES e nas SMS), tendo como atribuições: difundir os princípios norteadores da Política Nacional de Humanização; pesquisar e levantar os pontos críticos do funcionamento de cada serviço e sua rede de referência; promover o trabalho em equipes multiprofissionais, estimulando a transversalidade e a grupalidade; propor uma agenda de mudanças que possam beneficiar os usuários e os trabalhadores da saúde; incentivar a democratização da gestão dos serviços; divulgar, fortalecer e articular as iniciativas humanizadoras existentes; estabelecer fluxo de propostas entre os diversos setores das instituições de saúde, a gestão, os usuários e a comunidade; melhorar a comunicação e a integração do equipamento com a comunidade (de usuários) na qual está inserida. Humanização / Política Nacional de Humanização (PNH) No campo da Saúde, humanização diz respeito a uma aposta ético-estéticopolítica: ética porque implica a atitude de usuários, gestores e trabalhadores de saúde comprometidos e corresponsáveis. Estética porque acarreta um processo criativo e sensível de produção da saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas. Política porque se refere à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do Sistema Único de Saúde. O compromisso ético-estético- político da humanização do Sistema Único de Saúde se assenta nos valores de autonomia e protagonismo dos sujeitos, de corresponsabilidade entre eles, de solidariedade dos vínculos estabelecidos, dos direitos dos usuários e da participação coletiva no processo de gestão. 102 Igualdade Segundo os preceitos do Sistema Único de Saúde e conforme o texto da Constituição Brasileira, o acesso às ações e aos serviços, para promoção, proteção e recuperação da saúde, além de universal, deve basear-se na igualdade de resultados finais, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos. Integralidade Um dos princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde garante ao cidadão o direito de acesso a todas as esferas de atenção em saúde, contemplando, desde ações assistenciais em todos os níveis de complexidade (continuidade da assistência), até atividades inseridas nos âmbitos da prevenção de doenças e de promoção da saúde. Prevê-se, portanto, a cobertura de serviços em diferentes eixos, o que requer a constituição de uma rede de serviços (integração de ações), capaz de viabilizar uma atenção integral. Por outro lado, cabe ressaltar que por integralidade também se deve compreender a proposta de abordagem integral do ser humano, superando a fragmentação do olhar e intervenções sobre os sujeitos, que devem ser vistos em suas inseparáveis dimensões biopsicossociais. Intersetorialidade Integração dos serviços de saúde e outros órgãos públicos com a finalidade de articular políticas e programas de interesse para a saúde, cuja execução envolva áreas não compreendidas no âmbito do Sistema Único de Saúde, potencializando, assim, os recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos disponíveis e evitando duplicidade de meios para fins idênticos. Se os determinantes do processo saúde/doença, nos planos individuais e coletivos, encontram-se localizados na maneira como as condições de vida são produzidas, isto é, na alimentação, na escolaridade, na habitação, no trabalho, na capacidade de consumo e no acesso a direitos garantidos pelo poder público, então é impossível conceber o planejamento e a gestão da saúde sem a integração das políticas sociais (educação, transporte, ação social), num primeiro momento, e das políticas econômicas (trabalho, emprego e renda), num segundo. A escolha do prefixo inter e não do trans é efetuada em respeito à autonomia administrativa e política dos setores públicos em articulação. Núcleo de Saber Demarca a identidade de uma área de saber e de prática profissional. institucionalização dos saberes e a sua organização em práticas se mediante a conformação de núcleos que são mutantes e se interinfluenciam composição de um campo de saber dinâmico. No núcleo há aglutinação A dá na de 103 saberes e práticas, compondo um grupo ou um gênero profissional e disciplinar. Ouvidoria Serviço representativo de demandas do usuário e/ou trabalhador de saúde e instrumento gerencial na medida em que mapeia problemas, aponta áreas críticas e estabelece a intermediação das relações, promovendo a aproximação das instâncias gerenciais. Princípios da Política Nacional de Humanização Por princípio entende-se o que causa ou força determinada ação ou o que dispara um determinado movimento no plano das políticas públicas. A Política Nacional de Humanização, enquanto movimento de mudança dos modelos de atenção e gestão, possui três princípios a partir dos quais se desdobra enquanto política pública de saúde: 1) A transversalidade enquanto aumento do grau de abertura comunicacional intra e intergrupos, isto é, a ampliação da grupalidade ou das formas de conexão intra e intergrupos promovendo mudanças nas práticas de saúde; 2) A inseparabilidade entre clínica e política, o que impõe a inseparabilidade entre atenção e gestão dos processos de produção de saúde; 3) O protagonismo dos sujeitos e coletivos. Produção de Saúde e Produção de Subjetividade Em uma democracia institucional, diz respeito à constituição de sujeitos autônomos e protagonistas no processo de produção de sua própria saúde. Neste sentido, a produção das condições de uma vida saudável não pode ser pensada sem a implicação, neste processo, de sujeitos. Projeto de Saúde Projetos voltados para os sujeitos, individualmente, ou comunidades, contemplando ações de diferentes eixos, levando em conta as necessidades/demandas de saúde. Comportam planos de ação assentados na avaliação das condições biopsicossociais dos usuários. A sua construção deve incluir a corresponsabilidade de usuário, gestor e trabalhador/equipes de saúde, e devem ser considerados: a perspectiva de ações intersetoriais, a rede social de que o usuário faz parte, o vínculo usuário equipamento de saúde e a avaliação de risco/vulnerabilidade. Protagonismo É a idéia de que a ação, a interlocução e a atitude dos sujeitos ocupam lugar central nos acontecimentos. No processo de produção da saúde, diz respeito 104 ao papel de sujeitos autônomos e corresponsáveis no processo de produção de sua própria saúde. Reabilitar – Reabilitação / Habilitar - Habilitação Habilitar é tornar hábil, no sentido da destreza/inteligência ou no da autorização legal. O “re” constitui prefixo latino que apresenta as noções básicas de voltar atrás, tornar ao que era. A questão que se coloca no plano do processo saúde/ doença é se é possível “voltar atrás”, tornar ao que era. O sujeito é marcado por suas experiências; o entorno de fenômenos, relações e condições históricas e sempre muda; então a noção de reabilitar é problemática. Na saúde, estaremos sempre desafiados a habilitar um novo sujeito a uma nova realidade biopsicossocial. Porém, existe o sentido estrito da volta a uma capacidade legal pré-existente e, por algum motivo, perdida, e nestes casos o “re” se aplica. Rede Psicossocial Esquematicamente, todos os sujeitos atuam em três cenários: a família, o trabalho e o consumo, onde se desenrolam as suas histórias com seus elementos, afetos, dinheiro, poderes e símbolos, cada qual com sua força e onde somos mais ou menos hábeis, mais ou menos habilitados, formando uma rede psicossocial. Esta rede é caracterizada pela participação ativa e criativa de uma série de atores, saberes e instituições, voltados para o enfrentamento de problemas que nascem ou se expressam numa dimensão humana de fronteira, aquele que articula a representação subjetiva com a prática objetiva dos indivíduos em sociedade. Redes de Atenção em Saúde Modo de organização dos serviços configurados em redes sustentadas por critérios, fluxos e mecanismos de pactuação de funcionamento, para assegurar a atenção integral aos usuários. Na compreensão de rede, deve-se reafirmar a perspectiva de seu desenho lógico, que prevê níveis de complexidade, viabilizando encaminhamentos resolutivos (entre os diferentes equipamentos de saúde), porém reforçando a sua concepção central de fomentar e assegurar vínculos em diferentes dimensões: intraequipes de saúde, interequipes / serviços, entre trabalhadores e gestores, e entre usuários e serviços / equipes. Sujeito / Subjetividade Território existencial resultado de um processo de produção de subjetividade sempre coletivo, histórico e determinado por múltiplos vetores: familiares, políticos, econômicos, ambientais, midiáticos, etc. 105 Trabalho O trabalho tem sido identificado a emprego ou assalariamento e, também, a tarefas e produtos esperados. O trabalho é mais que isso, é atividade que se opõe à inércia. É o conjunto dos fenômenos que caracterizam o ser vivo. É, assim, resistência a toda situação de heterodeterminação das normas definidas para a sua execução. Nos processos de trabalho surgem, a todo o momento, situações novas e “ventos imprevisíveis” não definidos pelas prescrições da organização do trabalho. Para dar conta dessas situações, os trabalhadores são convocados a criar, a improvisar ações. Quando as normas são seguidas fielmente, sem serem questionadas, podemos colocar o trabalho em crise, pois as prescrições não são suficientes para responder aos imprevistos que acontecem a cada dia. O trabalho inclui, também, uma dimensão que não é observável – como os fracassos e as frustrações por não poder ter sido feito como se gostaria – e exige invenções, escolhas e decisões muitas vezes difíceis. A atividade do trabalho, portanto, é submetida a uma regulação que se efetiva na interação entre os trabalhadores da saúde, numa dinâmica intersubjetiva. Somos gestores e produtores de saberes e de novidades. Transversalidade Nas experiências coletivas ou de grupalidade, diz respeito à possibilidade de conexão/confronto com outros grupos, inclusive no interior do próprio grupo, indicando um grau de abertura à alteridade e, portanto, o fomento de processos de diferenciação dos grupos e das subjetividades. Em um serviço de saúde, pode se dar pelo aumento de comunicação entre os diferentes membros de cada grupo, e entre os diferentes grupos. A idéia de comunicação transversal em um grupo deve ser entendida não a partir do esquema bilateral emissorreceptor, mas como uma dinâmica multivetorializada, em rede, e na qual se expressam os processos de produção de saúde e de subjetividade. Universalidade A Constituição brasileira instituiu o princípio da universalidade da cobertura e do atendimento para determinar a dimensão do dever estatal no campo da Saúde, de sorte a compreender o atendimento a brasileiros e a estrangeiros que estejam no País, crianças, jovens, adultos e idosos. A universalidade constitucional compreende, portanto, a cobertura, o atendimento e o acesso ao Sistema Único de Saúde, expressando que o Estado tem o dever de prestar atendimento nos grandes e pequenos centros urbanos, e também às populações isoladas geopoliticamente, os ribeirinhos, os indígenas, os ciganos e outras minorias, os prisioneiros e os excluídos sociais. Os programas, as ações e os serviços de saúde devem ser concebidos para propiciar cobertura e atendimento universais, de modo eqüitativo e integral. 106 Usuário, Cliente, Paciente Cliente é a palavra usada para designar qualquer comprador de um bem ou serviço, incluindo quem confia sua saúde a um trabalhador da saúde. O termo incorpora a idéia de poder contratual e de contrato terapêutico efetuado. Se, nos serviços de saúde, o paciente é aquele que sofre, conceito reformulado historicamente para aquele que se submete, passivamente, sem criticar o tratamento recomendado, prefere-se usar o termo cliente, pois implica em capacidade contratual, poder de decisão e equilíbrio de direitos. Usuário, isto é, aquele que usa, indica significado mais abrangente, capaz de envolver tanto o cliente como o acompanhante do cliente, o familiar do cliente, o trabalhador da instituição, o gerente da instituição e o gestor do sistema. Vínculo Na rede psicossocial, compartilhamos experiências e estabelecemos relações mediadas por instâncias. No caso da instância instituição de saúde, a aproximação entre usuário e trabalhador de saúde promove um encontro, este “ficar em frente um do outro”, um e outro sendo sujeitos, com suas intenções, interpretações, necessidades, razões e sentimentos, mas em situação de desequilíbrio, de habilidades e expectativas diferentes, em que um, o usuário, busca assistência, em estado físico e emocional fragilizado, junto ao outro, um profissional supostamente capacitado para atender e cuidar da causa de sua fragilidade. Desse modo cria-se um vínculo, isto é, processo que ata ou liga, gerando uma ligação afetiva e ética entre ambos, numa convivência de ajuda e respeito mútuos. Visita Aberta e Direito de Acompanhante É o dispositivo que amplia as possibilidades de acesso para os visitantes de forma a garantir o elo entre o paciente, sua rede social e os demais serviços da rede de saúde, mantendo latente o projeto de vida do paciente durante o tempo de internação. Brasil Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde e Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. HUMANIZA SUS. Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. 4ª ed.Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008. 107 ANEXO B – Questionário para conhecer o servidor do INCL. INSTITUTO NACIONAL DE CARDIOLOGIA LARANJEIRAS COMISSÃO DE HUMANIZAÇÃO CONHECENDO O SERVIDOR PARA MELHORAR O INCL A Diretora não faz o hospital sozinha... O chefe não faz o hospital sozinho... Precisamos conhecer e envolver você na implantação do processo de humanização do INCL. Dê nota de 0 à 5, dando peso paras as respostas. Fonte: Acervo do Instituto Nacional de Cardiologia 108 ANEXO C – Questionário HUMANIZA-SUS HUMANIZA-SUS Você está respondendo um questionário produzido pela Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP) do Humaniza-Sus do INCL, com o intuito de aprimorar a dinâmica das relações interpessoais. Sua participação é voluntária anônima e de suma importância. CATEGORIA FUNCIONAL UNIDADE VÍNCULO EMPREGATÍCIO A) Você acha que a comunicação: 1. Com a sua Chefia é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável ( ) Boa ( ) Ótima ( ) Boa ( ) Ótima ( ) Boa ( ) Ótima 2. Com os seus colegas de mesma função é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável 3. Com colegas de diferentes funções é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável 4. Com colegas de diversos vínculos empregatícios é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável ( ) Boa ( ) Ótima ( ) Razoável ( ) Boa ( ) Ótima 5. Com os usuários é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim Comente, se quiser:___________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ B) Você se acha valorizado profissionalmente: 6. Perante a sua chefia: Sim ( ) Não ( ) Se sua resposta foi Não, justifique:____________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 7. Perante os seus colegas de mesma categoria / função: Sim ( ) Não ( ) Se sua resposta foi Não, justifique:____________________________________________________________________ 109 ___________________________________________________________________________ 8. Perante seus colegas de diferentes categorias / funções: Sim ( ) Não ( ) Se sua resposta foi Não, justifique:___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 9. Peranteseus colegas de diferentes vínculos empregatícios: Sim ( ) Não ( ) Se sua resposta foi Não, justifique:____________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 10. Perante os usuários: Sim ( ) Não ( ) Se sua resposta foi Não, justifique:____________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ C) Você acha que a capacitação profissional: 11. De sua chefia é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável ( ) Boa ( ) Ótima 12. De seus colegas de mesma categoria / função é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável ( ) Boa ( ) Ótima 13. De seus colegas de diferentes categorias / funções é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável ( ) Boa ( ) Ótima 14. De seus colegas de diferentes vínculos empregatícios é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável ( ) Boa ( ) Ótima 15. Na assistência aos usuários é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável ( ) Boa ( ) Ótima Comente, se quiser:___________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 16.Você acha que a relação interpessoal entre as chefias é: ( ) Muito ruim ( ) Ruim ( ) Razoável ( ) Boa ( ) Ótima Fonte: Grupo de Trabalho de Humanização do Instituto Nacional de Cardiologia 110 8 APÊNDICE Produto da dissertação O produto da presente dissertação será um Ciclo de palestras. OBJETIVO GERAL: Apresentar aos profissionais de saúde o conceito de transferência, tal como concebida pela psicanálise e suas articulações com as práticas de humanização no ambiente hospitalar. OBJETIVOS ESPECÍFICOS: 1) Reforçar as práticas inseridas na Política Nacional de Humanização; 2) Familiarizar os profissionais de saúde com os conceitos psicanalíticos relevantes; 3) Focalizar a importância dos fenômenos transferenciais para as relações entre profissional de saúde e paciente. JUSTIFICATIVA: A transferência atravessa todas as relações humanas e, por esta razão, entende-se que ele esteja também operando nas relações que se estabelecem nas unidades de saúde, podendo influir diretamente na condução e na adesão ao tratamento. Além disso, na prática hospitalar pode-se perceber a importância dos profissionais adquirirem mais instrumentos para o aprimoramento das práticas de humanização no atendimento. Esta pesquisa oferece como contribuição, neste sentido, as considerações e articulações feitas entre o conceito de transferência e a Política Nacional de Humanização, por isso a proposta de multiplicar através de palestras, estas considerações entre os profissionais envolvidos nas práticas em unidades de saúde. PÚBLICO ALVO: - Profissionais de saúde; - Profissionais de outras áreas envolvidos na assistência a pacientes em unidades de saúde. 111 CONTEÚDO: 1) A Política Nacional de Humanização; 2) A humanização no ambiente hospitalar; 3) Uma experiência de práticas de humanização numa unidade pública de saúde; 4) A Transferência como instrumento para a política de humanização. METODOLOGIA: Palestras em unidades de saúde e em eventos científicos, através de exposição oral e material audiovisual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquistas. Brasília, 2000. _______. Ministério da Saúde. Núcleo técnico da política de HUMANIZASUS: Política Nacional de Humanização; Ministério da Saúde Secretaria Executiva; Brasília; 2003. _______. Ministério da Saúde. HUMANIZA-SUS. Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. 4ª ed. Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008. _______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização: Formação e intervenção. Brasília, 2010. FREUD, S. (1893-1895). Estudos sobre a histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB), op. cit., v.2. _______. (1905a). Fragmentos da análise de um quadro de histeria. In: ESB, op. cit., v.7. _______. (1912). A dinâmica da transferência. In: ESB, op. cit., v12. _______. (1914a). Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II). In: ESB, op. cit., v.12. 112 _______. (1914b) Sobre o narcisismo: uma introdução. In: ESB, op. cit., v.14. _______. (1915). Observações sobre o amor transferencial. In: ESB, op. cit., v.12. _______. (1917a). Luto e melancolia. In: ESB, op. cit., v.14. _______. (1917b). Teoria geral das neuroses. In: ESB, op. cit., v.1. LACAN, J. (1960-1961). O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. LACAN, J. (1964). O seminário, livro11: os quatro conceitos da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. MILLER, J. Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1987. NASCIMENTO, L. (& cols.). Política Nacional de Humanização: desafios da implementação em um hospital público de alta complexidade. In: Editorial Laranjeiras, v.1, n°4, set, 2004, p.56- 60.