Artigo Original Reabilitação Profissional Pós Transplante Renal Professional Rehabilitation After Kidney Transplantation Maria Cristina S. de G. Lôbo, Vilber Antonio de O. Bello Hospital de Base do DF RESUMO Objetivo: Este trabalho tem a finalidade de avaliar se o transplante renal efetivamente melhora a qualidade de vida de pacientes renais crônicos, enfatizando o aspecto de recuperação da capacidade laborativa de indivíduos submetidos a essa modalidade de tratamento, justificando, sob a ótica da doutrina utilitarista, o investimento socioeconômico em programas de transplante de órgãos. Método: Foram estudados 124 pacientes, transplantados no Hospital de Base do Distrito Federal. A coleta de dados foi realizada de junho a outubro de 2005, por meio da aplicação de questionário a todos os pacientes que compareceram ao ambulatório nesse período. Foram avaliados os seguintes quesitos: sexo, idade, tempo de transplante renal, profissão, nível educacional, tipo de trabalho e situação previdenciária, com finalidade de estabelecer a situação profissional na época do transplante e um ano após. Resultados: Após um ano de transplante, 91% dos pacientes encontravam-se aptos para o trabalho, dos quais 33% necessitavam de reabilitação profissional. Na época do transplante renal, 22,5% estavam trabalhando e, após um ano, 30,6%, havendo um acréscimo de apenas 8,1%. Conclusão: O transplante renal melhora a qualidade de vida de indivíduos submetidos a esta forma de tratamento. No entanto, apenas um pequeno percentual destes pacientes é recolocado em atividade laborativa. Os resultados evidenciam a ineficiência dos programas previdenciários e de reabilitação profissional no Brasil. (J Bras Nefrol 2007; 29(1):29-32) Descritores: Transplante renal. Qualidade de vida. Trabalho. Reabilitação. ABSTRACT Objective: The goal of this study is to evaluate whether or not kidney transplantation effectively improves the quality of life of patients with end stage renal disease, emphasizing the recovery of the working capacity of transplanted individuals. If professional rehabilitation indeed occurs, this would justify, under the utilitarianism doctrine, the socioeconomic investment in organ transplant programs. Method: 124 patients were studied at the Hospital de Base do Distrito Federal, Brazil. The data were collected from June to October 2005, through a questionnaire applied to all the patients that attended the out-patient clinic during this period. The following items were evaluated: sex, age, time of kidney transplantation, profession, level of education, type of work and social welfare situation, in order to establish the professional situation at the time and one year after transplantation. Results: After one year, 91% of the patients were capable of working, 33% of which needed professional rehabilitation. At the time of the kidney transplantation, 22.5% were working and after one year, 30.6%, with an increase of only 8.1%. Conclusion: Kidney transplantation improves the quality of life of individuals submitted to this kind of treatment. However, only a small percentage of these patients returns to work activity. The results reveal an inefficiency of the welfare programs and professional rehabilitation in Brazil. (J Bras Nefrol 2007; 29(1):29-32) Keywords: Renal transplant. Quality of life. Employment. Rehabilitation. Recebido em 17/11/06 / Aprovado em 29/01/07 Endereço para correspondência: Maria Cristina S. de G. Lôbo S.Q.S. 315 BL "K" Apto 302, Asa Sul 70384-110, Brasília, DF E-mail: [email protected] Reabilitação Profissional Pós TX 30 INTRODUÇÃO Insuficiência renal crônica terminal afeta mais de 300.000 americanos, e este número aumenta cerca de 7% ao ano (CHANG E COL., 2004)1. No Brasil, existem cerca de 61.000 pacientes em Hemodiálise. O Distrito Federal possui um contingente de cerca de 2.100 indivíduos em Terapia Renal Substitutiva2. O tratamento dialítico está associado à restrição funcional, a numerosas complicações físicas e compromete a qualidade de vida. Como alternativa de tratamento, o transplante renal tem mostrado, em longo prazo, benefícios à saúde e exibe atrativos no aspecto custo x benefício. Tem sido dada pouca ênfase ao estabelecimento de estratégias para otimizar a qualidade de vida de pacientes pós-transplante renal1,3,4. Qualidade de vida (QV) relacionada à saúde é definida de diversas formas por meio dos anos. Este conceito, muito complexo e ainda sem perfeita definição, inclui aspectos físicos, psicológicos e sociais. Cada qual engloba uma série de variáveis, podendo ser expresso de diversas maneiras, de acordo com a percepção subjetiva do paciente4,6. O instrumento mais usado na avaliação da QV são os índices de saúde física e mental, apresentados por questionários respondidos em sua maioria pelo próprio paciente. São avaliados os aspectos de domínio físico: capacidades funcional e trabalhista; de domínio psicológico: satisfação, bem-estar, independência para as atividades diárias, ansiedade, depressão; domínio social: reabilitação para o trabalho, integração familiar e social7. Existe um amplo consenso entre os profissionais da saúde a respeito da influência de um rim transplantado funcionante sobre a QV. Em alguns aspectos, a qualidade de vida de pacientes transplantados é semelhante à de indivíduos normais. Transplante renal é um tratamento que tenta restaurar a função normal, minimizando as limitações que a diálise causa à vida7,8. Dew & Col (1997)8 realizaram uma revisão de literatura de QV pós-transplante renal, incluindo 6.500 transplantados renais e concluíram que o transplante promove uma significante melhora na QV tanto em aspectos físicos (78% dos pacientes) quanto psicossociais (70%) e percepção de bem-estar global (100%). Num relevante trabalho (CHANG & COL, 2004)1, foi investigado o aspecto custo x benefício de um programa, desenvolvido para melhorar a qualidade de vida de pacientes submetidos a transplante renal. Os pacientes foram divididos em grupo controle e outro experimental, no qual o programa foi aplicado e foram avaliados seis e 12 meses após o transplante. O custo deste programa, cerca de 2.000 dólares/paciente/ano, foi considerado bastante razoável, baseado nos resultados. Evidenciou-se que 85,8% dos pacientes que trabalhavam antes do transplante retornaram ao trabalho após seis meses e 87,8%, após 12 meses. Entre os pacientes sem atividade profissional antes do transplante, 42% e 86% retornaram ao trabalho aos seis e 12 meses respectivamente. A melhor qualidade de vida trouxe dividendos sob a forma de melhor saúde física e mental com menor taxa de utilização de serviços médicos. Deve-se levar em conta que, neste estudo, foram excluídos pacientes previamente diabéticos, sabidamente portadores de maiores complicações clínicas. METODOLOGIA Com o objetivo de avaliar se o transplante renal, efetivamente, torna possível a recuperação da capacidade laborativa de indivíduos submetidos a essa modalidade e tratamento, foram estudados 124 pacientes transplantados, acompanhados no ambulatório do Hospital de Base do Distrito Federal – HBDF. A coleta de dados foi de junho a outubro de 2005 com a aplicação de questionário, preenchido pelo médico assistente do paciente, em entrevista com cada paciente em particular, enfatizando a situação à época do transplante e um ano após. Os quesitos solicitados foram: sexo, idade, tempo de transplante renal, profissão, nível educacional, tipo de trabalho e situação previdenciária. A avaliação de capacidade laborativa, realizada pelo próprio médico que assiste o paciente, baseou-se em critérios exclusivamente médicos de saúde física e mental. Na avaliação estatística, foi utilizado o Teste de McNemar, com nível de significância de 5%. Foram excluídos do estudo os pacientes menores de 18 anos, com tempo de transplante inferior a um ano, aposentados por tempo de serviço e portadores das seguintes deficiências: amaurose, seqüela de acidente vascular cerebral, cardiopatia grave incapacitante, amputação e doença psiquiátrica incapacitante. Reabilitação profissional é definida pela Previdência Social como assistência educativa e de adaptação profissional, que vise proporcionar aos beneficiários, portadores de deficiência, os meios indicados para o reingresso no mercado de trabalho e no contexto social em que vivem9. RESULTADOS Ao analisar a pesquisa em 124 pacientes, encontramos 78 homens (62,9%) e 46 mulheres (37,1%), com média de 40 anos de idade e cinco anos de transplante. Destes, dois (1,6%) tinham doença incapacitante permanente na época do transplante e 11 (8,8%), após um ano de transplante. Quanto ao aspecto de capacitação para o trabalho após um ano de transplante, encontravam-se 113 (91%) pacientes aptos, dos quais 41 (33%) necessitavam de reabilitação profissional. J Bras Nefrol Volume XXIX - nº 1 - Março de 2007 Ao abordar a situação de trabalho na época do transplante, 28 (22,5%) pacientes eram ativos e 96 (77,4%), inativos (Gráfico 1). Um ano após o transplante renal, notou-se um acréscimo de pacientes em atividade laborativa, ou seja, 38 (30,6%) estavam ativos e 86 (69,5%) inativos (Gráfico 2). Diferença que foi considerada não significativa (p=0,091). Uma avaliação da situação de trabalho relacionada ao grau de escolaridade dos pacientes é apresentada na Tabela 1, evidenciando um maior retorno ao trabalho nos grupos de pacientes com maior escolaridade (níveis médio e superior). Para facilitar a avaliação, foram considerados ativos os pacientes em trabalho formal ou informal; e inativos: os aposentados, indivíduos recebendo auxílio doença, afastados do serviço e desempregados. 31 A melhora no tratamento imunossupressor e ampliação do atendimento a pacientes transplantados renais, com fornecimento de medicação imunossupressora pelos Programas Públicos de Saúde de diversos países, inclusive o Brasil, vêm definindo o sucesso dos programas de transplante de órgãos no mundo10-12. A literatura corrente estima em 50% a 83% a taxa de receptores de transplante renal que nunca retornam ao trabalho. No Brasil, Ianhez & Col. (1998)13 realizaram um estudo, comparando pacientes transplantados em uma instituição pública e outro grupo, proveniente de instituição privada, observando um índice de reabilitação para o trabalho de 29,9% e 80,9%, respectivamente, reflexo de um melhor preparo profissional e situação econômica e social dos pacientes provenientes de hospital privado. Estes resultados mostram a necessidade de melhor adequação custo–benefício dos programas de transplante renal. O paciente em tratamento dialítico tem menor índice de reabilitação para o trabalho (19% a 30%) do que o paciente transplantado renal (45% a 60%)4. À análise dos resultados obtidos, observa-se que 91% dos pacientes foram considerados capazes, do ponto de vista de saúde para o trabalho. Destes, 67% poderiam retornar à profissão que exerciam antes do transplante renal e 33% necessitavam de reabilitação profissional. Apesar disso, apenas 30,6% trabalhavam um ano após transplante, representando um acréscimo de apenas 8,1% em relação à situação pré-transplante, que, como visto, não foi estatisticamente significante. Se levarmos em consideração que 91% dos pacientes encontravam-se capazes de exercer uma atividade laborativa, podemos inferir destes resultados que existe grande deficiência dos programas de reabilitação para o trabalho e inclusão social. Gráfico 1. Situação de trabalho e previdenciária pré-transplante renal Gráfico 2. Situação de trabalho e previdenciária pós-transplante renal DISCUSSÃO Tabela 1. Situação do Trabalho, Relacionado à Escolaridade Escolaridade Analfabeto Fundamental Médio Superior Subtotal * Total * p= 0,091 Pré-Transplante Ativos Inativos 0 (00,0%) 07 (05,6%) 20 (16,1%) 62 (50,0%) 7 (05,6%) 23 (18,5%) 1 (00,8%) 04 (03,2%) 28 (22,6%) 96 (77,4%) 124 (100%) 1 Ano / Pós-Transplante Ativos Inativos 0 (00,0%) 07 (05,6%) 22 (17,7%) 60 (48,3%) 13 (10,4%) 17 (13,7%) 03 (02,4%) 02 (01,6%) 38 (30,6%) 86 (69,4%) 124 (100%) Reabilitação Profissional Pós TX 32 Como em outros estudos, observou-se um maior retorno ao trabalho entre indivíduos com melhor grau de escolaridade6,7,10. Por se tratar de um centro de transplante em hospital público, atendendo, em sua maioria, pacientes de menor nível socioeconômico, poucos pacientes com nível de formação superior foram avaliados, o que pode ter contribuído para a diferença encontrada não significante um ano após transplante. Na decisão de como viver satisfatoriamente após transplante, muitos fatores entram em conflito. Depressão, medo ou ansiedade, com freqüência, reduzem a capacidade de um bom desenvolvimento no trabalho e na vida em sociedade. O trabalho pode dar um sentido mais produtivo à vida, bem como um ganho financeiro, na maioria dos casos, refletindo numa melhor qualidade de vida (PARIS, 1997) 10. Obviamente, existem muitas barreiras para o retorno ao trabalho pós- transplante, como: 1) desejo de manter garantida sua aposentadoria, 2) dificuldades de ingresso no mercado de trabalho para indivíduos com mais de 50 anos de idade, 3) pacientes que se sentem inábeis para o trabalho, física e psicologicamente, 4) receptores com alto nível de formação profissional e que não desejam se submeter a uma reabilitação para o trabalho, muitas vezes necessária e que poderia limitar sua satisfação profissional6,10,13. Os pacientes que mais necessitam de bons programas de reabilitação profissional são aqueles com: 1) baixa escolaridade, 2) ausência de habilitação profissional, 3) uma percepção de sua saúde que difere completamente da visão da equipe médica que os acompanha e ou a percepção de que são fisicamente incapazes para o trabalho14. Wilkins (2003)14 avaliou o impacto da educação de pacientes, bem como suporte psicossocial no retorno à vida normal pós-transplante renal e verificou que, no grupo de 51 pacientes estudados, 62% deles foram capazes de retornar à atividade profissional. Se a própria equipe de saúde comunica ao paciente, na fase pré-transplante, que o tratamento proposto tem como finalidade maior reintegrá-lo à sociedade e torná-lo apto a desenvolver atividade laborativa, e com este fim desenvolve programas de reabilitação profissional, tornará este indivíduo produtivo, reduzindo o custo social de seu tratamento. O perfil da população em tratamento dialítico tem se modificado consideravelmente nos últimos anos, além de a idade ter aumentado e, com isso, a comorbidade também. A expectativa de melhora da qualidade de vida deveria ser uma das variáveis na avaliação de candidatos à inclusão em lista de espera para transplante renal, visando à melhor adequação custo–benefício do tratamento. Observa-se que poderia haver melhor aproveitamento dos recursos públicos, destinados aos programas de transplante renal, se, paralelamente, fossem desenvolvidos programas com a finalidade de recolocar estes pacientes no mercado de trabalho, evitando manutenção de gastos previdenciários com indivíduos que reverteram a incapacidade laborativa. CONCLUSÃO 13. Ianhez LE, Paula FJ, Arap S, Sabbaga E. Reabilitação Profissional no Pós Transplante Renal e Condição Sócio – Econômica. Jornal Brasileiro de Nefrologia 1998; 1:63-7 No estudo realizado, conclui-se que o transplante renal como forma de tratamento de urêmicos crônicos melhora a qualidade de vida dos pacientes, tornando-os aptos para a atividade laborativa. REFERÊNCIAS 1. Chang CF, Winset RP, Guber AO, Hatchway DK. Cost effectiveness of post transplantation quality of life intervention among kidney recipients. Clin Transplantation 2004; 18:407-14 2. Serviço de Alta Complexidade de Terapia de Substituição Renal; 2002-2005. Ministério da Saúde. 3. Fischer R, Gould D, Wainwrigth S, Fallon M. Quality of life after renal transplantation Journal of Clinical Nursing 1998; 7:553-63 4. Jofre R, Lopez-Gomes JM, Moreno F, Sanz-Guarjado D, Valderrano F. Changes in quality of life after renal transplantation. Am. J. Kidney Dis. 1998; 32:93-100 5. Luk WS. The HRQoL of renal transplant patients Journal of Clinical Nursing 2004; 13:201-9 6. Weety Suet-Ching , Luk BSC , The HRQoL of renal transplant patients. Journal of Clinical Nursing 2004; 13:201-9 7. Valderrano F, Jofre R, Lopez - Gomes JM . Quality of life in end stage renal disease patients. Am J Kidney Dis 2001; 38:443-64 8. Dew MA, Swtzer GE, Goycooleta JM, Allen AS, Di Martini A. Does the transplantation produce quality of life benefits ? Transplantation 1997; 64:1261-73. 9. Decreto Nº 003.048-1999, Livro II, título II, capítulo V, Art. 136; Regulamento da Previdência Social 1999. 10. Paris W, Wilson G. Employment and the transplant patient. Journal of Rehabilitation 1997; 63:10 11. Registros do Sistema Nacional de Transplantes; 20022005. Ministério da Saúde. 12. Registros da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos; 2003-2005. Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. 14. Wilkins F, Bozik K, Bennett K. The impact of patient education and psychosocial supports on return to normalcy 36 months post- kidney transplant. Clin Transplant 2003; 17:78-80