PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito SEGREGAÇÃO PATRIMONIAL E SECURITIZAÇÃO DE CRÉDITO Gustavo de Aguiar Ferreira Alves Belo Horizonte 2010 Gustavo de Aguiar Ferreira Alves SEGREGAÇÃO PATRIMONIAL E SECURITIZAÇÃO DE CRÉDITO Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Almeida Magalhães Belo Horizonte 2010 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais A474s Alves, Gustavo de Aguiar Ferreira Segregação patrimonial e securitização de crédito / Gustavo de Aguiar Ferreira Alves. Belo Horizonte, 2010. 165f. Orientador: Rodrigo Almeida Magalhães Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. 1. Securitização. 2. Fidúcia. 3. Negócio fiduciário. 4. Segregação patrimonial. 5. Alienação fiduciária. 6. Propriedade fiduciária. 7. Falência. I. Magalhães, Rodrigo Almeida. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. CDU: 347.133 11 Gustavo de Aguiar Ferreira Alves Segregação patrimonial e securitização de crédito Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, _____________________________________________ Rodrigo Almeida Magalhães (Orientador) - PUC Minas _____________________________________________ Sérgio Mendes Botrel Coutinho - FUMEC _____________________________________________ Eduardo Goulart Pimenta – PUC Minas Belo Horizonte, 23 de março de 2010. À fé, fonte inesgotável de motivação. Aos meus pais, pelo exemplo e apoio constantes. AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Professor Rodrigo Almeida Magalhães, pela paciência, disponibilidade e palavras de incentivo. À Vanessa, pelo carinho, companheirismo, compreensão e auxílio na final revisão deste trabalho. Aos amigos Alaor, Flávio, Sergio e Vânia, pela motivação, esclarecimentos e apoio prestados de braços abertos. Ao Luiz Fernando e à minha prima Renata, pela ajuda na obtenção de material. A todos meus amigos e familiares, pela compreensão nos incontáveis momentos de ausência. RESUMO O dinamismo atualmente existente na circulação de riquezas e a integração do mercado de capitais em âmbito mundial têm dado azo ao surgimento de novas estruturas negociais, a demandar a formulação de instrumentos jurídicos hábeis a proporcionar a devida segurança aos seus partícipes. A relevância dessa questão ganha vulto na medida em que o desenvolvimento da economia pátria guarda estreita relação com a adequada e eficaz regulação de seu mercado interno, tornando-o atrativo aos investidores pátrios e estrangeiros. Nesse contexto encontra-se a securitização de créditos, operação destinada a gerar liquidez imediata aos créditos oriundos de atividades públicas e privadas, que cedidos a uma sociedade de propósito exclusivo, servirão de lastro à emissão de valores mobiliários, pagando-se aos cedentes o valor ajustado, após a aquisição dos títulos por investidores. Criada nos Estados Unidos na década de 70, essa operação encontra-se cada vez mais disseminada em todo o mundo. Em países filiados ao sistema anglo-saxão, a estrutura da operação é de fácil formatação, tendo em vista a figura do trust que, em síntese, permite o fracionamento do direito de propriedade, de tal sorte que os créditos cedidos não se vinculam com quaisquer obrigações do cedente ou do cessionário, destinando-se exclusivamente ao pagamento dos valores mobiliários emitidos e respectivas despesas decorrentes da securitização, o que representa a maior garantia dos investidores, adquirentes dos títulos emitidos. Entretanto, nos países de tradição romano-germânica, não é admissível a constituição de uma dupla propriedade sobre um mesmo bem, o que demanda a análise dos instrumentos jurídicos existentes, como aqueles derivados da fidúcia romana, na busca da segregação do patrimônio cedido, alcançando-se, assim, efeitos similares ao do trust anglo-saxão. Palavras-chave: Securitização de crédito. Trust. Fidúcia. Segregação patrimonial. ABSTRACT Today’s increasingly fast-paced circulation of wealth and the integration of capital markets worldwide have given rise to the creation of new negotiating frameworks, which call for the formulation of legal instruments capable of providing proper security to the parties involved. The relevance of this issue is further heightened as the development of Brazil’s economy bears a strict relationship with the adequate and proper regulation of its internal market, making it attractive to domestic and foreign investors alike. Such is the context of credit securitization, an operation intended to yield immediate liquidity to credits stemming from public and private activities, which, when assigned to a special purpose company, serves as pegging for the issuance of securities, with assignees being paid the adjusted value, after the acquisition of such instruments by investors. Created in the United States in the 70’s, this operation has since become increasingly popular around the world. In common-law countries, the framework of the operation is easily assembled, considering their unique trusts which, in short, allow property rights to be fractioned, in such a way that the assigned credits are not tied to any obligations on the part of either the assignee or the assignor, but solely intended for the payment of the securities issued and the respective expenses stemming from the securitization, which represents a greater warranty to those acquiring such securities. Nevertheless, in countries with a Romanistic-German legal background, there exists no such concept of dual ownership of an asset, which calls for a thorough analysis of the existing legal instruments, such as those derived from the Roman fiducia, in the quest for the segregation of the assets assigned, with similar effects to those of the trust. Key-words: Securitization. Trust. Fiducia. Segregation of assets. LISTA DE SIGLAS Coord. – Coordenador Ex. – Exemplo Org. – Organizador Trad. – Tradutor LISTA DE ABREVIATURAS Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) Community Reinvestment Act (CRA) Conselho Monetário Nacional (CMN) Federal Home Loan Mortgage Corporation (FHLMC) Federal Housing Administration (FHA) Federal National Mortgage Association (FNMA) Federal Reserve (FED) Secretaria de Previdência Complementar (SPC) Sociedade de Propósito Exclusivo (SPE) Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) Veículo de Propósito Exclusivo (VPE) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.............................................................................................. 10 2 SECURITIZAÇÃO DE CRÉDITO............................................................. 2.1 Denominação ........................................................................................................................ 2.2 Aspectos históricos ............................................................................................................ 2.3 Estrutura da operação ..................................................................................................... 2.3.1 Dos ativos e sua classificação ..................................................................................... 2.3.2 Da sociedade de propósito exclusivo.......................................................................... 2.3.3 Da cessão de crédito ........................................................................................................ 2.3.4 Dos valores mobiliários ................................................................................................. 2.3.5 Do agente fiduciário ....................................................................................................... 2.4 Intermediação financeira e securitização ................................................................. 2.5 A securitização de créditos no Brasil .......................................................................... 2.6 Problemas para a implementação da securitização de créditos no Brasil ... 12 12 14 18 22 26 31 36 42 44 50 56 3 O TRUST ............................................................................................................. 3.1 Aspectos históricos .......................................................................................... 3.2 Principais características ................................................................................ 3.3 Problemas para a adoção do trust pelos países de tradição romano-germânica .................................................................................................... 62 62 65 68 4 A FIDÚCIA ......................................................................................................... 73 4.1 A fidúcia romana ................................................................................................................ 73 4.2 A fidúcia no Direito Germânico.................................................................................... 82 4.3 A fidúcia moderna ............................................................................................................. 84 4.4 Negócio fiduciário em sentido estrito ......................................................................... 89 4.4.1 Principais características .............................................................................................. 89 4.4.2 Negócio fiduciário e negócio simulado: uma distinção necessária ................ 98 4.4.3 Consequências perante credores do fiduciante e do fiduciário ....................... 103 4.4.4 Negócio fiduciário e trust .............................................................................................. 105 4.5 Os negócios fiduciários impróprios ................................................................ 106 4.5.1 A afetação patrimonial ................................................................................................... 108 4.5.2 A propriedade fiduciária ................................................................................................ 125 4.5.3 A propriedade fiduciária instituída pela Lei nº 9.514/97 e a securitização do crédito imobiliário ....................................................................................................... 135 4.5.4 O contrato de fidúcia ........................................................................................................139 4.5.5 O fideicomisso nos países da América do Sul ....................................................... 143 5 A LEI DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL DE EMPRESAS ........................146 6 CONCLUSÃO ..........................................................................................................................153 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................158 10 1 INTRODUÇÃO Com a evolução dos veículos de comunicação e crescente integração dos mercados, os meios de circulação de riquezas têm se modificado constantemente, dando azo ao desenvolvimento de um novo mercado de crédito, no qual empresas e o próprio poder público podem captar recursos para financiamento de suas atividades, através da transformação de créditos vencíveis, e mesmo futuros, em valores mobiliários de livre negociação, inclusive globalmente, entre investidores dos mais diferentes perfis, pessoas físicas ou jurídicas. A própria atividade tradicional de intermediação financeira, exercida pelos bancos na captação de depósitos, concessão de empréstimos e desconto de títulos, teve de ser ampliada, prestando-se as instituições financeiras a novas funções nesse novo mercado. No Brasil, a essa nova forma de captação de recursos e realização de investimentos se convencionou denominar securitização, com grande relevância no crescimento econômico da atualidade, por solucionar problemas financeiros e, inclusive, por viabilizar a execução de projetos com alto custo. Em apertada síntese, a operação consiste na transferência de créditos de uma empresa a outra, sendo esta última incumbida, exclusivamente, de melhorar as características dos créditos através de vários expedientes e, em seguida, emitir valores mobiliários, garantidos por esses ativos recebidos. Uma vez negociados no mercado de capitais, realiza-se o repasse do valor ajustado à cedente. Aos investidores resta a expectativa de lucro após o vencimento e respectivo recebimento dos créditos utilizados na operação. Sua garantia incide exclusivamente sobre o grupo de ativos que servem de lastro à emissão dos títulos que adquiriu, e não sobre o patrimônio da cedente, tomadora dos recursos. De igual sorte, seu risco encontra-se limitado à adimplência, ou não, por parte dos devedores dos ativos cedidos, não respondendo os créditos cedidos pelo risco relativo à atividade da cedente e das dívidas que possa ter. Essa expectativa é primordial para a viabilização da securitização de créditos, sob pena de se tornar inviável. Nos países de tradição anglo-saxônica utiliza-se o trust, por permitir a transferência de parcela do patrimônio de uma pessoa a outra, vinculando-a a uma destinação específica, mas de tal sorte que, em decorrência do fracionamento do direito de propriedade em relação aos bens transferidos, impede que estes sejam demandados por dívidas gerais de uma ou de 11 outra. Assim, utilizando-se o trust, aquela expectativa dos investidores em uma operação de securitização de créditos torna-se perfeita e eficaz. Todavia, em países de tradição romano-germânica essa dicotomia da propriedade não é admitida. Consequentemente, para que a securitização de créditos possa apresentar a segurança esperada, um dos problemas a ser enfrentado é a busca de instrumentos jurídicos hábeis a imprimir os mesmos efeitos do trust, através da segregação do patrimônio cedido, que deverá restar incólume a outros riscos que não sejam os advindos da operação, sob pena de não se tornar opção aceitável pelo mercado. A insegurança daí decorrente tem sido apontada como uma das causas que impedem um maior desenvolvimento da securitização no Brasil, do que decorrem grandes prejuízos, seja por reduzir o financiamento de empresas e projetos, seja por prejudicar a atração de capital estrangeiro, os quais terminam por buscar mercados que já se encontram com regulação mais adequada. Nesse sentido, tem-se discutido sobre as implicações da Teoria do Patrimônio adotada no ordenamento jurídico pátrio, assim como a utilização de instrumentos de natureza fiduciária, de forma a alcançar a segregação patrimonial dos bens utilizados na securitização. O presente trabalho tem por objetivo compreender a estrutura operacional da securitização de crédito e dos contratos que a compõem para, então, avaliar a adequação dos instrumentos jurídicos já existentes na atribuição da indispensável segurança e possibilitar a realização da operação de forma ampla, em relação a qualquer espécie de ativos. Desta forma, urge um adequado estudo sobre esses temas e sua evolução, de modo a avaliar a possibilidade de se realizar a afetação patrimonial com os instrumentos jurídicos já existentes ou, pelo contrário, se será necessária a inovação do ordenamento, via legislativa, como forma de implementar as operações de securitização de crédito. 12 2 A SECURITIZAÇÃO DE CRÉDITO 2.1 Denominação Antes de qualquer outro aspecto, e para evitar confusões terminológicas, cumpre precisar o que neste trabalho será tido por securitização de crédito. A palavra securitization decorre da transformação da palavra security, de origem inglesa, e foi muito criticada desde sua primeira utilização, nos Estados Unidos. Uinie Caminha (2007) esclarece que tal teria ocorrido em 1977, quando um jornalista, do Wall Street Journal, ao entrevistar o autor da primeira operação do gênero, e devido à novidade, por falta de um termo melhor, chamou de securitização. Essa criação é explicável, na medida em que a palavra security equivale a valor mobiliário e visa à captação de recursos no mercado através de sua emissão, lastreada em ativos. Em que pese ser pouco técnica, passou a ser utilizada, muito embora no mercado financeiro e de capitais possa ter diversas significações. Segundo alguns (CHAVES, 2006, p. 46), até seria possível apontar para a adequação da expressão que, embora em nada se relacione com a atividade securitária, possui relação com noções de segurança e garantia. Melhor poderia ter sido a utilização, no Brasil, do termo titularização, tal como se deu em Portugal, através do Decreto-Lei n. 453, de 5 de novembro de 1999, que regulamenta a operação nesse país. Entretanto, a influência norte-americana marcou inúmeros mercados nesse processo, não sendo uniforme a designação do instituto. Nesse sentido, colhem-se os seguintes apontamentos: Do latim securus, o vocábulo foi absorvido pela língua inglesa, na qual, além da própria significação de garantia, incorporou a acepção mais ampla de valor mobiliário. Contemporaneamente, o termo securitização e o processo que designa firmaram-se nos mercados financeiro e de capitais a partir da prática do mercado financeiro e de investimento dos Estados Unidos e vêm sendo assimilados de maneira generalizada em todo o mundo, chamando-se titulización na versão espanhola, bursatilización no México, titrisation na França, titularización na Colômbia, securitización Chile e na Argentina etc. A Lei 9.514/97, seguindo essa tendência, adotou o neologismo securitização. (CHALHUB, 2006, p. 404). 13 Desta forma, no presente trabalho será utilizada a expressão securitização, ainda que nenhuma dessas denominações abarque a complexidade do instituto, que conta com inúmeros atores e diferentes contratos, rumo ao objetivo visado, conforme mais adiante será demonstrado. É o que se percebe também do seguinte trecho, ainda que critique a terminologia por motivos diversos: De qualquer modo, tanto o neologismo securitização quanto aqueles sugeridos nesse estudo (titulização ou mobiliarização) não refletem completamente a essência do negócio jurídico aqui tratado, dando a entender que consistiria em mera conversão de créditos ou dívidas em título. Entretanto, o negócio ao qual se atribui o nome securitização apresenta características marcantes, indo além dessa simples conversão. (CHAVES, 2006, p.47). Não obstante, ainda assim tal expressão poderia dar margem a dúvidas quanto às dimensões empregadas, na medida em que no Brasil o termo possui diferentes aplicações no mercado financeiro. Essa diversidade pode, em síntese, ser apresentada da forma a seguir: Ainda de acordo com Oditah, a palavra securitização pode ser entendida de três formas, motivo pelo qual se deve delinear exatamente o que se está querendo identificar. A securitização pode significar simplesmente a transformação de ativos ilíquidos em títulos negociáveis; pode também identificar operações de cessão de recebíveis, quer siga a tal cessão, ou não, uma emissão de títulos; e ainda como o processo de emissão de títulos de dívida (debêntures ou commercial papers, por exemplo), quer tais papéis sejam, ou não, lastreados em ativos subjacentes. (CAMINHA, 2007, p. 37). E, mais, conforme destrinchado pela referida autora, ainda há aquilo que se entende por securitização em sentido amplo, consistente na substituição das formas tradicionais de financiamento bancário, via empréstimo e desconto de títulos, pelo financiamento através do mercado de capitais, e em seu sentido estrito, nos seguintes termos: Em sentido estrito, a securitização é uma operação complexa, que envolve alguma forma de segregação de patrimônio, quer pela cessão a uma pessoa jurídica distinta, quer pela segregação interna, e uma emissão de títulos lastreada nesse patrimônio segregado. Assim, envolve não um, mas os três significados apresentados por Oditah, juntos numa mesma operação específica e diferente de cada uma de suas partes em separado. (CAMINHA, 2007, p. 38). O presente trabalho cuidará da securitização em sentido estrito, mas com enfoque específico no aspecto que cuida de sua primordial garantia, conforme já apontado na introdução, qual seja; a constituição de um patrimônio separado. 14 2.2 Aspectos históricos Quando se fala em securitização, há referência ao seu surgimento nos Estados Unidos, na década de 70, para financiamento do mercado imobiliário, com emissão de títulos lastreados em hipotecas, com ampla participação do governo. Entretanto, quando se fala em mercado imobiliário e Estados Unidos, a tal “bolha imobiliária”, responsável pela atual crise mundial, vem imediatamente à tona. Portanto, entender um pouco do surgimento da securitização torna-se interessante não apenas para destacar sua relevância econômica e social, mas também para que a crise enfrentada não seja vista como um problema originado da operação de securitização em si, o que, de fato, não ocorre. Torna-se indispensável um regresso à origem histórica do próprio crédito imobiliário norte-americano, especificamente das medidas de intervenção econômica adotadas pelo presidente Roosevelt, através do conhecido New Deal. Após a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, que culminou na falência de bancos e grandes empresas, várias medidas foram tomadas pelo governo norteamericano, dentre elas, a criação da Security Exchange Comission, equivalente à Comissão de Valores Mobiliários brasileira, incumbida “de coibir práticas fraudulentas no mercado de valores mobiliários e de garantir aos investidores o acesso às informações significativas quanto à venda desses títulos.” (CHAVES, 2006, p. 20). À época, dado o rigor na obtenção de empréstimos para aquisição da casa própria, a maior parte da população norte-americana valia-se do aluguel, com retração do mercado imobiliário, vale dizer, dos bancos e da construção civil. Nessa cena de crise habitacional uma medida de relevo foi a criação, em 1934, da Federal Housing Administration (FHA), que se assemelha ao Sistema Financeiro de Habitação brasileiro, tendente a reduzir os custos de financiamento para aquisição da casa própria, através de um seguro contra inadimplência. Por essa via, na hipótese de inadimplência do mutuário em relação ao empréstimo, a FHA quitava a dívida, arrematava o imóvel dado em garantia hipotecária, vendendo-o em seguida. Assim, reduzidos os riscos do financiamento, tal também se dava em relação aos seus encargos, possibilitando o acesso da classe média aos imóveis e fomentando o mercado da construção civil. Em 1938 foi criada a Federal National Mortgage Association (FNMA), conhecida como Fannie Mae, sobre a qual muito se ouviu dizer na imprensa no decorrer do ano passado. 15 Referida empresa, inicialmente uma agência federal, mas privatizada em 1968, tinha por meta: [...] incrementar o mercado secundário de hipotecas residenciais mediante a aquisição de créditos decorrentes de empréstimos hipotecários concedidos pelos mutuantes, garantidos pela FHA. A partir de 1944, diante da implementação de um programa de incentivo à casa própria pela Veterans Administrations (VA), a FNMA também passou a adquirir dos mutuantes créditos oriundos de empréstimos hipotecários com pagamento assegurado por esse órgão. Anos mais tarde, ampliou as suas atividades, passando a negociar créditos hipotecários convencionais, sem a garantia de órgãos governamentais. Em 1981, inaugurou a emissão de valores mobiliários com pagamento vinculado aos créditos hipotecários adquiridos perante os mutuantes. (CHAVES, 2006, p. 21-22). Já em 1970 foi criada a Federal Home Loan Mortgage Corporation (FHLMC), conhecida como Freddie Mac, cujo objeto é comprar hipotecas no mercado secundário e vendê-las como títulos lastreados em hipotecas para investidores no mercado aberto, de tal forma “a repor oferta de dinheiro a ser emprestado para hipotecas e, desta forma, garante que haja dinheiro para novas compras de casas.” (DiLorenzo, 2009). O contexto de criação da FHLMC é elucidado da seguinte forma: O surgimento da FHLMC coincidiu com um momento de instabilidade na área do financiamento habitacional. A população estava crescendo, demandando a disponibilização de mais moradias e, consequentemente, de mais empréstimos hipotecários. Estes, por sua vez, frequentemente, revelavam-se inacessíveis às camadas sociais mais baixas, tendo em vista as exigências feitas pelos mutuantes. As associações até então instituídas pelo governo norte-americano ainda não haviam sido suficientes para satisfazer as demandas de mercado. O Governo Nixon enfrentou, portanto, um grande desafio no sentido de estabilizar definitivamente o setor de financiamento habitacional, flexibilizando as exigências para a obtenção de empréstimos hipotecários residenciais, reduzindo as enormes desigualdades quanto às condições de financiamento entre regiões e implantando uma nova tecnologia de redução de custos e de prazos para a obtenção de empréstimos. [...] Consolidado o mercado primário e o secundário de empréstimos hipotecários, lançadas estavam as bases para a realização da securitização de créditos vinculada a empréstimos hipotecários, iniciada na década de 1970. (CHAVES, 2006, p. 23-24). Ambas as empresas passaram a ter a mesma função. Mas, importante destacar, em que pese tratar-se de empresas nominalmente privadas, contavam com privilégios implícitos e explícitos do governo federal, daí serem tratadas como empresas “apadrinhadas do governo”. É o que se colhe do seguinte artigo, publicado pelo Le Monde Diplomatique Brasil: Na condição de “entidades patrocinadas pelo governo” (GES, na sigla em inglês), dispõem de uma linha de crédito garantida pelo Estado, assim como de financiamento a taxas preferenciais. 16 A função da Fannie Mae e da Freddie Mac era assegurar a liquidez do mercado de crédito imobiliário, dando garantia a empréstimos ou comprando-os de volta dos bancos. O endividamento doméstico era encorajado, uma vez que os juros sobre a dívida imobiliária eram dedutíveis do Imposto de Renda. Fannie Mae e Freddie Mac financiavam suas atividades através da emissão de títulos denominados “seguros residenciais garantidos por hipoteca”. O sucesso desses papéis junto aos investidores se devia à certeza de que, ao menos implicitamente, eram garantidos pelo governo americano. O crescimento das duas instituições financeiras, sempre sustentado pelo Estado, se acelerou à medida que o sistema financeiro sofria uma desregulamentação. (WARDE, 2009). Entretanto, os problemas dessa política se apresentaram mais tarde. Para alcançar a tal flexibilização das exigências para obtenção de empréstimos, foram adotadas medidas, como as implementadas pelo CRA (Community Reinvestment Act, ou decreto de investimento comunitário), criado em 1977, através do qual o Banco Central norte-americano (FED – Federal Reserve) passou a exigir dos bancos a realização de “empréstimos a mutuários com capacidade creditícia duvidosa – mutuários esses que, de outra forma, os bancos não se arriscariam a conceder-lhes empréstimos.” (DiLorenzo, 2009) Tal restou ainda mais agravado em 1995, com novas medidas de flexibilização para concessão de empréstimos para aquisição de moradia, impostas pelo governo aos bancos, assim como diminuindo “a taxa básica de juros para o mínimo histórico de 1% em 2003”, de tal forma que “as taxas hipotecárias se tornam as mais baixas da história” (THORNTON, 2009). Todas essas medidas em seu conjunto fizeram com que fossem multiplicados os números de empréstimos para o setor imobiliário. Estes, por força das medidas do governo, tiveram que ser estendidos inclusive a pessoas com histórico de crédito ruim, os quais, após comprados pela Fannie Mae e Freddie Mac, com emissão de títulos garantidos pelas respectivas hipotecas, são denominados pelo mercado como subprime. Assim ocorrendo, exponencialmente aumentada a demanda por imóveis, o valor destes aumentou. E, como era de se esperar, boa parte dos mutuários não conseguiram cumprir com as parcelas dos financiamentos. Executadas as hipotecas, arrematando-se os bens, estes não apresentavam liquidez suficiente para fazer frente à dívida. Esta a razão da atual crise: O que a Fannie e o Freddie fizeram foi proporcionar uma vasta nova fonte de procura para hipotecas. O seu papel foi estender o mercado para a dívida hipotecária, criando oportunidades de ganhar dinheiro financeiramente num ambiente de inflação dos preços dos activos – a Bolha Econômica. O efeito foi pressionar para cima os preços da habitação. Isto tem sido o grande jogo americano durante um século. E ele voltou-se cada vez mais para investidores no exterior (incluindo crédulos bancos alemães, os quais foram os primeiros a falirem por confiarem no mercado de 17 hipotecas lixo dos EUA), inchando a oferta de fundos emprestáveis que aumentam os preços da propriedade. (HUDSON, 2009) O acúmulo de perdas finalmente se sobrepôs aos cenários otimistas dos analistas financeiros. As funções e distorções do sistema de crédito hipotecário foram então analisadas com inédito rigor. E “os mercados” se renderam à evidência; a queda dos títulos subprime em poder da dupla Fannie e Freddie, o aumento do número de clientes insolventes, a queda contínua do mercado imobiliário e os temores de uma recessão compunham um quadro de matizes bastante inquietantes. (WARDE, 2009). Percebe-se, assim, um abuso, fruto da falta de fiscalização e imprudente intervenção estatal. A securitização, ao menos em seu início, revelou-se eficiente, tendo sido pela utilização desse modelo que os Estados Unidos resolveram grave problema habitacional na década de 70. Através da securitização de créditos imobiliários, conseguiu-se o financiamento para essa onerosa empreitada, de grande relevância social. O insucesso dessa política, vivenciado por todo o mundo na atualidade, deveu-se à indevida e exagerada interferência do governo no mercado, dando azo à irrestrita concessão de empréstimos sem as cautelas de praxe. Com o conseqüente aumento do preço dos imóveis, o fracasso desse sistema forjado foi inevitável. Desta forma, verifica-se que essa experiência desastrosa em nada pode ser atribuída à securitização realizada. Se tal tivesse se dado em conformidade com as regras de um mercado livre, sem que seus agentes fossem ludibriados por uma falsa expectativa de que a operação seria garantida pelo governo, nada disso teria ocorrido. Tanto isso é verdade que essa operação, na atualidade, encontra-se em estágio avançado também em vários outros países que, a cada dia, se inserem nesse mercado, atraindo capital, financiando projetos e empresas. A securitização passou a ser realizada, por exemplo, com os recebíveis de administradoras de cartões de crédito, créditos oriundos da aquisição de equipamentos, mensalidades escolares, aluguéis de carros e toda sorte de créditos comerciais e financeiros. Esses ativos podem ser um fluxo de recebimentos, um bem, ou um direito de qualquer ordem, desde que possam ser cedidos e gerar renda. Podem ainda ser lastro dessas operações as receitas futuras, desde que determináveis. São várias as vantagens da utilização da securitização, na medida em que permite a empresas, privadas e públicas, o acesso rápido ao fluxo de caixa, ao mesmo tempo em que diversifica suas fontes de captação de recursos e, de resto, tem disponibilidade de numerário a um custo menor do que se valesse das formas tradicionais de empréstimo e desconto de títulos diretamente junto a instituições financeiras. Lado outro, possibilita esse acesso também a 18 pequenas empresas, permitindo sua entrada em determinados setores econômicos, com maior competitividade, fomentando o mercado. Por fim, e de grande relevância, é a verificação da diluição de risco dos créditos do originador, o qual pode valer-se da antecipação de receitas para novas empreitadas, sendo que os investidores, adquirindo os títulos emitidos pela sociedade de propósito exclusivo, terão a garantia de que não sofrerão eventuais conseqüências de falência daquele, tendo seu risco limitado à realização dos créditos que serviram de lastro à emissão dos respectivos títulos. Este é o cenário mundial da securitização, via utilizada para financiamento de pequenos e grandes projetos, públicos ou privados, atraindo capital das mais diversas localidades, sendo, assim, indispensável sua assimilação e harmonização como forma de captar recursos para o mercado interno, baixar as taxas de juros, fomentando a economia pátria, gerando empregos e ganhos de produtividade. Para tanto, a proteção do público investidor se apresenta como questão fundamental. 2.3 Estrutura da operação A securitização de créditos, antes de qualquer outro aspecto, revela-se como meio hábil à circulação de riquezas, a demandar a existência de instrumentos jurídicos que proporcionem a devida segurança. Lado outro, por encontrar-se inserida no mercado de capitais, demanda agilidade, própria do dinamismo com que o mundo moderno exige dessa mobilização, de tal forma que, ao mesmo tempo, várias pessoas possam se valer de um só capital. Afinal, “os bens adquirem valor no momento em que são considerados em seu aspecto dinâmico, com possibilidade de gerar mais riquezas, e não em seu aspecto estático.” (CAMINHA, 2007, p. 75). Assim, o mercado de capitais, por envolver diversas pessoas, em um processo extremamente dinâmico de circulação de riquezas, demanda rapidez e segurança na transferência de bens. São elementos indispensáveis, pois atribuem liquidez ao mercado de capitais, envolvendo cada vez maior número de pessoas, muitas vezes unidas por operações derivadas de um mesmo e único negócio. A bem da verdade, são antigos os aspectos em comento, sobre segurança e eficiência na circulação de riquezas, tendo despertado profundas reflexões das quais redundaram na criação e desenvolvimento do título de crédito, instrumento hábil a esse mister, posto não 19 contar com os riscos que a causalidade subjacente à cessão de crédito representa. Foram os títulos de crédito que ultrapassaram essa barreira existente entre os imperativos do mercado e as normas jurídicas, o que também se verificou, posteriormente, com os valores mobiliários. Essa questão, em evidência há séculos, foi muito bem relembrada no seguinte trecho: Carnelutti aponta, outrossim, três critérios que podem levar à solução dos conflitos gerados pela mobilização e circulação dos recursos financeiros, quais sejam: a) a liberdade, já que a circulação deve fluir nas ocasiões em que dela se tenha necessidade, e a melhor forma para indicar tal momento é a livre determinação do mercado; b) o aspecto formal, no sentido de se deixar claro o destino dos bens que são postos em circulação; e c) a segurança, para que as vantagens da circulação sejam garantidas e para que ela tenha a eficácia exigida pela economia. [...] Nessa ordem de idéias não é necessária uma análise mais detida para se compreender que a mera necessidade econômica não é suficiente para o desenvolvimento dos meios de circulação de riquezas. A concepção de circulação não é exeqüível sem a tutela do Direito, pois requer disciplina jurídica como requisito de sua própria existência. [...] Assim é que, pela própria necessidade econômica, surgiram desde os institutos mais antigos, que viabilizavam o transporte mais seguro de riquezas, até os mecanismos mais modernos, todos, de certa forma, relacionados aos títulos de crédito. Porém, à medida que se dissemina o uso de tais instrumentos, a tutela jurídica torna-se essencial. Quanto maior o número de pessoas envolvidas, maior a necessidade de que o Direito regule as relações entre as pessoas. Assim, como os instrumentos de mobilização de riquezas têm por função primordial fazê-la circular pelo maior número de pessoas possível, a tutela jurídica torna-se essencial para que esses instrumentos, criados a partir de necessidades econômicas, se tornem plenamente eficazes e cumpram a função para a qual foram criados. (CAMINHA, 2007, p. 7577). Curioso notar que o uso reiterado dos títulos de crédito terminou por inserir sua prática também entre os não-comerciantes. A securitização de crédito não é diferente nesses aspectos. Encontra-se em aplicação em todo mundo, contando com a participação de investidores dos mais diversos perfis, profissionais da área econômica e financeira, ou leigos, pessoas jurídicas ou pessoas físicas, sem qualquer expertise no mercado de capitais, na busca de uma via alternativa para investimentos e obtenção de rendimentos. Nesse contexto de desintermediação financeira encontra-se inserida a estrutura da securitização de créditos, que conta com vários instrumentos jurídicos para tanto, dos quais se espera a segurança para o tráfego de interesses desse conjunto de partícipes. A securitização tem por objetivo final a conversão de créditos sem liquidez imediata em valores mobiliários amplamente negociáveis, gerando renda presente. Destarte, pressupõese a existência de créditos que dêem azo à emissão de valores mobiliários, assim como que esses créditos tenham origem hábil a garantir, no futuro, a remuneração dos investidores que 20 adquiriram os títulos emitidos com lastro naqueles. Em outras palavras, é o que se destaca do seguinte trecho: Securitização é o processo pelo qual ativos financeiros ilíquidos, sem mercado secundário, são convertidos em valores mobiliários ativamente negociáveis no mercado secundário. Securitização de recebíveis, portanto, pode ser definida como o processo pelo qual direitos creditórios ilíquidos são transformados em valores mobiliários ativamente negociáveis no mercado secundário. Em linhas bem gerais, uma operação de securitização de recebíveis – também conhecidas como structured financing – engloba as seguintes etapas: uma empresa, geralmente designada originadora, desejando receber direitos creditórios originados em sua atividade (duplicata decorrente de venda de mercadoria, por exemplo), promove a constituição de uma outra sociedade, de propósito específico (SPC), denominada securitizadora. A securitizadora distribui valores mobiliários de sua própria emissão, geralmente debêntures, captando recursos junto ao público em geral. Esses recursos, então, são utilizados pela sociedade securitizadora para adquirir recebíveis (ou direitos creditórios, se se preferir) da empresa originadora. Com isso, a empresa originadora consegue receber antecipadamente os seus direitos creditórios. Naturalmente, o recebimento antecipado de direitos creditórios pela sociedade originadora se dá com um desconto em relação ao efetivo valor dos recebíveis, haja vista que estes têm vencimento futuro. (FAGUNDES, 2003, p.103). Como processo de desintermediação financeira, a utilização da securitização demandou das instituições financeiras adaptação de suas atividades, que passaram também a buscar por essa via a antecipação de receitas, ampliando as possibilidades de cessão de créditos, originados de financiamentos bancários e de arrendamento mercantil a terceiros, sob a forma de securitização de recebíveis. Não obstante, a estrutura é idêntica, podendo-se valer da seguinte passagem para descrever, de forma mais sistematizada, as etapas que compreendem uma securitização: Integrando as instituições financeiras aos mecanismos e modos de securitização que já se encontravam disponíveis para os segmentos comercial, industrial, de serviços e de crédito imobiliário, a Resolução em destaque [Resolução nº 2.493/98 do CMN], que será complementada por ato normativo da CVM, esperado para breve, possibilitará que os bancos alavanquem recursos de suas operações de crédito, acrescentando-as aos meios usuais de captação. [...] Em essência, portanto, a securitização completará três etapas distintas, a saber: a) cessão de créditos pela instituição financeira cedente (que se designará, também, como originadora) à empresa securitizadora cessionária, que formará com os créditos, o adequado lastro da emissão de valores mobiliários; e, b) colocação junto aos investidores desses valores mobiliários, disponibilizando recursos para liquidar com a cedente, a operação da etapa anterior. c) recebimento pela securitizadora (e cessionária) das prestações referidas aos empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil (créditos cedidos), transferindo esses montantes aos investidores, na proporção dos valores mobiliários subscritos. (PENTEADO JR., 1998, p. 120-121). 21 Conforme resta ilustrado, a securitização de créditos apresenta-se como operação complexa, envolvendo vários participantes e negócios jurídicos diversos, mas interligados pelo objetivo comum que, em última análise, permite sua consumação. Ainda que não exista legislação a obrigar a observância de uma determinada estrutura, ao menos em relação à maioria das espécies de ativos, como regra a securitização demanda a existência de ativos a serem securitizados, uma sociedade de propósito exclusivo, a emissão de títulos negociáveis por este e uma agência de classificação de risco. De um lado, opera-se entre originadora e a sociedade de propósito específico (securitizadora) uma cessão de créditos. De outro, tem-se a emissão de títulos por esta, garantidos pela carteira de créditos cedidos, negociados no mercado, os quais são adquiridos pelos investidores interessados, obtendo-se os resultados financeiros necessários ao pagamento dos créditos à originadora. Posteriormente, conforme se dê a quitação dos créditos cedidos, são realizados os pagamentos aos investidores. Assim, necessário que o ordenamento jurídico conte com instrumentos aptos a conferir a devida segurança a todos os envolvidos, os quais podem ser, ainda que inicialmente, assim especificados: Na securitização são utilizados basicamente dois tipos de instrumento jurídico de transferência de ativos, cada um em fase distinta da operação: inicialmente, precisase de um contrato apto a transferir segura e efetivamente os bens que servirão de lastro à operação para o veículo de propósito exclusivo que emitirá os títulos. Em seguida, necessita-se de instrumentos hábeis a movimentar rapidamente os valores lastreados no patrimônio segregado. Assim, a cessão de crédito ou de contrato, num primeiro momento, e os títulos de crédito ou valores mobiliários, num segundo, são os instrumentos jurídicos de mobilização de riquezas comumente utilizados em operações de securitização. (CAMINHA, 2007, p. 78). Um aspecto essencial dessa operação encontra-se na efetiva segregação dos ativos transferidos pela originadora, já que estes servem de lastro para a emissão dos valores mobiliários. Trata-se de pressuposto basilar desse negócio e ponto fundamental do presente trabalho, tendo em vista as graves conseqüências que de sua vulneração adviriam. Antes de se adentrar no delineamento jurídico da primeira etapa na estrutura da securitização, qual seja, a transferência de ativos da originadora à entidade securitizadora pela cessão de crédito, importante tecer esclarecimentos sobre as características de alguns dos elementos que compõem a securitização. 22 2.3.1 Dos ativos e sua classificação Como regra, todos os créditos podem ser objeto de cessão, ressalvadas as vedações legais e contratuais, prevalecendo, assim, a regra geral do art. 2861 do Código Civil. Desta forma, vasto rol de créditos tem sido utilizado em operações de securitização. Entretanto, é o mercado que exige certas características, primando pela boa qualidade dos ativos cedidos, sob pena de não se apresentar atrativa a securitização a ser realizada. Afinal, são estes créditos cedidos que servem de lastro para a emissão de títulos e, portanto, garantia à futura remuneração dos investidores. É o que se destaca do excerto a seguir: A qualidade do ativo que servirá de lastro à emissão tem grande importância no processo de securitização, pois, em última análise, a emissão terá as mesmas características desse ativo, especialmente no que diz respeito a termo, rendimentos e resgate. Vale salientar que quanto mais homogêneos os contratos/créditos cedidos, mais fácil será seu agrupamento para posterior securitização. É bem mais simples a cessão dos créditos ou contratos, no caso de contratos por adesão ou contratos-tipo: não há necessidade de análise de cada instrumento contratual individualmente para conhecer detalhes como a possibilidade de cessão, necessidade de aprovação ou mera notificação do cedido. (CAMINHA, 2007, p. 109-110). Em complemento, importante também trazer outros destaques: Tendo em vista que a realização de uma securitização depende da cessão de créditos de boa qualidade, estes devem não só ser pecuniários, mas, sobretudo, estar livres de litígios, condições ou ônus suscetíveis de comprometerem os fluxos de caixa da entidade cessionária destinados a pagar os investidores. Ademais, deverão ser vincendos, uma vez que, se já vencidos, se enquadrariam na categoria dos créditos inadimplidos e, portanto, de qualidade duvidosa. (CHAVES, 2006, p. 88). Desta forma, têm sido utilizados bens e direitos de diversas naturezas, inclusive aqueles advindos de receitas futuras, em projetos ainda a realizar, mas desde que sejam determináveis. Aliás, essa característica tem permitido, via securitização, a realização de projetos de interesse privado e público, que dificilmente seriam concebidos por financiamentos tradicionais. 1 Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação. 23 Em artigo veiculado pela Moody’s Inverstors Service (2003) encontram-se bem ilustradas diversas espécies de ativos passíveis de serem utilizados em uma securitização2 e, em linhas gerais, aponta para “qualquer fluxo-de-caixa, atual ou futuro, que é gerado por ativos, pode ser securitizado. À medida que o mercado de securitização vem crescendo e tornando-se mais sofisticado, a variedade de ativos que são securitizados tem aumentado.” Podem-se citar mais exemplos, como os a seguir: A securitização de recebíveis, portanto, corresponde a um processo de transformação de um conjunto de créditos presentes e futuros em garantia colateral ou em uma posição proprietária de um título especialmente criado com esse objetivo. Essa explicação ficará mais clara através de alguns exemplos: • é possível financiar investimentos de modernização de um porto que atua em exportações através da criação de uma empresa que opere essa área do porto que será modernizada e retenha, para pagamento do investimento, as receitas líquidas obtidas com os embarques de exportação; é preciso provar que o projeto tem viabilidade econômica e que é auto financiável; • é possível sanear o passivo financeiro de curto prazo de uma empresa exportadora de “commodities” através de uma operação de securitização de recebíveis de exportações desde que se consiga demonstrar com segurança a continuidade das exportações futuras e mostrar a viabilidade da empresa após o saneamento de seu passivo financeiro com o aporte de dinheiro obtido através da operação de securitização. • é possível alongar os passivos de curto prazo e baratear os custos financeiros de uma indústria química ou farmacêutica securitizando de modo rotativo seus recebíveis ou seus contratos de longo prazo. A securitização de recebíveis é um meio para o Brasil se tornar mais competitivo face à globalização e seus desafios, tais como a criação de empregos e ganhos de produtividade. É também um instrumento de engenharia financeira que ajuda a baixar as taxas de juro via desintermediação financeira. (EFC, 2005). Esse trecho revela-se interessante não apenas por confirmar as várias facetas do que já foi exposto, mas inovar no quesito segurança e proteção dos investidores. Conforme revela, nas operações de securitização um dos aspectos mais relevantes é a proteção daqueles, de forma que sua realização depende de criteriosas análises financeiras, a apontar para sua viabilidade. Afinal, o que também se encontra em discussão é a proteção da economia popular. Uma das formas de revestir a operação de segurança e transparência se dá pela utilização das chamadas agências de classificação de risco, ou agência de rating. 2 Exemplifica com créditos originados de leasings, tais como: de aeronaves, autos, equipamentos, containers marítimos, chassis, vagões. Apontam, ainda, para diversos financiamentos: autos, barcos, giro de concessionários, casas pré-fabricadas transportáveis e hipotecários. E, mais, ativos advindos de recebíveis de cartões de crédito, fluxo de royalties, stranded utility costs (compensações financeiras por custos incorridos pelas Distribuidoras de Energia Elétrica devido a mudanças regulatórias nos EUA). 24 A classificação de riscos tornou-se mais conhecida no âmbito nacional nos últimos anos, mormente a partir de 2001, quando se discutiu o risco-país e as conseqüências da majoração ou minoração de sua pontuação. De fato, a terminologia é utilizada quando se pretende a profunda análise de um mercado ou de uma empreitada. Especificamente no âmbito das securitizações essa análise é crucial, de forma, mesmo, a avaliar a viabilidade do escopo almejado. Para uma adequada classificação de risco, os mais diversos aspectos são considerados, como a seguir se demonstra: Ora, ao se considerar o início de um investimento ou de uma atividade econômica, uma série de análises e decisões são feitas com o objetivo de determinar as características necessárias, ou mínimas, para que tal investimento ou atividade seja considerado desejável e atrativo para aquele que irá promovê-lo (o investidor). Independente de sua modalidade (investimento direto, no mercado de ações, instalações de uma subsidiária em outro país, financiamento etc.), o processo decisório de um investimento envolve um grande número de ponderações que variam desde o tempo necessário para recuperar o investimento feito e o início de obtenção de lucros, a obstáculos culturais que poderão ser enfrentados por investidores em outros países. Outros elementos de consideração podem, ainda, ser elencados, tais como cronogramas de implementação a serem cumpridos; custos inerentes à concretização do projeto; existência de fundos próprios ou possibilidade de obtenção de financiamentos de terceiros; riscos legais (tais como questões de ordem tributária, trabalhista e ambiental que decorram da realização do investimento); planos de contingência, garantias; ambiente regulatório do local em que a atividade será realizada; forma de operacionalização do projeto; impactos para a imagem do investidor; riscos comerciais ou inerentes ao negócio em que se traduz o investimento. Dependendo das circunstâncias específicas, os fatores acima referidos e mesmo outros, podem trazer um ônus maior ou menor para o sucesso do projeto, influindo diretamente na possibilidade de o mesmo ser realizado ou não. (BRÍGIDO, 2004, p. 164-165). Percebe-se, assim, que em se tratando da negociação no mercado secundário esses aspectos ganham ainda maior importância, face à hipossuficiência de informações com que muitas vezes se apresenta o investidor, o qual simplesmente confia que essa avaliação foi feita, acreditando que há fiscalização da atividade e, portanto, tratar-se de uma aplicação segura ou, quando menos, com riscos muito bem definidos. Nesse mercado, o objeto final a ser alcançado é a qualidade do crédito envolvido na securitização, razão pela qual todo e qualquer aspecto que possa influir na qualidade desse crédito será considerado. O autor retro mencionado, após citar comentários da Moody’s, uma das maiores agências de risco do mercado mundial, e destacar a importância de uma correta análise de um empreendimento, assevera: 25 Essa passagem mostra, também, a importância que um rating apresenta para a parte que receberá o investimento (como o mutuário em um empréstimo bancário). Um investimento com bom rating poderá, por exemplo, apresentar uma taxa menor de juros ou, então, tornar desnecessária a prestação de garantias de mesma qualidade das que seriam solicitadas caso o rating da operação em questão fosse inferior. Prevalece, assim, a máxima de que quanto menor o risco de um investimento, menor seu custo. [...] O tomador de recursos poderá, inclusive, adaptar a estrutura originalmente pretendida para um financiamento com o escopo de atingir um rating (ou nível de risco) considerado aceitável para aquele que disponibilizará os recursos financeiros. (BRÍGIDO, 2004, p. 170). A classificação de risco não representa uma garantia, mas certamente se trata de importante etapa na formação de decisão sobre a escolha de um investimento. Na securitização de créditos a classificação de riscos é obrigatória, conforme se infere, por exemplo, da Instrução nº 404 da Comissão de Valores Mobiliários, de 13 de fevereiro de 2004, que em seu art. 3º, inc. II, alínea “c”3, para salvaguardar “o interesse público, a adequada informação e a proteção ao investidor”, exige, dentre outros requisitos, a apresentação de “relatório elaborado por agência classificadora de risco em funcionamento no país”. E, mais, na mesma Instrução, em seu Anexo I, dispõe a Cláusula V, alínea “n”4, a obrigação da securitizadora em “manter contratada agência classificadora de risco para atualização do relatório apresentado por ocasião da colocação de debêntures, até o vencimento das debêntures;”. Vale dizer, a avaliação dos riscos é feita de forma constante, já que a inicialmente feita pode sofrer modificações, a demandar renegociações ou acréscimos de outras garantias hábeis ao pagamento dos valores mobiliários. Para melhoria da classificação do risco de determinada securitização, além da adequada formalização de sua estrutura, há outras medidas que podem ser tomadas pela formação das chamadas garantias colaterais ou reforço de crédito, que também protegem os investidores contra eventuais perdas dos ativos-base. 3 IN nº 404 CVM, art. 3º. A CVM poderá, a seu critério, e sempre observados o interesse público, a adequada informação e a proteção ao investidor, deferir o registro de distribuição de Debêntures padronizadas mediante análise simplificada dos documentos e das informações submetidas, desde que, cumulativamente, o pedido de registro: [...] II – esteja instruído com: [...] c) relatório elaborado por agência classificadora de risco em funcionamento no País; 4 IN nº404 CVM, ANEXO I, Cláusula V – DAS OBRIGAÇÕES ADICIONAIS DA EMISSORA A EMISSORA está adicionalmente obrigada a: [...] n) manter contratada agência classificadora de risco para atualização do relatório apresentado por ocasião das debêntures, até o vencimento das debêntures; e” 26 Estas garantias podem se dar tanto no âmbito interno da operação, vale dizer, prestadas pela própria originadora, como no âmbito externo, por terceiros. Exemplo dessa última se verifica na contratação de seguro. Das primeiras, tem-se a “sobre-colaterização” ou “supercolaterização”, que consiste no fornecimento, pela originadora, de uma quantidade de ativos maior em relação aos valores mobiliários emitidos, de forma que “se o fluxo-de-caixa gerado pelos ativos securitizados é menor do que o esperado, o fluxo-de-caixa gerado pelo colateral adicional fica disponível para absorver as perdas.” (MOODY’S, 2003). Entretanto, certamente que essas medidas, em especial as de âmbito externo, oneram a operação. 2.3.2 Da sociedade de propósito exclusivo A nomenclatura sociedade de propósito específico advém da tradução do modelo norte-americano special purpose company. Críticas foram feitas na medida em que toda sociedade empresária possui objeto delimitado e, assim, não designaria de forma adequada o seu propósito. Em decorrência disto, há os que prefiram a utilização das expressões sociedade de propósito exclusivo, sociedade de objeto exclusivo ou, ainda, veículo de propósito exclusivo. Em se tratando de operação de securitização, a constituição de uma sociedade de propósito exclusivo poderia se dar, em princípio, observando-se quaisquer dos tipos societários previstos no Código Civil. Todavia, é comum a utilização da sociedade anônima, seja pelo fato de assim determinar o normativo pátrio, conforme a natureza do crédito, seja por ser essa sociedade a única hábil a emitir debêntures, valor mobiliário muito utilizado. É o que se dá, por exemplo, por força da Resolução nº 2.686, de 27 de janeiro de 2000, do Conselho Monetário Nacional (CMN)5, que “Estabelece condições para a cessão de créditos a sociedades anônimas de objeto exclusivo e a companhia securitizadoras de créditos imobiliários”, e impõe a constituição da sociedade sob a forma de uma sociedade anônima, para utilização de créditos financeiros. Nesse sentido: 5 Essa determinação já se encontrava prevista desde a Resolução nº 2.026 de 26/11/1993, revogada pela Resolução nº 2.493 de 08/05/1998, que por sua vez foi revogada pela Resolução nº 2.686 de 27/01/2000, todas do CMN. 27 A empresa, que se dedicará a operacionalizar a securitização será, necessariamente, constituída sob a forma de sociedade anônima, constando de sua denominação, a expressão Companhia Securitizadora de Créditos Financeiros, tendo objeto social exclusivo, isto é, dedicado apenas aos procedimentos, aqui comentados, nos moldes das Special Purpose Companies (SPC) do direito norte-americano. (PENTEADO JR., 1998, p. 122). A constituição de uma sociedade de propósito exclusivo tem sido muito utilizada no Brasil na pretensão de buscar a segregação de parcela do patrimônio de determinada pessoa para consecução de um objetivo específico. Não obstante a polêmica que envolve a formação de patrimônio separado ou de afetação, o que será abordado posteriormente, essa expectativa apresenta-se relevante na securitização de créditos para a conseqüente redução do risco que, de outra forma, em muito prejudicaria a operação. Nesse sentido, tem-se: Outro princípio essencial da securitização repousa na perspectiva de segregação do risco empresarial e negocial da originadora, em face dos créditos que cede, no sentido de que, uma vez cedido o lastro para a securitizadora, não deve remanescer nenhum vínculo jurídico entre a securitizadora e a originadora, em relação aos créditos cedidos; [...] Essa separação entre securitizadora e originadora, na verdade, é de ordem patrimonial e de risco da própria atividade da instituição, vale dizer, os investidores, titulares dos valores mobiliários, lastreados nos créditos, não se sujeitam – em tese – aos eventos que se relacionem a aspectos ligados a oscilações do patrimônio da originadora e nem de intervenções ou liquidações; nesse sentido, deflui da legislação que cuida desses atos interventivos do Banco Central, bem assim da praxis, em relação aos casos concretos, que as empresas não financeiras, associadas a grupos financeiros não são atingidas ou comprometidas, diretamente, por essas ações. (PENTEADO JR., 1998, p. 121). Justamente pela importância da efetiva segregação patrimonial na operação de securitização é que nos Estados Unidos utiliza-se a figura do trust, própria do ordenamento jurídico dos países de tradição anglo-saxônica, que apresenta diversas vantagens quando comparado às possibilidades existentes nos países de tradição romano-germânica. Quanto às peculiaridades do trust, primeiro alarde dos problemas a serem enfrentados neste trabalho, se tratará mais adiante. Por ora, e em curtas linhas, cabe apresentálo da seguinte forma: O “trust” é instituto oriundo do Direito anglo-americano, utilizado internacionalmente, que está bastante difundido e existe inclusive em diversos ordenamentos jurídicos de países da América Latina. Basicamente, o “trust” pressupõe a transferência fiduciária da propriedade da coisa, ou do direito, daquele que constitui o “trust”, designado “grantor” ou “settlor”, para as mãos do “trustee”. 28 O “trustee” recebe tal coisa ou direito com a obrigação de administrá-la em benefício, ou para uso e gozo de um terceiro, chamado “cestui que trust”. O “trustee”, embora possua a aparência de proprietário perante terceiros, em relação à coisa ou ao direito que lhe foi confiado, não pode usufruí-lo ex dominio. Não existe, portanto, possibilidade de confusão legal entre o patrimônio pessoal do “trustee” e aquele recebido “in trust for”, cada qual submetido a um regime jurídico próprio. (STUBER, 1989, p. 103). Nesses moldes, o settlor atua como originador e o trustee equivale à entidade de propósito exclusivo, sendo beneficiários os investidores. Na prática dos países de tradição anglo-saxônica o trust se presta às mais diversas finalidades e, conforme já é possível inferir do excerto retro transcrito, apresenta como maior característica a efetiva afetação do patrimônio transferido à finalidade almejada, o qual não se comunicará com nenhuma futura e eventual dívida do settlor ou do trustee. Ademais, tendo em vista as peculiaridades de que se reveste, a realização de um trust confere ao trustee apenas parcela dos direitos de propriedade, necessários ao cumprimento do seu múnus, não encontrando idêntica peculiaridade nos institutos oriundos do sistema romano-germânico. Em outras palavras, constitui-se uma dupla propriedade sobre um mesmo bem ou conjunto de bens, mas sem que tal represente um condomínio, por exemplo. A base desses entraves para uma eficiente formatação jurídica na realização da securitização de crédito no Brasil pode ser traduzida nas seguintes palavras: No Brasil, seja pela não aceitação do regime de dupla propriedade, pela forma incipiente com que o patrimônio de afetação ainda é tratado ou pela ausência de instrumentos eficazes de controle e fiscalização do trustee por parte do Judiciário, o trust não foi adotado no âmbito da securitização nacional. Assim, outro caminho não restou aos engenheiros do mercado de capitais senão buscar alternativas que proporcionassem vantagens análogas àquelas conferidas pelo trust. Foi assim que surgiram as sociedades de propósito específico e, posteriormente, os fundos de investimento em direitos creditórios, chamados neste trabalho de entidades de propósito específico. (CAMINHA, 2007, p. 143) Não obstante, a sociedade de propósito exclusivo deverá ser constituída, devendo seu objeto restringir-se à aquisição de créditos e respectiva emissão de valores mobiliários garantidos por aqueles. Essa exclusividade visa também à garantia da operação, evitando-se a possibilidade da securitizadora apresentar dívidas oriundas de outros negócios. Tal representa maior segurança aos investidores e também à própria originadora, que não corre o risco de ver os ativos cedidos se perderem antes do efetivo recebimento da quantia pactuada na cessão. A sociedade de propósito exclusivo não pode contar com qualquer outra obrigação senão a de receber créditos e realizar os respectivos pagamentos, inclusive das despesas geradas na operação, não buscando lucro. 29 Verifica-se, assim, que a “existência da securitizadora e o objetivo da operação de securitização vinculam-se à antecipação em favor da instituição originadora dos montantes correspondentes aos recebíveis de que esta dispõe, não sendo concebida a securitizadora como um fim em sim mesmo” (PENTEADO JR., 1998, p. 121). No Brasil, outro sério problema às securitizações adveio da alta carga tributária aplicada às sociedades de propósito exclusivo. Como alternativa, cuidaram os próprios órgãos reguladores, em especial o Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários, de buscar outras vias, culminando na utilização de fundos de investimento, mas que em nada desnaturaram a estrutura em comento. A idéia de utilização de fundos de investimento não é nova, já tendo sido utilizada em outras operações, sendo que na securitização há países que a prefiram, como é o caso da França. Esse panorama e algumas questões que envolvem os fundos de investimento encontram-se descritos na seguinte passagem: O Direito Brasileiro consagra a existência dos fundos, tanto na área comercial e financeira, como na Administração Pública. O Fundo é patrimônio com destino específico, abrangendo elementos ativos e passivos vinculados a um certo regime, que os une, mediante a afetação dos bens a determinadas finalidades, que justifique a adoção de um regime jurídico próprio. Na terminologia jurídica, o conjunto de bens com regime próprio pode constituir uma universalidade de direito (universitas juris), quando prevista em lei, ou uma universalidade de fato (universitas facti), quando decorrente de situações fáticas. [...] Os Fundos do Mercado de Capitais não têm personalidade jurídica e os de Direito Público podem tê-la ou não conforme determinar o diploma legal que os constituiu. Mas já existe ampla regulamentação que, nos últimos vinte e cinco anos, admitiu, tanto no Brasil, como no Exterior, que os fundos do mercado de capitais tivessem patrimônio e capacidade processual, sem atribuir-lhe, todavia, personalidade jurídica, constituindo, assim, uma forma especial de condomínio, diferente do comum previsto pelo Código Civil. (WALD, 1990, p. 81) E assim tem sido, reconhecendo-se os fundos como um condomínio de natureza especial, dotado de patrimônio e contabilidade próprios, assim como de representação em juízo, ainda que não possua, efetivamente, personalidade jurídica. No Brasil existem duas espécies de fundos de investimento, quais sejam; os fundos de investimento imobiliários, tendo suas cotas lastreadas em bens e direitos de natureza imobiliária, e os fundos de investimento em direitos creditórios. Natália Cristina Chaves (2006) lembra que pela utilização dos fundos, por serem desprovidos de personalidade jurídica, não há incidência de Programa de Integração Social (PIS), do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP), da 30 Contribuição para Seguridade Social (COFINS), da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e IOF. Mas a operação na qual se encontra inserido é a mesma daquela outra. Vale dizer, tornou-se opção hábil em uma securitização de crédito, como se colhe: A bem da verdade, as operações de securitização de recebíveis e aquelas envolvendo fundos de investimento em direitos creditórios são praticamente idênticas. Em ambos os casos, há uma sociedade que originou direitos creditórios em operações com seus clientes (venda de mercadorias, prestação de serviços etc.), cedendo estes direitos para uma outra entidade, que irá colocar valores mobiliários por ela emitidos junto ao público, e pagar a originadora pelos direitos que adquiriu com os recursos captados no mercado. A diferença está em que, nas operações de securitização, é a sociedade de propósito específico, uma sociedade anônima, quem recebe os direitos e capta recursos, para pagá-los, no mercado, através da colocação de valores mobiliários de sua emissão. E, nos casos dos fundos de investimento em direitos creditórios, o fundo, vale dizer, um condomínio, desempenha o papel de sociedade de propósito específico. (FAGUNDES, 2003, p. 104). Trata-se, portanto, de estrutura alternativa para a realização da securitização. Todavia, se por um lado resta minorado o impacto tributário da operação, há outros inconvenientes na utilização dos fundos, como, por exemplo, o fato das cotas dos fundos de investimentos não serem valores mobiliários com ampla utilização no mercado de capitais, ao contrário das debêntures emitidas por sociedades securitizadoras. É o que alerta o retro citado autor, acrescentando que “a adoção de uma ou de outra estrutura financeira dependerá das especificidades de cada caso concreto” (FAGUNDES, 2003, p. 105). Em ambas as formas se mantém a discussão sobre o aspecto elementar da operação, da capacidade que dela se espera em relação à afetação dos ativos cedidos, tal como se dá no modelo norte-americano, alcançado pela utilização do trust. Sobre o tema, veja-se o quanto segue: A situação do Fundo, no Direito brasileiro do mercado de capitais se explica, pela influência que o Direito norte-americano exerceu sobre a nossa legislação do Mercado de Capitais, ensejando a consagração, tanto na Lei das Sociedades Anônimas, como nas demais normas sobre mercado de capitais, de institutos novos, destacados do nosso Direito Civil e Comercial tradicional, como são o Fundo e o agente fiduciário, e ensejando assim a entrada, na prática legislativa e regulamentar brasileira, de figuras análogas ao trust existente no Direito anglo-saxão. Por outro lado e num movimento paralelo, a Jurisprudência tem discutido e reconhecido a existência e a importância crescente dos chamados “negócios fiduciários”, entendendo que defluem das declarações ou manifestações dos indivíduos e do princípio contratual básico da autonomia da vontade, não necessitando de normas legais específicas para que sejam reconhecidas a sua validade e legitimidade. (WALD, 1990, p. 18). 31 Em síntese, estes são os modelos utilizados como sociedade de propósito exclusivo, nas operações de securitização de créditos realizadas no Brasil. 2.3.3 Da cessão de crédito Um dos aspectos mais importantes da securitização encontra-se na adequada realização da cessão dos créditos que servirão de lastro à emissão dos valores mobiliários. Afinal, é através dela que se transferem os ativos da originadora à securitizadora (SPE) e, outrossim, transfere-se a relação jurídica existente com os devedores deste crédito. A cessão de crédito é tratada no Código Civil de 2002 no capítulo das obrigações, nos arts. 286 a 298, não apresentando diferenças relevantes em relação à redação dos arts. 1.065 a 1.077 do Código Civil de 1916, podendo ser definida do seguinte modo: Chama-se cessão de crédito o negócio jurídico em virtude do qual o credor transfere a outrem a sua qualidade creditória contra o devedor, recebendo o cessionário o direito respectivo, com todos os acessórios e todas as garantias. É uma alteração subjetiva da obrigação, indiretamente e realizada, porque se completa por via de uma trasladação da força obrigatória, de um sujeito ativo para outro sujeito ativo, mantendo-se em vigor o vinculum iuris originário. Difere da novação e do pagamento como sub-rogação (v. ns. 162 e 159), em que não opera a extinção da obrigação, mas, ao revés, permanece esta viva e eficaz. Apenas, a soma dos poderes e das faculdades inerentes à razão creditória, sem modificação no conteúdo ou natureza da obligatio, deslocam-se da pessoa do cedente para a daquele que lhe ocupa o lugar na relação obrigacional. (PEREIRA, 1995, p. 253-254). Portanto, não há extinção ou modificação do conteúdo da obrigação e também não cria “nova relação jurídica, transmitindo apenas a antiga ao terceiro cessionário.” (FIUZA, 2008, p. 360). Como regra, todos os créditos ou direitos obrigacionais são transmissíveis, “pois em princípio todos são suscetíveis de mutação, como qualquer elemento integrativo do patrimônio. Por exceção, e somente por exceção, será defesa.” (PEREIRA, 1995, p. 256). Não obstante, “em relação a alguns deles, a própria natureza da obrigação, as determinações legais ou a convenção existente entre as partes excluem a transmissão.” (WALD, 1995, p. 155). Dentre as proibições legais têm-se aquelas que não possuem conteúdo exclusivamente patrimonial, como, por exemplo, o pátrio poder e as obrigações de natureza personalíssima, como o direito a alimentos. Já pela natureza da obrigação, veda-se a cessão apenas dos acessórios, sem a transferência do principal. 32 Os créditos a serem cedidos podem ser das mais variadas naturezas, desde que tenham aptidão de gerar renda, podendo mesmo tratar-se de crédito futuro. A antiga celeuma quanto à possibilidade de cessão de crédito futuro restou encerrada, uma vez que o atual Código Civil, em seu art. 1046, tornou possível tal realização, desde que o objeto desse negócio jurídico seja determinável. Para a validade da cessão em relação a terceiros, assim entendidos todos aqueles que não participaram de sua realização, incluindo-se, portanto, o devedor e quaisquer outros, deve ser observada sua forma, assim como a notificação do devedor. A cessão pode se dar por instrumento particular, salvo se versar sobre crédito que, por sua natureza, demande forma pública, como no caso de crédito hipotecário. Assim, se realizada por instrumento particular, deve ser levada a registro, garantindo a devida publicidade ou, segundo parte da doutrina, a própria validade. Outra questão relevante da cessão de crédito encontra-se na notificação do devedor, tal como determina o art. 2907 do Código Civil, dando-lhe ciência do negócio jurídico realizado entre cedente e cessionário, vinculando-o a ela. Embora não seja obrigatória para a viabilidade da cessão, as implicações dessa medida são extremas tanto para aquele quanto para este último, como se verifica: A notificação marca, assim, um momento de singular importância, por duas razões. a) Até sua ocorrência o devedor pode validamente resgatar o seu débito, pagamento ao credor primitivo (CC, art. 1.071, 1ª parte); mas, desde o instante em que foi intimado da transferência do crédito, não mais lhe é facultado fazê-lo, pois que a notificação tem o condão de ligá-lo à nova relação jurídica. b) No instante em que é notificado, o devedor pode opor, tanto ao cedente, como ao cessionário, as exceções que lhe competirem; assim sendo, poderá alegar que já pagou a dívida, que ela se compensou, ou a existência de vícios, tais como o erro, dolo ou coação. Se o não fizer nesse momento, não poderá fazê-lo mais tarde, porque seu silêncio equivale à anuência com os termos do negócio e revela seu propósito de pagar ao cessionário a prestação objeto da cedência. (RODRIGUES, 1995, p. 303). Cumpre advertir que tais oposições por parte do devedor, que devem obrigatoriamente ser aduzidas tão logo seja notificado, se referem tão somente às exceções pessoais que pudesse ter contra o credor primitivo. Mas, em relação ao cessionário, a questão é outra, como melhor elucidado a seguir: 6 Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: (...) II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; Art. 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita. 7 33 Já em relação ao cessionário, as exceções a este oponíveis podem ser argüidas a todo tempo (De Page), isto é, tanto no momento da cessão, ou de sua notificação, quanto no em que o cumprimento lhe seja exigido, porque o cessionário, substituindo o credor primitivo, se apresenta ao devedor com a qualidade creditória, a que pode ser oposta qualquer exceção, na faculdade reconhecida a todo devedor de argüi-la contra a pretensão de seu credor. Não pode, porém, opor ao cessionário de boa-fé a simulação do cedente (Anteprojeto de Código de Obrigações, art. 169). (PEREIRA, 1995, p. 265). A cessão também pode se dar em relação a contratos, sendo que o principal inconveniente dessa forma se sujeita à expressa anuência do outro contratante, enquanto na cessão de créditos torna-se necessária tão somente a notificação. Quanto aos efeitos da cessão em relação ao cedente e ao cessionário, um diz respeito à transferência da relação jurídica e, outro, em relação à garantia do negócio. Conforme já anunciado linhas atrás, a cessão opera a trasladação do vínculo obrigacional a todas as suas características, vale dizer, o cessionário “recebe o crédito como se achar, com todas as suas vantagens (acessórios e garantias) e desvantagens (prescrição etc).” (FIUZA, 2008, p. 362). Entretanto, quando menos, o cedente é obrigado pela existência da dívida à época do negócio, pela realidade do crédito transferido naquele exato momento (veritas nominis), não respondendo pela solvência do devedor (bonitas nominis). É o que se extrai da literalidade do art. 2958 do Código Civil, o qual encontra adequada análise no seguinte trecho: Note-se que o cedente responde pela existência do crédito e não pela solvabilidade do devedor. Isso decorre da própria natureza desse tipo de ato, pois a cessão a título oneroso é negócio especulativo. Aquele que adquire um crédito paga, no geral, menos que o seu valor nominal, procurando um proveito; o preço variará, mesmo na razão direta da maior ou menor facilidade ou perspectiva de receber o principal. Existe uma álea no empreendimento, que o cessionário enfrenta: a busca do lucro. Se o cedente ficasse responsável pelo risco, tal álea inexistiria. Portanto, e quando nada se estipulou, no negócio de cessão o cedente só garante a existência do crédito, não a solvabilidade do cedido. (RODRIGUES, 1995, p. 305). Mas há a hipótese do cedente e cessionário estipularem o contrário, ou seja, a responsabilidade pela solvência do devedor. Nesse caso, importantes são os apontamentos feitos pelo autor retro mencionado, a demandar as devidas limitações dessa hipótese, prevista atualmente no art. 2969 do Código Civil, sob pena de desnaturar as características peculiares a uma cessão de crédito: 8 Art. 295. Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé. 9 Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor. 34 Todavia, podem as partes avençar que o cedente responde também pela solvabilidade do devedor (CC, art. 1.074). Entretanto, a menos que haja estipulação em contrário, deve-se entender que o ajuste envolve duas limitações. a) O cedente garante apenas a solvabilidade do devedor no instante da cessão. Não se torna um coobrigado, um avalista, e só responderá pela dívida que o cedido não resgatou, se ficar demonstrado que, ao tempo da cessão, este já era insolvente. b) No caso do cedente se responsabilizar pela solvência do devedor, a lei só o obriga a responder até a concorrência da importância que houver recebido, acrescida dos juros e despesas da cessão e as que o cessionário houver feito com a cobrança (CC, art. 1.075). Tal regra se funda na idéia de que, no momento em que o cedente garante a solvabilidade do devedor, o negócio deixa de ser aleatório, não mais se justificando, por parte do cessionário, um lucro desmerecido, só cabível com remuneração de um risco. Se o cessionário percebesse um proveito, sem qualquer risco, ocorreria enriquecimento sem causa. De sorte que o legislador apenas o poupa de um prejuízo, ao ordenar o reembolso. Aliás, tal norma se inspira também no propósito de combater a usura. Sem ela o cessionário emprestaria impunemente dinheiro à taxa usurária, pois compraria barato créditos inseguros, recebendo a final a totalidade dos mesmos, quer do devedor cedido, quer do cedente. (RODRIGUES, 1995, p. 305-306). O Código Civil traz ainda a hipótese da penhora do crédito (art. 29810), vedando sua transferência pelo credor que dela conhecer. Entretanto, se operada a cessão e vier a ocorrer futura penhora ou futura perda judicial do crédito, decorrente de causa anterior à realização da cessão, também nessa hipótese remanesce a responsabilidade do cedente pela existência do crédito, já que “a sentença proferida posteriormente, mas fundada em causa preexistente, opera como se ao tempo da cessão já não mais houvesse aquele.” (PEREIRA, 1995, p. 263). No presente trabalho apenas se buscou apontar para as questões relativas à cessão que guardam pertinência com uma securitização de crédito. E, de tudo quanto foi exposto, revela-se que apesar da causalidade inerente aos créditos cedidos permanecer hígida em relação aos seus devedores, tal se justifica pela busca de um efeito mais benéfico, com a cessão à SPE, relativo à minoração dos riscos próprios da atividade geral da originadora. A bem da verdade, as características dos créditos cedidos, umbilicalmente ligados ao negócio realizado entre devedores e originador cedente, assim como a possibilidade de inadimplência daqueles, são sempre objeto de avaliação pelas empresas de rating, de forma a classificar o risco e fixar o preço da cessão. Ademais, esses riscos em relação a alguns dentre inúmeros devedores restam diluídos, sem comprometer a operação em seu todo. Mas, em relação à originadora-cedente, a cessão a uma SPE representa a esperada redução dos riscos para os investidores, o que não ocorreria caso a emissão de títulos se desse pela própria originadora. Afinal, pela cessão a uma sociedade de propósito exclusivo busca-se 10 Art. 298. O crédito, uma vez penhorado, não pode mais ser transferido pelo credor que tiver conhecimento da penhora; mas o devedor que o pagar, não tendo notificação dela, fica exonerado, subsistindo somente contra o credor os direitos de terceiro. 35 o efeito próprio da segregação desses ativos cedidos, de tal forma que quaisquer dívidas da originadora não poderão, em tese, encontrar satisfação nesses mesmos ativos. É o que destaca também o referido trecho: Tal efeito não seria possível caso a própria originadora emitisse os títulos ou valores mobiliários aos investidores, ainda que com garantia real correspondente ao penhor dos aludidos créditos. Isso porque, numa eventual falência daquela, os créditos que serviram de garantia aos títulos emitidos poderiam ser desvinculados destes para, no procedimento concursal, satisfazer aos credores com prioridade legal sobre os investidores. Destarte, os investidores estariam sujeitos a não receberem da originadora o valor decorrente do resgate dos seus títulos ou valores mobiliários. (CHAVES, 2006, p. 92). Essa importância também é ressaltada abaixo, com ênfase na efetiva transferência dos ativos, na busca da formação do patrimônio separado e consequente garantia dos investidores: Apesar de não ser o instrumento mais adequado à circulação de riquezas, a cessão de crédito tem papel fundamental na fase inicial da securitização. No momento da estruturação da operação, é normalmente por meio desse tipo de negócio jurídico que é segregado o patrimônio que servirá de lastro para a emissão. Nessa fase, a cessão se torna eficiente, pois a operação não envolve um número grande ou indefinido de partes. A cessão é feita do originador ao VPE. A transferência dos ativos é o cerne da securitização, sendo ela o seu diferencial em relação a emissões simples de valores mobiliários. A segregação é o elemento delimitador do patrimônio que garante o crédito dos adquirentes dos títulos emitidos na securitização. É a transferência que vai restringir os ativos que respondem pelo pagamento da remuneração e resgate dos títulos, e também vai separar tais ativos do patrimônio geral do originador, de forma a protegê-lo de eventuais credores. É de suma importância, assim, que essa transferência se dê de forma efetiva, e não apenas virtual. Para reforçar a segurança da operação, os ativos devem realmente deixar o domínio do originador e passar ao emissor. (CAMINHA, 2007, p. 79-80). Percebe-se, assim, que a cessão de crédito a uma sociedade de propósito exclusivo se dá na busca da segregação patrimonial dos ativos em relação ao patrimônio geral da originadora. Para tanto, imprescindível que se cumpram todas as formalidades previstas no Código Civil, a garantir a validade do negócio, o que, por outro lado, representa um relevante custo adicional. Em uma securitização o montante dos ativos cedidos é elevado e, de igual forma, a quantidade de notificações que se deve realizar. Ademais, por diversas vezes novas cessões ocorrem no curso da operação, sendo que o cumprimento dessas formalidades dificultam o seu fluxo, que deve ser dinâmico. Tanto essa elevação dos custos, quanto a obrigatoriedade de cumprimento das formalidades, apresentam-se problemáticas em uma securitização de créditos. 36 2.3.4 Dos valores mobiliários Apesar das minúcias relativas à emissão dos valores mobiliários pela sociedade de propósito específico não se encontrarem dentre os aspectos da securitização de crédito que no presente trabalho se pretende enfocar, ainda assim é recomendável sucinta abordagem sobre os mesmos, seja para permitir a visualização da operação em sua íntegra, seja, principalmente, para destacar a importante discussão que se esconde por detrás de sua conceituação, relativa à necessidade de fiscalização estatal. Curioso apontar que a realidade do mercado vem demandando adaptação dos próprios títulos de crédito, na medida em que novas tecnologias, com intensificação de utilização da internet nas operações bancárias e na bolsa de valores, demandam formas ainda mais ágeis na circulação de riquezas. Não à toa que desde o Projeto de Código Civil alguns doutrinadores sugeriram o trato da matéria, inclusive no que diz respeito à descartularização. Os valores mobiliários apresentam diversas características dos títulos de crédito, já que ambos buscam a circulação célere e segura de riquezas, sendo apontados por alguns como espécies destes. Aliás, essa similitude decorre da conveniência de se utilizar o mesmo sistema de circulação dos títulos de crédito, mormente no que se refere à circulação, legitimação e titularidade, o que terminou pela utilização de alguns títulos de crédito como valores mobiliários, apesar de conceitualmente diferentes. A característica mais marcante, a diferenciar uns dos outros, refere-se à bilateralidade do negócio, comum na emissão de títulos de crédito no comércio, mas quando se trata de emissão de valores mobiliários há uma circulação em massa no mercado, de forma indiscriminada, para um público indeterminado. É o que se dá, por exemplo, com as notas promissórias comerciais ou commercial papers, títulos de crédito utilizados como valores mobiliários. Os valores mobiliários possuem alguns requisitos específicos, inclusive sua vinculação a pessoa jurídica que o emitiu. O que se busca é a maior segurança, a demandar a fiscalização estatal, conforme se destaca: De acordo com Ary Oswaldo Filho, o conceito de valor mobiliário se impõe, e é mesmo necessário para a demarcação da legislação a ele inerente. Da mesma forma, o seu conceito é necessário para delimitar o campo de atuação do governo para regular a área ligada à capitalização de empresas e o acesso à poupança pública. Assim, para o autor, a conceituação de valor mobiliário não é simplesmente formal, 37 mas serve para “delimitar o campo de atuação dos órgãos do Poder Executivo Federal encarregados de normatizar e incentivar o seu uso”. (CAMINHA, 2007, p. 94). Essa fiscalização é exercida pela Comissão de Valores Mobiliários e, em alguns casos, pelo Banco Central. Esse problema conceitual do que pode ser considerado valor mobiliário não é novo, já tendo sido apontado há décadas, dada sua extremada importância. Afinal, estabelecido esse conceito, há necessária fiscalização para efetiva proteção do público investidor. No Brasil ocorreu inegável influência do sistema norte-americano. Neste, relativamente ao conceito de security ou securities, leis federais tratam do assunto, genericamente conhecidas como Securities Acts, praticamente idênticas, mas de forma deficiente, conforme destaca Luís Gastão Paes de Barros Leães, após citar a referida definição legal: O termo security compreende toda nota, ação, ação em tesouraria, obrigação, debênture, comprovante de dívida, certificado de direito em todo tipo de contrato de participação de lucro, certificado de depósito em garantia, parte de fundador, boletim de subscrição, ação transferível, contrato de investimento, certificado de transferência de direito de voto, certificado de depósito de títulos, co-propriedade de direitos minerários e petrolíferos, e, de uma maneira geral, todo o instrumento ou o direito comumente conhecido como security, ou ainda todo certificado de participação ou interesse, permanente ou temporário, recibo, garantia, direito à subscrição e opção referentes aos títulos e valores acima mencionados” A definição acima, desde logo, não nos satisfaz, por lhe faltarem os elementos fundamentais próprios de toda definição. [...] Ora, a definição legal acima transcrita de security desobedece a essas regras. Primeiro, não estabelece os “limites conceituais” do objeto definido: apenas enumera tipos da entidade designada pela definição. De resto, essa enumeração não é exaustiva: é puramente exemplificativa (numerus apertus). Ademais, com a expressão final: “or in general, any interest or instrument commonly known as security”, a definição inclui, no seu contexto, a própria coisa definida, agredindo uma das regras básicas da boa conceituação. Longe, pois, de fornecer a “essência” do conceito de security, o legislador se limita a enumerar, exemplificativamente, tipos que partilhariam de uma essência comum, de resto deixada indefinida. (LEÃES, 1974, p. 43-44). Essa deficiência demandou vários ajustes por parte dos tribunais norte-americanos que, paulatinamente, conforme o surgimento de casos inusitados, extraíram a essência daquilo a ser considerado security, ou valor mobiliário. Isso permitiu que, quando da análise de outras modalidades de negócios, fosse possível apontar para a existência, ou não, de uma security, especialmente nos esquemas que se apresentavam sob a forma de investment contract, ou seja, contrato de investimento. 38 O retro citado autor traz importantes passagens dessa evolução jurisprudencial. Lembra que em 1946 a Suprema Corte norte-americana apreciou um caso que passou a servir de base para as futuras depurações do sentido ali encontrado. Trata-se do caso Howey Company, no qual esta vendeu pequenos lotes de terra destinados ao plantio de frutas cítricas, existindo um anexo ao contrato de compra e venda que previa a prestação de serviços de plantio, cultivo e futura comercialização das frutas por empresa subsidiária da vendedora. Foram centenas as pessoas compradoras dos lotes. Entretanto, eram desprovidas de conhecimento técnico ou de equipamentos tendentes à realização da produção pretendida. Lado outro, não possuíam nenhum poder decisório ou gerencial em relação a esse escopo, cabendo a condução dos negócios exclusivamente ao esforço de terceiros ou à própria vendedora. Desta forma, o que existia em relação a essas pessoas, compradoras dos lotes, era apenas a expectativa de lucro advinda desse empreendimento comum, concluindo-se pela configuração de contrato de investimento e, portanto, security. Esse entendimento foi aplicado sucessivamente, sempre que presente a captação de recursos de forma generalizada, associada às características ali contidas. “O caso Howey fornecia, assim, pela primeira vez, uma definição de contrato de investimento, que, por uma curiosa operação de raciocínio, passou a ser a própria definição de ‘security’”. (LEÃES, 1974, p. 47). De fato, por sugerir a prevalência da realidade econômica sobre a forma empregada, extraiu-se desse caso o fator comum a definir, inclusive, as demais espécies de securities. Assim, através dessa “fórmula Howey”, como ficou conhecida, os tribunais estaduais e federais passaram a empregá-la na solução dos casos que lhes eram submetidos. É bem verdade que esse conceito foi depurado em alguns aspectos, com relevo no que diz respeito à captação dos recursos, que deve ser destinada ao público em geral, ou seja, possuir caráter público, e não uma captação de caráter privado, na qual fazem parte investidores específicos. Essa característica possui estreita relação com o acesso a informações e também quanto ao grau de ingerência no negócio a ser realizado. Na captação de caráter privado, como regra, há amplo acesso às informações por parte dos investidores, necessárias à análise do negócio, e também há a possibilidade de atuação direta na sua condução. Já nos investimentos de caráter público isso raramente se dá, principalmente no que se refere ao primeiro aspecto. Daí resultar uma das características mais marcantes da definição de security, qual seja, a passividade do investidor. 39 Mas disso não se deve extrair que com a aquisição de securities pelo público em geral foi outorgada a garantia de um efetivo resultado ou proveito econômico. Conforme também restou sedimentado pela construção norte-americana, a expectativa de lucro advinda da aquisição de um valor mobiliário traz ínsita a hipótese de perda do investimento, atributo essencial da noção de security. Em outras palavras, o investidor assume os riscos do negócio. Por outro lado, tendo em vista essa passividade característica do investidor, que não tem garantia ou direito absoluto ao retorno do capital empregado, tampouco ingerência sobre o negócio, o aspecto relevante que passou a ser enfrentado diz respeito ao acesso às informações relativas ao negócio, necessárias à tomada de decisões e, portanto, à proteção do público investidor contra esquemas fraudulentos. Daí a imposição de uma ampla regulação e fiscalização pelos órgãos governamentais, aos quais devem se submeter todas as ofertas ao público em geral, que serão previamente analisadas no momento de seu registro, o que não ocorre nos investimentos de caráter privado, pelas razões retro apontadas, por pressupor o pleno acesso de informações de seus partícipes quando da realização do negócio. Dentro dessa sistemática, os órgãos reguladores traçam as diretrizes necessárias e, mediante prévia avaliação e fiscalização, permitirão ou não a oferta de securities. A experiência norte-americana, agora no que diz respeito à regulação legal desse mercado, procurou impor o fornecimento das informações necessárias à tomada de decisões e assegurar que as mesmas sejam verdadeiras, de forma a permitir o livre arbítrio daqueles que buscam um investimento. “Não procura questionar a solidez do empreendimento, nem proibir o investidor de realizar uma má escolha, mas apenas e tão-somente fornecer-lhe informações pertinentes para exame. Sequer tenta assegurar que as informações sejam de fato examinadas pelo investidor.” (LEÃES, 1974, p. 56). Prestigiou-se, assim, acesso igualitário às informações relevantes para a tomada de decisões. Dada a extrema relevância do desenvolvimento do mercado de capitais, o Brasil passou a tomar as medidas necessárias à sua disseminação a partir de 1964, inspirado nas normas norte-americanas. O retro citado autor, após tecer todos esses esclarecimentos pertinentes à evolução do conceito e prática da emissão de securities nos Estados Unidos, termina por aconselhar que não se percam, no Brasil, as experiências desse país em que se pretende migrar o sistema de regulação dessa parte do mercado de capitais, como se colhe: 40 Tendo em vista que o objetivo das leis disciplinadoras do mercado de capitais é, à parte a sua carga estimuladora, proteger o público investidor dos mecanismos de captação da poupança, a construção jurisprudencial norte-americana, lentamente formulada, em torno da noção de security, livre de embaraços formais, e com largo elastério, constitui uma lição que não pode deixar de ser cogitada pelos intérpretes do direito brasileiro de mercado de capitais. Nesse sentido, parece-nos que o conceito de “títulos e valores mobiliários”, utilizado pelo legislador para traduzir a realidade econômica análoga, pode sofrer uma leitura generosa, tal como a interpretação desenvolvida nos EE.UU. em torno do termo security, que permita ao Banco Central do Brasil policiar deveras o mercado de valores, em sua expressão mais lata, fiscalizando todas as formas de captação de recursos da poupança popular. Certos tipos de loteamento popular, algumas formas de leasing e renting, planos de promoção de venda de tecidos, cestas de natal, automóveis, mercadorias várias subordinadas a carnês de poupança e sorteio, e até lotes de cemitérios, que, em nosso país, até agora, têm escapado da fiscalização do Banco Central, mas que revelam todas as características de solicitação pública de valores, devem ser examinados, a luz de critérios menos formalistas, visando a proteção do público investidor. Nesse ponto, como em muitos outros, o estudo comparado do sistema vigente na América do Norte e em nosso país pode lançar luzes esclarecedoras. (LEÃES, 1974, p. 60). Percebe-se, dessa forma, a importante tarefa na regulação do tema, que, de um lado, demanda o estímulo a investimentos, indispensável ao desenvolvimento econômico do país e, de outro, a necessidade de proteção à economia popular. O Brasil, por influência desse sistema, além da edição da Lei nº 4.728/65, que disciplina o mercado de capitais, terminou por criar a Lei nº 6.385/76, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários, da qual consta uma lista de valores mobiliários, passível de ser acrescida, a critério do Conselho Monetário Nacional. Várias críticas foram feitas em relação à adoção desse sistema, na medida em que os juízes pátrios não têm a mesma liberdade daqueles da common law para decidir o que poderia ser considerado um valor mobiliário, o que é imprescindível à própria fiscalização estatal. Apenas mais recentemente é que foram incluídos os contratos de investimento coletivo, bem como ampliado seu conceito, de forma a enquadrar um maior número de investimentos e criação de outros valores mobiliários, o que se deu através da Lei nº 10.198/01, publicada em 16/02/01, que dispõe: “Art. 1º. Constituem valores mobiliários, sujeitos ao regime da Lei n. 6.385, de 7 de dezembro de 1976, quando ofertados publicamente, os títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm de esforço do empreendedor ou de terceiros”. 41 No mesmo ano, através da Lei nº 10.303/2001, foi incluído o inciso IX11, no art. 2º da Lei 6.385/76, passando a ser considerado valor mobiliário títulos ou contratos de investimento coletivos ofertados publicamente, com direito a parceria, participação ou remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advenham do esforço de terceiros ou do empreendedor. Essa inovação quanto ao conceito de valores mobiliários, ainda que com atraso, proporciona maior estímulo ao mercado, já que permitirá o devido enquadramento de novos valores mobiliários conforme a necessidade e a criatividade do gênero humano assim determinem, mas, de igual forma, atribuirá a devida segurança aos investidores e à economia popular, fruto da fiscalização que será exercida. Feitos esses imprescindíveis esclarecimentos, importa informar que no Brasil há vários valores mobiliários ou títulos passíveis de serem emitidos em uma operação de securitização. Dentre eles, os de maior utilização são as debêntures, cotas de fundos de investimentos em direitos creditórios, notas comerciais (commercial papers) e os certificados de recebíveis imobiliários, sendo que as primeiras encontram-se em maior escala, podendo ser assim definidas: As Debêntures, também chamadas obrigações ao portador, são títulos de crédito causais, de emissão das sociedades anônimas, representando fração do valor de contrato de mútuo. Segundo a lei, a companhia poderá emitir Debêntures que conferirão aos seus titulares direito de crédito contra ela, nas condições constantes da escritura de emissão e do certificado. (COSTA, 2006, p. 491). Encontram-se tratadas nos arts. 52 a 74 da Lei nº 6.404/76, podendo haver mais de uma emissão, dividida em série, com valor igual em cada série, conferindo a seus titulares os mesmos direitos. Sua emissão pode ser privada ou pública, conforme as companhias possuam capital fechado ou aberto, respectivamente. Nas emissões públicas as empresas necessariamente deverão estar registradas junto à CVM, sujeitando-se às normas específicas para a realização da operação, tal como a intermediação a ser realizada por instituições integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários, conforme determina a Instrução nº 400/2003, que irão coordenar o procedimento e, com isso, estabelecer mais garantias aos investidores. 11 Lei 6.385/76, Art. 2º. São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: [...] IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros. 42 Nas emissões privadas, obviamente, não há necessidade de registro junto à CVM, justamente pelos aspectos elucidados acima, os quais podem ser confirmados também pela transcrição a seguir: Na emissão privada de debêntures é dispensado o registro na CVM, pois presume-se que os debenturistas tiveram acesso ao mesmo tipo de informações a que teriam em virtude do registro, não necessitando dessa proteção conferida aos investidores na hipótese de emissão pública. Aqui, a emissão apenas será comunicada à autarquia. (CHAVES, 2006, p. 110). Já os certificados de recebíveis imobiliários são verdadeiros títulos de crédito nominativos, criados pela Lei nº 9.514/97, e não propriamente valores mobiliários, muito embora possam ser também enquadrados como tal. Referida Lei será analisada mais adiante, tendo em vista sua relevância não apenas social, mas também no contexto da afetação patrimonial que instituiu. As cotas de fundos de investimento em direitos creditórios também passaram a ser utilizadas em considerável escala após sua regulamentação, contando com vantagens tributárias, tal como mencionado anteriormente. Compreendem duas classes: “a sênior, cujas cotas não se subordinam às demais para efeitos de amortização e resgate; e a subordinada, cujas cotas somente serão amortizadas e resgatadas após as cotas de classe sênior”. (CHAVES, 2006, p. 115). Por fim, as notas comerciais, ou commercial papers, encontram-se previstas no art. 2º, inc. VI, da Lei nº 6.385/76, incluído pela Lei nº 10.303/2001. Equivale a uma nota promissória, mas revestida de algumas peculiaridades, sendo vencível em prazo curto, o que acaba por restringir um pouco sua utilização. Deve circular mediante endosso em preto, do qual deve constar a expressão “sem garantia”. 2.3.5 Do agente fiduciário Tamanha a importância que o funcionamento adequado e seguro do mercado de capitais representa para qualquer país, várias medidas são impostas no que se refere à segurança dos investidores. Afinal, caso o mercado de capitais não seja devidamente regulado e efetivamente fiscalizado, não apresentaria esse requisito fundamental da segurança, não se tornando, consequentemente, alternativa atrativa. 43 O agente fiduciário, previsto não apenas para as operações de securitização12, tem por finalidade representar os interesses dos investidores. As pessoas autorizadas a exercer essas funções devem observar alguns requisitos, principalmente no que pertine à ausência de interesses conflitantes com o dos investidores, assim como total independência em relação aos administradores da securitizadora. Dentre os deveres a que se encontra sujeito o agente fiduciário, destacam-se: Dentre eles, citam-se: a) o dever de verificar a veracidade das informações prestadas pela entidade de propósito específico (emitente), seja no momento da emissão, seja posteriormente, alertando os investidores a respeito de eventuais falhas, omissões ou inverdades constatadas; b) verificar a regularidade da constituição de garantias e o valor dos bens oferecidos, observando-se sua suficiência e exequibilidade; c) intimar o emitente a reforçar garantias dadas, na hipótese de deterioração ou depreciação; d) solicitar auditoria externa, sempre que necessária; e) checar a existência de ações judiciais e procedimentos administrativos em face da emitente, quando julgar relevante; f) convocar assembléia ou reunião de investidores sempre que necessário, comparecendo à mesma e prestando os esclarecimentos solicitados; g) elaborar relatório aos investidores, divulgando informações importantes; h) analisar eventos que possam influir na segurança da securitização. Havendo inadimplência da entidade de propósito específico, o agente fiduciário deverá usar toda e qualquer ação para proteger os investidores, podendo executar garantias, requerer falência, liquidar antecipadamente a securitização, etc. (CHAVES, 2006, p. 185-186). Desta forma, a existência de um agente fiduciário representa mais uma via na busca da redução dos riscos, sendo certo que poderá ser responsabilizado por eventuais prejuízos quando tenha agido com culpa ou dolo. A figura de um agente fiduciário como forma de zelar pelos interesses dos investidores não é criação do Brasil, encontrando-se disseminada no mercado internacional, ainda que por via um pouco diferente, decorrente das peculiaridades de que se reveste o trust anglo-saxão, que também nesse aspecto apresenta vantagens. Nesse sistema, as funções equivalentes às do agente fiduciário são exercidas também pelo trustee, como se colhe: No mercado de securitização mundial, existe a figura similar ao agende fiduciário, conhecida como trustee, cujo trabalho no processo de securitização é mais amplo em relação às atribuições do agente fiduciário, pois assume, além das obrigações legais, obrigações adicionais impostas pela estrutura de securitização. Essa entidade é responsável pelo monitoramento junto à administração da companhia securitizadora, realizando o acompanhamento de suas atividades, no que tange aos patrimônios provenientes das securitizações, e reportando-as aos investidores, além de avaliar eventos para efeito de liquidação antecipada das emissões e implementar os respectivos planos de ação. 12 A Lei nº 6.404/76, que dispões sobre as sociedades por ações, contempla em seus arts. 66 a 70, diversos aspectos voltados à atuação do agente fiduciário, como incompatibilidades, atribuições, a fiscalização destas pela CVM, remuneração etc. 44 Na liquidação antecipada, cabe ao trustee acionar rapidamente os mecanismos de interrupção das cessões dos recebíveis, bloquear as contas correntes da securitizadora e determinar o pagamento antecipado aos investidores. O sucesso e lisura da proteção da securitização depende do grau de independência e eficiência dos procedimentos adotados por esta entidade. (CANÇADO; GARCIA, 2007, p. 35). Assim como o agente fiduciário, o trustee é responsável pelos prejuízos causados aos investidores nos casos de má administração, culpa e desobediência à lei ou ao regulamento a que estiver sujeito. 2.4 Intermediação financeira e securitização Na busca de critérios para a devida delimitação entre o mercado financeiro e o mercado de capitais, e respectiva inserção da securitização, Uinie Caminha (2007) traz interessantes esclarecimentos. De início, referida autora faz a contextualização no que se refere ao ambiente econômico-financeiro no qual a securitização de crédito se desenvolve, tendo servido de instrumento para a falta de capital para financiamento de projetos e de companhias, assim como para reduzir riscos nessas operações. Dado o vulto de determinadas empreitadas, destaca que as próprias instituições financeiras se adaptaram e passaram a utilizar dessa via, denominada desintermediação financeira, ou securitização em sentido amplo, que, conforme já visto, equivale à substituição das formas tradicionais de financiamento bancário pelo financiamento através do mercado de capitais. Tal constatação se faz importante para que se possa situar a operação. Afinal, como é cediço, há atividades reservadas exclusivamente a instituições financeiras e entidades equiparadas, sujeitas, portanto, à fiscalização do Banco Central. Entretanto, tendo em vista essas mudanças no cenário econômico-financeiro, com a adaptação das instituições financeiras, que também passaram a diversificar suas operações, gerou-se o problema de distinguir as atividades que lhes são próprias, daquelas outras também desenvolvidas, no âmbito do mercado de capitais. 45 Conforme assevera a referida autora, “mais importante do que a definição de instituição financeira em si é a delimitação do conjunto de normas e organizações em que tais instituições estão inseridas. É a partir desse conjunto chamado de sistema financeiro que se poderá definir e posicionar a securitização no mercado financeiro brasileiro.” (CAMINHA, 2007, p. 11). Nos termos do art. 1713 da Lei nº 4.595/64, consideram-se instituições financeiras as pessoas jurídicas que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Em seu parágrafo único, equipara a instituição financeira também as pessoas físicas que exerçam essa atividade de forma permanente ou habitual. A seu turno, a Lei nº 7.492/86, que trata dos crimes contra o sistema financeiro, apresenta praticamente a mesma fórmula para a configuração de atividade própria das instituições financeiras, como sendo a coleta, a intermediação e a aplicação de recursos. E, de fato, a estrutura do sistema financeiro brasileiro abrange diversas atividades, sendo aquelas tradicionalmente exercidas pelas instituições financeiras apenas uma de suas facetas, existindo ainda outros partícipes. Conforme aponta Caminha (2007, p. 12), sob o enfoque institucional do sistema financeiro brasileiro, existem quatro subsistemas, organizados em conformidade com o órgão regulador de cada um, constando do topo hierárquico o Conselho Monetário Nacional, ao qual se encontram subordinados os demais. Dois desses subsistemas são regulados, respectivamente, pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, que cuida das atividades abertas de previdência complementar, das sociedades seguradoras e de capitalização, e a Secretaria de Previdência Complementar – SPC, que cuida das atividades das entidades fechadas de previdência complementar. Já ao Banco Central é atribuída a fiscalização das instituições que atuam no mercado financeiro14, bem como de outras em competência concorrente com a Comissão de Valores 13 Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual. 14 Instituições bancárias, caixas econômicas, cooperativas de crédito, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, companhias hipotecárias, associações de poupança e empréstimo, agências de fomento, sociedades de arrendamento mercantil, sociedades corretoras de câmbio, sociedades de crédito ao microempreendedor e representações de instituições financeiras estrangeiras. 46 Mobiliários – CVM. A esta última se subordinam aquelas integrantes do sistema brasileiro de distribuição de títulos e valores mobiliários15. Sob essa perspectiva institucional destaca a retro mencionada autora alguma dificuldade de enquadramento da securitização, nos seguintes termos: Tendo como parâmetro essa análise institucional, é difícil inserir a securitização – ou as companhias securitizadoras – em um dos subsistemas apresentados. Apesar de ser uma operação típica do mercado de capitais, conforme se verá adiante, ela está intimamente ligada ao sistema financeiro propriamente dito. Por outro lado, nem todas as companhias securitizadoras estão sujeitas à fiscalização do Banco Central, pois são constituídas sob a forma de sociedades não financeiras, ou mesmo da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, se a emissão de títulos e valores mobiliários se der privadamente. Todavia, colocar a securitização fora, como algo paralelo ao sistema financeiro, seria negar suas funções econômicas, ligadas primordialmente à captação de recursos e a dispersão do risco. (CAMINHA, 2007, p. 13) Por conta disso, sugere uma análise do Sistema Financeiro Nacional sob um enfoque funcional, já que as funções desse Sistema são as mesmas em qualquer economia, sofrendo pouca influência das constantes transformações do mercado. Essas funções podem ser sintetizadas da seguinte forma: a) prover o mercado de sistema de pagamentos para a negociação de bens e serviços, assim entendidos os procedimentos e instrumentos que viabilizam a movimentação financeira na economia, com transferência de recursos, processamento e liquidação de pagamentos; b) disponibilizar mecanismos aptos a mobilizar fundos para fazer frente a empreitadas de larga escala e à atividade empresarial, que vão desde empréstimos tradicionais à utilização do mercado de capitais, inclusive a securitização; c) superar entraves geográficos, de forma a atender diferentes atividades econômicas com celeridade; d) controle e diluição de riscos; e) fornecer informações necessárias à tomada de decisões descentralizadas de diversos setores da economia, o que se encontra intimamente ligado ao mercado de capitais; e f) superar problemas relativos à assimetria de informações nas operações, tornando-as irrestritamente acessíveis. Assim, uma regulamentação que tenha como norte essa perspectiva funcional, sofrerá menor influência das transformações do mercado, do que aquela pautada em uma legislação baseada nas atividades desempenhadas pelas suas instituições, posto fadadas a constantes adaptações. É o que se destaca do seguinte trecho: 15 Bancos de investimento, fundos e clubes de investimento, as sociedades corretoras e distribuidoras de títulos e valores mobiliários, os agentes autônomos de investimentos, as bolsas de mercadorias e de futuros e as bolsas de valores. 47 Dessa forma é que, se da perspectiva institucional é difícil enquadrar a securitização no sistema financeiro, da perspectiva funcional ela se encaixa perfeitamente, já que é apta a satisfazer pelo menos três funções atribuídas ao mercado financeiro, quais sejam: a mobilização de fundos, a transferência de recursos no tempo e no espaço e o controle e alocação de riscos. As operações de securitização se dão, assim, dentro do sistema financeiro, e não paralelamente a ele, sendo, na verdade, uma evolução em sua estrutura, que visa torná-lo mais eficiente na captação de recursos e dispersão de risco. A securitização inova, assim, em um dos elementos caracterizadores da atividade financeira, pois, enquanto a coleta e aplicação de recursos restam inalteradas, a intermediação financeira ganha um novo sentido no mercado securitizado. (CAMINHA, 2007, p. 16). E, de fato, tal análise se faz necessária na medida em que a realidade atual aponta para uma diversificação nas atividades exercidas por instituições financeiras. De um lado, por óbvio, continuam na prática da intermediação financeira, realizada pela via tradicional, mas passam também a exercer a atividade de transformação qualitativa de ativos, como melhor se esclarece a seguir. Primeiramente, imperioso entender o conceito amplo compreendido na intermediação, já que, a primeira vista, poderia expressar tão somente o ato de colocar em contato duas partes para a realização de determinado negócio. Ocorre que essa é uma concepção mais restrita, na qual se encontra contida a atividade da corretagem, que é obrigatória no que pertine a compra e venda de títulos ou valores mobiliários na oferta pública destes. Os corretores não são parte do negócio, atuando apenas como intervenientes, na medida em que se prestam a aproximar agentes deficitários e superavitários com interesse de contratar a compra e venda de títulos ou valores mobiliários. Já em um sentido amplo, a intermediação envolve também o financiamento bancário. Para tanto, basta ver que qualquer pessoa, enquanto cliente de uma instituição financeira, que realiza depósito de numerário, provavelmente estará, mesmo sem saber, emprestando seu capital para que a instituição o aplique em operações de crédito e financiamento. Desta forma, e sob esse enfoque, a instituição financeira estaria de certa forma aproximando agentes, mesmo sem o conhecimento destes. Entretanto, diferentemente do que se dá na corretagem, o banco atua diretamente como parte, e em dois negócios jurídicos distintos. O primeiro, na prestação de serviços a seu cliente e, no segundo, na realização de um empréstimo ou financiamento, suportando com exclusividade todos os riscos disso. Não obstante, de certo que nesse aspecto mais amplo estará praticando a intermediação, o que o aproxima, por isso, da corretagem, ambos desenvolvendo a atividade de intermediação. 48 A seu turno, a transformação qualitativa de ativos, tal como se dá em uma operação de securitização e em outras operações do mercado de capitais, consiste na modificação das características de bens, direitos e obrigações, no que pertine à sua liquidez e risco de crédito, seja em decorrência de um agrupamento de diversos ativos, seja com a prestação de garantias colaterais, como um seguro ou fiança bancária. Todavia, nas operações desse jaez, também entidades não financeiras podem dela participar, desde que autorizadas a administrar esse tipo de sociedade ou fundo de investimento, do que decorre a constatação de que a conceituação de uma instituição financeira, em função das atividades por ela exercidas, perde espaço e fica cada vez mais próxima de outras figuras que atuam no mercado. E é nisso que consiste a importante conclusão a que se chega, nos seguintes termos: Na verdade, a importância prática dessa diferenciação é mostrar como atividades tão distintas quanto corretagem e captação de depósitos à vista podem estar, de alguma forma, agrupadas num mesmo conceito jurídico, qual seja, intermediação financeira. E, ainda, mostrar como a intermediação financeira, atividade essencial de instituição financeira, pode assumir papéis tão diferentes na relação dessas instituições com seus clientes. Nas operações de securitização, há confluência das duas espécies de atividade apresentadas, o que, na maioria das vezes, faz com que seja necessária a participação de mais de uma instituição no processo de estruturação das operações, ou, pelo menos, de uma instituição que exerça ambos os tipos de atividade. No decorrer de uma operação de securitização, pode-se visualizar facilmente a intermediação propriamente dita no momento da distribuição e subscrição dos títulos emitidos com lastro nos ativos segregados. Porém, é na transformação qualitativa de ativos que a securitização tem seu diferencial com relação a outras estruturas tradicionais do mercado financeiro. Além do agrupamento de ativos para que a emissão tenha determinadas características, é através da securitização que ativos ilíquidos são “transformados” em instrumentos líquidos, aptos a circular. (CAMINHA, 2007, p. 22-23). Esses aspectos também se revelam importantes para a compreensão do mercado financeiro, o qual pode ser visto como instrumento de mobilização de riquezas para conferir liquidez ao mercado, assim como sistema de gestão de capitais e, ainda, no que pertine ao prazo das operações, pode ser dividido em mercado de crédito, no qual se operam negócios de curto e médio prazos, e mercado de capitais, palco para financiamento de operações de longo prazo. Mas há ainda uma distinção no fato de se encontrar presente, ou não, a intermediação bancária tradicional para a obtenção e aplicação de recursos. Nessa intermediação financeira tradicional, a instituição financeira atua como parte de duas operações distintas. Uma, no lado passivo, e na qualidade de prestador de serviços, capta recursos através de contrato de depósito, sendo, portanto, devedora. Outra, quando concede crédito, é credora do empréstimo 49 ou contrato de mútuo. Assim ocorrendo, como visto, há transferência de recursos entre pessoas superavitárias e deficitárias do mercado, mas em razão de dois negócios distintos, dos quais participa o banco, do que se extrai sua função essencial de intermediação, na forma tradicional, atividade até pouco tempo tida como principal. Entretanto, repisa-se, paulatinamente as instituições financeiras vêm cada vez mais exercendo outras atividades, de desintermediação financeira, cujo palco é o mercado de capitais, e já apresentam expressividade nas receitas dos bancos. Nessas atividades não mais comparece como parte de determinado negócio, mas como verdadeira intermediadora entre o agente superavitário diretamente com o tomador dos recursos, atuando, assim, de forma distinta daquela outra, no âmbito do mercado financeiro. Na sua atuação no âmbito do mercado de capitais, a respectiva relação com o tomador dos recursos se dará por meio de contrato de corretagem ou outra prestação de serviços equivalente. Importante destacar que essa participação obrigatória de um intermediário no mercado de capitais tem em vista a tutela de interesse público, e não a defesa ou reserva de mercado à categoria. É o que se colhe da seguinte passagem: Em tese, num mercado eficiente, não haveria necessidade da presença de um intermediário financeiro nas operações de captação de fundos via mercado de capitais. Entretanto, a Lei n. 6.385/76 estabelece que é obrigatória a presença de um agente financeiro nas operações que envolvam distribuição pública de valores mobiliários. Da mesma forma, as informações incompletas ou incompreensíveis aos leigos fazem com que a presença de um intermediário, mais que uma exigência legal, seja uma necessidade. É assim que no mercado de capitais, mesmo em se tratando de um canal direto de financiamento, há necessidade de um intermediário – ainda que com função diversa daquela exercida pelo banco, que deverá promover, colocar e por vezes subscrever os valores mobiliários emitidos. Sua função está mais ligada a aspectos formais da relação entre investidores e poupadores, bem como aos procedimentos junto às bolsas de valores e mercado de balcão organizado, e ao suprimento de deficiência de informação. A instituição financeira, nesse caso, é mera interveniente, não assumindo, via de regra, risco de crédito. (CAMINHA, 2007, p. 27-28). Em suma, diferentemente do que se deu por séculos, os bancos não mais cuidam apenas de captar recursos e repassá-los, absorvendo os ricos daí advindos. O desenvolvimento do mercado de capitais e das fórmulas atualmente encontradas para dispersão de riscos deu azo ao que se passou designar desintermediação e, na atualidade, se conhece por securitização, naquele sentido amplo, já elucidado anteriormente. Tal determinou, por outro lado, a perda do monopólio por parte dos bancos e a necessidade de adaptação de suas atividades, em um processo em constante evolução, no qual comparece 50 como captador de negócios ou como estruturador de uma securitização, outras vezes vale-se dela para transformar seus próprios ativos em renda presente e, ainda, adquire títulos como investimento. De tudo isso se destaca, mais e mais, o impacto da securitização como catalisador da diversidade de atividades desempenhadas pelas instituições financeiras, assim como em suas receitas, sequer se podendo afirmar que houve uma perda por conta daquela. As conseqüências se deram mais em relação às atividades que passaram a exercer. Ao fim e ao cabo, por todas essas conseqüências advindas da implementação da securitização no âmbito do mercado de capitais, assim como de todos aqueles outros benefícios advindos da operação, tal como a dispersão de riscos, redução de custos na captação de recursos, a transformação qualitativa de ativos e a possibilidade de transformar ativos ilíquidos em renda presente, vislumbra-se uma crescente dedicação do Brasil no seu desenvolvimento, o que pode ser confirmado nos fatos abaixo: A cada dia percebe-se que o governo brasileiro vem dando maior importância ao desenvolvimento e utilização dos instrumentos de crédito e securitização para o crescimento da economia do país, sendo os mesmos considerados e divulgados pelo então Ministro da Fazenda, Antônio Palocci, no XVII Fórum Nacional China e Índia, realizado em maio de 2005, como um dos pilares importantes para o crescimento do emprego, redução da pobreza e desigualdade, e a conseqüente estabilidade macroeconômica, em conjunto com a redução do custo de investimento, do custo de resolução de conflitos, melhoria do ambiente de negócios e proteção social efetiva. (CANÇADO; GARCIA, 2007, p. 28). 2.5 A securitização de créditos no Brasil Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, a securitização de créditos no Brasil não contou com a intervenção direta do estado, tendo suas primeiras experiências ocorridas na década de 80 do século passado, encontrando-se, na atualidade, em ampla disseminação. O trecho a seguir descreve um pouco desses primeiros passos da securitização: No Brasil, inicialmente, as formas utilizadas foram embasadas na securitização parcial de recebíveis na forma de caução na emissão de notas ou títulos e no contexto de operações bancárias de capital de giro. Nesses casos, porém, os recebíveis ficavam no ativo do originador e o endividamento somava-se ao seu passivo. O investidor ficava exposto ao risco do tomador; a existência da garantia oferecia pouco conforto, dadas as dificuldades de um processo judicial de execução. 51 Pelo fato de não segregar efetivamente os riscos dos recebíveis do risco do seu originador, a caução não resultava em uma verdadeira securitização. As primeiras operações realizadas por empresas brasileiras aconteceram no começo da década de 90 e foram realizadas no mercado internacional. Diferentemente do que ocorreu em outros países, o principal objetivo foi a busca de financiamento externo de longo prazo em um período em que o governo brasileiro renegociava a sua dívida externa com os bancos credores. Estas operações também se diferenciavam pelo tipo de ativos securitizados. Eram operações que tinham como lastro o fluxo de caixa futuro de créditos ainda inexistentes no balanço das empresas originadoras, geralmente denominadas de “securitizações de fluxo de caixa futuro”. (CANÇADO; GARCIA, 2007, p. 18). Já no mercado interno a securitização no Brasil se deu de forma modesta, inclusive em decorrência do legislador não ter se ocupado de sistematizar a operação, com a criação de uma norma genérica, o fazendo apenas em relação a algumas espécies de ativos. Ademais, conforme relembra Caminha (2007), a securitização era vista como operação sofisticada, distante da realidade da maioria das pessoas, limitando-se a setores específicos, com foco no tipo de ativo a ser utilizado, e não na operação em si, o que redundou em uma regulamentação fragmentada. Essa existência apenas de regras em relação à securitização de algumas espécies de ativos, expedidas principalmente pelo Banco Central ou pela CVM, torna difícil sua utilização para ativos diversos, até mesmo pela distinta competência dos órgãos emissores de tais normas. Por isso, conclui referida autora, que “as regras aplicáveis à securitização de ativos diferentes daqueles amparados pelas normas específicas são as normas gerais de Direito Civil e Comercial, com todos os inconvenientes e vantagens que isso possa trazer, como analisado a seguir.” (CAMINHA, 2007, p. 141). Em outras palavras, o fato de não existir a devida regulação para determinados tipos de ativos, por certo não implica em vedação da securitização dos mesmos, ainda que para isso seja necessário o auxílio de diversos instrumentos jurídicos já existentes no ordenamento pátrio para a estruturação da operação, como é o caso da cessão de créditos e da constituição de uma sociedade de propósito exclusivo para figurar como cessionária. Não obstante, paulatinamente foram surgindo alterações legislativas e outros normativos dos órgãos reguladores, que deram impulso à securitização de créditos e ao melhor funcionamento do mercado de capitais, ao menos em relação a determinados tipos de ativos, conforme o interesse público em fomentar determinados setores da economia. Dentre os ativos contemplados por norma regulamentadora, tem-se a securitização das exportações, de ativos imobiliários, do agronegócio e de créditos bancários. A securitização das exportações foi instituída pela Resolução nº 1.834/91 do CMN, primeiro normativo desse órgão a tratar da securitização, em que pese não mencionar esse 52 termo. Foi regulamentada pela Circular nº 1.979/91 do Banco Central, revogado pela Circular nº 3.207/2001, que, por sua vez, utilizou expressamente o termo securitização. Essa Circular nada trata da estrutura da securitização, limitando-se aos aspectos financeiros da mesma. Os ativos utilizados como lastro à emissão dos títulos e valores mobiliários são direitos de crédito vinculados a exportações. Nos termos da Circular, as operações “são qualificadas, para fins de registro, como empréstimo externo ou forma de financiamento à exportação, sendo que os créditos de exportação utilizados como lastro de emissão de título no exterior podem ser originários de empresas que não façam parte do grupo econômico do tomador do empréstimo.” (GAGGINI, 2003, p. 72). Essa operação visa à captação de recursos no mercado externo. Para tanto, uma subsidiária estrangeira de uma sociedade brasileira “cede, em favor de um veículo de propósito exclusivo, os seus recebíveis de exportação contra os compradores/importadores. É esse VPE que emite valores mobiliários no mercado internacional, com lastro nos recebíveis adquiridos, captando, dessa forma, os recursos a serem repassados à matriz brasileira.” (CAMINHA, 2007, p. 142). Mas são as operações de securitização de base imobiliária que contam com maior regulação, tanto pela Lei nº 8.688/93, quanto pela Lei nº 9.514/97, assim como por normativos expedidos pelos órgãos reguladores. A Lei nº 8.688/93, o primeiro diploma legal a tratar do tema, dispõe sobre a constituição e tributação dos Fundos de Investimento Imobiliário, na forma de condomínios fechados, desprovidos de personalidade jurídica e, nos termos do seu art. 1º, “caracterizados pela comunhão de recursos captados por meio do Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários, na forma da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, destinados a aplicação em investimentos imobiliários.” Ademais, dispõe seu art. 3º que as quotas desses fundos “constituem valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, admitida a emissão sob a forma escritural.” Esses fundos são fiscalizados pelo CMN e sua gestão deve ser realizada, por força do art. 5º, por instituição administradora devidamente registrada naquele, e deverá ser, “exclusivamente, banco múltiplo com carteira de investimento ou com carteira de crédito imobiliário, banco de investimento, sociedade de crédito imobiliário, sociedade corretora ou sociedade distribuidora de títulos e valores mobiliários, ou outras entidades legalmente equiparadas.” 53 Mas a maior contribuição dessa Lei foi buscar na estrutura de um negócio fiduciário a formatação do negócio, de tal forma que o administrador, ao adquirir bens, apesar de fazê-lo em seu próprio nome, não integram o seu patrimônio, e sim o do fundo. Esses aspectos serão devidamente tratados no decorrer deste trabalho, em tópico próprio. O CMN cuidou de regulamentar essa Lei, através da Resolução nº 2.248/96, que autorizou que pessoas residentes ou domiciliadas no exterior podem adquirir quotas de Fundos de Investimento Imobiliário, e também através da atual Resolução nº 2.686/2000, que disciplina a cessão de créditos imobiliários. A CVM, por sua vez, editou a Instrução nº 205/94, já revogada, encontrando-se em vigor a Instrução 472/08, que disciplina os “Fundos de Investimento Imobiliário – FII”. A seu turno, a Lei nº 9.514/97 instituiu o Sistema Financeiro Imobiliário e pode ser considerada um marco. Elaborada em um contexto em que a deficiência das garantias reais, como a hipoteca e o penhor, não mais atendiam aos anseios da economia, criou a alienação fiduciária de coisa imóvel, que confere uma garantia muito maior ao credor, ao mesmo tempo em que proporciona ao ordenamento jurídico pátrio um “instrumento que permite sejam as situações de mora, nos financiamentos imobiliários, recompostas em prazos compatíveis com as necessidades da economia moderna, a exemplo do que há muito se verifica no âmbito dos financiamentos de bens imóveis.” (CHALHUB, 2006, p. 248). Esses aspectos da propriedade fiduciária que institui, e sua estreita ligação com a securitização, serão analisados mais adiante. No que pertine a outros aspectos voltados à securitização, referida Lei é de suma importância, quer por ter contribuído substancialmente na securitização de créditos imobiliários, quer por fomentar o desenvolvimento de um mercado secundário para o mesmo. Tendo dotado a negociação desse tipo de ativos da devida segurança, e também de padronização dos valores mobiliários emitidos, estimulou esse mercado e, assim, incentivou a captação de “recursos privados para esse segmento da economia de forma alternativa à tradicionalmente utilizada, que consistia basicamente nos recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, caderneta de poupança ou dos próprios cofres públicos.” (CAMINHA, 2007, p. 146). A Resolução nº 2.517/98 do CMN incluiu os Certificados de Recebíveis Imobiliários como valores mobiliários. A estrutura da operação encontra-se nos moldes já delineados neste trabalho, tal como descrito no art. 8º da Lei nº 9.514/97, que determina a vinculação dos créditos aos títulos emitidos. Em seu art. 3º trata das companhias securitizadoras de créditos imobiliários, 54 as quais deverão ser constituídas sob a forma de sociedade por ações, tendo “por finalidade a aquisição e securitização desses créditos e a emissão e colocação, no mercado financeiro, de Certificados de Recebíveis Imobiliários, podendo emitir outros títulos de crédito, realizar negócios e prestar serviços compatíveis com as suas atividades”. Entretanto, dentre as incontáveis contribuições da referida Lei no sentido de superar os obstáculos enfrentados por operações que não encontram regulação em lei, merecem destaque a segregação patrimonial dos ativos que garantem os títulos emitidos, o que será analisado posteriormente, assim como a dispensa de notificação do devedor quando da cessão dos créditos, reduzindo os custos da operação. Com relação ao agronegócio, a securitização dos ativos desta natureza foi instituída pela Media Provisória nº 221/2004, convertida na Lei nº 11.076/2004. Além da criação de títulos específicos para esse mister, constata-se considerável semelhança da estrutura criada para a securitização imobiliária, que vincula os títulos emitidos aos direitos creditórios que lhes serviram de lastro. Por fim, com relação aos créditos bancários, sua securitização somente veio a ser regulada através da Resolução nº 2.493/1998 do CMN, posteriormente revogada pela Resolução nº 2.686/2000, atualmente em vigor. Sua estrutura encontra-se nos moldes delineados neste trabalho, mediante cessão dos créditos financeiros à sociedade securitizadora, que emitirá títulos neles lastreados para captação de recursos e respectivo pagamento à cedente-originadora. Permite-se a coobrigação da cedente pelo pagamento dos créditos. Em suma, estes são os nichos específicos que contaram com maior regulação da operação de securitização dos recebíveis que geram. Com relação aos ativos gerados em atividades comerciais que não as já contempladas pelos normativos retro mencionados, tais como os ativos advindos da venda no varejo, faturas de cartão de crédito e prestações de serviços, foi emitida pelo CMN a Resolução nº 2.026/93, que autorizou a aquisição, por parte de instituições financeiras, dos títulos emitidos pela sociedade de propósito exclusivo, cessionária de tais créditos. Entretanto, com o advento da Resolução nº 2.493/98 do CMN, aquela resolução foi revogada, mas sem dispensar qualquer trato à matéria. Essa nova Resolução cuidou apenas da cessão de créditos originados da atividade bancária, assim como sua substituta, a já mencionada Resolução nº 2.686/2000. 55 Em decorrência disso, os ativos comerciais se encontram sem qualquer disciplina específica, relegados, portanto, à conjugação de negócios que permita atingir o escopo da securitização, tratando-se, pois, de negócio jurídico atípico. Não obstante, foram editadas algumas normas por parte dos órgãos reguladores, que auxiliaram na regulação da operação, ainda que de forma generalizada, abarcando várias espécies de crédito, como é o caso dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios – FIDCs. Criados pela Resolução nº 2.907/2001 do CMN, possuem a seguinte abrangência: Art. 1º. Autorizar a constituição e funcionamento, nos termos da regulamentação a ser baixada pela Comissão de Valores Mobiliários no prazo máximo de quinze dias contados da data da entrada em vigor desta resolução: I - de fundos de investimento em direitos creditórios, destinados preponderantemente à aplicação em direitos creditórios e em títulos representativos desses direitos, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipoteca, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços, bem como nas demais modalidades de investimento admitidas na referida regulamentação; II – de fundos de aplicação em quotas de fundos de investimento em direitos creditórios, que devem ter por objetivo a aplicação de recursos em quotas de fundos de investimento em direitos creditórios. (BRASIL, 2001). Verifica-se, desta forma, que apesar de ter abarcado os ativos de natureza comercial, o fez apenas para regular as operações praticadas pelos fundos de recebíveis. Mas, de certo que essa regulamentação sobre a atividade dos fundos teve seu mérito, no sentido de ter “possibilitado o acesso ao mercado de capitais a sociedades empresárias de médio porte, como forma de financiar suas atividades.” (CAMINHA, 2007, p. 155). Lado outro, conforme asseverado alhures, os fundos apresentam importantes vantagens no que pertine à sua tributação, quando comparados a companhias securitizadoras, constituídas sob a forma de sociedade por ações. No que se refere ao perfil dos investidores, determina o art. 2º dessa Resolução sejam investidores qualificados. A regulamentação da CVM a que se refere o caput do art. 1º da Resolução 2.907/2001 foi instituída pela Instrução nº 356/2001, a qual remete a definição de investidor qualificado à atual Instrução nº 409/2004, que, por sua vez, dispõe em seu art. 109 serem considerados investidores qualificados: as instituições financeiras (inc. I); as companhias seguradoras e as sociedades de capitalização (inc. II); as entidades abertas e fechadas de previdência complementar (inc. III); as pessoas físicas e jurídicas que possuam investimentos financeiros em valor superior a trezentos mil reais e, ainda, assim se declarem por escrito (inc. IV); fundos de investimento destinados exclusivamente a investidores 56 qualificados (inc. V); os administradores de carteira e consultores de valores mobiliários autorizados pela CVM (inc. VI); e regimes próprios de previdência social instituídos pela União, Estados, Distrito Federal ou Municípios (inc. VII). Em síntese, estes são os principais normativos hoje existentes. 2.6 Problemas para a implementação da securitização de créditos no Brasil A securitização de crédito revelou-se instrumento eficaz para captação de recursos e financiamento de diversos projetos, passando a ser utilizada em todo o mundo e em relação a créditos das mais diversificadas naturezas. Lado outro, por se tratar de operação utilizada mundialmente, fugindo, portanto, da exclusividade de um único mercado, é indispensável o desprendimento de uma visão atomista da securitização de créditos. Não é prudente sua análise apenas com foco no mercado interno, na medida em que o desenvolvimento econômico e social do país passa a ter relação direta com a realidade do mercado externo, demandando uma harmonização. E, menos ainda, poderá a operação ser analisada com delimitações em um único e específico caso, sem se considerar seu contexto nacional e internacional. Essa íntima relação entre securitização e globalização foi relatada com muita felicidade no seguinte trecho: A securitização tem estrita relação com a globalização. Por ela, ativos originariamente sem liquidez podem ser alocados no mercado de capitais, onde têm possibilidade de ser negociados, inclusive globalmente. A integração dos mercados é, ao mesmo tempo, uma premissa e uma conseqüência da securitização, já que desmobilizar riquezas leva à sua circulação, e tal circulação pode alcançar mercados além das fronteiras políticas dos países onde foram originadas. Especialmente em países de economias emergentes, o desenvolvimento do mercado local é de suma importância para sua inserção na economia globalizada. A atratividade de determinado mercado de capitais para outros países é decisiva para aumentar o nível da captação interna, e está intimamente relacionada com a forma como tal mercado está organizado e regulado internamente. De acordo com Simon Sackman e Margaret Coltman, para que um país possa atrair investimentos, seu sistema regulatório deve atender a uma série de requisitos: adotar parâmetros de proteção aos investidores com relação a ofertas de valores mobiliários; tornar disponível aos agentes do mercado mecanismos eficientes para que as operações se dêem tempestivamente; inibir a manipulação de informações e manter agências reguladoras transparentes, ágeis e confiáveis. (CAMINHA, 2007, p.44-45). 57 Esse primeiro requisito, relativo à proteção dos investidores, guarda estreita relação com os instrumentos jurídicos disponíveis para tal mister. Nos países filiados ao sistema anglo-saxão, com a constituição de um trust decorre a formação de uma dupla propriedade e a vinculação desta a um fim determinado, aspectos estes que serão analisados a seguir, sendo o quanto basta para impedir que dívidas outras do originador, correspondente ao settlor nesse sistema, ou da SPE (trustee), comprometam o substrato patrimonial que garante o pagamento dos valores mobiliários emitidos. Mas, no presente trabalho, a securitização de créditos se encontra focada em boa parte na perspectiva de uma segregação externa dos ativos, ou seja, através da cessão a uma terceira pessoa, forma encontrada no Brasil para viabilização da operação em relação a diversas espécies de ativos. Entretanto, fosse possível uma afetação patrimonial por parte da originadora, poderia a securitização se dar com segregação interna, vale dizer, com emissão de títulos pela própria originadora, que constituiria por si só a garantia dos investidores em relação aos valores mobiliários emitidos com lastro nos ativos afetados a essa finalidade. Existisse a segurança esperada nessa forma de securitização, por certo a operação seria muito mais atrativa, posto menores os dispêndios financeiros e de tempo na estruturação da operação. Aliás, é o que ocorre no Brasil, mas apenas em relação a securitizações que têm por objeto ativos de natureza imobiliária, no qual a lei que a regulamenta faculta a constituição de patrimônio de afetação, conforme adiante será apontado com mais detalhes. E, mais, caso fosse possível a afetação patrimonial também nos casos de transferência de ativos a empresas securitizadoras e fundos de investimento, mas que se prestam a várias operações, isso não comprometeria a segurança dos investidores envolvidos em uma ou em outra, em decorrência da exclusiva vinculação do patrimônio às dívidas originadas na respectiva operação, e não em outros ativos daquelas. É o que revela a seguinte passagem: Seguramente, a principal utilidade prática dos conceitos de patrimônio geral, separado ou autônomo, é a delimitação da responsabilidade de seus titulares, ou seja, determinar quais elementos ativos respondem por determinadas obrigações. No que diz respeito à securitização, a segregação patrimonial feita através de veículo societário não suscitaria grandes discussões com respeito à validade da afetação do patrimônio, já que, nesse caso, ter-se-ia um patrimônio autônomo, desde que cada companhia respondesse por apenas uma operação. Caso, por outro lado, a securitização fosse feita com segregação interna, ou um único veículo fosse utilizado para mais de uma operação, a segregação entre os ativos que dão lastro a cada uma das operações poderia ser desconsiderada, já que não há, salvo em caso excepcional, previsão legal para tal afetação. 58 Para que uma operação de securitização seja bem-sucedida, e para que se tenha segurança em tal operação, faz necessário assegurar que os ativos que sirvam de lastro para uma emissão não responderão por obrigações do patrimônio geral do originador, ou mesmo da companhia securitizadora, caso esta sirva de veículo para várias securitizações. (CAMINHA, 2007, p. 122). Mas nem só por isso é que o problema da afetação patrimonial persiste. Ainda que realizada na forma até então exposta, com segregação externa, há insegurança em relação à cessão realizada à sociedade de propósito exclusivo, e até que ponto essa parcela do patrimônio transferido permaneceria incólume em relação às dívidas da originadora, inclusive na hipótese de ser declarada sua falência. Por certo que uma operação de securitização não poderá servir como via para fraudar credores. Caso se constate uma situação de insolvência da originadora ao tempo da cessão dos ativos, poderá ocorrer o retorno destes ao patrimônio daquele para fazer frente ao concurso de credores. Entretanto, isso representaria sérias conseqüências à operação, a diversos investidores e à própria economia nacional, por desestimular a realização de investimentos nesse tipo de negócio. Ainda que excepcionada essa hipótese extrema de fraude, vale dizer, mesmo encontrando-se a originadora com saúde financeira à época da cessão, há receios de que posterior alteração dessa situação possa dar azo à comunicação entre os patrimônios. A novidade da operação, assim como o pouco desenvolvimento no ordenamento jurídico pátrio na compreensão dos aspectos voltados ao negócio fiduciário e à afetação patrimonial, poderia deixar transparecer na securitização uma simulação, o que definitivamente não ocorre. De fato, um dos problemas enfrentados pela securitização em diversos países é o alto custo que por vezes pode apresentar, tendo em vista a necessidade de múltiplas avaliações, a demandar o emprego de empresas especializadas, realização de seguros, de garantias colaterais, onerando a operação. Todavia, no Brasil, a questão se encontra ainda mais agravada, tendo em vista o risco inerente à efetividade da segregação dos ativos cedidos. Na securitização, uma vez verificada a efetiva segregação de parte do patrimônio da originadora, representada pelos créditos cedidos, os riscos esperados pelos investidores devem estar adstritos a esses ativos, ou seja, ao adimplemento ou não dos devedores desses créditos. É com base nessa premissa que o investidor avalia os riscos que pretende assumir e toma sua decisão. Assim, em nenhuma hipótese poderia ocorrer que quaisquer dívidas da originadora, ou da securitizadora, não relacionadas a operação em questão, pudessem ser garantidas pelos 59 ativos que serviram de lastro à emissão dos valores mobiliários, sob pena de inviabilizar a securitização. Sobre o tema, oportuna a colação dos apontamentos abaixo: Um dos principais conceitos que fundamentam a operação de securitização de recebíveis é o de se separar o risco concernente aos direitos creditórios dos riscos atinentes à originadora. Com a cessão dos direitos creditórios da originadora para a securitizadora, os investidores que adquirem debêntures emitidas por esta última estarão expostos tão-somente ao risco de inadimplência dos recebíveis, que servem de lastro para a emissão dos valores mobiliários. É importante destacar que, exatamente pelos motivos expostos neste parágrafo, a sociedade securitizadora é constituída com o propósito único e específico de adquirir os direitos creditórios da originadora, através da colocação de debêntures de sua emissão junto a investidores. Dessa forma, a sociedade securitizadora não possui nenhum outro débito, nenhuma outra obrigação, senão a de pagar os investidores que adquiriram seus valores mobiliários. A esse respeito, é de se notar que a classificação do risco da operação é promovida com base no risco da sociedade específica securitizadora, que, dessarte, logra obter melhor rating do que a empresa originadora obteria, circunstância essa que, em última instância, implica um custo inferior de captação. (FAGUNDES, 2003, p.103-104). As maiores polêmicas e consequentes inseguranças em relação às operações de securitização no Brasil encontram-se relacionadas exatamente à segregação dos ativos e seus efeitos em relação aos partícipes da operação, a originadora e, por vezes, a própria securitizadora. Em decorrência do sistema romano-germânico adotado pelo Brasil, seu ordenamento jurídico não admite a existência de uma dupla propriedade sobre o mesmo bem, ao contrário do que ocorre nos países de tradição anglo-saxônica, nos quais tal pode ser feito pela vontade do proprietário, vinculando-os a uma determinada finalidade, como se dá em relação à constituição do trust, impedindo que dívidas do settlor ou do trustee possam afetar os bens que lhe servem de objeto. Adota-se a teoria subjetiva do patrimônio, na qual uma pessoa e seu patrimônio constituem uma universalidade de direitos, um todo indivisível, razão pela qual responde perante seus credores com a totalidade de seus bens. Dentro dessa perspectiva histórica, restaria, em princípio, impossibilitada a afetação de parcela patrimonial, salvo expressa previsão legal e, consequentemente, dificultadas as operações de securitização de crédito de ativos não agraciados com tal privilégio. A securitização é espécie de negócio indireto, com as características próprias de um negócio fiduciário, já que opera a transmissão de bens afetados a uma finalidade. Melhim Chalhub (2006) lembra ser necessária a harmonização do direito positivo pátrio em face da legislação estrangeira, sobretudo considerando que os países concorrentes na captação de capital estrangeiro já harmonizaram suas legislações com as dos países 60 fornecedores de recursos e, portanto, já há algum tempo se encontram em melhores condições do que o Brasil para captá-los. Cita como exemplos disso o Chile, a Argentina e a Venezuela, que reformularam sua legislação sobre fideicomisso na linha do conceito do patrimônio de afetação, exatamente com o propósito de criar condições para o ingresso de capitais estrangeiros. De igual forma, Portugal, Espanha e Itália, países também ligados ao sistema romano-germânico, buscaram essa inovação. Não obstante, ponto comum entre alguns dos autores que se dedicam ao assunto, reside na insegurança quanto ao aspecto da segregação patrimonial. É uníssono entre esses autores (CHALUB, 2006; CHAVES, 2006; CAMINHA, 2007; CANÇADO; GARCIA, 2007) que é da afetação patrimonial que decorre uma securitização segura e atrativa para os interessados, inclusive por ser a partir da presunção de solidez dessa separação, é que se avaliam e classificam os riscos do negócio, e servirá para informar o investidor na sua tomada de decisão. A originadora terá a garantia de que não verá a parcela de seu patrimônio, que foi cedida à sociedade de propósito exclusivo, comprometida de forma prematura por dívidas deste, antes do repasse do valor ajustado. De igual sorte, esta última terá a garantia de que os bens recebidos não correm risco de serem expropriados por eventuais credores da originadora. E, principalmente, através desse modelo é possível encontrar investidores interessados na compra de valores mobiliários no mercado de capitais, vinculados a esse tipo de negócio, pois terão a certeza de que o ordenamento jurídico assegurará a garantia prestada, sem que dívidas outras, de qualquer dessas duas empresas, não vinculadas exclusivamente à operação de que participam, possam comprometê-la. Quanto a isso, vale a transcrição da seguinte passagem: Apesar de atualmente haver dúvida sobre a validade e eficácia da segregação de patrimônio do originador em relação ao veículo de propósito exclusivo, especialmente no caso de falência ou concurso de credores, acredita-se que essa desconfiança deve-se à novidade do negócio, já que, conforme demonstrado, ela é válida e plenamente compatível com o conceito moderno de patrimônio, mesmo quando implementada através de segregação interna, e não por cessão de crédito. A corroborar com essa tese, o legislador brasileiro tem entendido válida a segregação patrimonial, inclusive criando mecanismos especiais para a securitização imobiliária, como é o caso do fundo de investimento imobiliário e do regime fiduciário da securitização de ativos de natureza imobiliária, onde claramente se verifica a adoção de mecanismos fiduciários pelo ordenamento jurídico pátrio para viabilizar a securitização. (CAMINHA, 2007, p. 189-190). Portanto, mister se faz a reflexão sobre Teoria do Patrimônio, como parte integrante dos fundamentos da fidúcia do direito romano e do trust anglo-saxão, como resposta às possibilidades de eficaz estruturação da securitização de crédito no Brasil. 61 É o que se passa a enfrentar nos próximos capítulos, nos quais serão tratados o trust, depurando-lhe as principais características, passando-se à análise do negócio fiduciário, como alternativa viável no Brasil, o que, a seu turno, demandará a análise do instituto do patrimônio e a possibilidade de afetação, seguindo-se pelas modificações legislativas recentemente verificadas, mormente no que se refere à propriedade fiduciária e à Lei de Recuperação Judicial de Empresas. 62 3 O TRUST 3.1 Aspectos históricos O trust tem sua origem na Idade Média. Deriva, em verdade, do use do direito inglês e em que pese sua semelhança com a fidúcia romana, que será analisada em seguida, aquele instituto se desenvolveu de forma autônoma e em época diversa, bem posterior. Aliás, conforme assevera Judith Martins Costa (1990, p. 34) o trust possui características diferenciadas, estranhas aos sistemas de Direito continental europeu e, “por isso, como bem acentua René David que dita instituição – a exemplo, de resto, da maior parte das instituições e dos conceitos do Direito inglês – ‘explica-se unicamente pela história’”. Conforme elucida Salomão Neto (1996), após a invasão normanda na Inglaterra, no ano de 1.066, as terras pertencentes à nobreza anglo-saxônica foram tomadas e atribuídas ao rei e, posteriormente, distribuídas em caráter precário aos tenants (possuidores), dando azo à relação jurídica conhecida por tenure, mas que não garantiam a propriedade das terras, e sim direitos limitados pelo tempo, denominados estates. Não obstante, ao detentor da tenure era facultada a criação de outras relações similares, com a criação de novos tenants, os quais ficavam subordinados e sujeitos a prestação de serviços ou obrigações equivalentes aos de vassalo e suserano. Dentre os direitos do suserano em caso de morte do tenant destacam-se os seguintes: O “escheat” permitia ao suserano herdar terras do vassalo em caso de morte deste, e após evolução, em caso de morte sem herdeiros. O “relief” implicava que o herdeiro de um vassalo, entrando na posse de um imóvel por sucessão, pagasse ao suserano rendimento do imóvel igual a uma quarta parte da renda anualmente produzida pelo bem. A “wadship”, consistia no direito do suserano de, na morte de um vassalo tendo por herdeiro um menor de idade, torna-se tutor do menor, com direito a conservar para si próprio os rendimentos do imóvel até que o pupilo completasse 21 anos, se do sexo masculino, ou 14, se do sexo feminino. Finalmente, o direito de “marriage” permitia ao suserano indicar o cônjuge de um menor vassalo de que fosse tutor, e em caso de recusa deste, perceber compensação igual à recompensa financeira que lhe seria paga por um terceiro beneficiado pela escolha (um familiar do cônjuge escolhido, por exemplo). (SALOMÃO NETO, 1996, p. 12). Verifica-se, assim, que referido sistema têm por característica a coexistência de mais de um direito real sobre um mesmo bem. 63 Essa situação passou a causar insatisfação e a gerar tensão, dadas as expectativas dos tenants em conservar suas terras livres de tais encargos, inclusive na sua sucessão. Havia também os interesses dos monges, que na sistemática vigente não podiam adquirir os bens ofertados pelo crescente número de fiéis para mantença de mosteiros, escolas e igrejas. Daí resultou a busca por contornar essas limitações, o que se deu pela atribuição dos bens a um terceiro, em caráter fiduciário, devendo o mesmo administrá-los nos moldes estabelecidos pelo titular de fato, ao qual era atribuído o gozo ou o rendimento gerado, podendo também atribuí-lo a terceiro de sua escolha. A essa cessão de direitos reais deu-se o nome de use, mas que em seu nascedouro não contava com proteção jurídica em face do fiduciário, tendo em vista que este passava, segundo os ditames da common law, a ser considerado o titular da coisa, podendo conferir à mesma o destino que quisesse. Tal como se deu na fidúcia romana, essa relação se pautava na confiança e a sanção em face do descumprimento do pacto não produzia senão efeitos de cunho moral. Mas, conforme destaca o retro mencionado autor, essa fragilidade do ordenamento jurídico passou a ser mitigada pela figura do Chancellor: A justiça medieval inglesa era, contudo, impotente para levar em consideração os direitos dos beneficiários de ‘uses’, pois assentava-se basicamente nos tribunais encarregados da aplicação da ‘common law’, formais e legalistas. Ao lado dos tribunais existia, entretanto, um importante funcionário público, o ‘Chancellor’, cuja interferência passou a ser fundamental para a eficácia jurídica dos ‘uses’. O ‘Chancellor’ era inicialmente um eclesiástico a quem se atribuía a função de conselheiro do rei, dada sua capacidade de lidar com questões de consciência, bem como a função de guarda do selo real. O rei sempre teve poder jurisdicional a par dos tribunais por ele constituídos, o que representava o reflexo de sua situação de preponderância, podendo os súditos, em qualquer caso, recorrer diretamente a ele em situações em que não encontrassem conforto ou proteção nas regras jurídicas habituais. Ao fazerem isso, as petições, baseadas primordialmente em questões de justiça natural, insuscetíveis de acolhimento pela ‘common law’, tendiam a ser passadas à análise do ‘Chancellor’ devido a sua formação eclesiástica e a seu papel de diretor de consciência do rei. A partir do ‘Statute of Westminster’ de 1285, esta jurisdição do ‘Chancellor’ foi de certa maneira institucionalizada pela inclusão entre suas atribuições da emissão de ‘writs’, isto é, mandados de citação em querelas cofiadas a sua análise. Na prática, isso permitia ao ‘Chancellor’ a criação de novos direitos, o que fazia admitindo novos fundamentos de ações. Esse procedimento é comparável àquele pelo qual os pretores, encarregados da aplicação das leis, conseguiram introduzir reformas profundas no Direito Romano, sempre com tendência a adaptar disposições legais rígidas aos ditames da equidade. (SALOMÃO NETO, 1996, p. 14). Como conseqüência, o Chancellor passou a exercer função moderadora, criando-se o hábito de ser procurado em situações nas quais os extremos da common law, ou em situações de corrupção, por exemplo, apresentavam-se injustas. O mesmo ocorreu em relação aos 64 beneficiários de uses em face de fiduciários desleais. Mas, digno de nota, é o fato de tal juízo de equidade por parte daquele não ter o condão de determinar a retomada do bem, se tal não fosse amparado pela common law, sob pena de afronta ao direito de propriedade. As sanções pela desobediência de seus comandos recaíam sobre a própria pessoa do infrator, muito embora, na prática, tenha servido como instrumento de eficácia do use. Como é curial, essa sobreposição gerou resistência, mormente dos senhores feudais, prejudicados em vários de seus privilégios de suserano em face dos vassalos. Tal regra, por óbvio, atingia ao próprio rei, de tal sorte que, no ano de 1535, Henrique VIII promulgou o Statute of Uses, extinguindo os uses, ao fundamento de evitar fraudes e garantir o direito de propriedade, na medida em que negava a validade de direitos reais não registrados. Entretanto, em reação, a Corte de Chancelaria, via jurisprudência, buscava interpretações tendentes a contornar o rigor da norma, excepcionando diversas hipóteses. Com a constituição de colônias nos séculos XVII e XVIII, as rendas feudais passaram a ter menor importância à coroa, o que conferiu maior tranqüilidade de atuação à Corte de Chancelaria para mitigar de vez as limitações impostas aos uses. Tal foi feito através da introdução da praxe de se constituir dois uses sucessivos no mesmo instrumento, interpretando-se, a partir disso, que o Statute of Uses limitava-se a extinguir o primeiro. Esta é a relevância e a relação dos Chancellors com o trust e seu desenvolvimento e, de forma geral, com o próprio desenvolvimento do sistema jurídico anglo-saxão, no qual se introduziu novos ares e regras. Embora inicialmente tenham emanado da casuística as regras de equidade, ainda que de forma variável de Chancellor para Chancellor, nos séculos XVII e XVIII as Cortes de Chancelaria passaram pelo mesmo processo de consolidação da common law, extraindo-se princípios de casos passados para aplicação futura, que em seu conjunto foram denominados de Equity. Ademais, a partir de 1672, os Chancellors deixaram de ter origem eclesiástica e passaram a ter formação jurídica. Assim se consolidava um sistema estável de princípios o qual, conforme relembra Salomão Neto (1996, p. 18), “teve também a conseqüência de desvincular as decisões baseadas na ‘Equity’ da pretensão de justiça casuística que a caracterizava até então, substituída, em certa medida, pela aplicação lógica de regras advindas de ‘precedentes’”. Já em 1873, com a promulgação das Judicature Acts, definitivamente consolidada estava a Equity, com a criação da Supreme Court of Judicature, que com sua repartição em divisões incorporou a Corte de Chancelaria, podendo os princípios de Equity ser argüidos em quaisquer divisões, quando pertinente a matéria. 65 E, como visto, foi também dessa sucessão de fatos que se legou o trust, nos moldes hoje conhecidos: De sua origem histórica reproduzida aqui até a época contemporânea, o “trust” se consolidou como mecanismo jurídico adaptável a servir a múltiplas finalidades, todas elas tendo em comum a titularidade nominal de patrimônio por pessoa obrigada a administrá-lo em benefício de terceiro. Seu regime jurídico preciso foi sendo definido por via jurisprudencial e mesmo legislativa nos períodos subseqüentes, em evolução não completada até os dias de hoje. As aplicações do “trust” também evoluíram com a passagem do mercantilismo ao capitalismo industrial e financeiro, passando o instituto a ultrapassar a esfera de meio de organização de patrimônios privados para tornar-se mecanismo jurídico presente na vida empresarial e na organização de esquemas de investimento coletivo. (SALOMÃO NETO, 1996, p. 19). Por fim, e de forma a consolidar esse panorama com suas relevantes conseqüências para a modernidade, cabe trazer à colação os seguintes esclarecimentos: De fato o trust é um negócio construído em torno da confiança (trust) que o grantor (ou settlor of trust) deposita no trustee. A titularidade da propriedade se desdobra em duas pessoas, sem que haja condomínio, numa situação que lembra a superposição de propriedades, que existia no “anfiteatro enfitêutico” medieval. O settlor mantém um direito obrigacional e o título do trustee é um direito real mas condicionado pelas regras e objetivos do trust que se estabeleceu. Com efeito, muito embora os Judicature Acts de 1873 tenham fundido os tribunais de common law e de equity num único aparelho judiciário, o Direito inglês permaneceu dual, tanto com regras de uma origem como de outra. Como assinala Derek Roebuck (ob. cit., p. 78), continuam a existir dois sistemas, como fica evidenciado pela distinção entre legal ownership e equitable ownership no caso do trust. (WALD, 1995, p. 109). 3.2 Principais características Após esse percurso histórico o trust se desenvolveu de tal maneira a se transformar em um dos mais importantes institutos do Direito anglo-saxão, por se prestar, dada sua flexibilidade, a diversos tipos de negócios, sendo mesmo um dos mais estudados da atualidade, em diversos países, inclusive de origem romano-germânica. Conforme aponta Salomão Neto (1996), o trust é comumente utilizado para a proteção de incapazes ou de pessoas pouco experimentadas no comércio, que por essa via podem ser beneficiadas por um patrimônio sem deter sua titularidade e incorrer nos riscos de perda ou dissipação daí decorrentes. Podem se prestar também como forma de organização do controle de sociedades, concentrando-se ações com direito a voto em mãos de um só titular, 66 responsável por exercer os direitos de sócio em benefício de proprietários originais que as tenham transferido. Judith Martins Costa (1990, p. 44) aponta outros usos, tais como para a satisfação de dívidas com os lucros advindos da administração, para geração de renda a um beneficiário, para a preservação de bens futuros, dentre outros, “reunindo em um mesmo molde as funções que, entre nós, desempenham vários institutos, entre eles os contratos de mandato, gestão de negócios, alienação fiduciária em garantia, a comissão mercantil, o pacto de retrovenda, além da constituição de fideicomisso e alguns tipos de fundações.” E, mais, além dessas formas de administração patrimonial em favor de um beneficiário (trusts privados), também podem estar vinculadas a um fim determinado (purpose trusts), inclusive a caridade ou persecução de interesses públicos. Ademais, podem também servir como garantia de uma dívida e de investimento. Talvez pela diversidade de aplicações e constante evolução não seja tarefa simples a conceituação do trust, sendo mais fácil caracterizá-lo do que defini-lo, fazendo-o nos moldes a seguir: Implica o “trust” a transferência de propriedade ou titularidade sobre um bem corpóreo, móvel ou imóvel, ou incorpóreo, como os direitos, a um terceiro denominado “trustee”, a quem incumbe exercer os direitos adquiridos em benefício de pessoas designadas expressamente no instrumento criador do “trust”, ou indicadas pela lei ou jurisprudência na falta de tal instrumento, chamadas de beneficiários ou “cestui que trust”. Alternativamente, podem se constituir “trusts” não em benefício de pessoas determinadas, mas com vistas à perseguição de determinados objetivos. Por outro lado, estaremos diante de um “trust” ainda quando uma pessoa se declarar “trustee” em benefício de terceiro de bens que já detenha, em tal hipótese não sendo necessária a transferência de propriedade. (SALOMÃO NETO, 1996, p. 20-21). Constata-se que o trust terá sempre por objeto um substrato patrimonial, a ser destacado do patrimônio daquele que o instituiu, transferindo-se os bens ao trustee, via cessão, salvo quando o próprio instituidor assim se declarar. Para tanto, deve-se sempre discriminar os bens envolvidos na operação, podendo ser corpóreos ou incorpóreos, inclusive se referir a bens futuros. Também dessas características, assim como de sua evolução histórica, destaca-se um aspecto de fundamental importância, pelos efeitos que produz. Trata-se da confiança, da fidúcia inerente ao trust, na medida em que sua constituição encontra-se adstrita à realização de uma determinada finalidade. Era com base nesse aspecto, nesses modelos de confiança e de consciência, que se davam as imposições pelas Cortes de Chancelaria, como se colhe: 67 Ressalta, assim, a confiança como um dos elementos essenciais do trust: aquele que tem o legal tittle sobre um bem não o possui senão para fins específicos e limitados, que tiverem sido estabelecidos pelo settlor ou pela Corte. Aqui se mostra claro o desdobramento da propriedade sobre a coisa dada em trust. Como se sabe, o direito anglo-saxão contempla a existência de mais de um direito de propriedade sobre uma só coisa, cada uma dessas propriedades com qualificação peculiar, delimitada, estabelecendo-se para tanto um regime de graduação. A propriedade da coisa objeto de um trust, assim, estará atribuída a mais de um titular, tendo o trustee o legal title, que se poderia traduzir por propriedade formal, e o cestui que trust (beneficiário) o equitable ou beneficial title, significando propriedade econômica ou de fruição. (CHALHUB, 2006, p. 26). De se destacar, ainda, que a existência dessa dupla propriedade encontra-se fundada, de um lado, na confiança, ou na fidúcia que emana da relação estabelecida entre os respectivos partícipes, mas, de outro, sobremodo pelo sistema processual existente nos países de tradição anglo-saxônica, que permite ao judiciário decidir e impor com base nesse padrão de consciência. E desse conjunto de fatores, que de um lado deram azo à configuração de uma dupla propriedade, única forma de se conceber as situações submetidas à Corte e sobre elas se decidir com justiça, de outro, estabeleceram mais um importante aspecto determinante no trust, qual seja, encontra-se na estrita vinculação do trustee à finalidade que tiver sido estabelecida quando da constituição daquele, decorrendo disso o entendimento de que os bens objeto do trust ficam afetados àquele fim. Nesse sentido, e também revelando as características desse ordenamento jurídico, fundamentais à evolução do instituto, colhe-se: Mas, além da dicotomia da propriedade, que confere direito real ao beneficiário e lhe assegura a fruição da coisa, ressalta como elemento viabilizador do trust, com vistas à segurança da relação jurídica, o sistema de proteção do poder judicante, do qual emanam modelos de consciência e fidelidade que o trustee é obrigado a observar em sua relação com a coisa dada em trust, modelos esses que a eles são impostos pela Corte, vale dizer, a par do direito real que prende a coisa ao beneficiário, e acima desse direito, a Corte conduz e controla a atuação do trustee na implementação do trust, mantendo-o nos limites do trust que a ele foi confiado. Esse mecanismo de proteção judicial indica, também, que no processo de desenvolvimento histórico do trust, apesar de a jurisprudência ter construído um rígido sistema de controle que protege os interesses do beneficiário, o instituto continua a ter como traço marcante a confiança, com a peculiaridade de que tem o judiciário o poder de fixar os padrões de fidelidade e consciência a serem observados pelo trustee. (CHALHUB, 2006, p. 27-28). Essas características restaram cada vez mais consolidadas pela jurisprudência, as quais circundam esses pilares acima expostos, da confiança e da finalidade a que visa o trust constituído, de onde se extrai, conforme também dito, a afetação do substrato patrimonial que foi empregado, o que se confirma também do seguinte excerto: 68 No trust, os bens entregues ao trustee constituem patrimônio de afetação, isto é, não se confundem com o patrimônio do trustee, na medida em que se tornam inalienáveis e impenhoráveis. O beneficiário tem a segurança de que seu domínio econômico não será perturbado e de que poderá gozar dos frutos com tranqüilidade. O que se permite ao trustee são atos de administração, que podem implicar a disposição de bens, para a melhor gestão do patrimônio. (FIUZA, 2008, p. 660). O reconhecimento dessa separação patrimonial tanto em relação ao patrimônio daquele que instituiu o trust quanto em relação ao patrimônio do trustee, visa, por óbvio, resguardar o alcance da finalidade que o fez existir e, por conseqüência, também do beneficiário. Portanto, da constituição do trust resulta proteção aos beneficiários, por tornarem os bens inalcançáveis por dívidas do trustee que, inclusive, no caso da insolvência deste, ficarão de fora do concurso de credores. Dada a importância do trust e sua crescente utilização na dinâmica dos negócios internacionais, tem-se buscado cada vez mais a consolidação dos entendimentos aplicáveis à matéria, tendo sido objeto de conferências internacionais, como a de Haia, realizada em 1984, na qual restou sedimentado: Alguns diplomas recentes vem definindo com maior clareza os elementos essenciais do trust, como a conferência internacional realizada em Haia em 1984, sobre Direito Internacional Privado em matéria de trust, ou o Recognition of Trusts Act de 1986, na Inglaterra (v. Jeffrey Hackney, Understanding Equity and Trusts, Fontana, Press, 1987, PP. 27-28). São eles: a) os bens formam uma massa separada do resto do patrimônio do trustee; b)os bens ficam em nome do trustee; e c) o trustee tem o poder (e o dever) de administrar os bens de acordo com as condições estabelecidas no trust, sendo responsável pela sua gestão. (WALD, 1995, p. 110). Essa importância não passou despercebida dos países filiados ao sistema romanogermânico, que preocupados com que a inadequação do ordenamento jurídico viesse a trazer prejuízos na atração de investidores estrangeiros, buscaram também realizar estudos e vias alternativas para contornar os principais obstáculos existentes entre um e outro ordenamento, o que será melhor elucidado no item 4.5.5 deste trabalho. 3.3 Problemas para a adoção do trust nos países de tradição romano-germânica Como consequência da globalização e das tecnologias que diminuíram as distâncias entre os mercados, intensificando o fluxo de negócios e de capitais e, de resto, estreitando as 69 relações internacionais, surgiu também a necessidade de melhor harmonizar o direito comparado no que se refere às características do trust e, quiçá, sua possível absorção pelos países pertencentes ao sistema romano-germânico, dentre eles o Brasil. Para tanto, mister se fez identificar a natureza jurídica do trust, precisar seus elementos, o que pode se dar mediante uma abordagem imediata, vale dizer, de seus elementos internos, ou mediata, no que se refere à sua função e repercussão em um sistema jurídico. E, quanto a essa sistemática, importante é a consideração a seguir: A abordagem imediata do “trust” procura determinar seu enquadramento em uma ou outra categoria de relações jurídicas com base romanística. Em vista disso, tal abordagem poderia ser suspeita de um certo artificialismo e mesmo de irrelevância quando aplicada sobre uma formulação típica da “common law” como o “trust”. Isso não se confirma após análise mais aprofundada, entretanto, da abrangência lógica das grandes categorias romanísticas, que tornam possível sua aplicação mesmo a sistemas de base diversa. Aliás, nos países do “common law”, várias questões atinentes à tributação dos “trusts” só puderam ser resolvidas tendo-se recurso a categorias romanísticas que permitiam determinar o momento em que o beneficiário de um “trust” adquiria a titularidade sobre a renda de um dado “trust”, assunto a que retornaremos mais adiante. As classificações romanísticas que se possa pretender sobrepor ao “trust” apresentam ainda óbvia utilidade quando se cogita da aplicação de regras de Direito Internacional brasileiro a “trust” constituído no exterior, caso em que a escolha de lei aplicável deve ser precedida de prévia qualificação do instituto. Serão também úteis quando se indagar, como é o objeto deste trabalho, sobre a possibilidade de aplicação de princípios do “trust” a institutos dele derivados existindo fora da “common law”, em sistema romanístico como o brasileiro. (SALOMÃO NETO, 1996, p. 58-59). Destarte, e a fim de buscar um enquadramento possível no ordenamento pátrio, a primeira questão que se traz à baila pertine à relação que se estabelece entre o trustee e o beneficiário, já que, como visto, no sistema anglo-saxão coexistem duas propriedades sobre o mesmo bem, o que é incompatível com sistemas de base romanística. Há entre eles uma relação obrigacional, configurando o beneficiário como credor daquele outro, consubstanciada por obrigação de dar, no que se refere aos frutos, e de fazer, no que se refere à administração eficaz e prática de atos, como investimentos, inerentes a essa função. Todavia, se sob essa ótica a identificação de uma relação obrigacional estaria correta, pois de fato é um dos efeitos emanados do trust, sob o enfoque da titularidade tal não seria, dada a impossibilidade de se excluir a titularidade também do beneficiário sobre os bens. Afinal, o beneficiário adquire, em relação aos bens e direitos sob trust, “um verdadeiro direito de seqüela que faz com que seu título prevaleça contra quaisquer terceiros adquirentes, exceto 70 nas raras hipóteses de aquisição onerosa por terceiros de boa-fé sem conhecimento da existência do ‘trust’.” (SALOMÃO NETO, 1996, p. 60). Vale dizer, não há uma simples relação de crédito e, portanto, um direito meramente pessoal, a esgotar os liames entre trustee e beneficiário. O direito de seqüela existente é incompatível com essa relação jurídica. Afinal, caso assim fosse, no descumprimento por parte do trustee, que viesse a alienar fraudulentamente os bens a terceiros, o beneficiário restaria relegado a perdas e danos, o que não equivale à realidade da common law. Essas conseqüências e dificuldades de adaptação foram apontadas por diversos autores, como se pode verificar dos seguintes trechos ora colacionados: Como já vimos, o fundamento básico do trust, sem o qual ele não pode existir, é a dupla propriedade dos bens, num esquema de alta maleabilidade, mas, ao mesmo tempo, com segurança para todas as partes envolvidas no negócio. Ocorre que, nos direitos de origem romana, prevalece o princípio da unicidade do domínio e da incindibilidade do direito subjetivo do proprietário, não podendo terceiros exercer em nome próprio direito de ação relativo à pretensão de outrem. [...] Assim, não é fácil conceber, no Direito brasileiro tradicional a duplicidade da propriedade, como ocorre no trust embora já exista uma situação análoga – mas não idêntica – na alienação fiduciária em garantia. [...] No Direito brasileiro, em virtude da exclusividade da propriedade, se alguém transfere um bem a outrem, ainda que com cláusula de retransmissão a um terceiro, ou de reversão a ele mesmo, o direito daí decorrente é pessoal, e não real, e, portanto, resolve-se em perdas e danos, embora reconheça a nossa legislação a propriedade resolúvel (art. 525 do Código Civil). (WALD, 1995, p. 110-111). Também nesse sentido, e com maior riqueza de detalhes, tem-se: Há, entretanto, alguns empecilhos à introdução pura e simples do instituto nos países de civil law, como o Brasil. Não há, em nossa clássica tradição romana, a possibilidade de, por exemplo, duas propriedades distintas conviverem harmoniosamente, tendo por objeto um mesmo bem. Para nosso sistema, a natureza do direito do trustee é de fácil entendimento. Trata-se de propriedade limitada por direito real de terceiro, o beneficiário. Já quanto ao direito do beneficiário, a questão é mais complexa. Não se trata de propriedade, como se configura na common law, pois esta seria, em nossa sistemática, direito exclusivo do trustee. Nem mesmo se poderia falar em condomínio, uma vez que os condôminos são titulares da mesma relação dominial sobre a coisa, o que não ocorre no trust, que se caracteriza por duas propriedades diferenciadas, propriedade formal e econômica. Poder-se-ia dizer que o beneficiário detém o domínio útil, mas este tem como apanágios o uso e a fruição. Despido o beneficiário do direito de usar, que é do trustee, não se pode falar em domínio útil. Por via de conseqüência, tampouco se pode falar em usufruto, pois este se fundamenta exatamente no domínio útil, de que é titular o usufrutuário e que falta ao cestui que trust. Vê-se, dessarte, que o trust, a ser adotado em países de tradição romano-germânica, deve sofrer algumas adaptações, para que não venha a se tornar esdruxulária, inútil e incompatível com o ordenamento jurídico. (FIUZA, 2008, p. 660-661). 71 Este o primeiro problema existente para a adaptação e, consequentemente, a fragilidade em se pretender apenas uma relação obrigacional, de caráter pessoal. Mas, não é só. Outro relevante problema advém do art. 591 do Código de Processo Civil16, reproduzido em sua essência também no art. 391 do novo Código Civil17, que estabelece o patrimônio de uma pessoa como uma universalidade, garantia de todas suas obrigações perante terceiros credores. Portanto, qualquer solução, através de instrumentos jurídicos dotados das principais características do trust, deverá ter em mente também a possibilidade de constituição de um patrimônio separado, vale dizer, de um patrimônio afetado a uma específica finalidade. Em vista disso, foi defendida a idéia, pela teoria objetiva do patrimônio, de que o trust encerra a constituição de um patrimônio separado, afetado a uma finalidade, e sem titular, tal como exposto por Lepaulle, que define o trust como “uma instituição jurídica que consiste em um patrimônio independente de todo sujeito de direito, cuja unidade é constituída por uma destinação, livre nos limites das leis vigentes e da ordem pública” (LEPAULLE apud SALOMÃO NETO, 1996, p. 62). Essa conceituação foi alvo de críticas. A uma, pelo fato de que, embora possível a constituição de um patrimônio afetado a uma finalidade, mas sendo o patrimônio entendido como o conjunto de relações jurídicas de uma pessoa, seria inadmissível um patrimônio desprovido de um titular. A duas, e ainda que superado o problema acima, perante terceiros seria o trustee o legítimo titular da coisa, inclusive com registro em seu nome, nos casos de bens imóveis, tal como se dá nos sistemas filiados à common law. Assim ocorrendo, qualquer credor particular daquele poderia comprometer o substrato patrimonial envolvido no negócio, sem a possibilidade de oposição por parte do settlor ou do beneficiário. Consoante já ressaltado, nos países da common law tais problemas não pairam sobre o trust, seja em decorrência da dupla propriedade, seja pela formação de um patrimônio de afetação em relação aos bens transferidos ao trustee. Assevera Arnoldo Wald (1995, p.111112) que esse risco da sujeição dos bens objeto do trust a credores pessoais do trustee poderiam ser mitigados com a instituição de cláusula de impenhorabilidade. Entretanto, na prática inviabilizaria “uma ágil e eficiente administração dos mesmos, que, em última instância, é o objetivo principal do negócio, sendo difícil, assim, a transmissão do trust para o direito brasileiro sem legislação própria.” 16 Art. 591. O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei. 17 Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor. 72 Desta forma, e na medida em que o aproveitamento direto do trust revelou-se inviável nos países de base romanística, por afrontar ao princípio da exclusividade da propriedade, passou-se à busca por institutos que exerçam funções análogas aos do trust, seja em relação à sua estrutura e funcionamento internos, seja nos seus efeitos patrimoniais, tanto em relação às partes envolvidas, quanto em relação a terceiros. Para tanto, vislumbrou-se nos modernos desdobramentos da fidúcia romana a solução para o problema, nos seguintes termos: Entretanto, há que se remarcar, mais uma vez, que o trust contempla, necessariamente, como característica fundamental, a dicotomia do direito de propriedade, pela qual podem coexistir sobre um mesmo bem dois direitos de propriedade (a legal property, do trustee, e a equitable property, do beneficiário ou cestui que trust), peculiar do direito anglo-saxão e não acolhido pelos sistemas de tradição romana. O trust em sua concepção natural só pode ter acolhida em países que adotem a dualidade da propriedade. Essa peculiaridade torna impossível a recepção pura e simples do trust pelos ordenamentos jurídicos de origem romana, daí porque a configuração de um instituto que possa exercer as mesmas funções do trust passa por uma construção doutrinária e legislativa assentada na possibilidade de separação de patrimônio e, consequentemente, na criação de patrimônios de afetação – nesse conceito, o proprietário de certos bens transmite-os a outrem para atender a determinados fins (de investimento, garantia ou administração, por exemplo), atribuindo a essa transmissão caráter puramente fiduciário; aquele que recebeu os bens tem sobre eles um domínio restrito (domínio fiduciário) e com essa propriedade fiduciária constitui um patrimônio de afetação, com a destinação específica e única de cumprimento da finalidade definida no ato de sua constituição. (CHALHUB, 2006, p. 33-34). Desta forma, em princípio, seria possível alcançar os principais elementos do trust através do desenvolvimento de institutos jurídicos dos sistemas de base romanística, que com funções análogas atendam aos anseios demandados pelo mundo globalizado. É o que se passa a analisar, com ênfase nas principais características do negócio fiduciário, das figuras similares já positivadas no ordenamento jurídico pátrio, e na possibilidade de constituição de um patrimônio separado, em busca dos efeitos econômicos e jurídicos do trust, “isto é, mediante a atribuição de um direito patrimonial – propriedade fiduciária – a alguém, para que o administre no interesse de outrem, mantendo-se a propriedade fiduciária em patrimônio apartado.” (CHALHUB, 2006, p. 36). 73 4 A FIDÚCIA 4.1 A fidúcia romana O que hoje se convencionou chamar negócio fiduciário tem sua origem na fidúcia romana, razão pela qual, antes de se pretender analisar a feição alcançada pelo instituto na sociedade hodierna, imperiosa se faz a elucidação de sua gênese. Os historiadores alegam a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de precisar o surgimento da fidúcia na sociedade romana. Otto de Souza Lima, dentre os doutrinadores pátrios talvez o que mais tenha se debruçado sobre o tema, com base em Vicenzo Ragusa, (1962, p. 11-12) revela os primeiros vestígios da fidúcia na Lei das XII Tábuas, em específico na Tábua VI – I, de onde se colhe: “Quum nexum faciet mancipiumque, uti língua nuncupassit, ita jus esto”.18 Cretella Júnior (2007) informa que no antigo direito a fidúcia fundava-se apenas na lealdade e na confiança, não existindo qualquer sanção, o que somente passa a ocorrer nos últimos tempos da República. É o que se confirma, com maior riqueza de detalhes, do seguinte trecho: Surgiu, depois, como um pacto adjecto, como um acôrdo, como uma convenção não formalista, através de uma cláusula secreta, como o quer Ihering, ou como “une contre-lettre”, segundo Geny. Aderia a uma convenção solene, translativa da propriedade – a mancipatio, ou a in jure cessio. Apresentava-se, portanto, à época da Lei das XII Tábuas, com aquelas palavras solenemente pronunciadas, a que a Tábua VI – I emprestava a fôrça de lei. Se não podemos ver neste texto, por falta de referência expressa, qualquer sanção, não há dúvida de que nele percebemos nìtidamente a existência da fidúcia. (LIMA, 1962, p. 13). Não obstante, o material arqueológico existente permite chegar com segurança a vários aspectos da fidúcia romana, mormente de obras jurídicas como as Institutas de Gaio, as Sentenças de Paulo, a Collatio, Fragmentos do Vaticano, Fórmula Bética e as Tábuas de Pompéia, com destaque para as duas primeiras. O contrato de fidúcia deve ter desaparecido antes do Império, face à ausência de vestígios no período. Mas teve grande aplicação no direito clássico, conforme se observa: 18 “Será lei entre as partes, quando sejam cumpridas as solenes formalidades verbais prescritas para assumir uma obrigação (nexum) ou para transferir a propriedade de uma coisa.” (RAGUSA apud LIMA, 1962, p. 10). Ou, ainda, “se alguém emprenha a sua coisa ou vende em presença de testemunhas, o que prometeu tem força de lei” (RESTIFFE NETO, 1975, p. 2) 74 Apresentou-se sob feições e funções diversificadas, compreendendo os seguintes tipos: a) fiducia cum amico, muito parecida com o comodato, em que um amigo entrega a outro uma coisa com transferência da propriedade, para dela fazer uso até ser pedida em restituição; b) fiducia cum creditore, em que o devedor, por força do contrato, transfere a propriedade da coisa ao credor, em garantia do pagamento de uma dívida, comprometendo-se o credor a retransmitir a propriedade ao devedor após o recebimento do que lhe é devido; c) fiducia remancipationis causa, pacto pelo qual o paterfamílias vende um filho a outro paterfamílias, com a obrigação assumida por este de libertá-lo em seguida, de forma tal que se obtenha o fim visado, que é a emancipação do filho. Destacava-se, entre elas, a fiducia cum creditore contracta (letra b, acima), que é a que nos interessa mais de perto dentro do objeto desta obra, e importava na perda da propriedade dos bens fiduciados, acarretando, como observa Nestor José Forster (Alienação Fiduciária em Garantia, ed. Sulina, 1970, pág. 11), o surgimento de figuras menos drásticas, como a hipoteca e o penhor, que não traziam tal conseqüência. (RESTIFFE NETO, 1975, p. 2) De fato, a fiducia cum amico prestava-se a várias finalidades, mormente para suprir a insuficiência da lei. Em seus primórdios, não admitia o direito antigo a transferência da propriedade ad tempus. Por isso, aquêle que quisesse fazer a um amigo um empréstimo de uso valiase da fiducia cum amico, e, assim, assumia esta forma de fidúcia o seu papel de comodato. Assim, antes de surgir esta figura jurídica no cenário romano, sua função era exercida através da fiducia cum amico. (LIMA, 1962, p. 73). E, mesmo depois de surgido o comodato, durante algum tempo passaram os institutos a coexistir, com funções semelhantes. Essa modalidade de fidúcia também exercia a função de depósito, nos tempos de disputas políticas internas, em que o lado mais frágil por vezes se via obrigado a fugir, valendo-se daquela para abrigar seus bens nas mãos de um amigo, evitando-se o confisco. A seu turno, a fiducia cum creditore, dentre todas, além de ser a de maior utilidade, é a que possui maior referência no acervo arqueológico encontrado. Tinha como função, como o próprio nome indica, a garantia de um crédito, tal como hoje se faz através do penhor e da hipoteca, com a diferença de apresentar ainda maior segurança, dada a efetiva transferência da propriedade. Sob outro enfoque, este era também seu grande inconveniente, por importar no desapossamento dos bens fiduciados, impossibilitando o devedor de gerar renda com o uso dos bens. Partiu desse inconveniente o surgimento daquelas duas outras formas de garantia, muito embora com elas tenha continuado a existir, por conferir maior garantia ao credor. Das Sentenças de Paulo colhem-se importantes aspectos, como o fato da fidúcia, em sua modalidade cum creditore, ter dado origem ao penhor, mas com ele coexistindo. É o que melhor elucida Lima: 75 Já se salientou que o penhor não transfere a propriedade ao credor. A fidúcia, ao contrário, quer pela mancipatio, quer pela in jure cessio, importava em transmissão da propriedade, de modo que, apesar da possibilidade da remancipatio, tornava-se o credor proprietário da coisa. Por isso, não podia ela ser-lhe vendida, como possível era em relação ao penhor. Para o nosso estudo, esta passagem é de subida relevância, como, no momento próprio, se verá. (LIMA, 1962, p. 33). Essa modalidade de fidúcia apresenta um caráter acessório, por ter pressuposta a existência de uma dívida. Revelava-se mais eficiente que o penhor, já que neste, se invalidada a obrigação, também o será a garantia. Das Institutas de Gaio colhe-se o fato de que “a fidúcia se fazia pela mancipatio e pela in jure cessio, ficando, portanto, afastada a traditio, que, segundo alguns escritores, era também usada para a constituição da fidúcia.” (LIMA, 1962, p. 28). Para confirmar esse entendimento, da não realização pela traditio, basta observar que a “mancipatio foi substituída pela traditio, após o período de Justiniano quando se aboliu a distinção entre res mancipi e res nec mancipi.” (ARAGÃO NETO, 2002, p. 25). A mancipatio era uma venda imaginária (imaginaria venditio), denominação emprestada pelo próprio Gaio. Era precedida de um ato solene, presenciado por pelo menos cinco testemunhas, cidadãos romanos, no qual o comprador, empunhando uma balança e tocando-a com uma barra de bronze, pronuncia determinadas palavras, invoca a venda, entregando o metal ao vendedor, simbolizando a confirmação do negócio, assim como simbólico o pagamento e preço figurativo. Entretanto, “o formalismo distingue a compra e venda da mancipatio: nesta só o adquirente fala e actua, enquanto o alienante se limita ao papel de mudo espectador e recebedor do dinheiro.” (KASER, 1999, p. 65). Mas, ao contrário do que possa parecer, nem de perto se aproxima de uma venda fictícia ou de um negócio simulado. Antes, trata-se de um modo abstrato de transferir a propriedade e, “como salienta o Prof. Alexandre Correia, a palavra imaginaria aqui não significa fictícia, mas correspondente à realidade visível” (LIMA, 1962, p. 49). Em outras palavras, transferência independente da causa da alienação, o que a configurava como modo geral de transmissão da propriedade. Como conseqüência, tem-se: O fiduciário, mancipio accipiens, torna-se o proprietário da coisa fiduciada e poderia alienar a terceiros com eficácia real, mesmo quando não fossem preenchidos os pressupostos da perda do direito do fiduciante de reaver a coisa. Porque neste caso, se a alienação da res fiduciária fosse realizada secundum jus, não era permitido ao fiduciante perseguir judicialmente o terceiro adquirente, e sua ação restringia-se ao fiduciário infiel. Pode-se dizer que este poderia validamente gravar de jura in re a coisa recebida, dispor por legado, tomar medidas contra qualquer detentor na 76 qualidade de proprietário, [...] em que é manifesto o sinal de seu pleno direito. (MESSINA apud LIMA, 1962, p. 49-50, tradução nossa)19. Tal constatação se depreende também de outros autores, nos seguintes termos: O fiduciário do Direito romano investia-se na plena titularidade dominial do bem fiduciado, dele sendo exclusivo senhor. Esta a razão pela qual só restava ao fiduciante confiar na lealdade e honestidade do fiduciário em retransmitir a coisa, pois que a única sanção, para o caso de violação desse dever por parte do fiduciário que dispusesse da coisa ou direito, era de ordem pessoal, relacionada com o direito do fiduciante de pleitear indenização, sem atingir o terceiro a quem a coisa foi alienada. (RESTIFFE NETO, 1975, p. 3-4). A seu turno, a in iure cessio, ou “cessão perante o tribunal” (KASER, 1999, p.67), outra forma solene de transferência da propriedade, distingue-se daquela fundamentalmente pela forma, de natureza processual, mas com a mesma eficácia. Operava-se perante um magistrado, através de uma reivindicação fictícia, com o emprego figurativo de uma forma processual, solene, a confirmar a transferência do domínio. Basicamente, o interessado na coisa a ser cedida comparece perante o magistrado e invoca para si a propriedade, como se sua já fosse, momento no qual o magistrado interroga o cedente sobre eventual oposição. No silêncio, ocorre a transferência da coisa ao vindicante. Percebe-se, destarte, possuir caráter abstrato, tal como a mancipatio, sem indicação da causa, sendo também um modo geral de aquisição da propriedade. Observava-se esta forma e a “in iure cessio, como a mancipatio, pode ter por fundamento todas as causas acima enumeradas [compra e venda, doação, constituição de dote, legado etc]; e, no seu efeito, é independente da validade da causa (que não é mencionada na forma do acto); é também um negócio abstracto” (KASER, 1999, p. 149). Em outras palavras, “tinha-se a transferência solene da propriedade ou da coisa, apresentando-se com a mesma eficácia que a mancipatio. Aliás, é o próprio Gaio quem o diz: ‘Quod autem valet mancipatio, idem valet et in iure cessio’ (II, § 23).” (LIMA, 1962, p. 53). Portanto, a fidúcia importava na transferência da coisa ou de um direito, o que se dava pela mancipatio ou pela in iure cessio, dois modos solenes de translação do domínio no Direito romano, da titularidade plena do direito. Transmissão esta, importante destacar, feita 19 Il fiduciário, mancipio accipiens, diveniva proprietario della cosa fiduciata e di essa poteva disporre liberamente di fronte ai terzi con efficacia reale, pur allora quando non fossero adempiuti i pressupposti di decadenza del fiduciante dal diritto di riavere la cosa. Poichè in tal caso, se l’alienazione della res fiduciaria fosse avvenuta secundum jus, non era consentito al fiduciante di molestare giudizialmente i terzi acquirenti, e la sua azione restringevasi al fiduciario infedele. Va da sè che questi poteva validamente gravare di jura in re la cosa ricevuta, diporne per legato, agire contro ogni detentore di essa in veste di proprietario, [...] nel Che è il segno manifesto del suo pieno diritto. 77 em caráter definitivo, embora limitada por uma obrigação de restituição, que, uma vez cumpridos os termos pactuados, se dava pela mesma forma, ou seja, pela mancipatio ou pela in iure cessio, o que confirma a plenitude da transferência. Transmitida a propriedade, o fiduciário adquiria todos os direitos daí decorrentes, inclusive em relação aos frutos da coisa. Mas, sob pena de enriquecimento indevido, o Direito romano garantia ao fiduciante a diminuição do seu débito. Nos Fragmentos do Vaticano encontra-se a confirmação do elemento real da fidúcia, de seus efeitos, do fiduciário como dominus e, assim sendo, titular de todos os direitos daí advindos: A ação de reivindicação pertence, evidentemente, ao fiduciário, como dominus que é; não pertence, ao contrário, ao fiduciante, porque, como o disse Gaio, em relação a ele, há simplesmente uma res aliena. Esta ação poderá ser exercida contra terceiros que detenham a coisa, ainda mesmo com a vontade do fiduciante, indicando o Fragmenta Vaticana a hipótese em que o fiduciário poderá obter o fundo que o fiduciante, mantido na posse, deu em dote ao próprio genro, sem poder transferir-lhe a propriedade, porque dela não era titular. Esta ação poderá ser exercida, também, contra o próprio fiduciante que tenha, ab initio, conservado a posse da coisa, ou que nela tenha entrado posteriormente. (LIMA, 1962, p. 81). Mas, essa hipótese de ser o fiduciante mantido na posse da coisa era pouco comum, tendo em vista os riscos que decorriam para o credor. Através da usureceptio, modalidade de usucapião, que dispensava a existência de justo título ou boa-fé, acaso mantido o devedor na posse por um ano, readquiria a propriedade da coisa transmitida, fosse ela móvel ou imóvel. Portanto, destacam-se da fidúcia romana dois elementos: a transferência da coisa, elemento real do negócio; e o elemento obrigacional (convenção), para dar à coisa destinação preestabelecida e respectiva restituição. Na sua etiologia, desdobra-se o negócio fiduciário em dois momentos: a) um real e ostensivo, que consiste na transmissão dos bens ao fiduciário em caráter de venda aparentemente pura e simples, pois do instrumento nada consta sugerindo a presença do elemento fiduciário; b) outro pessoal e secreto, que se formula na “ressalva” dada ao fiduciante, contendo a obrigação de retransferir a coisa adquirida, dentro do prazo e sob a condição estipulada. (PEREIRA, 1995, p. 277). Essa obrigação de restituição encontra-se consubstanciada no pactum fiduciae, entendida da seguinte forma: O segundo elemento da fidúcia romana é o pactum fiduciae, através do qual o fiduciário assumia a obrigação de restituir, ou, segundo a linguagem romana, remancipare, a res a ele transmitida. É o elemento obrigatório do negócio, do qual deriva a obrigação do fiduciário, afirmando, mesmo, alguns autores que ele é o 78 centro de gravidade da operação fiduciária. Limitava os efeitos da datio, porque esta tinha por fim transferir a propriedade. Não se conclua, daí, que houvesse uma alienação condicionada resolutivamente, porque a mancipatio não condizia nem com uma condição, nem com um termo, tendentes a uma restituição. (LIMA, 1962, p. 58). Verifica-se, assim, que a fidúcia não é uma operação una, tratando-se o pactum fiduciae de um elemento obrigacional, de caráter pessoal, com fins de restituição, sem retirar a eficácia translativa da propriedade operada em primeiro lugar e pela forma retro exposta, que constitui o elemento real da operação. Extinto o crédito garantido, emerge a obrigação de restituir, sendo que o pagamento apenas parcial da dívida não tinha esse condão, na medida em que a garantia fiduciária era tida como indivisível. De tudo isso exterioriza-se o objeto da fidúcia, que não pode ser confundido com a remancipatio, mas, sim, a coisa fiduciada. Aquela nada representava senão o cumprimento do próprio pactum fiduciae, após observado o preenchimento das respectivas condições. Estes dois elementos, real e obrigacional, compõem a operação fiduciária, o que pode ser convencionado conjuntamente, ou em separado, sendo certo que o primeiro tem existência própria e independente. O mesmo não acontece com o elemento obrigacional, já que a obrigação de restituir pressupõe, logicamente, um ato anterior. Daí por que, para se realizar a obrigação contida no pactum fiduciae, de remancipar a coisa, indispensável será a realização de outro ato translativo, igual ao anterior, via mancipatio ou in iure cessio, conforme o caso. Portanto, o pactum fiduciae não possui vida própria, restando seus desejados efeitos dependentes de um novo ato jurídico. Em decorrência disso, alguns autores concluem não ser um contrato, mas tão somente um pacto, em que pese a polêmica existente sobre essa específica distinção, decorrente da imprecisão romana entre pactum e contractus, o que foge ao objeto do presente trabalho. Nesse sentido, colhem-se os apontamentos feitos por dois destacados autores: A observação da operação jurídica ainda nos revela outra faceta que inclui, evidentemente, o pactum fiduciae como um simples pactum. A fidúcia é negócio abstrato e está sujeito a um evento futuro, que é o preenchimento do fim que teve em vista. Assim, o pactum fiduciae só terá realidade, quando do advento desse evento futuro. Trata-se, pois, evidentemente, de um pactum subordinado a uma conditio. Só terá existência quando realizada a condição. Ora, parece evidente que esta situação não se condiz com a natureza Contrato. (LIMA, 1962, p. 66). No direito pré-clássico, embora muito utilizada, a fidúcia, mediante a mancipatio ou a in iure cessio, transmitia a propriedade sobre a coisa do fiduciante ao fiduciário, mas o pactum aposto a esse ato de alienação, e pelo qual se comprometia o fiduciário a restituir a coisa ao fiduciante ou a dar-lhe determinada destinação, era um nudum pactum (pacto nu), e, portanto, desprovido de actio (assim, o fiduciante tinha de confiar apenas na fides do fiduciário, pois não dispunha de ação para 79 compeli-lo a restituir a coisa ou a dar-lhe a destinação convencional). Segundo parece – a matéria é muito controvertida -, foi o pretor, no direito clássico, quem sancionou esse pactum (denominado pelos autores modernos pactum fiduciae), mediante uma actio in factum. Posteriormente, nos fins da república, surgem duas ações in ius (o que significa que o ius civile reconhecia a fidúcia como um contractus) transmissíveis ativa e passivamente: a) a actio fiduciae directa (que era concedida ao fiduciante quando o fiduciário não restituía a coisa ou não lhe dava o destino combinado); e b) a actio fiduciae contraria (concedida ao fiduciário no caso de o fiduciante se negar ao cumprimento das obrigações que eventualmente surgissem para ele). (ALVES, 2008, p. 487). Outro aspecto de relevo trata da hipótese do credor, por interposta pessoa, pretender a alienação da coisa, em desacordo com o pacto firmado, o que não se admitia, conforme se verifica: Refere-se, pois, o texto, à supposita persona, à persona terza, ao chamado testa-deferro, que nós conhecemos como interposta pessoa. Fornece-nos, portanto, esta passagem subsídio valioso para a compreensão sobretudo dos arts. 1.132, quando há interposição de pessoas, e 1.720, de nosso Código Civil. Viu-se que o jurista romano afirma inexistir compra quando ela se faz per suppositam personam. Salienta, como se viu, o comentador que, em qualquer tempo, pode o devedor reaver a coisa, porque o penhor e a fidúcia, assim, não podem terminar. De fato, se o credor pignoratício não pode, diretamente, alienar a coisa, por não ser dela proprietário, não poderá, igualmente e pelo mesmo motivo, adquiri-la através de interposta pessoa e o motivo no-lo dá, magnìficamente ALVES MOREIRA: “não pode praticar-se indiretamente o que a lei diretamente não permite” (39). Em relação à fidúcia, ocorre o mesmo. O credor, que tem a titularidade mercê da fidúcia e, conseqüentemente, o poder de abuso, poderá alienar o objeto em questão, mas não a si mesmo, porque já é proprietário. Por isso mesmo, não poderá fazê-lo por interposta pessoa, visando, assim, a afastar a remancipatio. Veda-o a própria natureza do instituto. (LIMA, 1962, p. 33-34). A vedação da venda pelo credor encontra-se expressamente referida nas Sentenças de Paulo, em seu Livro Segundo, sem, contudo, impedir sua ocorrência, mormente na hipótese de insolvência do devedor, não tendo este a actio fiduciae nessa hipótese, mas somente para vindicar eventual excesso. Afinal, por se tratar de simples obrigação, com base na fides, o inadimplemento não gera senão o dever de indenizar. Colhem-se também das Institutas de Gaio, de forma expressa, as ações que tutelam a fidúcia, denominadas actio fiduciae, dentre as ações bonae fidei, das quais resultam, inclusive, a pecha de infamante aos condenados, conforme bem descreve o seguinte excerto: O fiduciante tem contra o fiduciário a actio fiduciae, que inicialmente se baseia apenas na fides (como dever de cumprir a palavra). No direito clássico, esta actio faz parte dos bonae fidei iudicia (infra §33 IV 3) e, com estes, do ius civile. [...] Quando a dívida for paga (ou for constituída outra garantia em vez da fiducia, ou o fiduciário incorrer em mora de aceitação), pode exigir-se a devolução com esta acção. Se a dívida não foi paga e a coisa foi vendida, a acção visa a restituição do mencionado 80 superfluum. Se o fiduciário não pode devolver a coisa ou só a devolve deteriorada, ou se procedeu na venda de forma desleal, responde por dolus (infra § 36 III 2 ). A condenação com base na actio fiduciae traz consigo a infâmia. Para exigir a indemnização pelos gastos que o fiduciário teve com a coisa e para outras pretensões (p. ex., por prejuízo causado pelo fiduciante) concede-se ao fiduciário contra o fiduciante uma reconvenção (actio fiduciae contraria), igualmente configurada como bonae fidei iudicium. (KASER, 1999, p. 181-182). Também expressa é a referência à ação do credor para se ressarcir das despesas e benfeitorias feitas na coisa fiduciada. E, conforme já demonstrado anteriormente, ainda que coubesse ao devedor ação contra o credor que não restituísse a coisa, caso esta tivesse sido alienada a terceiro de boa-fé, apenas lhe caberia direito a indenização, como decorrência do caráter absoluto da transferência realizada pelo fiduciário, titular da propriedade. Moreira Alves, ao tratar da fiducia cum creditore, à qual aponta como sendo a garantia real mais antiga que se encontra no direito romano, em decorrência das características retro expostas, assevera não ser um direito real sobre coisa alheia, na medida em que a transferência da propriedade é efetiva. Justamente por isso, via inconvenientes tanto para o credor como para o devedor, conforme ora se destaca: a) para o devedor, porque ele tinha de transferir a propriedade da coisa ao credor, não podendo fruí-la enquanto não se extinguisse o débito: além disso, às vezes, o devedor era obrigado a transferir a propriedade de coisa de valor bem superior ao do débito, não podendo, portanto, utilizar-se dela para a obtenção de outros créditos; e, enfim, o devedor, para reaver a coisa, ficava, primitivamente, na dependência exclusiva da vontade do credor, pois não dispunha contra este de uma actio (ação) para compeli-lo à restituição da coisa; e, mesmo mais tarde, quando surgiu a actio fiduciae, era ela uma ação pessoal contra o credor, razão por que, se este alienasse a coisa a terceiro, em vez de restituí-la, o devedor, pela actio fiduciae, podia obter apenas indenização pelo não-cumprimento do pacto de restituição da coisa (pactum fiduciae), e não a anulação da venda ao terceiro; b) para o credor, porque, embora com a transferência da propriedade da coisa ficasse ele perfeitamente garantido, se ela recaísse na posse do devedor, este, ao fim de apenas um ano (mesmo se se tratasse de imóvel), recuperaria a propriedade sobre ela, mediante uma modalidade especial de usucapião denominada usureceptio. É certo que o inconveniente que a fiducia cum creditore apresentava para o credor e um dos que ela acarretava ao devedor (privá-lo do uso da coisa) podiam ser remediados se credor e devedor concordassem – o que, por certo, nem sempre ocorreria – em que a coisa continuasse na posse do devedor, a título de precário ou de locação. Assim, o devedor continuava a usar da coisa, e o credor não podia perdêla pela usureceptio, porquanto a posse (ou a detenção) do devedor era a título de precário ou de locação, e não de propriedade. Mas, para os outros inconvenientes, com relação ao devedor, não havia remédio jurídico.” (ALVES, 2008, p. 363). Assim, torna-se possível vislumbrar os contornos da fidúcia romana, ainda que seja necessária uma depuração de sua definição. Segundo Jacquelin, “um acordo baseado na boafé, com um ato solene translativo de um direito de propriedade ou direito de poder, sujeito a 81 um outro ato jurídico contrário para anular os efeitos do primeiro.” (JACQUELIN apud LIMA, 1962, p. 40, tradução nossa)20. Verifica-se que a essência da fidúcia encontra-se na boa-fé e, justamente por isso, teve grande aplicação no Direito romano, mormente em seu início, como forma de quebrar, ainda que parcialmente, sua solenidade. “Trata-se da idéia-mãe da fidúcia. Um meio extralegal, com base na boa-fé, para contornar a lei.” (JACQUELIN apud LIMA, 1962, p. 41, tradução nossa)21. O referido autor, após trazer ainda mais definições, propostas por diversos outros autores, dentre eles, Giuseppe Messina, Pietro Bonfante e Carlo Longo, sintetiza: Todas estas definições e todos estes elementos permitem-nos dizer que a fidúcia é uma convenção, pela qual aquêle que recebeu uma coisa ou um direito, pela mancipatio ou pela in jure cessio, se obriga à restituição, quando satisfeito o fim ou preenchida a destinação. Esta é a fidúcia que os romanos nos legaram e que influência marcante exerce na conceituação do negócio fiduciário da atualidade. (LIMA, 1962, p. 44). Estas são as principais fontes históricas e entendimentos sobre a fidúcia romana. Entretanto, com as compilações realizadas por Justiniano, que reinou entre 527 a 565 d.C., às quais se passou a denominar Corpus Iuris Civilis22, a fidúcia foi substituída pelo penhor, pelo depósito, pelo comodato e pelo mandato, prejudicando outras análises. Em outras palavras, “quando o comodato, o depósito e o penhor se tornam contratos distintos, para os quais basta a transferência da posse, perde a fidúcia a utilidade de que se reveste, não sendo, pois, invocada pelos contratantes.” (CRETELLA JÚNIOR, 2007, p. 188). Justiniano via a fidúcia como instituto antiquado. A mancipatio e a in iure cessio, que eram modos formais de transferência da propriedade, haviam desaparecido, tendo a fidúcia caído em desuso. Nesse período, “em face das modificações ocorridas, a traditio passou a prevalecer, provocando o desuso da mancipatio e da in jure cessio.” (ARAGÃO NETO, 2002, p. 25). Também quanto a isso: Em suma, pode-se concluir que a fidúcia, após ter existência viva e aplicação variada no direito romano clássico, servindo, não só a funções de garantia, mas também, pela forma da fiducia cum amico, as finalidades as mais diversas, passou a entrar em declínio, pelo declínio da mancipatio e da in iure cessio, e, por fim, desapareceu, por completo, da legislação de Justiniano, onde só encontramos 20 Une convention basée sur la bonne foi, ayant pour cause un acte solennel translatif d’un droit de propriété ou d’un droit de puissance, et pour objet un autre acte juridique inverse tendant à anéantir les effets du premier. 21 Eis por que o próprio Jacquelin, em página magnífica, ressalta, indicando “L’idée-mère de la fiducie” e seu destino, que ela é ‘um moyen extra-légal, basé sur la bonne foi, en vue de tourner la loi” [...]. 22 Denominação utilizada em 1538 pelo romanista francês Dionísio Godofredo. 82 vestígios de sua existência pelo exame de textos, alguns visìvelmente interpolados, e, outros, de interpolação duvidosa. Mas, a realidade é que este instituto ressurgiu no direito moderno, como uma imposição da própria vida jurídica e para preencher, como no direito romano, lacunas e deficiências da legislação atual. (LIMA, 1962, p. 87). Mas, indubitavelmente, a fidúcia, desde seus primórdios, “serviu de meio adequado ao atendimento de finalidades queridas pelas partes, mas que não encontravam no sistema jurídico vigente o instrumental adequado.” (RESTIFFE NETO, 1975, p. 5). 4.2 A fidúcia no Direito Germânico Os povos germânicos tinham no costume a mais importante fonte do direito, ao menos até o século XVI. Desta forma, poucas eram as leis e, ainda assim, raramente cuidavam do Direito Privado. Não obstante, com o aumento do tráfego negocial ocorreu a recepção do direito romano. E, isso, não pela boa técnica e sistematização desse direito. Na verdade, a necessidade que emergiu da expansão mercantilista se associou mais ao fato de se considerarem os sucessores dos romanos. Entretanto, em específico quanto à fidúcia, não é correto dizer tenha ela sido adotada de forma idêntica à dos romanos, muito embora apresente de forma indubitável algumas características, principalmente no que se refere às finalidades almejadas, mas se distanciando quanto à natureza e limitações sobre a pessoa do fiduciário em relação à coisa. Otto de Sousa Lima (1962) exemplifica com base na fidúcia pignoris iure, que segundo alguns autores teriam tido continuidade no direito longobardo com o mesmo nome ou nomes similares. E, de fato, é no penhor da propriedade que se observam os elementos de cunho fiduciário na transferência fiduciária da propriedade, através do qual se operava a transmissão da coisa entre devedor e credor, mas com a realização de um pacto adjeto que a condicionava, tendo por objeto a restituição do bem. Esclarece o retro citado autor: MESSINA, que também identifica essa instituição à fidúcia romana, ao descrever sua forma, deixa bem claro que ela, realmente, tinha todos os característicos da transmissão fiduciária. Por ela, o devedor transferia ao credor, com escopo de garantia, um fundo, mediante a entrega de uma carta venditionis. O credor contemporâneamente prometia, através de uma contracarta, restituir, não só o 83 documento, mas também o próprio fundo, no caso de tempestivo pagamento do débito. Ora, esta venda, através da carta venditionis, dava ao penhor imobiliário do direito longobardo, a mesma característica da operação real, na fidúcia romana. De outro lado, a obrigação de restituir, que o credor assumia com a entrega da contracarta, configura, como na fidúcia romana, o elemento obrigacional. Nada mais, portanto, será preciso consignar para a demonstração da equivalência deste instituto à fidúcia romana. (LIMA, 1962, p. 92). Mas outras figuras também existiam, com outras peculiaridades e características. Uma delas consiste no manusfidelis, que era um intermediário, partícipe de atos inter vivos ou causa mortis, chamado para determinados atos de liberalidade ou para a manumissão de um escravo após a morte de seu dono, denominados esses atos de donatio pro anima. Tal intervenção por parte do manusfidelis se fazia necessária em decorrência de excessivas formalidades demandadas para esse ato, o que, como regra, impedia o doador de realizá-las oportunamente. Então, a transmissão dos bens do doador era feita àquele, pessoa de confiança, com amplos poderes de disposição, para que, “a seu critério, praticasse atos necessários à salvação da alma do doador. O poder conferido ao manusfidelis não se limitava à redação de uma carta donationis, ou carta elemosinaria, implicando, também, a própria venda do patrimônio para o fim de aplicar o produto em pio escopo.” (LIMA, 1962, p. 93). Sequer era necessária a pré-determinação do destinatário dos bens, sendo realmente amplos os poderes do manusfidelis no cumprimento da vontade do doador, inclusive estando este ainda vivo. Outra figura de interesse para as manifestações da fidúcia encontra-se no salmann, também um intermediário, que no antigo direito medieval era incumbido pelo proprietário de realizar a transferência de determinados bens que recebia, a um terceiro. Já no novo direito medieval, diferia-se pelo fato de fazer as vezes de fiduciário do adquirente dos bens, e não do alienante, tendo, assim, poderes para tal mister, vale dizer, para adquirir em nome daquele, ou para intervir como reforço do direito do adquirente. Importante destacar que o Salmann, que não se confunde com um mandatário, e diferentemente das hipóteses do direito romano, tornava-se titular de um direito real, mas limitado pela vinculação a um fim determinado. Exercia esse direito real como verdadeiro titular, até o implemento da futura transmissão ao destinatário. Descumprida essa obrigação, com indevida alienação a terceiros, tinha o destinatário ou seus herdeiros direito de retomar a coisa, a denotar grande diferença em relação a fidúcia romana, o que também pode ser destacado do seguinte excerto: 84 Na estrutura do direito germânico, no que interessa às considerações sobre a evolução da fidúcia e dos institutos afins, sobreleva a figura de intermediários denominados manusfidelis e salmann. Era o manusfidelis pessoa de confiança a quem competia, em cumprimento a atribuições a ele conferidas, transmitir bens a um beneficiário ou praticar atos de liberalidade visando a doações pro anima. O salmann era um intermediário através do qual se fazia a transmissão de um bem do proprietário para o adquirente/beneficiário. Anota Messina que, no antigo direito medieval germânico, o salmann recebia seus poderes do alienante, obrigando-se, de forma solene, a transmitir os bens ao terceiro destinatário, enquanto que no novo direito medieval germânico o salmann passara a ser fiduciário do adquirente, e não do alienante, de modo que os poderes por ele recebidos não o eram para transmitir o bem ao destinatário, mas para adquirir o bem para este, ou com este intervindo para reforçar o direito do adquirente. O salmann recebia efetivamente a propriedade e passava a exercer sobre ela um direito real, enquanto não transmitisse a propriedade ao destinatário determinado, sendo certo que esse direito real era limitado pelo fim que determinava a intervenção do salmann. Desse modo, o disponente e seus herdeiros tinham o direito de retomar a coisa do poder de terceiros, em caso de infidelidade do salmann, dispondo de um direito real de reversão. (CHALHUB, 2006, p. 18) Desta forma, verifica-se que tanto na fidúcia romana quanto na germânica há efetiva transferência da propriedade. Mas, enquanto naquela tal transmissão conferia poder ilimitado ao fiduciário, o que implicava em relegar o fiduciante, com base em obrigação pessoal, a perdas e danos, no direito germânico o fiduciário encontrava-se limitado pela condição resolutiva da propriedade, com eficácia erga omnes. Em outras palavras, a propriedade fiduciária resultante do negócio fiduciário do tipo germânico equivale a uma propriedade limitada pela sua destinação, “porque subordinada a condição resolutiva (o pagamento do débito pelo devedor), motivo por que, se o credor, antes de ocorrida a condição, a transferir a terceiro, este a adquirirá também como propriedade resolúvel, perdendo-a para o devedor, se a dívida não for solvida.” (ALVES, 1973, p. 135). 4.3 A fidúcia moderna A realização desse percurso histórico sobre as manifestações da fidúcia em diferentes territórios e circunstâncias, separadas também pelo tempo, fez-se relevante para que do cotejo dessas diferentes situações se pudesse extrair uma constatação no mínimo interessante, qual seja, de que a fidúcia tinha por função preponderante preencher as lacunas do sistema jurídico vigente, que não possuía instrumental adequado, de modo a atender à finalidade almejada pelas partes. Sistemas esses dotados de diversas debilidades, mormente no que pertine ao 85 demasiado apego à forma e à observância de solenidades, incompatíveis com a dinâmica social. Otto de Sousa Lima, com muita propriedade, destacou, ainda, o seguinte: Mas, as necessidades da vida e o desenvolvimento das atividades humanas exigiam, sempre, novas formas e novos tipos jurídicos. De outro lado, é evidente que qualquer sistema jurídico não poderá ser renovado diàriamente para a satisfação daquelas novas necessidades e, aí, torna-se imprescindível a sua adaptação, visando a normalizar aquelas novas exigências sociais. Eis, pois, o campo de aplicação da fidúcia: tornar dúctil um sistema jurídico fechado. E aquelas necessidades e atividades em desenvolvimento constante, ainda hoje ocorrem e com maior intensidade. Hoje, como ontem, a vida humana, em seu evoluir contínuo e constante, exige do sistema jurídico de qualquer povo a ductilidade necessária para tornar jurídicas as mais variadas manifestações da atividade humana. [...] qualquer sistema jurídico moderno terá que fugir, sempre, à rigidez e estreiteza, para adaptar-se convenientemente às novas exigências sociais. Não poderá, portanto, apresentar-se com o mesmo caráter de outrora, em que a estreiteza e a solenidade eram traços característicos. Não poderá, assim, sob pena de faltar à sua própria finalidade, fechar-se em numerus clausus e dentro de formas típicas e evidentemente insuficientes. Deverá ter, portanto, a elasticidade necessária para acompanhar a evolução da sociedade, satisfazendo, dessa forma, às novas necessidades ou exigências da vida humana. E hoje, como ontem, a fidúcia preenche plenamente esta função. [...] Assim, segundo Jacquelin, é a fidúcia um meio extralegal, baseado na boa-fé, que permite preencher as lacunas da lei e quebrar-lhes as imperfeições. (LIMA, 1962, p. 127-128). Os argumentos ora colacionados, apesar de contarem com quase meio século, possuem atualidade extrema e vêm sendo repisados cotidianamente por diferentes doutrinadores. O demasiado apego à forma, a visão cerrada em um sistema que por vezes parece não se referir a uma ciência social, e que de maneira quase cartesiana parece pretender adequar a realidade ao direito, e não o contrário, termina por faltar com sua própria finalidade. Ao invés de trazer segurança jurídica, faz o contrário, relegando à incerteza aqueles que procuram clareza na prática de uma atividade lícita, própria da realidade de uma época, mas que o direito não conseguiu acompanhar. Pela simples existência de lacunas, de situações não previstas, o que de certo acontecerá mais e mais na atualidade, não pode e não deve qualquer sistema jurídico relegar essas mesmas situações a uma seara de quase marginalidade, como se vedadas fossem. E disso também não se descurou o retro festejado autor, ao qual mais uma vez se socorre, para que o afirmado acima não seja mal compreendido: 86 De fato, constituindo um dos direitos individuais mais legítimos, o de fazer tudo o que não é vedado por lei, não poderia a Justiça, sob a alegação de que o meio usado não é previsto, deixar de admitir o ato. Quando, entretanto, este ato é vedado por lei; quando o meio empregado não é admitido em Direito, inválido seria o ato, porque, então, não se estaria suprindo lacunas da legislação, mas sim infringindo suas disposições. Desta forma, desde que o ato não seja vedado e desde que o meio empregado não seja proibido por lei, plenamente válido será ele, por constituir o exercício de uma liberdade individual. Assim, pois, dentro da sistemática de um corpo legislativo, será sempre permitida a prática de qualquer ato, desde que não vedado e desde que sua forma não seja proibida. (LIMA, 1962, p. 129). Lado outro, verifica-se também das diversas manifestações da fidúcia no decorrer da história tratar-se de um instituto que foi sendo adaptado para o atendimento das exigências de determinada época, de forma lenta e gradual, ora suprindo lacunas, sem o comprometimento do sistema vigente, ora dando azo ao surgimento de novas figuras, inovando o ordenamento. Aliás, tal evolução é uma constante do gênero humano, que por sua criatividade faz inovar a vida social que fatalmente não terá, em dado momento, previsão específica a regular as novas relações surgidas das necessidades de um determinado local e época. É o que assinala, também, o autor abaixo transcrito: Surgem num dado momento da vida social vicissitudes que não hão de encontrar previsão nos padrões assentados que lhes dêem provimento. E como tudo o que diga respeito ao relacionamento humano acaba por interferir com a ordem jurídica, os reflexos acabarão detectados e a partir de um dado momento iniciar-se-á o processo de conscientização e de equacionamento por construções, de início supralegais, que preencham as lacunas naturais do sistema codificado. Tais construções exteriorizam-se de conformidade com os princípios e normas de caráter positivo, mas ocultam internamente uma vontade extravasante, não sancionada, ainda, pelo Direito vigente. Funciona a fidúcia, então, como uma espécie de acelerador que imprime força dinâmica à inércia jurídica de que fala Tullio Ascarelli. Abre e, na feliz expressão de Otto de Sousa Lima, torna dúctil um sistema jurídico fechado (ob. cit., pág. 127). (RESTIFFE NETO, 1975, p. 6) É o que se constata em relação à fidúcia, que na sua modalidade cum creditore do direito romano deu origem, por exemplo, à hipoteca, vindo a ser esquecida à época das compilações de Justiniano, mas certamente incorporado no ordenamento jurídico de então, ainda que sob diferentes rubricas. Veio a ressurgir em diferentes momentos e lugares, com diferentes feições, também na busca da satisfação de novas exigências sociais, sendo que, na atualidade, “sob seu velho arcabouço, debaixo de sua estrutura, se abriga o moderno negócio fiduciário, cujo estudo se funda atualmente naquele instituto...” (LIMA, 1962, p. 131). Curioso notar também que a fidúcia romana, destinada à garantia, continuou a existir por algum tempo mesmo após o surgimento da hipoteca e do penhor, dada a maior segurança que proporcionava ao credor. O mesmo se constata na atualidade, já que nas diversas 87 manifestações do comércio tem-se a necessidade de uma garantia realmente segura, mas, principalmente, é o que se verifica na realidade do mercado de capitais, no qual a incolumidade do lastro patrimonial necessário à emissão de títulos apresenta-se como indispensável não apenas ao seu funcionamento, mas também como proteção à economia popular. De resto, forçoso reconhecer que as garantias reais, principalmente as decorrentes do penhor e da hipoteca, tiveram sua eficácia bastante reduzida na atualidade, face às proteções e presunções outorgadas aos créditos tributários e trabalhistas, créditos de natureza privilegiada, que terminam por vulnerar aquelas em caso de confronto. E mesmo em regular concurso de credores, há preferência do crédito trabalhista em relação aos demais. Tais aspectos também não passaram despercebidos do retro mencionado autor que, após citar outros exemplos de relativização das garantias reais no ordenamento jurídico pátrio, e destacar a importância do crédito, conclui: Nestas condições, o cerceamento do crédito pelo enfraquecimento das garantias constitui, sem dúvida alguma, mormente na época atual, uma mal sem remédio. Daí, como conseqüência, a necessidade indeclinável de uma revisão da matéria, para que o crédito, obtendo garantia suficiente, continue a desempenhar o papel que sempre desempenhou nas sociedades, de propulsor do progresso e de elemento decisivo no desenvolvimento das atividades humanas. E a sabedoria dos antigos vem-nos indicar, para esse fim, o velho instituto romano da fidúcia, em suas novas vestes e sua denominação atual de negócios fiduciários. E para acentuar essa necessidade indeclinável, nada melhor do que ressaltar com Dutot, que “o crédito bem dirigido eleva ao décuplo os fundos de um comerciante; ele ganha tanto pelo seu crédito como se tivesse dez vezes outro tanto em dinheiro. O crédito é, portanto, a maior riqueza para quem exerce o comércio”. Em suma, o reexame da fidúcia romana e o estudo do moderno negócio fiduciário, sôbre constituir tema sedutor, é uma imposição da sociedade atual, visando a melhor garantir o crédito, para que êle se torne mais fácil e possa, dessa forma, exercer sua alta importância econômica. (LIMA, 1962, p. 137). Se por séculos garantias como a hipoteca e o penhor se prestaram de forma eficiente aos fins almejados, a partir do final do século XIX esse quadro restou modificado, seja em decorrência da constituição de créditos privilegiados, seja também pela necessidade de se adequar a execução dessas garantias ao ritmo demandado para a circulação de riquezas, que teve ainda maior impulso com o desenvolvimento do capitalismo financeiro. Nesse sentido: É nesse contexto que juristas europeus, em reposta a esses reclamos, cunharam a figura do negócio fiduciário, inspirados na fidúcia cum creditore do direito romano, procurando viabilizar a transmissão da propriedade como meio de proteger mais eficazmente o crédito, não só através da rápida composição das situações de mora, como, também, mediante afastamento da concorrência dos créditos preferenciais. (CHALHUB, 2006, p. 38). 88 Mister destacar ainda outra relevante questão, sob o enfoque do devedor. Conforme elucidado quando da abordagem da fidúcia romana, existia a preocupação de garantir o credor, mas da forma menos onerosa àquele, buscando-se, a partir disso, uma via para que pudesse permanecer na posse dos bens, mantendo-o, assim, com os meios necessários à sua subsistência e ao pagamento do débito. Hodiernamente tais aspectos apresentam-se com muito maior intensidade, dada a intensidade e o dinamismo do comércio no mundo globalizado, do qual emerge a relevância do crédito para todos. Após ponderar a necessidade de conciliação dessas circunstâncias, que demandam a evolução do direito moderno, José Carlos Moreira Alves arremata: Para atingir esse objetivo, o direito moderno, atentando para o manifesto desapreço do crédito pessoal em nossos dias, em virtude do ritmo febricitante da circulação de bens aliado ao crescimento constante e progressivo da população, tem modelado, principalmente através de construção doutrinária, garantias reais que decorrem da conjugação da transferência da propriedade com o não desapossamento da coisa que era do devedor e que serve para garantir o pagamento do débito. A utilização do direito de propriedade com escopo de garantia já ocorreu, em Roma, na fidúcia, e, atualmente, se verifica, entre outros exemplos, nos negócios fiduciários dos tipos romano e germânico. O que é certo, portanto, é que, a partir, precipuamente, do século passado, se tem sentido, cada vez mais, a necessidade da criação de novas garantias reais para a proteção do direito de crédito. As existentes nos sistemas jurídicos de origem romana – e são elas a hipoteca, o penhor e a anticrese – não mais satisfazem a uma sociedade industrializada, nem mesmo nas relações creditícias entre pessoas físicas, pois apresentam graves desvantagens pelo custo e morosidade em executá-las, ou pela superposição a elas de privilégios em favor de certas pessoas, especialmente do Estado. (ALVES, 1973, p. 2-3). Passa-se, desta forma, à análise do negócio fiduciário, de suas principais características e, posteriormente, de sua viabilidade como instrumento jurídico hábil a atribuir segurança nas operações de securitização de crédito no Brasil. 89 4.4 O negócio fiduciário em sentido estrito 4.4.1 Principais características Como visto, os estudos desenvolvidos sobre a fidúcia se deram após a perda de eficácia das garantias tradicionais, do prejuízo causado ao crédito e, ainda, em face da necessidade de conciliação dos interesses do credor e devedor. Com base nela se buscou a formação de um instrumento jurídico hábil à solução desses problemas, acrescidos, ainda, da dinâmica demandada pelo capitalismo, que passou a precisar de novos instrumentos jurídicos que assegurassem as novas modalidades de negócios, dentre eles, mais recentemente, a securitização de crédito. Mas, antes de se adentrar na análise das principais características do negócio fiduciário, uma distinção terminológica se faz necessária, evitando-se confusões. Foi nessa busca por novos instrumentos jurídicos, com base na fidúcia romana, que inicialmente surgiu a figura do negócio fiduciário que, enquanto gênero, é tido como sinônimo de fidúcia. Todavia, com sua assimilação nos ordenamentos jurídicos modernos, tendo sido positivadas algumas das manifestações da fidúcia, dotadas, portanto, do arcabouço necessário à regulação dessas relações, essas figuras são consideradas como espécies daquelas, conhecidas por fidúcia legal, e serão abordadas mais adiante, nas quais a lei tornou real o direito à restituição da coisa. Àquelas manifestações da fidúcia, não reguladas pelo ordenamento jurídico, é que se denomina no presente trabalho de negócios fiduciários stricto sensu. Feitos estes esclarecimentos, passa-se, em primeiro plano, à análise das principais características do negócio fiduciário stricto sensu. José Carlos Moreira Alves (1973) informa ter sido do jurista alemão Regelsberger o primeiro artigo a tratar do negócio jurídico fiduciário e, de 1878, outro, do jurista Kohler, que fez a distinção entre este e o negócio indireto. Destaca, ainda, com suporte em Lothar Kaul, que também tratou do tema em dissertação no ano de 1910, a existência de diferentes opiniões nesses trinta anos, dada a ausência de disciplina legal. “Nesse ponto, de 1910 a esta parte, o panorama pouco mudou” (ALVES, 1973, p. 5). Na busca por uma conceituação do negócio fiduciário, o retro citado autor fez a seguinte tradução de trecho do artigo de Regelsberger: 90 Ainda nesse trabalho, esclarecia Regelsberger que a característica do negócio fiduciário se encontrava na desproporção entre o fim e o meio, e arrematava: “Para a obtenção de determinado resultado é escolhida forma jurídica que protege mais do que é exigido para alcançar aquele resultado; para a segurança do uso é atribuída a possibilidade do abuso na compra. [...]” Portanto, já para Regelsberger, na fase inicial da construção da teoria do negócio fiduciário, este se desfigurava quando, de alguma forma, se vinculasse a posição do fiduciário ao escopo a que se visava com o negócio, porquanto, nesse caso, desapareceria a desproporção entre o fim e o meio. Posteriormente, em 1893, nas Pandekten, Regeslberger aludiu, também, embora sem maior ênfase, à fides (confiança) do fiduciante no fiduciário. (ALVES, 1973, p. 23). Essa pioneira concepção foi criticada, na medida em que, ao invés de conceituar, termina por destacar elementos do negócio fiduciário, dentre eles, e um dos mais marcantes, a desproporção entre o fim visado e o meio empregado, mas sem permitir que se extraia dessa menção a compreensão da essência do negócio fiduciário. O retro mencionado jurista pátrio traz à baila o surgimento de importante inovação no curso da definição do negócio fiduciário, em relação ao qual, posteriormente, deu azo à sua concepção dualista: Mas foi Goltz quem, oito anos mais tarde, trabalhando sobre a concepção de Regelsberger, deixou bem claro que o negócio fiduciário, em sua estrutura íntima, resulta da conjugação de dois contratos: a) de contrato real positivo, em virtude do qual se dá a transferência normal do direito de propriedade ou de direito de crédito; e b) de contrato obrigatório negativo, pelo qual nasce para o fiduciário a obrigação de, após utilizar-se de certa forma do direito que lhe foi transmitido, o restituir ao fiduciante ou o retransferir a terceiro. (ALVES, 1973, p. 23-24). Francisco Ferrara, após trazer à baila esses mesmos ensinamentos de Goltz, traz esclarecimentos mais precisos quanto aos efeitos de um e de outro contrato, nos seguintes termos: Este segundo contrato tende a reservar ao fiduciário uma certa influência sôbre a coisa transmitida, de modo a que possa impor ao fiduciário o usar sòmente da sua posição jurídica para fins determinados, e obrigá-lo à restituição do direito ou da equivalência obtida; e, em caso de violação, obter a indemnisação do dano. Esta influência, no entanto, é puramente indirecta, porquanto a convenção negativa não afecta a eficácia real da transmissão; não a limita nem subordina – a transferência da propriedade ou do crédito subsiste pura e incondicionada – antes se trata duma protecção indirecta por meio de uma obrigação pessoal do fiduciário. Assim, pois, o transmitente, uma vez despojado definitivamente do seu direito, não pode reclamá-lo já, não pode voltar a tirá-lo das mãos do fiduciário ou de terceiros, e possue sòmente um crédito para a sua restituição. Os dois negócios, o real e o obrigatório, caminham paralelamente entre si e ficam de certo modo independentes, mesmo quando o segundo representa um constrangimento a não abusar da eficácia do primeiro. (FERRARA, 1939, p. 78). 91 Já Grassetti, citado por Otto de Souza Lima, compreende por negócio fiduciário “uma manifestação de vontade pela qual se atribui a outrem um direito de propriedade, mas no interesse do transferente ou de um terceiro”23 (GRASSETTI apud LIMA, 1962, p. 161, tradução nossa). Após trazer outros esclarecimentos de Grassetti à sua conceituação, o retro citado autor pontua os principais: Esta definição já é mais precisa. Acentua a atribuição plena que o fiduciante faz ao fiduciário de seu direito. Afirma a natureza real dessa atribuição e, por via de conseqüência, afirma, também, o poder de abuso. Ressalta, mormente na explicação dada, o elemento confiança. Nega, porém, Grassetti, a desproporção entre o meio e fim, afirmando que o meio empregado é o único capaz de levar ao fim colimado. Por esta definição, em suma, já se tem, mais ou menos, uma noção precisa do que seja o negócio fiduciário. (LIMA, 1962, p. 162). Esses mesmos esclarecimentos sobre a teoria de Grassetti foram feitos também por Moreira Alves (1973, p. 26), mas acrescenta que foi o referido jurista quem, em 1936, criticou a concepção dualista, já que o negócio fiduciário, “ao invés de resultar da conjugação de dois negócios jurídicos intimamente vinculados, é negócio unitário e causal. Sua causa é a causa fiduciae atípica, porque não está disciplinada na lei.” Esta a concepção monista do negócio fiduciário, existindo ainda hoje adeptos de ambas, mas com maioria na teoria dualista. Judith Martins Costa (1990, p. 40-41) informa que essa divergência doutrinária causou forte discussão quanto à possibilidade de adoção do negócio fiduciário em determinados sistemas, tendo em vista que, se aceita a concepção dualista, ou seja, a existência de dois negócios, forçoso seria admitir a abstração de causa e, portanto, admissível apenas nos ordenamentos jurídicos em que os atos de transferência do domínio fossem abstratos. Nessa hipótese, e com suporte em Massimo Nuzzo, chegar-se-ia à conclusão de que esse negócio reclamaria dois elementos, sendo “um negócio idôneo à transferência do domínio, separado do negócio causal, e a abstração desse negócio, de modo a produzir efeitos reais mesmo na hipótese de falta de uma causa idônea à transferência do domínio.” Assim ocorrendo, assevera que a solução estaria na tese unitária que, conforme também apontado por Nuzzo, o negócio fiduciário seria “negócio causal uno e incindível que se projeta na direção de um escopo unitário’, composto por duas partes, e instrumentalmente dirigido a um escopo diverso do fim típico.” (COSTA, 1990, p. 41). 23 “Per negozio fiduciario intendiamo una manifestazione di volontà con cui si attribuisce ad altri una titolarità di diritto a nome proprio ma nell’interesse, o anche nell’interesse, del trasferente o di un terzo”. 92 Todavia, referida autora traz à baila, ainda, o escólio de Clóvis Couto e Silva, que permite a solução dessa celeuma, nos seguintes termos: No entanto, compreendida a relação obrigacional como processo onde se encadeiam suas diversas fases ou planos – o do nascimento e desenvolvimento e o do adimplemento – é possível ultrapassar tais divergências. Em sistemas de separação absoluta dos planos, o negócio dispositivo tem vida autônoma, exigindo, em conseqüência, vontade diversa da do ato que cria dever e, assim, causa também diversa. Mas, como se sabe, o sistema brasileiro, afastando-se de concepção estritamente causalista do Código Napoleônico, adota sistema de separação relativa dos planos, não tendo “o negócio dispositivo, vida autônoma a ponto de exigir vontade diversa do ato que cria dever” de modo que “a declaração de vontade que dá conteúdo ao negócio dispositivo pode ser considerada como co-declarada no negócio obrigacional antecendente”, pois “na vontade de criar obrigações insere-se naturalmente a vontade de adimplir o prometido”. A percepção deste fenômeno, colocando a questão da causa em suas efetivas dimensões conduz à separação das dificuldades por onde navegaram – e por vezes naufragaram – os doutrinadores ao tratar das particularidades geradas pela estrutura do negócio fiduciário tendo em vista a possibilidade de sua inserção nos diferentes sistemas de transmissão do domínio. (COSTA, 1990, p.41). Não obstante, importante constatar que a opção por uma ou outra concepção não acarreta divergência entre os autores quanto aos efeitos da transmissão e a relação meramente obrigacional advinda do pacto fiduciário. Pontes de Miranda (1954, p. 115-116) entende que todas as vezes em que a transmissão de um direito ou de uma propriedade “tem um fim que não é a transmissão mesma, de modo que ela serve a negócio jurídico que não é o de alienação àquele a quem se transmite, diz-se que há fidúcia ou negócio jurídico fiduciário.” Posteriormente (1966, p. 341), analisando a questão sob o enfoque do elemento obrigacional, ou elemento vinculativo do fiduciário, assevera como característico do negócio fiduciário o fato de que, se de um lado essa transferência da propriedade possui eficácia erga omnes, “a relação jurídica entre o fiduciante e o fiduciário persiste entre figurantes, intra partes, se o sistema jurídico, na espécie ou no caso, não atribuiu, também, a essa relação jurídica a eficácia erga omnes, como se dá, por exemplo, nos fideicomissos.” Otto de Sousa Lima, após a análise das definições apresentadas por diversos doutrinadores, realiza a sua própria: Apresentadas tôdas estas noções e tendo em vista seus elementos essenciais, poderemos tentar nossa definição, escrevendo: Negócio fiduciário é aquêle em que se transmite uma coisa ou direito a outrem, para determinado fim, assumindo o adquirente a obrigação de usar deles segundo aquêle fim e, satisfeito este, de devolvê-los ao transmitente. São postos, assim, em relevo a transmissão fiduciária, isto é, determinada por um fim convencionado e a obrigação de restituição, preenchido aquêle fim. O negócio 93 aparece, desta forma, em todos os seus elementos essenciais e, por isso, devidamente conceituado. (LIMA, 1962, p. 170). Assim sendo, no negócio fiduciário tem-se uma transferência da propriedade de bens ou a titularidade de um direito, mas sendo certo que não é essa transmissão pura e simples o fim desejado pelas partes. Lado outro, funda-se na confiança e conta com um elemento de natureza real, advindo dessa transmissão, e outro de natureza obrigacional, consubstanciado na restituição desse mesmo bem ou direito ao transmitente ou a terceiro, após alcançado o objetivo almejado. Nesse sentido, colhe-se: Na verdade, trata-se de dois momentos de um mesmo negócio. Num primeiro momento, ter-se-ia contrato de efeitos reais, pelo qual o fiduciante transfere a propriedade de uma coisa ou a titularidade de um direito para o fiduciário. Num segundo momento, ter-se-ia um contrato, denominado pactum fiduciae, pelo qual o fiduciário se obrigaria a remancipar os bens adquiridos, uma vez cumprida a finalidade do negócio. Este pacto fiduciário tem natureza creditícia, não gerando, em princípio, qualquer direito real de (re)aquisição para o fiduciante. É pacto, por assim dizer, oculto, uma vez que não ganha publicidade, sendo ato de interesse exclusivo dos celebrantes. Se não cumprido, porém, admite execução específica e, se esta for inviável, por perdas e danos. Vê-se, pois, que os negócios fiduciários são moeda de duas faces, havendo até quem defenda que se cuida, na verdade, de dois negócios distintos, embora alinhavados como se fossem um só. (FIUZA, 2000, p. 15). Verifica-se, desta forma, que essa conjunção de dois momentos distintos em um mesmo negócio é traço característico do negócio fiduciário, no sentido de que não se buscou a transferência da propriedade de um bem, pois, caso assim fosse, ter-se-ia uma compra e venda. Encontra-se essa transferência, no contexto do negócio fiduciário, voltada para o cumprimento de uma finalidade específica, prevista pelas partes, que pode ser para a administração em benefício de outrem, como para fins de garantia, dentre outros. A realização da transferência é fundamental, pois caso contrário poderia ser confundida, por vezes, com o mandato. Portanto, revela-se no negócio fiduciário uma incongruência entre o escopo estabelecido e a via utilizada, já que se vale de um contrato típico, mas destinado a alcançar finalidade outra. Ou, sob outro enfoque, tem-se o estabelecimento de um negócio jurídico cujos efeitos não se encontram em perfeita consonância com o fim econômico pretendido. Pelo contrário, esses efeitos extravasam o resultado econômico normalmente obtido pelo contrato típico, mas com as temperanças da fidúcia, modesta garantia para que o fiduciante transfira de forma ilimitada a propriedade de bens ou a titularidade de direitos ao fiduciário. Nas palavras de Pontes de Miranda (1954, p. 117), nos negócios jurídicos fiduciários, “o fim é o fim próprio do negócio, mas há outro que coincide ser o fim econômico. Dá-se, então, 94 diferenciação entre o fim técnico do negócio jurídico. Em verdade, negócio jurídico fiduciário é negócio jurídico + fidúcia.” Também sobre essa discrepância entre o fim jurídico e o econômico colhe-se: Desta análise deduz-se que o negócio fiduciário provoca um efeito jurídico mais amplo para conseguir um fim económico mais restrito. Transfere-se o domínio para obter o fim limitado da garantia. Cede-se o crédito para obter o fim do recebimento. Existe, pois, uma contradição entre o fim e o meio empregado: usa-se um meio mais forte para obter um resultado mais fraco, emprega-se uma forma jurídica mais importante, para obter um efeito menor. E eis a essência do negócio fiduciário. E’ um negócio que vai mais além da finalidade das partes, que supera a intenção prática, que tem mais conseqüências jurídicas do que as que seriam necessárias para se alcançar o fim em vista. [...] Nota-se, pois, como diz Kohler, uma incongruência entre o aspecto económico e o aspecto jurídico do negócio. Quere-se um negócio, mas com fins econômicos que não são homogêneos com as conseqüências jurídicas do próprio negócio. (FERRARA, 1939, p. 78-79). Quanto ao requisito confiança, posto encontrar sua origem na fidúcia romana, possui a mesma ênfase de outrora e guarda as mesmas características na atualidade, conforme pontifica o autor a seguir: O fator confiança, que remonta às origens da fidúcia e lhe justifica o nome, continua presente nos negócios fiduciários da atualidade: o transferente confia na lealdade e honestidade da outra parte em se servir da propriedade ou direito solenemente transferido, apenas para a destinação internamente convencionada, cumprindo a seguir a obrigação de retransmitir. (RESTIFFE NETO, 1975, p. 11-12). É nesse segundo momento do negócio fiduciário que se destaca o fator confiança, traço marcante, consistente no risco, ou situação de perigo, a que fica sujeito o fiduciante em relação ao fiduciário. Sendo este o real proprietário da coisa ou titular do direito, pode dar a ela o destino que bem entender, de forma contrária à finalidade estipulada, sem que conte o fiduciante com um direito de seqüela. Em outras palavras, o cumprimento da finalidade pretendida com o negócio fiduciário pactuado depende exclusivamente da boa-fé, da conduta do fiduciário, com total vulnerabilidade do fiduciante. Afinal, o pacto fiduciário, tal como já apontado desde a sua gênese romana, não tem o condão de neutralizar o efeito real operado pela transferência da coisa, que se opera erga omnes. Vale dizer, não tem aquele eficácia em relação a terceiros, o que se confirma também neste trecho: 95 É característica do negócio fiduciário, assim, tal como destacado por René Jacquelin, a articulação entre a transmissão da propriedade e uma convenção firmada entre as partes com o fim de neutralizar os efeitos do direito real transmitido, pois embora aquela transmissão torne o fiduciário proprietário pleno e definitivo da coisa, ressalva-se que ela se efetiva só com o propósito de dar ao fiduciário as condições necessárias para administrar um patrimônio, ou para outra finalidade que as partes tiverem definido no pactum fiduciae, como pode acontecer com o endosso pleno de uma cambial, que, embora tornando o endossatário titular pleno do direito de crédito nela expresso, é formalizado tão-só para que se efetive a cobrança do título. Assim, muito embora consubstancie uma transmissão de propriedade, o negócio fiduciário tem o seu efeito de direito real parcialmente anulado por um pacto adjeto, como assinala Tullio Ascarelli: “o característico do negócio fiduciário decorre do fato de se pretender, ele, a uma transmissão da propriedade, mas de ser, o seu efeito de direito real, parcialmente neutralizado por uma convenção entre as partes em virtude da qual o adquirente pode aproveitar-se da propriedade que adquiriu, apenas para o fim especial visado pelas partes, sendo obrigado a devolvê-la desde que aquele fim seja preenchido. Ao passo que os efeitos de direito real, isoladamente considerados e decorrentes do negócio adotado, vão além das intenções das partes, as ulteriores convenções obrigacionais visam justamente restabelecer o equilíbrio; é assim possível o uso da transferência da propriedade para finalidades indiretas (ou seja, para fins de garantia, de mandato, de depósito).” Evidentemente, a eventual neutralização, por meio do pactum fiduciae, do efeito do direito real transmitido, resulta exclusivamente da boa-fé, pois, uma vez transmitido o direito ao fiduciário, fica o fiduciante sujeito ao arbítrio daquele. (CHALHUB, 2006, p. 43-44). Portanto, no negócio fiduciário estricto sensu revela-se a existência desses dois momentos, sendo o primeiro o elemento real, operado pela transferência plena, ampla e ilimitada da propriedade de um bem ou da titularidade de um direito, adquirindo o fiduciário definitivamente a propriedade ou titularidade. No segundo momento, exsurge o elemento obrigacional, de natureza pessoal, consubstanciado pelo pactum fiduciae, através do qual o fiduciário é obrigado a se valer da coisa fiduciada em consonância com os fins estabelecidos e, uma vez alcançados, deverá restituir aquela ao fiduciante. Pela conjugação desses dois momentos é que se manifesta, por via indireta, a vontade das partes contratantes, ainda que com vulnerabilidade do fiduciante, mas sendo certo que é também nesse aspecto que se caracteriza o negócio fiduciário. Afinal, conforme elucida Ferrara (1939), a proteção que se alcança por via da obrigação pessoal em face do fiduciário é insuficente e precária, posto não abarcar a integralidade do interesse que visa resguardar, resultando o negócio fiduciário em um expediente dotado de vantagens, mas também de riscos contrários aos propósitos das partes. E esse inconveniente resulta especificamente dos dois efeitos emanados do negócio fiduciário, sendo o primeiro decorrente da transferência da propriedade, dotado de efeito real, e o segundo, consubstanciado no pacto fiduciário, dotado de eficácia pessoal. 96 Outros interessantes esclarecimentos são feitos por Ferrara (1939) que, além de destacar os efeitos emanados do negócio fiduciário, faz também o necessário contraponto entre o fim econômico e o jurídico, de forma a não permitir possa ser confundido com outros instrumentos jurídicos já existentes, assim como destaca as conseqüências da transferência da propriedade. É o que se colhe do seguinte excerto: O negócio fiduciário produz a transferência plena e absoluta do direito: a finalidade limitada para a qual se realisa não limita jurìdicamente a disposição. O fiduciário torna-se proprietário e credor perante todos e pode usar como entender oportuno do direito adquirido. E’, pois, inexacta a concepção de Dernburg que distingue no negócio fiduciário duas relações, uma externa e outra interna, e ao mesmo tempo que reconhece a plena titularidade do fiduciário em relação a terceiros, considera que, em relação ao fiduciante, o fiduciário não passa dum simples mandatário. Confunde-se aqui o fim económico da disposição com a sua forma jurídica. Verdade é que as partes quiseram conseguir o objectivo prático da representação; mas, para o conseguir, servem-se duma forma jurídica mais forte, com efeito mais amplo, da transmissão do direito, e portanto assumiram até os riscos de semelhante posição. O fiduciário não se reveste simultâneamente duma dupla qualidade, mas converte-se em titular do direito perante o proprio alienante, sem que o fim económico da transmissão se desenvolva fora da relação obrigatória; de modo que quando este fim se efectiva, a propriedade ou o crédito não voltam ipso iure ao transmitente ou cedente, mas este sòmente pode exigir a retrocessão. Derivam várias conseqüências da plena titularidade que o fiduciário adquire. Antes de mais nada, pode alienar vàlidamente a coisa recebida sub fiducia e a alienação é eficaz mesmo que o adquirente conheça a sua qualidade. Por outro lado, toda a disposição ou emprego da coisa fiduciária, mesmo em oposição com o fim expresso no contrato obrigatório, constitue um exercício legítimo do direito. (FERRARA, 1939, p. 85-86). Essa a desvantagem existente no negócio fiduciário, já que a transferência realizada outorga ao fiduciário a titularidade plena e absoluta, podendo-se valer da coisa para finalidade outra, diversa da pactuada, mas sendo certo que também nisso reside uma de suas peculiaridades. O pacto fiduciário realizado não tem o condão de resguardar o fiduciante em sua integralidade, já que, como visto, seus efeitos se limitam a obrigar pessoalmente o fiduciário, de usar da propriedade do bem ou da titulariade do direito transferido apenas para a persecução do fim estabelecido, com posterior restituição, seja para o fiduciante, seja para determinada pessoa. Mas, não tem efeito em relação a terceiros e, portanto, não atribui direito de seqüela, mas tão somente direito de indenização em face do fiduciário infiel. Consoante adverte Francisco Ferrara (1939, p. 89), caso o fiduciário abuse de sua posição jurídica “alienando ou utilisando em proveito próprio o direito de que se trata, é responsável pela indemnisação de perdas e danos. E’ esta a única defesa com que fica o transferente no caso em que o fiduciário atraiçoe as suas esperanças.” 97 Desta forma, todo negócio fiduciário stricto sensu conta com a existência dos dois elementos, um real e outro obrigacional, com suas respectivas eficácias. À falta de qualquer deles, não há falar-se em negócio fiduciário stricto sensu. Portanto, e tendo em vista a complexidade e distintos momentos encontrados no negócio fiduciário stricto sensu, trata-se de contrato atípico, posto não regulado por lei específica. É consensual, já que resulta de um acordo de vontades, podendo ser solene, ou não, conforme exista previsão legal quanto à necessidade de cumprimento de certas formalidades para a transmissão da coisa ou, caso contrário, satisfaça-se por simples tradição. E, em qualquer caso, sempre terá natureza real, posto depender da efetiva entrega do bem. Por fim, poderá ser oneroso ou gratuito, a depender do arranjo estipulado, vale dizer, se ambas as partes, fiduciante e fiduciário auferirem vantagem. É bilateral, na medida em que encerra obrigações para ambas as partes. Será principal, “como são os casos em que a transmissão da propriedade se dá para efeito de administração patrimonial, ou acessório, quando a transmissão da propriedade se efetiva para fins de garantia, como nos contratos de empréstimo em geral, em que este, o de empréstimo, é o contrato principal.” (CHALHUB, 2006, p. 48). Como já informado quando da análise da fidúcia romana, o objeto do negócio fiduciário é a coisa transmitida que, segundo o entendimento abaixo colacionado, deve ser sempre um bem infungível: Conseqüência direta do elemento obrigacional da restituição, inerente ao negócio fiduciário, que corresponde, no momento de sua pactuação, à esperança-confiança do fiduciante em recuperar a res pela lealdade e honestidade do fiduciário, é que as coisas fungíveis frustram os pressupostos da edificação do instituto, que não têm previsão legal. Assim, são as coisas infungíveis as únicas que permitem ao fiduciante acreditar na recuperação e que tornam viável a assunção da obrigação de restituir por parte do fiduciário. Elas é que podem, portanto, ser objeto do pacto fiduciário. (RESTIFFE NETO, 1975, p. 9-10). Dentre as finalidades a que se prestam os negócios fiduciários, podem ser destacadas duas modalidades, quais sejam, a de garantia e a de administração. Dentre os negócios fiduciários mais comumente utilizados encontra-se a compra e venda para fins de garantia que, aliás, é a modalidade mais antiga, desde os romanos. Por essa via, o devedor-fiduciante transfere ao credor-fiduciário um bem em garantia ao cumprimento de sua obrigação, sendo facultado ao fiduciário a alienação do bem caso não ocorra o pagamento pelo fiduciante, sendo-lhe restituída eventual diferença. 98 Há também o negócio fiduciário para fins de administração, utilizado em situações em que a outorga de um simples mandato não se apresenta recomendável. Assim, transfere-se a propriedade de bens ou a titularidade de direitos ao fiduciário, para que possa o fiduciante, ou o beneficiário, tal como aponta Chalhub (2006), conservar, administrar ou explorar esses bens transferidos. Importante o destaque feito por esse mesmo autor, de ser essa modalidade uma das modalidades mais utilizadas no mercado de capitais: Atualmente, esta é uma das hipóteses mais freqüentes e que desperta maior interesse, dada sua relevância na economia contemporânea. É o caso típico de fundos de investimento, em que o fiduciante entrega ao fiduciário certa soma de dinheiro para que faça inversões em negócios que dêem rentabilidade e promova sua administração, com a obrigação do fiduciário de restituir o capital e seus rendimentos. Nessa modalidade de negócio as instituições administradoras devem ser previamente credenciadas pelas autoridades monetárias, devendo, para tanto, preencher determinados requisitos, e são submetidas a rigoroso controle e fiscalização por partes dessas autoridades, dado o interesse público que envolve a economia popular. No negócio de administração é também muito comum a gestão de negócios imobiliários. (CHALHUB, 2006, p. 63). Os negócios fiduciários são também utilizados para fins de recomposição de patrimônio, nas hipóteses em que o fiduciante, não sendo insolvente, não se sente habilitado a realizar a administração dos seus bens com essa finalidade. Há, ainda, a cessão fiduciária para fins societários, recorrente principalmente no âmbito das sociedades anônimas, através da qual o titular de ações, por não se sentir confortável para votar diretamente sobre determinados assuntos, evitando qualquer indisposição com os administradores, cede fiduciariamente suas ações a determinada pessoa para que o faça em seu próprio nome. Essas as principais modalidades encontradas na prática dos negócios fiduciários stricto sensu. 4.4.2 Negócio fiduciário e negócio simulado: uma distinção necessária Não obstante a existência de dois momentos distintos de um mesmo negócio, e a desproporção entre o meio utilizado e o fim desejado, mas sendo certo que essa finalidade é prevista e desejada pelas partes, importante destacar que o negócio fiduciário não pode ser considerado como uma simulação. 99 Conforme asseverado por Otto de Sousa Lima (1962, p. 192), “a confusão do negócio fiduciário com o negócio simulado tem constituído um dos maiores entraves ao perfeito conhecimento de nosso instituto, causando incertezas várias sôbre êle.” Relembra a origem do instituto, das formas de transferência da propriedade, quais sejam, a mancipatio, que nos dizeres de Gaio seria uma imaginaria ventidito, e a in iure cessio, correspondente a uma reivindicação fictícia, e com base nesses fundamentos compreende a confusão que alguns autores, “desatentos à própria natureza do negócio, viam nele, apenas, uma simulação.” Ademais, adverte que aqueles que confundem negócio fiduciário e simulação não acompanharam a evolução daquele instituto, as funções a que se presta a fidúcia, mormente para dar azo às manifestações da autonomia da vontade, suprindo-se deficiências do ordenamento, com a criação de novas formas jurídicas, satisfazendo-se as demandas sociais, e arremata: Não se visava, com a fidúcia, como não se visa hoje com o negócio fiduciário, a simular coisa alguma. Procura-se, tão-só, completar o sistema legal, com a adoção de formas jurídicas não previstas, expressamente, em lei. [...] O negócio fiduciário não visa a fraudar a lei. Se o visasse seria necessàriamente nulo. Visa a tutelar negócios que se não enquadram em dado sistema legal. Seria, como já disse alguém, uma espécie de contrato inominado. Ora, o contrato inominado não encontra, também molde legal, mas, nem por isso, será um contrato in fraudem legis. [...] Não há dúvida que o negócio fiduciário poderá constituir, como, aliás, qualquer outro ato jurídico, uma fraude à lei. Nestes casos, sua nulidade é evidente, mas não simplesmente por ser negócio fiduciário, mas por conter uma fraude à lei. (LIMA, 1962, p. 193-194). Ademais, esclarece que, diferentemente do que se passa em um negócio simulado, no negócio fiduciário não há simulação na causa desse mesmo negócio. Existe verdadeira intenção de alienar, que efetivamente ocorre, a tanto que mesmo nos primórdios da fidúcia a mancipatio e a in iure cessio eram formas solenes de transmissão da propriedade. E, de outro lado, há a real intenção de se alcançar o escopo, lícito, visado pelas partes. Sob outro enfoque, não há que se falar na existência de simulação em um negócio real pelo simples fato das partes envolvidas terem utilizado um meio que não corresponde perfeitamente ao fim. Francisco Ferrara (1939), muito citado por diversos autores nesse particular aspecto, inicia a distinção entre os negócios simulados e os negócios fiduciários, lembrando que os primeiros são negócios fingidos, formulados na exclusiva busca de uma situação aparente. Trata-se de negócio vazio de consentimento, não pretendendo alcançar resultado econômico 100 ou jurídico, sendo absolutamente nulo, não acarretando a transferência de direitos e, por isso, aquele que simula continua como proprietário. Referido autor destaca a seriedade dos negócios fiduciários e, portanto, realizados de forma efetiva entre as partes, as quais buscam a realização de um determinado efeito, desejando o negócio com todas as suas consequências jurídicas. E, ainda, elucida: As partes, para realizarem os seus fins, vêm-se constrangidos a escolher uma forma divergente e mais ampla do que a que seria oportuna. Mas como querem conseguir aqueles fins a todo o custo, assumem os riscos e inconvenientes do meio perigoso de que usaram, fiando-se no compromisso fiduciário. Esta divergência entre o fim económico e o meio jurídico, dá um caráter especial ao negócio fiduciário que apresenta uma fisionomia ondulante e equívoca. Daí nascem as intrincadas confusões em que caem a doutrina e a jurisprudência ao apreciar todos estes negócios, que se subordinam ao conceito de simulação. (FERRARA, 1939, p. 79). Esse mesmo autor, após citar conclusão formulada por Goltz, no sentido de que o negócio fiduciário é uma mistura de verdade e aparência, um meio termo entre negócios reais e simulados, não deixa de realizar necessária contextualização: Esta maneira de pôr a questão é inexacta, porque se é certo que, económicamente, as partes perseguem um efeito diferente daquele que o meio jurídico a que recorreram exprime e que, dêste modo, chegam a ocultar a sua finalidade econômica, isso não impede que o negócio seja sério e real no seu revestimento jurídico e que o fim particular com que as partes contrataram careça de importância sob o ponto de vista do direito. Encontramo-nos, quando muito, perante um dissimulo económico, visto que o patrimônio do fiduciário parece ter aumentado, quando, na realidade, por efeito da obrigação negativa que neutraliza o da transferência, permanece como estava – mas isso influência alguma pode ter na decisão do caráter jurídico do negócio. A venda continua sendo venda, ainda que o preço seja tão pequeno que não tenha qualquer equivalência com a coisa. [...] Por estas razões me parece mais justo chamar ao negócio fiduciário, como faz Regelsberger, um jogo com as cartas a descoberto, - já que os contratantes concluem um negócio real e visível para alcançar uma finalidade lícita – do que aproximar esta figura da da [sic] dissimulação. (FERRARA, 1939, p. 79-80). Também nesse sentido doutrina José Xavier Carvalho de Mendonça (1960, p. 86-87), na medida em que as partes que entabulam negócio fiduciário efetivamente o concluem, na busca de determinado resultado prático, assumindo os efeitos jurídicos que lhe são próprios, ainda que exista diversidade em relação ao fim econômico. “É justamente sob êsse ponto de vista que o negócio fiduciário se distingue do negócio fraudulento. Ambos constituem uma forma única de negócio, mas o primeiro visa a fim econômico fora da lei, o segundo fim econômico contra a lei.” Portanto, os negócios fiduciários são válidos, posto encerrar a realidade das manifestações de vontade ali exaradas e, ainda que existente a desproporção entre o 101 instrumento jurídico utilizado e o fim econômico almejado, há efetiva transmissão da coisa, passando o fiduciário a ser o proprietário perante todos, inclusive o fiduciante. Sobre não se tratar o negócio fiduciário de simulação, assim como sobre sua validade, existem vários julgados perante os tribunais pátrios, sendo pertinente trazer à colação ao menos um, do Superior Tribunal de Justiça. Nesse caso abaixo colacionado, apreciou-se um negócio fiduciário em garantia, no qual os fiduciantes-devedores transferiram sua propriedade ao fiduciário-credor, com a obrigação deste devolver a coisa após o integral pagamento. Sobrevindo o falecimento deste último, mas tendo sido paga toda a dívida, a viúva negou a devolução do bem, tendo sido proposta pelos fiduciantes ação declaratória, tendo por objeto a confirmação de existência de negócio fiduciário. Em contestação, sustentou-se a existência de prescrição, por tratar o caso, sob o enfoque da viúva e sucessora, de ação anulatória de contrato por simulação. O entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justiça, afastando o sofisma engendrado pela defesa, foi o seguinte: CIVIL. NEGÓCIO FIDUCIÁRIO. TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE DE IMÓVEL EM GARANTIA DE DÍVIDA. PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE EXISTÊNCIA DO PACTO. EFEITO NATURAL DE RETORNO AO ESTADO ANTERIOR, COM ANULAÇAO DA ESCRTIRUA. PRESCRIÇÃO. INCIDÊNCIA DA NORMA DO ART. 177 E NÃO DO ART. 178, §9º, V, b, CC. INEXISTÊNCIA DE AÇÃO ANULATÓRIA E NEM MESMO DE SIMULAÇÃO. RESCURSO DESACOLHIDO. I – O negócio fiduciário, embora sem regramento determinado no direito positivo, se insere dentro da liberdade de contratar própria do direito privado e se caracteriza pela entrega fictícia de um bem, geralmente em garantia, com a condição de ser devolvido posteriormente. II – Reconhecida a validade do negócio fiduciário, o retorno ao estado anterior é mero efeito da sua declaração de existência, pelo que o bem dado em garantia de débito deve retornar, normalmente, à propriedade do devedor. III – Inocorre, assim, qualquer pretensão desconstitutiva de contrato, mas sim declarativa de validade, o que afastaria a prescrição definida no art. 178, §9º, V, b do Código Civil. E nem mesmo se trata de simulação, porque no negócio simulado há um distanciamento entre a vontade real e a vontade manifestada, inexistente no negócio fiduciário. (BRASÍLIA, 1997). Chalhub (2006, p. 66) informa ainda ser escassa a jurisprudência pátria sobre negócios fiduciários. Traz à colação alguns acórdãos dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e de São Paulo, reconhecendo a validade dos mesmos, para os quais “com base na autonomia da vontade e na liberdade contratual, é lícita a criação de negócios jurídicos inominados, desde que tal criação não afronte o ordenamento jurídico, a ordem pública ou a moral, revestindo-se, portanto, de plena validade e eficácia.” 102 Importante esclarecer que não há que se confundir simulação com fraude, que possui natureza distinta, não sendo um negócio aparente. O negócio fraudulento é desejado em seus efeitos, mas visa uma violação indireta da lei. Trata-se de uma manobra, por vias transversas, tendente a escapar de determinada norma jurídica, mas de forma a não poder “ser diretamente reprovada e que, com o conjunto de meios oblíquos empregados, venha a conseguir-se o resultado que a lei queria impedir.” (FERRARA, 1939, p. 93). Em síntese, no negócio fraudulento busca-se uma alteração do estado fático regulado pela lei, de forma a tentar impedir a sua subsunção. Sequer é essencial no negócio fraudulento a consciência de que se busque alcançar um fim proibido. De certo que é possível que determinado negócio fiduciário se preste à realização de negócio fraudulento ou, por vezes, mesmo sem o pretender, apresente-se como ineficaz em relação a determinadas pessoas. Mas, nem por isso, pode-se questionar de sua validade, ainda que passível de ser anulado em algumas situações. A eventual existência de circunstância capaz de causar nulidade ou anulabilidade do negócio é questão à parte. Do trecho que ora se colaciona, podem ser colhidos esclarecimentos mais precisos quanto à validade dos negócios fiduciários: O negócio jurídico fiduciário pode ser fraudulento. Então, está exposto à anulabilidade por fraude contra credores (arts. 106-113), direito formativo extintivo cuja ação prescreve em quatro anos (art. 178, §9º, V, b), ou à execução, se em fraude de execução, por ser sem eficácia contra o exeqüente (nossos Comentários ao Código de Processo Civil, VI, 76, 80s. e 109 s.). Dá-se o mesmo por ineficácia, se é em fraude de arresto ou de seqüestro, ou outra medida constritiva. Noutros sistemas jurídicos, o negócio jurídico, se houve fraude, é nulo; no direito brasileiro, apenas é anulável. No direito comercial, persistiu, por insistência de conceito histórico, a revogabilidade, com base no art. 53 do Decreto-lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945 (lei de falências). Portanto, não se pode pensar em invocar-se o art. 622, parágrafo único. A transmissão da propriedade opera-se. O credor fraudado pode penhorar a pretensão restitutória do fiduciante contra o fiduciário, se a coisa lhe havia de ser devolvida; se, em vez disso, a entrega há de ser a outrem, o credor fraudado nada encontra no patrimônio do credor que possa penhorar. Nos casos de fraude à execução, ou ao arresto, ou ao seqüestro, ou outra medida de segurança, o ato do fiduciário, alienando, ou gravando, é ineficaz, porque o foi, ab initio, o ato do fiduciante. (MIRANDA, 1954, p. 124-125). E, mais adiante, Pontes de Miranda (1954, p. 127) arremata a questão, informando que “se o ato de disposição fiduciária é in fraudem legis, ou em fraude contra credores, permitindo, respectivamente, a alegação de nulidade, ou de anulação (no direito falencial, a revogação), é outra questão; nada tem com a existência do ato mesmo de disposição fiduciária”. 103 4.4.3 Consequências perante credores do fiduciante e do fiduciário De todo o exposto, verifica-se que pela estrutura e conseqüências jurídicas de um negócio fiduciário stricto sensu, através do qual o fiduciário passa a ser o proprietário do bem ou titular do direito transferido, estes integram seu patrimônio para todos os fins. Ao fiduciante restará tão somente um vínculo obrigacional com o fiduciário, um direito de crédito contra este. Assim ocorrendo, referidos bens ou direitos não mais comporão o patrimônio do fiduciante como garantia de seus credores. Lado outro, a recíproca é verdadeira, no sentido de que os credores do fiduciário poderão, sem qualquer reserva, satisfazer eventuais débitos através da penhora dos bens transferidos, os quais, inclusive, integrarão eventual concurso de credores, hipótese na qual estariam os bens “sujeitos a uma eventual falência do fiduciário (art. 39 da Lei de Falências) pois, a falência compreende todos os bens do devedor.” (PEREIRA, 1995, p. 111). Pontes de Miranda apresenta o seguinte entendimento sobre o tema: A relação jurídica entre o fiduciante e o fiduciário de modo nenhum atinge a relação jurídica do fiduciário com terceiros, quer se trate de sujeito passivo total, quer não (e.g., o devedor do crédito cedido). A relação jurídica de fidúcia é pessoal e sòmente estende a terceiros a sua eficácia segundo os princípios que regem, de ordinário ou de maneira especial, a extensão. Os direitos, formados ou formativos, que entram, com a aquisição, no patrimônio do fiduciário, podem ser objeto de execução por parte dos seus credores, inclusive execução concursal. Mas, de acôrdo com os princípios, o fiduciante é credor concursal, ou o é o terceiro a quem deve ser devolvido o bem da vida, pelo seu direito à devolução. O direito à separação ou restituição da coisa (Decreto-lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945, arts. 76-79), ou a pretensão à execução por coisa certa (Código de Processo Civil, arts. 992-997) só existe se a transferência se deu sob condição resolutiva e essa se realizou. Na execução concursal do fiduciante, o fiduciário pode exercer o seu direito à restituição ou separação, salvo se o alcança alguma regra jurídica dos arts. 52-58 do Decreto-lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945. Se a transmissão foi para garantia, o credor-fiduciário tem direito à restituição, ou separação, quanto a todo o objeto, enquanto não se lhe paga a dívida. O síndico da execução concursal apenas pode exigir que se venda o bem e se entregue o resto à massa concursal. O mesmo há-se de observar quanto à cessão de crédito para garantia: o crédito não entra no concurso, porque não é mais do fiduciante, posto que o resto do que se apurar se haja de entregar à massa concursal. Num e noutro caso, a venda do bem ou a cobrança do crédito não é feita pelo síndico. (MIRANDA, 1954, p.119). Também esse o entendimento esposado por Chalhub (2006) que, aliás, colaciona o retro transcrito posicionamento de Pontes de Miranda, esclarecendo a correspondência dos 104 dispositivos legais invocados aos da atual Lei de Recuperação Judicial24. Aponta no sentido de que, caso a falência ou insolvência seja do fiduciário, a coisa fiduciada deverá integrar a massa, restando ao fiduciante tão somente a condição de credor, conseqüência do pacto fiduciário realizado. Afinal, conforme assevera, “a insolvência do fiduciário é um dos riscos a que o fiduciante está sujeito quando celebra o negócio fiduciário, é uma situação de perigo tanto quanto o é a possibilidade de o fiduciário vender a coisa a terceiros, contra os quais o fiduciante carece de ação reivindicatória” (CHALHUB, 2006, p. 58). Caso o concurso de credores se dê em relação à pessoa do fiduciante, somente o direito de crédito contra o fiduciário é que comporia a massa. Ressalta, ainda, que se o bem estiver na posse do fiduciante, admissível o direito do fiduciário de requerer a separação mas, sendo o valor do bem maior que o da dívida, assegurado à massa a realização do pagamento para retomar a propriedade da coisa. Francisco Ferrara (1939, p. 88) revela seu entendimento nesse mesmo sentido, de que, no caso de quebra do fiduciário, nenhum direito de separação caberia ao fiduciante. Ademais, tece críticas ao posicionamento de Regeslberger e Kohler, os quais, com apego a “sentimentos de equidade mal compreendidos”, entendem pelo direito do fiduciante em cobrar a restituição dos bens, excluindo-os da falência. Entendem que o contrário significaria uma injustiça econômica, já que tendiam as partes contratantes apenas conseguir, via negócio fiduciário, a finalidade econômica do mandato, representando “uma consequência tão cruel que o direito não poderia aprová-la, e por isso se deve admitir a favor do fiduciante uma reivindicatio utilis.” (KOHLER apud FERRARA, 1939, p. 88). Para demonstrar o não cabimento de tal posicionamento, esclarece: Mas Kohler não tem consciência de que precisamente esta incongruência, como êle escreve noutro lugar, entre o fim económico e a forma jurídica é que constitue a essência do negócio fiduciário e que aquele que realisa este negócio se expõe a um perigo que pode ser-lhe fatal. Por outro lado, como observa Lang, isto é justo, porque doutro modo o credor teria todas as vantagens sem correr risco algum, e pode servir de correctivo contra as possibilidades de abuso duma tal forma jurídica. (FERRARA, 1939, p. 88-89). Também Otto de Sousa Lima (1962, p. 146) aponta para essa impossibilidade por parte do fiduciante. Pela teoria romanística, operada a transferência dos bens o fiduciário é o titular exclusivo dos direitos daí advindos, os quais serão abarcados pela massa no caso de sua falência. “Coerentemente, dão ao fiduciante, na falência do fiduciário, apenas, os direitos 24 Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. 105 obrigacionais decorrentes do pactum fiduciae, que constituem simples créditos quirografários, sem qualquer eficácia real.” 4.4.4 Negócio fiduciário e trust Do quanto foi exposto, verifica-se a similitude estrutural existente no trust e no negócio fiduciário, de forma a apontá-lo, sob esse enfoque, como instrumento capaz de satisfazer às mesmas finalidades daquele. Todavia, tendo em vista a diversidade de efeitos emanados de um e de outro, especificamente no que se refere à natureza do vínculo obrigacional operado e, consequentemente, à segurança das partes envolvidas em relação a terceiros credores, a situação é totalmente distinta. Conforme visto, nos negócios fiduciários stricto sensu o fiduciante fica à mercê da boa-fé do fiduciário, não contando com instrumentos eficazes no caso do abuso de confiança deste, que poderá alienar os bens a terceiros ou utilizá-los em proveito próprio, de forma diversa do pactuado, restando àquele apenas direito a indenização. Ademais, integrando ao patrimônio do fiduciário os bens fiduciados, de igual sorte sofreria o fiduciante as funestas consquências da transferência dos bens, posto mero credor quirografário junto às massa concursal. E não obstante aquela parcial e minoritária divergência doutrinária encabeçada por Regelsberger e Kohler, no sentido de ser possível a reivindicatio utilis dos bens, ainda que tal fosse possível, essa mera possibilidade e percalços daí advindos já seriam suficientes para inviabilizar a utilização do negócio fiduciário stricto sensu em operações de securitização de crédito. Em se tratando de operações inseridas no contexto do mercado de capitais, em específico nas de securitização de crédito, a simples existência de risco em relação aos bens transferidos, lastro dos valores mobiliários a serem emitidos, é o quanto basta para dificultar a utilização desse valioso instrumento de circulação de riquezas, assim como por vulnerar o público investidor. Nesse aspecto, importante ressalva foi realizada nos seguintes termos: Do que precede, resulta claro que as conseqüências da insolvência do fiduciário tornam o negócio fiduciário, na configuração de negócio inominado de cunho romano, absolutamente imprestável para garantia das operações de crédito que se realizam em larga escala na economia moderna, ou para a administração fiduciária do tipo dos fundos de investimento, pois nada justificaria colocar a grande massa de 106 investidores sob o risco de figurar apenas como credores quirografários na hipótese de quebra (ou liquidação extrajudicial) do fiduciário. Por isso mesmo, para aplicação em larga escala, envolvendo o interesse de grande massa de investidores, negócios de natureza fiduciária só são admissíveis se vierem a ser regulamentados pelo direito positivo – quando passariam a ser tidos como negócios fiduciários impróprios -, hipótese em que (1) a propriedade da coisa ou do direito objeto do negócio ou da garantia haveria de submeter-se a limitações que a vinculassem ao fim convencionado no contrato, promovendo-se a afetação da coisa ou do direito, e (2) a coisa ou o direito haveria de constituir um patrimônio funcionalmente autônomo, um núcleo patrimonial separado em relação aos patrimônios do fiduciante e do fiduciário, patrimônio esse que somente existiria enquanto perdurasse a razão de ser da fidúcia. (CHALHUB, 2006, p. 59). Portanto, forçoso reconhecer que o negócio fiduciário stricto sensu, face à sua atipicidade, não confere ao fiduciante qualquer prerrogativa em relação a terceiros a quem o fiduciário infiel venha a transferir a coisa fiduciada. Admitir o contrário seria aceitar a possibilidade de constituição de patrimônio de afetação por vontade das partes, o que será analisado mais adiante. E de forma a melhor esclarecer o caminho que será seguido, serão analisados alguns exemplos de negócios fiduciários positivados no ordenamento jurídico pátrio, ou seja, a retro mencionada fidúcia legal, e sua diferenciação em relação ao negócio fiduciário stricto sensu para, então, estabelecer a relação dessas leis com as operações de securitização de crédito e avaliar a possibilidade de constituição de patrimônio de afetação em relação aos bens destinados a servir de lastro nas operações de securitização de crédito. 4.5 Os negócios fiduciários impróprios Com a utilização de negócios de natureza fiduciária em diversas situações, e levando-se em consideração o interesse público existente, passaram a ser tipificados pelo ordenamento jurídico de diversos países, dada a importância e consequente necessidade de se regular essas relações, nos moldes do trust dos países de tradição anglo-saxônica. No Brasil, tal também se deu conforme o interesse do Legislador em regular determinadas situações ou através da instituição de direitos reais de garantia de natureza fiduciária, que serão analisados no decorrer deste trabalho. O que se destaca destas formas tipificadas é sua característica preponderante de afetação dos bens transferidos à finalidade almejada. Nesses casos, o fiduciante encontra-se, por força de lei, em uma situação mais segura nas hipóteses de descumprimento das 107 obrigações por parte do fiduciário, inclusive com direito de seqüela em relação ao bem transferido. Por conta disso, estabeleceu-se a discussão sobre a possibilidade dessas formas, expressamente previstas em determinado ordenamento, continuarem a se enquadrar no gênero negócio fiduciário. Nesses casos, tem-se a figura da fidúcia legal, ou seja, por encontrar-se tipificada em lei, com maior garantia na restituição do bem, não haveria espaço para que o elemento confiança se apresentasse de forma preponderante. Vale dizer, não se encontrando o fiduciante em situação de evidente desvantagem em relação ao fiduciário, não precisando se apegar com exclusividade à boa-fé deste, o elemento fidúcia restaria desaparecido. Nesse aspecto encontram-se os seguintes esclarecimentos: A fidúcia regulada em lei apaga-se de certo modo a si-mesma. Apenas alude a que, nas origens do instituto, ela estêve; não está mais. A confiança, que é ato de confidare (latim popular, em vez de fidere) é entre declarantes ou manifestantes de vontade, um dos quais confia (espera) que o outro se conduza como êle deseja, e pois tem fé (fidúcia); à diferença da fiança, que é prestação de fé. Se a lei transforma êsse material de confiança, criado no terreno deixado à autonomia das vontades, e o faz conteúdo de regras jurídicas cogentes, a fidúcia passa a ser elemento puramente histórico do instituto, salvo no ato mesmo de se escolher a categoria. Foi o que se passou com os testamenteiros e outros administradores de patrimônio alheio. (MIRANDA, 1954, p. 118). Mas há também fortes argumentos no sentido de que esse menor apego à confiança não desnaturaria as características do negócio fiduciário, pois continuaria existente essa mesma confiança, ainda que reduzida a situação de perigo a que se expõe o fiduciante e, ademais, tendo em vista que a estrutura interna é a mesma em ambos, a incongruência entre o meio utilizado e o fim econômico almejado, de igual sorte, persistiria. Portanto, ainda que positivada determinada modalidade de negócio fiduciário, continuaria a merecer a classificação como tal, como se colhe: Ocorre que, a despeito de não repousar a fidúcia legal exclusivamente na confiança depositada no fiduciário, pode ser incluída no rol dos negócios fiduciários. Em primeiro lugar, por que o elemento de confiança não desapareceu por completo. O fiduciante ainda corre o risco de não obter a retransferência dos bens alienados, tendo que se contentar com as perdas e danos. Além do mais, continua sendo característica da fidúcia legal o fato de que o contrato de alienação tem objetivo diverso dos contratos de alienação em geral. Em outras palavras, quando o fiduciante aliena um bem ao fiduciário, seu objetivo não é o de tão-somente transmitir o direito de propriedade, como ocorre na simples compra e venda. O objetivo é o de que o bem seja fonte de renda ou de garantia, com a ulterior retransmissão da propriedade. Verifica-se, na verdade, que a fidúcia, seja típica ou atípica, dirige-se a objetivo diverso do fim natural do contrato de alienação puro e simples. Na alienação fiduciária em garantia, por exemplo, o objetivo da alienação é garantir uma obrigação, diversamente do fim típico da alienação pura e simples 108 (compra e venda, troca, doação), que consiste, somente e em última análise, na transmissão do direito de propriedade. Nesse sentido, mesmo a fidúcia legal se considera negócio fiduciário. (FIUZA, 2000, p. 16). Não obstante, o que realmente importa destacar, posto indispensável à avaliação da possibilidade do negócio fiduciário atribuir segurança nas operações de securitização de crédito, refere-se à possibilidade de sua utilização para a constituição de um patrimônio separado. Este, aliás, o principal contraponto existente entre os negócios fiduciários tipificados e os não tipificados. Chalhub (2006, p. 79) relembra que essa necessidade da fidúcia legal partiu exatamente da fragilidade e riscos inerentes ao negócio fiduciário stricto sensu e, portanto, “a construção de figuras de natureza fiduciária e sua tipificação legal, ou seja, a fidúcia legal, reveste-se de especial interesse e atende a uma exigência de ordem pública, com vistas à estabilidade das relações jurídicas.” Lado outro, contextualiza essa necessidade nos países de tradição romano-germânica, que buscam na criação de um instrumento versátil e seguro como o trust anglo-saxão, a resposta a esses anseios e, em síntese, uma harmonização nesse sentido adviria da criação, “por lei: (1º) a criação de um direito real limitado – propriedade fiduciária – e (2º) a afetação do patrimônio que se constitui com os bens objeto da propriedade fiduciária.” Conforme se passa a analisar, é através da constituição de um patrimônio separado, afetado a uma finalidade, que reside a principal distinção entre os negócios fiduciários stricto sensu e os negócios fiduciários impróprios, ou fidúcia legal, que, portanto, são dotados de distintas conseqüências jurídicas. Passa-se, assim, à análise da afetação patrimonial e da propriedade fiduciária. 4.5.1 A afetação patrimonial Antes de se pretender tratar da separação, segregação ou afetação patrimonial, imperiosa se faz a conceituação daquilo que se entende por patrimônio, o que não é tarefa simples, tendo em vista que “a idéia de patrimônio não está perfeitamente aclarada entre os modernos juristas, talvez em razão de não ter o direito romano fixado com segurança as suas linhas.” (PEREIRA, 1994, p. 245). No direito romano o patrimônio equivalia apenas a coisas e direitos, mas não um instituto. 109 As concepções atuais de patrimônio guardam forte relação com a evolução do direito das obrigações e sua execução forçada e, em específico, com a alteração da garantia dessas mesmas obrigações. Era a Lei das XII Tábuas que no decorrer da civilização humana regia a questão, submetendo o devedor, ou algum familiar, a pagar com a própria vida pelo não cumprimento de uma obrigação. Somente com o advento da Lex Poetelia, em 326 a. C., é que a sujeição física cedeu espaço para a sanção pecuniária, dotando de caráter patrimonial a maior parte das normas a serem aplicadas, de forma a humanizar a execução forçada. Nesse sentido aponta o seguinte excerto: Na Roma antiga, até a lei Poetelia (326 a.C.) os credores encontravam garantia à satisfação das obrigações na pessoa do devedor ou, ainda, na pessoa de algum familiar deste. Devido aos abusos e absurdos cometidos pelos patrícios-credores contra os plebeus-devedores, houve um movimento de opinião que se consumou na mudança do sistema. Esta alteração deslocou a garantia à satisfação do credor da esfera da pessoa do devedor, ou de familiar seu, para o patrimônio do devedor. Na lição de Darcy BESSONE: “A obrigação, antes vínculo físico, adquiriu o caráter de vínculo jurídico, passando a encontrar garantia de elementos exteriores”. (FACHIN, 2006, p. 73). Como decorrência desse processo de patrimonialização do direito é que começaram a surgir formas de garantia como, por exemplo, o pactum fiduciae e o pignus. Vale dizer, ocorreu o deslocamento da garantia da pessoa do devedor para o seu patrimônio, tendo-se, assim, por costume, admitir este último como sendo o conjunto dos bens do devedor, dando azo, posteriormente, à concepção de que seria uma personalidade abstrata, uma universalidade. A execução dos credores recaía, então, sobre os elementos que compõem o patrimônio. Mas foi somente após a edição do Código Civil napoleônico que se teceram questionamentos mais precisos sobre o patrimônio, com fortes influências ainda hoje, em que pesem as incontáveis críticas existentes, fruto da ausência de regulamentação pelo direito positivo, que não fixa os elementos que o compõem. Também o ordenamento jurídico pátrio emprega apenas referências esparsas sobre o patrimônio. Veja-se que o art. 5725 do Código Civil de 1916 apenas o definia, tal como a herança, como uma universalidade de direito. Já o Código Civil de 2002 dispôs no art. 91, tão somente que “Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico.” 25 Dispunha o art. 57 do Código Civil de 1916: “O patrimônio e a herança constituem coisas universais, ou universalidades, e como tais subsistem, embora não constem de objetos materiais.” 110 No século XIX, os juristas franceses Aubry e Rau elaboraram sua teoria sobre o patrimônio, conhecida como teoria clássica ou personalista, por vislumbrarem o patrimônio como emanação da própria personalidade, como a personalidade do homem considerada nas suas relações com os objetos exteriores. Assim, com base nessa premissa, vale dizer, por tratar o patrimônio como emanação da personalidade, possui características desta, como a intransmissibilidade, a unidade e a indivisibilidade, de forma que uma pessoa possui necessariamente um único patrimônio, de natureza incorpórea, razão de sua indivisibilidade. Para referidos juristas o patrimônio compreende a integralidade dos bens de uma pessoa, inclusive os bens futuros, dada a potencialidade para essa aquisição, e, ainda, aqueles bens inatos, direitos da personalidade, tendo em vista a indenização devida em caso de sua violação. Defendem que todos esses bens que compõem o patrimônio submetem-se aos mesmos princípios, da unidade e indivisibilidade, que regulam a personalidade. É uno, posto independente dos elementos que o compõe, sobrevivendo mesmo na hipótese de nenhum bem material possuir determinada pessoa e, ademais, a natureza incorpórea do patrimônio não permitiria seu fracionamento em partes materiais. Afinal, sempre existiria um substrato patrimonial mínimo, inerente à noção de personalidade. Sylvio Marcondes sintetiza as conclusões dos referidos juristas nos seguintes termos: O princípio de base está na relação assentada entre o patrimônio e a personalidade, doutrinando aquêles juristas: a idéia do patrimônio deduz-se diretamente da de personalidade e, sendo aquêle a emanação desta, é a expressão da potência jurídica em que uma pessoa, como tal, se acha investida. Daí, como consequência, resulta: 1.º, que sòmente as pessoas podem ter um patrimônio; 2.º, que tôda pessoa tem, necessàriamente, um patrimônio; 3.º, que cada pessoa não pode ter senão um patrimônio. (MARCONDES, 1970, p. 85). Admitindo-se o princípio de que o patrimônio é uno e indivisível, apresentar-se-ia como inviável a separação patrimonial, posto representar a admissão da coexistência de dois ou mais núcleos patrimoniais na esfera jurídica de uma mesma pessoa. Segundo o pensamento de Aubry e Rau, tal como exposto por Sylvio Marcondes (1970, p. 87), “são anomalias, desnaturações, os desvios a êstes princípios que excepcionalmente se encontram nas leis; como tais deve considerá-los a doutrina jurídica.” E a partir disso se desenvolvem evoluções dessa teoria, assim como críticas por parte da denominada teoria moderna, ou objetiva, do patrimônio. Apesar de reconhecerem a lógica interna dessa teoria, acusam-na de se afastar da realidade fática, de tal sorte que não conseguem descrever fatos observados empiricamente. 111 Sylvio Marcondes (1970) sintetiza as principais críticas de diversos autores à teoria clássica. Aponta que, para Gary, Brunet, Baudry-Lacantinerie e Cunha Gonçalves, deve ser conservada essa teoria quanto a íntima ligação entre patrimônio e personalidade, assim como sua unicidade, indivisibilidade e inseparabilidade. Todavia, não se deve deduzir da premissa de que o patrimônio é emanação da personalidade toda a teoria do patrimônio. As exceções existentes não podem ser consideradas anomalias. “Deve conservar-se a teoria clássica (1.ª concepção), mas acomodando-a à realidade e privando-a da sua rigidez excessiva e do seu logicismo intransigente” (p. 87). Para Geny, Colin-Capitant, Vacher-Lapouge, Azevedo e Silva, insistir nessa íntima ligação entre a pessoa e o seu patrimônio seria excessivo e errado. Não aceitam a unicidade e indivisibilidade do patrimônio, entendendo que a teoria do patrimônio deve se fundar na premissa de que a personalidade é um pressuposto do patrimônio, sendo este uma universitas juris, não sendo correto estreitar, por princípio, os laços entre a noção de patrimônio e a de personalidade. Brinz, Bekker, Demelius, Bonelli, Forlani, Plastara, Saleilles e Gazin vêem o patrimônio como “um conjunto de direitos subjetivos (ou de bens, objeto dêsses direitos subjetivos), que ora aparece como pertencente a uma pessoa, ora é constituído por direitos sem sujeito, e pertence, então, meramente ao fim a que esses direitos estão afetos.” (MARCONDES, 1970, p. 88). A seu turno, Duguit entende por patrimônio tão somente um conjunto de riquezas afetas a um fim, sendo relevante apenas essa idéia de vinculação a uma finalidade, inclusive no que se refere ao patrimônio geral de uma pessoa. Mais modernamente, as principais críticas à teoria clássica cindem-se na sua premissa de que o patrimônio seria emanação da própria personalidade de um indivíduo. Com isso, termina-se por confundir a própria pessoa com o seu patrimônio, como se este fosse o próprio sujeito de direitos. Em outras palavras, confunde-se o patrimônio com a capacidade patrimonial, assim entendida como a capacidade para ser sujeito de relações patrimoniais. Lado outro, importante também considerar o fato de que o ordenamento jurídico concebe o patrimônio como instituto jurídico destinado à garantia geral dos credores e, mais modernamente, o concebe também no sentido de assegurar a dignidade da pessoa humana, já que excepciona determinados bens daquela garantia geral. Desta forma, apresenta uma natureza finalista, afastada da capacidade patrimonial e, tampouco, revela-se como pressuposto indispensável à personalidade. 112 Uma hipótese comumente utilizada para refutar a premissa de que o patrimônio seria emanação da personalidade é o da sucessão causa mortis. Afinal, se aceita essa premissa, seria insustentável pretender a transmissibilidade de um direito que, posto inerente à pessoa, seria inalienável e intransmissível. Como é cediço, no direito brasileiro, a morte põe fim à personalidade, mas o patrimônio permanece, sendo imediatamente transmitido aos herdeiros os bens economicamente apreciáveis, por força do direito de saisine. De resto, critica-se a teoria clássica também por não se apresentar de modo consentâneo com a realidade, já que patrimônios separados são criados por lei ou, em outras palavras, é possível a existência de mais de um núcleo patrimonial na esfera jurídica de uma mesma pessoa, o que impede a aceitação da unidade patrimonial defendida pela teoria clássica. Quanto a isso, veja-se a herança a benefício de inventário, outro exemplo utilizado na crítica doutrinária à teoria personalista. Aberta a sucessão, transmitem-se direitos, bens e obrigações, suscetíveis de avaliação pecuniária. Essa transmissão se dá de forma imediata e independentemente de ciência ou aceitação expressa do herdeiro. Não obstante, posteriormente, é necessária a aceitação da herança, como se colhe, no Brasil, nos termos do art. 1.804 do Código Civil26. Por força da herança a benefício de inventário faculta-se ao herdeiro se habilitar como tal, mas resguardando o seu patrimônio pessoal no caso do conjunto de bens que compõem a herança não for superior às dívidas do de cujus, o que foi adotado no direito brasileiro como regra geral27, não sendo necessária essa ressalva expressa pelo herdeiro. Desta forma, em relação ao herdeiro, coexistem o seu patrimônio geral e aquele outro, fruto de herança, separado, ainda que provisoriamente, para fins de liquidação, de forma a limitar a responsabilidade do herdeiro caso os encargos superem os bens. Opera-se, assim, a separação do acervo hereditário em relação ao patrimônio pessoal do herdeiro. Coexistem, portanto, dois núcleos patrimoniais distintos na esfera jurídica de uma mesma pessoa, a fulminar a unidade defendida pela teoria clássica. De resto, esse exemplo revela-se importante, na medida em que permite vislumbrar, com total facilidade, que a limitação da responsabilidade é a causa da separação patrimonial, e não sua consequência. 26 Art. 1.804. Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão. Parágrafo único. A transmissão tem-se por não verificada quando o herdeiro renuncia à herança. 27 Art. 1.792. O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demonstrando o valor dos bens herdados. 113 Estas algumas das críticas tecidas à teoria clássica do patrimônio. Não obstante, forçoso reconhecer a influência que exerce até hoje, inclusive no Brasil. De qualquer sorte, dentre as noções existentes sobre o patrimônio, Sylvio Marcondes traz à baila aquelas que entende guardar sintonia entre diversos autores, como elementos primários do conceito, de comum aceitação, que precedem àquelas divergências retro mencionadas. A colação realizada pelo referido autor, em que pese extensa, revela-se valiosa e de conveniente traslado ao presente trabalho, seja pela diversidade que apresenta, seja pela síntese que faz ao final, como se colhe: Essa breve pesquisa pode começar na doutrina francesa, cujas concepções deram impulso à elaboração das teorias. Planiol-Ripert: chama-se patrimônio o conjunto de direitos e encargos de uma pessoa, apreciáveis em dinheiro; Colin-Capitant: o patrimônio compreende os direitos e obrigações pecuniárias de uma pessoa, formando o ativo os bens corpóreos e incorpóreos de que é titular e constituindo o passivo as obrigações de que é devedora; Josserand: “é o conjunto dos valores pecuniários, positivos e negativos, pertencentes a uma mesma pessoa e que figuram, uns no ativo, outros no passivo”. Entre os autores italianos, Barassi: o patrimônio é um complexo de relações jurídicas, tanto ativas como passivas, contendo créditos e débitos, direitos e ônus reais, etc.; Messineo: por patrimônio deve entender-se, não um complexo de coisas, mas um complexo de relações, isto é, direitos e obrigações pertencentes a determinado sujeito e entre si conjugados; Biondi: na esfera jurídica constituída pelas relações e situações da pessoa, o patrimônio compreende as relações de conteúdo econômico, unificadas por pertencerem a uma determinada pessoa; Fadda e Bensa: o complexo de relações jurídicas de uma pessoa, com valor pecuniário. Quase todos os citados escritores, reportando-se à regra bona non intelleguntur nisi deducto oere alieno, admitem, à vista do interêsse dos credores, a validade, não só econômica, mas jurídica, da distinção entre patrimônio bruto (soma do ativo) e patrimônio líquido (ativo menos passivo). Na doutrina alemã, onde Dernburg professa que “o patrimônio é o complexo dos direitos de uma pessoa, de valor econômico”, acrescentando que “se distingue em ativo e passivo”, Tuhr, contestando Enneccerus e corroborado por Windscheid, esclarece: “Na doutrina moderna, insiste-se muito em que o passivo não se deve classificar como parte do patrimônio, e sim como carga do mesmo; creio, porém, que o termo patrimônio se pode empregar corretamente para indicar, seja a soma do ativo (patrimônio bruto), seja o conjunto do ativo com dedução do passivo que o grava (patrimônio líquido)”. Em Portugal, Cunha Gonçalves atende à esfera jurídica da pessoa e conclui que, nela, o patrimônio é o complexo das relações jurídicas ou de direitos e obrigações apreciáveis em dinheiro. Na doutrina brasileira, Clovis Bevilaqua, aquilatando as diversas teorias do patrimônio, sustenta: “Parece melhor fundamentada a opinião dos que o consideram o complexo das relações jurídicas de uma pessoa que tiverem valor econômico”. Essa conceituação, adotada por obras expressivas de teorias desenvolvidas à luz do ordenamento jurídico em diversos países, permite reunir no bosquejo da noção de patrimônio os seguintes dados fundamentais, de geral aprovação: a) conjunto de relações jurídicas; b) apreciáveis econômicamente; c) coligadas entre si, por pertinentes a uma pessoa.” (MARCONDES, 1970, p. 83-85). Manuel Domingues de Andrade, doutrinador lusitano, aponta a seguinte definição de patrimônio que, em sua essência, encontra-se nessa mesma linha: 114 Num primeiro e mais amplo sentido, o património vem a ser, de acordo com a doutrina tradicional e ainda hoje a mais corrente, o conjunto das relações jurídicas (diretos e obrigações) com valor económico, isto é, avaliável em dinheiro, de que é sujeito activo e passivo uma dada pessoa – singular ou colectiva (património global). Numa fórmula mais sintética mas pouco explícita, podemos defini-lo como o resultado jurídico-económico da actividade de uma pessoa (G. Moreira). Nesse sentido o património compreende um lado activo (direito) e um lado passivo (obrigações ou dívidas). (ANDRADE, 1997, p. 205). No Brasil pouco se dedicou ao estudo do tema. Mas, conforme se infere do próprio conceito adotado por Clóvis Beviláqua, contido no trecho retro transcrito, já se percebe a influência exercida pela teoria clássica, ainda que com algumas reservas. Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira (1994, p. 225), após trazer à baila o conceito de Clóvis Beviláqua, destaca que apesar da mesma não recolher “a aprovação unânime dos escritores, tem, porém, o duplo mérito de abranger todos os bens e direitos na expressão conjunto das relações jurídicas, sem contudo se dispersar numa abstração exagerada.” E é justamente nessa “abstração exagerada” que incidem a maioria das críticas sobre a teoria personalista. Afinal, enquanto complexo de relações jurídicas de conteúdo econômico de uma pessoa, o patrimônio possui parâmetros objetivos, separando-o de noções pertinentes à qualidade de sujeito de direito. Lado outro, no que se refere à pretendida unidade patrimonial defendida pela teoria clássica, consequência da concepção personalista de patrimônio, é contestável sua validade, pois em determinadas circunstâncias o direito positivo reconhece e legitima a separação de massas patrimoniais na esfera jurídica de uma única pessoa. Vislumbrou-se na separação de núcleos patrimoniais não uma aberração jurídica, ou uma anomalia, mas sim uma possibilidade, desde que prevista em lei, restando prejudicada a tese de que cada indivíduo só pode ser titular de um único patrimônio. Pontes de Miranda (1955, p. 367-368) associa o patrimônio a uma finalidade, a um “destino jurídico”. Vislumbra-o como a “sombra” de uma pessoa, ainda que em dado momento nenhum bem possua. Define o patrimônio como uma esfera jurídica “na qual se há de alojar os bens e talvez ainda não se aloje nenhum bem, exceto o que é ligado à personalidade mesma e não entra na definição de patrimônio. Patrimônio é o que seria essa sombra, menos o que não é patrimonial (vida, saúde, liberdade, etc.).” Ainda que a vida, a saúde e a liberdade, ou conforme se colhe com certa freqüência da jurisprudência, esse “patrimônio moral”, possa ser violado, o simples fato de resolver-se 115 em perdas e danos, mediante indenização pecuniária, em nada desnatura essa distinção, já que dotados de inalienabilidade e, portanto, desprovidos de apreciação econômica. Assevera o referido jurista que o “patrimônio apresenta certo grau de compactitude” (p. 369) e mais uma vez destaca a estreita ligação com o fim a que se destina, a que há de servir, muito embora não seja um fim em si mesmo. Ademais, ressalva que isso não o torna pessoa, ou detentor de personalidade jurídica, ou, em outras palavras, não apaga “a diferença entre pessoas naturais e pessoas jurídicas.” Caio Mário (1994, p. 246-247) traz outros importantes esclarecimentos, no que se refere ao resultado positivo ou negativo do patrimônio. Informa que as diversas relações entabuladas por qualquer pessoa vão gerar reflexo de natureza patrimonial, ainda que indeterminável em um primeiro momento, e ainda que sejam repercussões negativas, com decréscimo patrimonial. Tal fato seria mesmo desprovido de relevância, já que o patrimônio não se resume a um conjunto de bens. Caso contrário, a simples constatação de um resultado negativo importaria na conclusão de que tal não atingiria o patrimônio, o que não é correto. O patrimônio apresenta tanto um aspecto positivo quanto um negativo sobre o complexo econômico de uma pessoa, de forma que o integram os direitos, mas também as obrigações. Esclarece que os que confundem essa noção cometem o erro de tentar “balancear” a situação, de forma a apurar qual aspecto seria o preponderante em relação a uma pessoa, na busca em se “verificar o ativo” ou o “patrimônio líquido”. Em seguida, arremata: Ao economista interessa a verificação. Também o jurista tem de cogitar dela às vezes, quando necessita de apurar a solvência de um devedor, isto é, a aptidão econômica de resgatar seus compromissos com os próprios haveres. Mas, em qualquer hipótese, o patrimônio abraça todo um conjunto de valores ativos e passivos, sem indagação de uma eventual subtração ou de um balanço. Se admitíssemos a idéia de verificação de um saldo positivo como característica do patrimônio, iríamos abatendo do ativo os valores negativos, e, no caso de os dois lados se representarem por cifras equivalentes, não haveria saldo, e então chegar-seia à negação do patrimônio. [...] Se, como vimos, todo homem em sociedade efetua negócios e participa de relações jurídicas de expressão econômica, todo indivíduo há de ter patrimônio, que traduz aquelas relações jurídicas. Só em estado de natureza, com abstração da vida social, é possível conceber-se o indivíduo sem patrimônio. Em sociedade, não. Por isso, em consequência de não se admitir a pessoa sem patrimônio, é que não é possível dissociar as duas idéias, e é neste sentido que ele foi definido como a projeção econômica da personalidade civil. Apesar de o Código Civil alemão, referindo-se ao patrimônio, significar apenas o seu lado ativo, os doutrinadores tedescos mantêm a tese da sua abrangência quanto às obrigações do indivíduo. (PEREIRA, 1994, p. 246). 116 Assim, defende o referido autor não ser possível conceber o patrimônio como uma unidade abstrata, sem relação com os elementos que o compõem. Critica o art. 5728 do Código Civil de 1916, por ter pretendido, nessa mesma tendência, defender a existência de uma universalidade que sustenta a si própria. Também nesse sentido aponta Pontes de Miranda (1955, p. 368), para o qual a “entrada e saída dos elementos não atinge a identidade do patrimônio, ainda que todos saiam, ou que todos se mudem. [...] A promessa de transferir o patrimônio constante de a, b e c, não é promessa de transferência de patrimônio, e sim dos direitos a, b e c.” Com relação aos elementos que o compõem, como visto pelos conceitos retro transcritos, há convergência entre os doutrinadores no sentido de ser necessária a sua suscetibilidade à avaliação econômica, de tal sorte que restariam excluídos os direitos da personalidade. Estes são os principais contornos sobre o patrimônio, necessários a uma melhor compreensão do patrimônio separado. Além da expressão patrimônio separado são também comumente utilizadas como sinônimas a afetação patrimonial, segregação patrimonial e o patrimônio especial. Já o patrimônio autônomo possui acepção diversa, associada ao surgimento de novo sujeito de direito, como a constituição de uma pessoa jurídica, não sendo, portanto, objeto de direito, como o é o patrimônio, tanto geral quanto separado. A separação de patrimônios decorre da configuração de um núcleo patrimonial, ou de uma massa patrimonial, na esfera jurídica de uma mesma pessoa, mas distinto do seu patrimônio ordinário, garantia geral dos credores, de tal sorte que passa a ser titular de duas ou mais massas patrimoniais, autônomas entre si. Através desta separação, opera-se a limitação da responsabilidade, de forma que as obrigações gerais do seu titular não poderão ser satisfeitos pelos elementos que compõem o patrimônio separado. Tendo em vista as conseqüências jurídicas advindas da separação patrimonial, passou a doutrina a buscar critérios hábeis à sua identificação, sendo, os principais, a circunstância do patrimônio separado ser subtraído da administração do titular, o escopo especial a que ele se destina e, ainda, seria o fato dele ser subtraído da garantia geral dos credores. O primeiro critério foi afastado, na medida em que certamente existem patrimônios separados que não se sujeitam à administração de pessoa outra que não seja o seu próprio titular. 28 Art. 57. O patrimônio e a herança constituem coisas universais, ou universalidade, e como tais subsistem, embora não constem de objetos materiais. 117 O segundo critério também não convence, na medida em que não basta uma destinação especial, pois disso não se extrai, necessariamente, uma individualidade jurídica completa, de forma a destacar uma massa patrimonial do restante do patrimônio do seu titular. Manuel Domingues de Andrade se pronunciou sobre a questão da seguinte forma: Mas qual será precisamente o critério para se determinar se estamos em face de um património separado, distinto ou autônomo, sob o ponto de vida do tratamento jurídico que lhe é aplicado? Para o efeito não basta, decerto, uma especial destinação atribuída a um dado conjunto de elementos patrimoniais, pois daí não é forçoso seguir-se que ele tenha uma individualidade jurídica completa ou pelo menos suficientemente destacada da do restante património do seu titular. De igual modo não serve o facto de esse agregado patrimonial ter administração separada, “pois que – nota Ferrara – não deve confundir-se fundo patrimonial com património separado. O património separado, por vezes, constitui até o inverso do património sob administração, porque se encontra governado pelo próprio titular e todavia forma um núcleo autônomo”. (ANDRADE, 1997, p. 218). Para o referido autor, foi com relação ao terceiro critério que melhor se delineou a questão, conforme se constata do seguinte trecho: O critério mais seguro, ou em todo o caso o mais geralmente adoptado, para reconhecer a existência dum património autónomo é o da responsabilidade por dívidas. Património autónomo será portanto – e esta noção é a que mais importa reter – o conjunto patrimonial a que a ordem jurídica dá um tratamento especial, distinto do restante património do titular, sob o ponto de vista da responsabilidade por dívidas. (ANDRADE, 1997, p. 219). Em seguida, referido jurista pontua a imprescindibilidade de que o patrimônio separado possua, efetivamente, autonomia, separação absoluta, que seja um compartimento estante em relação ao patrimônio geral de seu titular, de forma a só responder por dívidas específicas, relacionadas à função que deu azo à sua constituição. Pontes de Miranda também aponta nesse sentido, do dever de se respeitar a separação patrimonial e, ainda, faz interessante paralelo entre a sua finalidade e a pessoa do administrador: Todo patrimônio especial tem um fim. Êsse fim é que lhe traça a esfera própria, lhe cria a pele conceptual, capaz de armá-lo ainda quando nenhum elemento haja nele. [...] O fim contribui para se determinar a titularidade da administração, que pode não tocar ao titular do patrimônio especial. Tal distinção de titulares apenas torna mais visível a separação (patrimônio da mulher e administração dos bens comuns pelo marido; patrimônio do marido e administração dos bens pela mulher). Quando a administração cabe ao titular do patrimônio geral, é menos visível a separação, e toca ao titular o dever de respeitar a discriminação, com as conseqüências de direito civil, penal e administrativo. (MIRANDA, 1955, p. 379). 118 Mister esclarecer que apesar da não aceitação da destinação especial como critério para a identificação de um patrimônio autônomo, é forçoso reconhecer a imprescindibilidade da existência desse escopo especial, como forma de justificar a afetação pretendida. Somente no decorrer do processo legislativo, no plano da justificação da norma, é que serão delimitadas as finalidades tidas como coletivamente desejáveis para, assim, reconhecer-se a possibilidade da garantia e segurança geradas pela afetação patrimonial ou, sob outro enfoque, excepcionar a regra geral de que o devedor responde com a integralidade de seus bens perante todos os seus credores. Afinal, dadas as conseqüências para os credores gerais de uma pessoa, não se limita a responsabilidade do titular de um patrimônio por livre arbítrio ou sob qualquer pretexto. Somente à lei compete estabelecer as hipóteses de formação de um patrimônio separado, o que se revela com clareza no ordenamento jurídico pátrio, pelo disposto no art. art. 59129 do Código de Processo Civil, que sujeita a integralidade dos bens de uma pessoa, inclusive os bens futuros, como garantia geral dos credores, mas em sua parte final excepciona essa regra geral, dispondo: “salvo as restrições estabelecidas em lei”. Dada à necessidade de lei para a configuração de um patrimônio separado, associada à morosidade do processo legislativo, poderia ser desejável uma regulamentação de caráter geral, e não específico, caso a caso. Afinal, a celeridade exigida hodiernamente na circulação de riquezas, assim como a existência de instrumentos jurídicos que atendam, com segurança, à formatação dos negócios, parecem impor essa providência. É da possibilidade de se constituir um patrimônio separado, vale dizer, de limitar a responsabilidade patrimonial, que daria azo à concepção de um instrumento jurídico hábil a solucionar inúmeros problemas sócio-econômicos, como a questão relativa à limitação da responsabilidade do empresário individual e, em específico, as operações de securitização de crédito. Não obstante, e conforme o retro exposto, o fator que melhor enquadra a noção de patrimônio separado consiste em que os elementos que o compõem não se prestam a garantir as obrigações gerais do seu titular, tarefa essa desempenhada pelo seu patrimônio ordinário. Ao patrimônio separado reserva-se a responsabilidade por dívidas próprias, aquelas contraídas na persecução de sua finalidade. Este também é o entendimento de Francisco Ferrara, que se manifestou sobre o tema nos seguintes termos: 29 Art. 591. O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei. 119 O único critério seguro para reconhecer a existência de patrimônio separado é o da responsabilidade pelas dívidas. Patrimônio separado é o patrimônio que tem dívidas próprias, no qual se localizam as obrigações e responsabilidades a que dá origem e que não sofre os efeitos de outras obrigações do sujeito do patrimônio. Em mãos de um só titular, repousam duas esferas jurídicas separadas: o patrimônio geral da pessoa e um outro centro patrimonial, com obrigações e direitos próprios. Este o traço verdadeiramente essencial do instituto. [...] É precisamente nestes casos que a lei eleva o patrimônio a universitas juris, isto é, a uma universalidade jurídica, compreensiva de direitos e obrigações em uma massa única que permanece idêntica, não obstante a mutação de seus elementos, com vida jurídica própria. (FERRARA apud MARCONDES, 1970, p. 97-98). Tal compreensão é a mais coerente em relação à função jurídica do patrimônio, de responsabilidade por dívidas de seu titular, de garantia geral dos credores. Encerra, assim, um tratamento jurídico particular, já que o patrimônio afetado só responderá por dívidas próprias, vale dizer, dívidas originadas de sua destinação, as quais não poderão ser imputadas ao patrimônio geral do titular, e vice-versa. Entretanto, se por um lado se depreende essa limitação de responsabilidade, necessária à persecução de uma finalidade, de outro, mas por esta mesma razão, verifica-se também a limitação dos direitos do titular do patrimônio separado em relação aos elementos que o compõe. Não mais poderá empreender qualquer uso e gozo em relação aos mesmos, tampouco contar com a livre disposição dos bens que integram essa massa patrimonial. Afinal, sempre deverá ter em conta a persecução daquela finalidade, e não o atendimento de necessidades ou vantagens pessoais, sob pena de desnaturar a afetação patrimonial e, consequentemente, sujeitar essa massa à garantia geral de seus credores, como se patrimônio separado não existisse. Nesse sentido também aponta Pontes de Miranda: Diz-se limitada a responsabilidade quando sòmente patrimônio especial, ou alguns elementos do patrimônio podem ser atingidos pela execução forçada. Enquanto o que deve x pode sofrer penhora de qualquer elemento do seu patrimônio, ou, se algum ou alguns elementos não bastam, em todo o seu patrimônio, o que é limitadamente responsável – diferentemente do que é pessoalmente responsável – pode impedir que certos elementos do seu patrimônio sejam penhorados, sem outra razão que a limitação da responsabilidade. Se desvia bens, diminuindo o valor que responderia aos credores, nasce, para êle, responsabilidade pessoal em crédito do patrimônio especial contra o patrimônio pessoal. É o princípio da incolumidade dos patrimônios separados. (MIRANDA, 1955, p. 395). 120 Ademais, importante destacar, ainda, que o patrimônio separado é composto não apenas dos elementos existentes desde sua constituição, mas também daqueles “que derivam de seu próprio desenvolvimento.” (MARCONDES, 1970, p. 94). O patrimônio separado é destinado a fazer frente a específicas obrigações, razão pela qual encontra semelhança com uma pessoa jurídica, em que pese não constituir um novo ente, dotado de personalidade. Continua uma massa patrimonial, mas destinada a um objetivo específico, conservando-se na titularidade de determinada pessoa. Ponto sobre o qual existe menor divergência entre os doutrinadores, reside no fato de que somente por força de lei é que se há de cogitar das finalidades para as quais se admite a constituição de um patrimônio separado, não encontrando essa possibilidade adstrita a livre manifestação de vontade de quem quer que seja. São taxativas as hipóteses legais em que se admite a limitação da responsabilidade patrimonial através da separação de patrimônios. No Brasil, existem leis que estabelecem de forma expressa essa afetação. É o que ocorre, por exemplo, com a já citada Lei nº 8.668/93, que dispõe sobre a constituição e tributação dos fundos de investimento imobiliário, sob a forma de condomínio, sem personalidade jurídica, os quais serão geridos por sociedade administradora autorizada pela CVM, tendo por objeto a captação de recursos para aplicação em empreendimentos imobiliários. No art. 6º dispõe que o “Patrimônio do Fundo será constituído pelos bens e direitos adquiridos pela instituição administradora, em caráter fiduciário.” Já seu art. 7º “confere ao patrimônio do fundo natureza fiduciária, tornando-o patrimônio de afetação.” (FIUZA, 2008, p. 658). É o que se colhe da literalidade do referido artigo: Art. 7º Os bens e direitos integrantes do patrimônio do Fundo de Investimento Imobiliário, em especial os bens imóveis mantidos sob a propriedade da instituição administradora, bem como seus frutos e rendimentos, não se comunicam com o patrimônio desta, observadas, quanto a tais bens e direitos, as seguintes restrições: I – não integrem o ativo da administradora; II – não respondam direta ou indiretamente por qualquer obrigação da instituição administradora; III – não componham a lista de bens e direitos da administradora, para efeito de liquidação judicial ou extrajudicial; IV – não possam ser dados em garantia de débito de operação da instituição administradora; V – não sejam passíveis de execução por quaisquer credores da administradora, por mais privilegiados que possam ser; VI – não possam ser constituídos quaisquer ônus reais sobre os imóveis. 1º No título aquisitivo, a instituição administradora fará constar as restrições enumeradas nos incisos I a VI e destacará que o bem adquirido constitui patrimônio do Fundo de Investimento Imobiliário. 121 2º No registro de imóveis serão averbadas as restrições e o destaque referido no parágrafo anterior. 3º A instituição administradora fica dispensada da apresentação de certidão negativa de débitos, expedida pelo Instituto Nacional da Seguridade Social, e da Certidão Negativa de Tributos e Contribuições, administrada pela Secretaria da Receita Federal, quando alienar imóveis integrantes do patrimônio do Fundo de Investimento Imobiliário. (Brasil, 1993). Trata-se, desta forma, de espécie de negócio fiduciário destinado a administração, de tal forma que o administrador, ao adquirir bens, o faz em seu próprio nome, mas sem que integrem o seu patrimônio, e sim o do fundo. No que pertine à securitização desses tipos de ativos, encontra-se regulada pela Resolução CMN nº 2.686/2000, que disciplina a cessão de créditos imobiliários, e pela Instrução CVM nº 472/08, com as alterações introduzidas pela Instrução CVM nº 478/09, que disciplina os “Fundos de Investimento Imobiliário – FII”. Também a Lei nº 4.591/64, ao tratar das incorporações imobiliárias, teve sua redação alterada pela Lei nº 10.931/04, que introduziu o “Capítulo I-A. Do patrimônio de afetação”, constante dos arts. 31-A a 31-F, tratando de forma minuciosa sua regulação. Trata-se de uma faculdade outorgada ao incorporador que, uma vez instituída, atribui maior transparência ao empreendimento, com a certeza por parte dos mutuários e agentes financeiros de que os recursos paulatinamente liberados para a construção são, de fato, aplicados nesta. A inovação legislativa foi incentivada pela ocorrência de situações em que o incorporador, ao apresentar problemas financeiros, aplica recursos de um empreendimento em outro, e assim por diante, até advir a bancarrota, deixando inúmeras obras inacabadas e, consequentemente, milhares de mutuários e, também, agentes financeiros, à míngua de qualquer reparação. É o que se deu, por exemplo, no caso da empresa Encol, tão noticiado na mídia. Portanto, referida Lei teve o duplo mérito de resguardar a situação dos mutuários, mas também de agentes financeiros, que mitigaram os riscos relativos às hipotecas realizadas. Desta forma, na impossibilidade do incorporador dar seguimento a determinado empreendimento, tal risco fica isolado a esse empreendimento, já que a Lei impõe, inclusive, contabilidade apartada, não permitindo que recursos que devem ser destinados a determinada obra sejam utilizados em outra, impedindo, assim, o que ficou conhecido como “efeito dominó” ou “efeito bicicleta”. Críticas foram feitas à Lei por não ter efetivamente exigido a afetação patrimonial para esses casos. Entretanto, forçoso reconhecer o avanço, até mesmo por que o próprio mercado termina por impor às incorporadoras a adoção desse regime, dada à segurança que 122 representa e, desta forma, será fator determinante na escolha a ser feita por parte dos compradores de imóveis e também dos financiadores dessas compras. Importante transcrever alguns dispositivos da referida Lei, no que pertine à constituição do patrimônio separado e aos efeitos dela decorrentes: Art. 31-A. A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime de afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. §1º O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva. §2º O incorporador responde pelos prejuízos que causar ao patrimônio de afetação. §3º Os bens e direitos integrantes do patrimônio de afetação somente poderão ser objeto de garantia real em operação de crédito cujo produto seja integralmente destinado à consecução da edificação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. §4º No caso de cessão, plena ou fiduciária, de direitos creditórios oriundos da comercialização das unidades imobiliárias componentes da incorporação, o produto da cessão também passará a integrar o patrimônio de afetação, observado o disposto no §6º. [...] §6º Os recursos financeiros integrantes do patrimônio de afetação serão utilizados para pagamento ou reembolso das despesas inerentes à incorporação. [...] §12. A contratação de financiamento e constituição de garantias, inclusive mediante transmissão, para o credor, da propriedade fiduciária sobre as unidades imobiliárias integrantes da incorporação, bem como a cessão, plena ou fiduciária, de direitos creditórios decorrentes da comercialização dessas unidades, não implicam a transferência para o credor de nenhuma das obrigações ou responsabilidades do cedente, do incorporador ou do construtor, permanecendo estes como únicos responsáveis pelas obrigações e pelos deveres que lhes são imputáveis. [...] Art. 31-F. Os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação. §1º Nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da sua Comissão de Representantes ou, na sua fala, de um sexto dos titulares de frações ideais, ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembléia geral, na qual, por maioria simples, ratificará o mandato da Comissão de Representantes ou elegerá novos membros, e, em primeira convocação, por dois terços dos votos dos adquirentes ou, em segunda convocação, pela maioria absoluta desses votos, instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, inciso III); havendo financiamento para a construção, a convocação poderá ser feita pela instituição financiadora. (Brasil, 2004). 123 Também no que se refere à fiscalização do empreendimento, cuidou a lei de facultar aos adquirentes e à instituição financiadora sua realização, como se colhe: Art. 31-C. A Comissão de Representantes e a instituição financiadora da construção poderão nomear, às suas expensas, pessoa física ou jurídica para fiscalizar e acompanhar o patrimônio de afetação. [...] Art. 31-D. Incumbe ao incorporador: I – promover todos os atos necessários à boa administração e à preservação do patrimônio de afetação, inclusive mediante adoção de medidas judiciais; II – manter apartados os bens e direitos objeto de cada incorporação; III – diligenciar a captação dos recursos necessários à incorporação e aplicá-los na forma prevista nesta Lei, cuidando de preservar os recursos necessários à conclusão da obra; IV – entregar à Comissão de Representantes, no mínimo a cada três meses, demonstrativo do estado da obra e de sua correspondência como o prazo pactuado ou com os recursos financeiros que integrem o patrimônio de afetação recebidos no período, firmados por profissionais habilitados, ressalvadas eventuais modificações sugeridas pelo incorporador aprovadas pela Comissão de Representantes; V – manter e movimentar os recursos financeiros do patrimônio de afetação em conta de depósito aberta especificamente para tal fim; VI – entregar à Comissão de Representantes balancetes coincidentes com o trimestre civil, relativos a cada patrimônio de afetação; VII – assegurar à pessoa nomeada nos termos do art. 31-C o livre acesso à obra, bem como aos livros, contratos, movimentação da conta de depósito exclusiva referida no inciso V deste artigo e quaisquer outros documentos relativos ao patrimônio de afetação; e VIII – manter estruturação contábil completa, ainda que esteja desobrigado pela legislação tributária. (Brasil, 2004). Importante destacar que o parágrafo único do art. 8º da Lei 9.514/97 permite “a securitização de créditos oriundos da alienação de unidades em edificações sob regime de incorporação nos moldes da Lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964”. Por fim, merece destaque a referida Lei nº 9.514/97, que instituiu o Sistema Financeiro Imobiliário e criou a alienação fiduciária de coisa imóvel. Dentre seus dispositivos colhem-se alguns direcionados à instituição de regime fiduciário e conseqüente afetação patrimonial, inclusive na securitização de créditos imobiliários, regulamentando de forma minuciosa a questão, também a revelar, como nas demais, o posicionamento do ordenamento jurídico brasileiro quanto à sua possibilidade: Art. 9º A companhia securitizadora poderá instituir regime fiduciário sobre créditos imobiliários, a fim de lastrear a emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários, sendo agente fiduciário uma instituição financeira ou companhia autorizada para esse fim pelo BACEN e beneficiários os adquirentes dos títulos lastreados nos recebíveis objeto desse regime. Art. 10. O regime fiduciário será instituído mediante declaração unilateral da companhia securitizadora no contexto do Termo de Securitização de Crédito, que, além de conter os elementos de que trata o art. 8º, submeter-se-á às seguintes condições: 124 I – a constituição do regime fiduciário sobre os créditos que lastreiem a emissão; II – a constituição de patrimônio separado, integrado pela totalidade dos créditos submetidos ao regime fiduciário que lastreiem a emissão; III – a afetação dos créditos como lastro da emissão da respectiva série de títulos; IV – a nomeação de agente fiduciário, com a definição de seus deveres, responsabilidade e remuneração, bem como as hipóteses, condições e forma de sua destituição ou substituição e as demais condições de sua atuação; V – a forma de liquidação do patrimônio separado. Parágrafo único. O Termo de Securitização de Créditos, em que seja instituído o regime fiduciário, será averbado nos Registros de Imóveis em que estejam matriculados os respectivos imóveis. Art. 11. Os créditos objeto do regime fiduciário: I – constituem patrimônio separado, que não se confunde com o da companhia securitizadora; II – manter-se-ão apartados do patrimônio da companhia securitizadora até que se complete o resgate de todos os títulos da série a que estejam afetados; III – destinam-se exclusivamente à liquidação dos títulos a que estiverem afetados, bem como ao pagamento dos respectivos custos de administração e de obrigações fiscais; IV – estão isentos de qualquer ação ou execução pelos credores da companhia securitizadora; V – não são passíveis de constituição de garantia ou de excussão por quaisquer dos credores da companhia securitizadora, por mais privilegiados que sejam; VI – só responderão pelas obrigações inerentes aos títulos a ele afetados. [...] Art. 12. Instituído o regime fiduciário, incumbirá à companhia securitizadora administrar cada patrimônio separado, manter registros contábeis independentes em relação a cada um deles e elaborar e publicar as respectivas demonstrações financeiras. [...] Art. 15. No caso de insolvência da companhia securitizadora, o agente fiduciário assumirá imediatamente a custódia e administração dos créditos imobiliários integrantes do patrimônio separado e convocará assembléia geral dos beneficiários para deliberar sobre a forma de administração, observados os requisitos estabelecidos no §2º do art. 14. Parágrafo único. A insolvência da companhia securitizadora não afetará os patrimônios separados que tenha constituído. (Brasil, 1997). Não obstantes esses exemplos, de leis que estabelecem expressamente a formação de patrimônios separados, há outras, ainda que não de forma explícita, terminam por imprimir os mesmos efeitos. Melhim Namem Chalhub (2006, p. 109) ao tecer considerações sobre o patrimônio de afetação no direito brasileiro, também no sentido da possibilidade de uma mesma pessoa ser titular de mais de uma massa patrimonial, cada uma com finalidade diversa da outra e com tratamento jurídico distinto, esclarece “que o fato de não existir um capítulo específico em nosso Código Civil não implica a inexistência de garantias gerais e específicas das obrigações.” Nesse sentido, aponta para as garantias previstas em legislação especial, de natureza fiduciária, tal como disposto, por exemplo, no art. 66 da Lei nº 4.728/65, que instituiu a alienação fiduciária em garantia, que “introduziu no direito positivo brasileiro a noção de 125 propriedade fiduciária e do patrimônio de afetação com vistas à estruturação do mercado de capitais e como garantia de crédito.” É o que se passa a analisar, de forma a vislumbrar a existência, ou não, da possibilidade de afetação patrimonial em relação aos ativos que servem de lastro em operações de securitização de crédito, além dos já apontados neste tópico. 4.5.2 A propriedade fiduciária Uma vez analisados os contornos do negócio fiduciário stricto sensu, assim como os almejados efeitos advindos de uma afetação patrimonial, cumpre agora um percurso sobre algumas das modalidades de negócios fiduciários reconhecidos pelo direito positivo pátrio, vale dizer, a fidúcia legal, que dão azo à constituição da propriedade fiduciária para, então, depurar-lhe o sentido e alcance. Quanto a isso, bastante ilustrativo é o apanhado realizado por André Carvalho Nogueira: De importância também esclarecer que o ordenamento jurídico brasileiro admite várias espécies de propriedade fiduciária, cada uma sob um regime jurídico distinto (ainda que muitas vezes semelhante). Assim, há propriedades fiduciárias que possuem a finalidade de garantia e há outras que não a possuem. A propriedade fiduciária concedida no fideicomisso (art. 1951 e seguintes do CC/2002) e a propriedade fiduciária concedida às instituições administradoras de fundos de investimento imobiliário (art. 7º da Lei 8.668/93), possuem, por exemplo, a finalidade de permitir a administração de bens por terceiros. Já a propriedade fiduciária concedida a instituições custodiantes de ações fungíveis (art. 41 da Lei 6.404/76) tem como causa a constituição de um depósito. Há ainda negócios fiduciários que não necessariamente importam na transmissão da propriedade fiduciária, como é o caso do agente fiduciário de debêntures (art. 66 e seguintes da Lei 6.404/76), do agente fiduciário para execução de hipoteca (art. 30 do Dec.-lei 70/66) e do comissário de cobrança (art. 45, §4º, da Lei 10.931/2004). A própria propriedade fiduciária em garantia possui fontes e regimes distintos. Deste modo, há a propriedade fiduciária em garantia de bens infungíveis (art. 1.361 do CC/2002), a propriedade fiduciária em garantia concebida no mercado financeiro e de capitais (art. 66-B da Lei 4.728/65), a de créditos imobiliários (art. 22 da Lei 4.864/65 e art. 18 da Lei 9.514/97), a de imóveis (art. 22 da Lei 9.514/97), e a concedida a companhias securitizadoras (art. 9º da Lei 9.514/97). Há ainda casos em que, embora não se faça menção à propriedade fiduciária, possui o instituto características muito semelhantes, como é o caso do patrimônio de afetação de incorporadoras imobiliárias (arts. 31-A e seguintes da Lei 4.591/64). (NOGUEIRA, 2008, p. 63-64). 126 E justamente em função dessa semelhança entre as espécies de propriedade fiduciárias existentes, tem-se por conveniente iniciar a análise de suas características a partir daquela que foi pioneira no ordenamento jurídico pátrio, qual seja; a constituída a partir da alienação fiduciária em garantia de que trata a Lei nº 4.728/65, que disciplina o mercado de capitais, destacando-se suas principais características, assim como suas diferenças em relação à instituída pelo Código Civil, o que dispensará maior aprofundamento na análise das demais. De fato, todos esses tipos mencionados, ajustam-se às características que ora se passa a expor. A propriedade fiduciária é um direito real de garantia, a qual não deve ser confundida com a alienação fiduciária em garantia. Conforme alerta Moreira Alves (1973, p. 40) é comum entre os autores não realizar com a devida clareza a distinção entre um e outro, resultando disso o equivocado entendimento de que a alienação fiduciária em garantia seria forma de constituição de garantia real. A alienação fiduciária em garantia é modalidade do gênero negócio fiduciário, criada para atender aos anseios de proteção ao crédito. É o contrato que serve de título à constituição da propriedade fiduciária, no qual são estabelecidos os termos da transferência da propriedade, ou titularidade dos direitos, assim como as condições para o seu exercício. Deste “resulta – como contrato, que é, de direito das coisas - o nascimento, para o credor, de direito potestativo à constituição da propriedade fiduciária.” (ALVES, 1973, p. 127), a qual somente se perfaz mediante registro daquele. Portanto, não é a alienação fiduciária um direito real de garantia, mas sim a propriedade fiduciária que, após constituída, resultará direitos e deveres entre as partes. Por esta via, o devedor fiduciante transfere ao credor fiduciário a propriedade de uma coisa, ou a titularidade de um direito, com o objetivo de garantir o adimplemento de uma obrigação. Em decorrência da cláusula constituti, pressuposto natural da alienação fiduciária, possibilita-se que o devedor fiduciante seja mantido na posse direta da coisa, principalmente em se tratando de bens móveis, dela usando e fruindo, mas na condição de depositário. Sendo o bem um imóvel, o possuirá em comodato. Já o fiduciário é detentor da nua-propriedade, o qual deve remancipar o direito de propriedade ou a titularidade do direito após o cumprimento da obrigação, por força do pacto fiduciário, que transforma esse direito em propriedade resolúvel. A importância deste pacto e suas conseqüências são bem expostas no seguinte trecho: 127 [...] O pacto de fidúcia tem efeitos reais, na medida em que gera para o fiduciante direito oponível erga omnes e dotado de seqüela. Não se trata de simples direito real de aquisição, mas, sim, de verdadeiro direito de propriedade subordinado ao implemento de condição suspensiva, qual seja, o adimplemento da obrigação garantida pela coisa alienada. Como ressalta PONTES DE MIRANDA, cuida-se de direito expectativo e não de expectativa de direito. Nesta, ainda não há suporte fático que enseje o exercício de ações. Já naquele, há direito eventual, lastreado em suporte fático, sobre o qual já incide norma jurídica, o que dá a seu titular a legitimidade para exercer as ações a ele inerentes. (FIUZA, 2000, p. 42). Conforme relembra Moreira Alves (1973, p. 113-119), a forma escrita é da substância do ato. Ademais, como já informado, é imprescindível para constituição da propriedade fiduciária o registro do contrato, também sob pena de não adquirir eficácia erga omnes. Outra importante elucidação diz respeito aos bens passíveis de se constituírem propriedade fiduciária. A alienação fiduciária em garantia foi instituída no ordenamento jurídico pátrio pela Lei nº 4.728/65, que disciplina o mercado de capitais, “pelo reconhecimento de que as garantias tradicionais eram insuficientes para bem tutelar o crédito” (ALVES, 1973, p. 98). Em sua redação originária, apontava o art. 66 ser objeto da alienação fiduciária bem móvel. Foi modificado pelo Decreto-lei nº 911/69, que passou a utilizar a expressão coisa móvel. Ocorre que, o Código Civil de 2002, que também passou a versar sobre a propriedade fiduciária, restringiu a bens infungíveis a propriedade fiduciária, gerando dúvidas quanto aos seus impactos no mercado de capitais. Entretanto, com o avento da Lei nº 10.931/04, que revogou o art. 66 da Lei nº 4.728/65, instituindo o art. 66-B, ficou evidente a inexistência de qualquer restrição, conforme se infere da literalidade de seu texto: Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos. §1º Se a coisa objeto de propriedade fiduciária não se identifica por números, marcas e sinais no contrato de alienação fiduciária, cabe ao proprietário fiduciário o ônus da prova, contra terceiros, da identificação dos bens do seu domínio que se encontram em poder do devedor. §2º O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, §2º, I, do Código Penal. §3º É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipótese em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a 128 terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada. §4º No tocante à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito aplica-se, também, o disposto nos arts. 18 a 20 da Lei n. 9.514, de 20 de novembro de 1997. §5º Aplicam-se à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei os arts. 1.421, 1.425, 1.426, 1.435 e 1.436 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. §6º Não se aplica à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei o disposto no art. 644 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. (BRASIL, 2004). Esta mesma Lei alterou o Código Civil de 2002, instituindo o art. 1.368-A, que dispõe: Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial. (BRASIL, 2004). Destarte, encerrou-se a celeuma, de forma que a alienação fiduciária em garantia, no âmbito do mercado de capitais, pode ter por objeto também bens fungíveis, sendo certo, ainda, que deve ser considerada a propriedade em sentido amplo, abarcando tanto as coisas corpóreas, quanto as coisas incorpóreas. Pontes de Miranda, logo após a edição da Lei nº 4.728/65, ao abordar o tema da “alienação fiduciária em segurança”, como preferia designar, também faz interessantes apontamentos sobre este aspecto, como se colhe do seguinte trecho: Conforme antes frisamos, a transmissão da titularidade mobiliária em segurança, como a transmissão fiduciária da propriedade imobiliária, que o sistema jurídico brasileiro não repele, é eficácia de negócio jurídico de garantia fiduciária, portanto negócio jurídico de garantia e negócio jurídico fiduciário, e de dois acôrdos de transmissão, o acôrdo de transmissão da propriedade ao credor e o acôrdo de transmissão da posse própria imediata ao credor. Se a transmissão é de direito que não seja direito real, o acôrdo de transmissão não é de propriedade ou de elemento de propriedade, mas sim de direito pessoal, como se dá com a cessão fiduciária de crédito, e o acôrdo, terceiro elemento, em vez de ser da posse do bem imóvel ou de bem móvel, é de transmissão da posse da cártula ou da pertença documental. (MIRANDA, 1966, p. 346). Moreira Alves (1973, p. 88), a seu turno, entende ser “possível celebrar contrato de alienação fiduciária em garantia de coisa futura, ou de que o alienante ainda não seja dono, casos em que a eficácia desse contrato dependerá da aquisição da propriedade da coisa por quem a alienou fiduciariamente.” 129 Esse entendimento se deu com base no §2º, do art. 66 da Lei nº 4.728/6530, com a redação dada pelo Decreto-lei nº 911/69, que expressamente previa essa hipótese. A nova redação, tal como consta do art. 66-B, não tratou dessa situação, sendo forçoso concluir pela não existência de proibição nesse sentido. Até mesmo porque, conforme já apontado anteriormente, a antiga celeuma quanto à possibilidade de cessão de crédito futuro restou encerrada, uma vez que o atual Código Civil, em seu art. 10431, tornou possível tal realização, desde que o objeto desse negócio jurídico seja determinável, o que é de se aplicar também à presente hipótese. De resto, entende referido autor não ser possível, com base nessa Lei, a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel. Segundo seu entendimento, tendo em vista que o Legislador se pautou no modelo anglo-saxônico do trust receipt, destinado apenas a bens móveis, tal não seria possível, sob pena de nulidade, face à impossibilidade jurídica de seu objeto. Assim, quem o pretendesse, teria de se valer do negócio fiduciário, nos moldes e efeitos delineados linhas atrás, quando da abordagem do tema. Não obstante, hodiernamente essa discussão sobre possibilidade de contratar alienação fiduciária sobre coisa imóvel se encontra desprovida de sentido, na medida em que a Lei nº 9.514/97 instituiu essa espécie, inclusive a securitização de ativos de natureza imobiliária. Por fim, cumpre apenas destacar que, quando o objeto da alienação fiduciária for coisa fungível ou direitos, tem o fiduciário o direito de permanecer na posse dos mesmos, mormente no caso de cessão de direitos sobre bens móveis ou de títulos de crédito, inclusive para que possa cobrar o respectivo devedor do fiduciante, pagando-se com os valores recebidos. César Fiuza (2000) perfaz interessante histórico da alienação fiduciária em garantia. Após resgatar os primórdios da fidúcia no direito romano, informa que a sua instituição no direito pátrio não se deu nos mesmos moldes, em que o fiduciário adquiria a propriedade plena da coisa. Pelo contrário, sofreu adaptação conforme o modelo germânico, no qual se opera a limitação do domínio fiduciário. Invocando os apontamentos feitos por Moreira Alves e Orlando Gomes, também relembra que seu surgimento teve por inspiração o trust receipt, do Direito Americano, que tinha por objeto o financiamento de revendedores de bens duráveis, os quais recebiam 30 §2º. Se, nada data do instrumento de alienação fiduciária, o devedor ainda não for proprietário da coisa objeto do contrato, o domínio fiduciário desta se transferirá ao credor no momento da aquisição da propriedade pelo devedor, independentemente de qualquer formalidade posterior. 31 Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: (...) II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; 130 adiantamento do custo do bem, devendo-se operar o pagamento após a venda da mercadoria. Mediante registro de documento, a propriedade das mercadorias é transferida ao financiador, prestando-se como garantia do pagamento da dívida e, portanto, resguardando-se em relação a outros credores do revendedor. O revendedor, depositário, tinha as mercadorias liberadas na medida da realização das vendas. Referido autor relembra, ainda, as vantagens dessa via em relação a outras formas de garantia, já que a hipoteca e a anticrese limitam-se a imóveis, e o penhor acarreta a perda da posse direta da coisa por parte do devedor. Entretanto, não obstante essas vantagens, entende que seria injustificável essa inovação no ordenamento jurídico, já que bastaria a inserção, no que se refere ao penhor, da cláusula constituti, de modo a permitir ao devedor continuar na posse do bem. Aliás, assim já ocorria em relação ao penhor agrícola e industrial, por força do art. 769 do Código Civil de 191632, o que veio a ser ampliado pelo parágrafo único do art. 1.431 do Código Civil de 200233. Após essas observações, destaca o real motivo da instituição da alienação fiduciária em garantia no Brasil: Ocorre que este não é o principal motivo que levou à reconstituição da alienação fiduciária em garantia, no Brasil. A característica da alienação fiduciária, que a torna única e muito mais vantajosa que o penhor e a hipoteca, é a afetação do patrimônio fiduciário, que faz com que o credor fiduciário não tenha que concorrer com os demais credores em concurso universal. Seja como for, o Brasil é um dos poucos países, para não dizer o único, em que, atualmente, vigora esta espécie de negócio fiduciário. (FIUZA, 2000, p. 40). Ademais, conforme relembra Moreira Alves (1973, p. 47), a alienação fiduciária em garantia, diversamente do que ocorre com os contratos de penhor, a anticrese e a hipoteca, “não visa à constituição de direitos reais limitados, mas à transferência do direito de propriedade limitado pelo escopo de garantia.” Tratando-se de patrimônio separado, a recíproca é verdadeira. Assim, apesar do fiduciário se tornar proprietário do bem ou titular do direito, encontra-se a coisa ou o direito fiduciado “a salvo, portanto, da ação dos credores do fiduciário e dele mesmo.” (FIUZA, 2000, p. 44). 32 Art. 769. Só se pode constituir o penhor com a posse da coisa móvel pelo credor, salvo no caso de penhor agrícola ou pecuário, em que os objetos continuam em poder do devedor, por feito da cláusula constituti. 33 Art. 1.431. Constitui-se o penhor pela transferência efetiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação. Parágrafo único. No penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, as coisas empenhadas continuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar. 131 Será tratada mais adiante a situação do credor-fiduciário no caso de insolvência ou falência do devedor-fiduciante. Entretanto, desde logo cabe frisar a impossibilidade de se confundir os efeitos da propriedade fiduciária em relação às outras garantias reais, como a hipoteca, pelo simples fato de ambas se enquadrarem nesse gênero, conforme se destaca: Como já dito, a propriedade fiduciária não se confunde com a hipoteca, fundamentalmente, porque esta é ônus real que incide sobre coisa alheia, enquanto a propriedade fiduciária é direito próprio do credor, um direito real em coisa própria. Assim, como o registro do contrato de alienação fiduciária, o credor torna-se titular do domínio resolúvel sobre a coisa objeto da garantia, permanecendo sob seu domínio até que o devedor pague a dívida. Tal distinção implica importantes conseqüências, sendo a mais relevante delas a segregação patrimonial do bem objeto da propriedade fiduciária. De fato, por efeito da constituição da propriedade fiduciária, cria-se um patrimônio de afetação integrado pelo bem em questão, que não é atingido pelos efeitos de eventual insolvência do devedor ou do credor não integrando, portanto, a massa falida de um ou do outro. Disso resulta que se cair em insolvência o devedor fiduciante, o bem objeto da garantia, que foi excluído do seu patrimônio e passou a constituir um patrimônio de afetação, permanecerá separado dos bens da massa “até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento da sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer” (Lei nº 11.101/2005, art. 119, IX), assegurada ao fiduciário, se for o caso, a restituição do bem e eventualmente sua venda, aplicando a importância que aí apurar na satisfação do próprio crédito, sem concorrência com os demais credores (Lei nº 9.514/97, art. 32, e Lei nº 11.101/2005, art. 49, §3º). Já se se tratar de hipoteca, vindo a falir o devedor hipotecário, o bem objeto da garantia, que permaneceu em seu patrimônio, será arrecadado pelo síndico e passará a integrar o ativo da massa, devendo o credor hipotecário concorrer com os demais credores segundo a ordem legal de preferência. (CHALHUB, 2006, p. 251). Quanto às pessoas aptas a figurarem como credores-fiduciários, logo após a edição da Lei nº 4.728/65, se instaurou divergência de opiniões, existindo forte corrente, tal como aponta Moreira Alves (1973), no sentido de que apenas sociedades financeiras, registradas no Banco Central do Brasil, é que poderiam sê-lo. Ilustra a questão colacionando acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo nesse sentido, proferido em 13 de fevereiro de 1969. Entretanto, aponta divergência no mesmo Tribunal, em acórdão que decidiu em sentido contrário, sob o fundamento de que a lei de regência não estabeleceu qualquer privilégio àquela categoria. Após diversas considerações sobre as hipóteses de interpretação restritiva de uma lei, bem como o interesse público que deve ser tutelado, conclui referido autor que pode ser fiduciário qualquer instituição financeira em sentido amplo, assim como entidades estatais e paraestatais. 132 Também Chalhub (2006, p. 160) traz esclarecimentos a essa questão, no sentido de que somente as “instituições financeiras e outros entes especificamente autorizados em lei” é que tem legitimidade para figurar como credor-fiduciário, no âmbito do mercado de capitais, do que decorre que a ação de busca e apreensão prevista no Decreto-lei nº 911/69 somente se aplica à propriedade fiduciária dos bens móveis de que trata essa lei. Para a propriedade fiduciária prevista no Código Civil de 2002, resta a ação de reintegração de posse prevista no Código de Processo Civil. Mas, no que pertine à propriedade fiduciária instituída pelo Código Civil de 2002, não há qualquer restrição nesse sentido, sendo legitimadas pessoas físicas ou jurídicas, para garantia de dívidas de qualquer natureza. Quanto à natureza jurídica da propriedade fiduciária trata-se de uma garantia real que não se confunde com os demais direitos reais limitados de garantia, como o penhor, a anticrese ou a hipoteca e, menos ainda, equivale à propriedade transferida mediante a realização de um negócio fiduciário stricto sensu, que alguns autores chamam também de propriedade fiduciária. Essa propriedade fiduciária, advinda do negócio fiduciário stricto sensu, de tipo romano, conforme já visto alhures, é propriedade plena, muito embora por vezes transferida com espoco de garantia, mas que em decorrência de sua atipicidade não confere qualquer limitação ao direito do fiduciário. Consoante esclarece Moreira Alves (1973, p. 134) estes seriam “direitos reais EM garantia, para distingui-la da dos tradicionais direitos reais DE garantia, que são o penhor, a anticrese e a hipoteca, isto é, direitos reais limitados ou direitos reais sobre coisa alheia.” No presente trabalho utiliza-se a expressão propriedade fiduciária referindo-se exclusivamente àquela resultante das modalidades de negócios fiduciários instituídos por lei, sendo que se difere, ainda, daqueles direitos reais limitados de garantia, já que seus respectivos titulares não são proprietários da coisa, ao contrário do que acontece naquela. A propriedade fiduciária é, sem dúvida, direito real, mas dotada de diversas peculiaridades. Trata-se de uma espécie de propriedade resolúvel, mas que se distingue daquela prevista no art. 1.359 do Código Civil34. Nesta, a condição ou termo encontra-se prevista pelas próprias partes que, uma vez verificada, opera a resolução da propriedade. Na alienação fiduciária não ocorre a imposição dessa condição resolutiva própria, qual seja, a 34 Art. 1.359. Resolvida a propriedade pelo implemento de condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha. 133 condicio facti, fixada conforme a vontade das partes. Pelo contrário, a resolução decorre da verificação de condicio iuris, fixada por lei. Trata-se, portanto, de elemento próprio da estrutura da propriedade fiduciária. Mas, não é só. Moreira Alves (1973) lança outras luzes sobre essa distinção. Relembra que a propriedade resolúvel se caracteriza pelo fato de seu titular, pendente conditione, ter todas as prerrogativas da propriedade plena, mas restringida pela possibilidade de eventualmente deixar de ser proprietário, no caso de verificação da condição resolutiva, hipótese em que a resolução confere efeitos ex tunc, retornando a propriedade ao alienante (impleta conditione). Não verificada a condição, a propriedade torna-se plena para o adquirente. Na propriedade fiduciária, por sua vez, as características são bem distintas, já que o fiduciário não pode desfrutar de todas as faculdades jurídicas da propriedade, tendo em vista o desdobramento da posse. Ademais, vencida a dívida, e não paga, a propriedade continua resolúvel, cabendo ao fiduciário a venda do bem, para a satisfação do débito. E, importante notar, que nessa hipótese, o fiduciário, que não é proprietário pleno, transfere ao terceiro comprador, por força de lei, a propriedade plena do bem. Daí porque, para o retro mencionado autor, a propriedade fiduciária é uma nova espécie de propriedade limitada, dada as restrições que, por força de lei, sofre em seu conteúdo. Possui característica acessória, já que se presta a garantir a satisfação de um crédito, que é o principal, “razão também por que não pode ela ser transmitida a terceiro independentemente da cessão do crédito que garante” (ALVES, 1973, p. 164), cessão esta que também deverá ser registrada. Aliás, cumpre esclarecer que uma vez registrado o contrato pelo credor primitivo, constituindo-se a propriedade fiduciária, o que se transfere a outrem não é a sua posição contratual, mas, sim, além de seu crédito, seu direito real sobre a coisa, vale dizer, a propriedade fiduciária. E por ser contrato de natureza acessória, permite-se que a alienação fiduciária seja entabulada após a celebração do contrato principal, no qual se estabelecem obrigações e dívidas a serem garantidas. Chalhub (2006), ao tecer comentários gerais sobre a propriedade fiduciária, e não especificamente sobre aquela decorrente da alienação fiduciária em garantia, também faz interessantes apontamentos nos seguintes termos: 134 A propriedade fiduciária é direito real caracterizado pelo fato de que é constituído precipuamente para determinado fim e somente para perdurar enquanto existir o escopo para o qual foi constituída. A propriedade, nesse mister, não é atribuída em caráter perpétuo, mas constitui-se como um direito real temporário, que é limitado para atender à finalidade para a qual foi constituída. Sua duração, portanto, está subordinada ao implemento da condição sob a qual foi constituída. É neste aspecto que a propriedade fiduciária se distingue com maior nitidez da propriedade plena – aquela é limitada pela sua própria finalidade, pelo escopo para o qual foi criada; a transmissão da propriedade para o fiduciário não se faz de forma plena e definitiva, mas de forma restrita e temporária. (CHALHUB, 2006, p. 120). Desta forma, segundo também esclarece, o fiduciário possui poderes limitados pela finalidade que deu azo à constituição da propriedade fiduciária, encontrando-se munido tão somente das prerrogativas necessárias à persecução deste escopo, que uma vez atingido opera a extinção daquela. Por essa razão, traz ainda os seguintes característicos: Efetivamente, a transmissão fiduciária nada acresce ao patrimônio do fiduciário, sendo este apenas um elemento catalisador da consecução do fideicomisso, recebendo a propriedade tão-somente para dar àqueles bens a destinação determinada no ato constitutivo, tal como o trustee, que no trust é tão-somente uma figura a que se atribui o encargo de implementar na prática a afetação que se deu a determinado bem, que é o objeto do trust. Enfim, a transmissão da propriedade, quando se faz em caráter fiduciário, não tem como causa a troca de uma coisa pelo seu equivalente em dinheiro, mas apenas constitui um veículo para consecução de outros negócios, que são o objeto do fideicomisso ou dos outros negócios de natureza fiduciária, como é o caso da alienação fiduciária do direito brasileiro. [...] Em suma, o certo é que a propriedade fiduciária é aquela transmitida ao fiduciário com exclusão ou limitação de alguns poderes, sendo-lhe retiradas algumas de suas faculdades, que, entretanto, podem vir a ser atribuídas ao fiduciário dependendo da evolução do negócio em virtude do qual lhe foi transmitida a propriedade em caráter fiduciário. (CHALHUB, 2006, p. 123-124). Essas as principais características e efeitos da constituição da propriedade fiduciária. Por garantir ambas as partes dessa relação, fiduciante e fiduciário, na vinculação da coisa fiduciada ao escopo pretendido, salvaguardando-a dos credores de um e de outro, inclusive nos casos de falência ou insolvência, aspecto este que será melhor analisado adiante, termina por imprimir efeitos próprios de uma afetação patrimonial. Daí alguns dos autores retro transcritos poderem afirmar taxativamente tratar-se a propriedade fiduciária de um patrimônio separado. 135 4.5.3 A propriedade fiduciária instituída pela Lei nº 9.514/97 e a securitização de créditos imobiliários No decorrer deste trabalho a Lei nº 9.514/97 foi analisada de forma apenas ilustrativa os aspectos relativos à securitização dos créditos imobiliários, assim como da afetação patrimonial que institui. Quanto à propriedade fiduciária ali também prevista, as características gerais traçadas no tópico anterior são igualmente aplicáveis. Cabem, neste tópico, destacar algumas peculiaridades dessa Lei, assim como tecer alguns esclarecimentos quanto ao âmbito de sua abrangência. De certo que a atribuição de segurança jurídica nas operações de securitização é requisito fundamental à sua viabilização, com reconhecimento das garantias que a propriedade fiduciária e a conseqüente afetação patrimonial outorgam aos bens a eles vinculados. Entretanto, igualmente certo é que também deverão ser observadas formas ágeis de execução dessas mesmas garantias, principalmente em decorrência de litígios, que não podem ser óbice à recomposição da situação de forma célere, compatível com a dinâmica do mercado de capitais. Também sob esse enfoque se apresentam deficitárias as formas tradicionais de garantia, como o penhor, a hipoteca e a anticrese, que não satisfazem aos anseios da economia moderna, dada a morosidade na sua execução. Melhim Namem Chalhub, após considerar essa situação, faz importantes apontamentos em relação à Lei nº 9.514/97, assim como no que se refere à não existência de cunho restritivo em relação à legitimidade para sua utilização, que permite a constituição da garantia de que trata também em relação a outros tipos de obrigações. É o que se colhe: Dada essa realidade, considerando que a morosidade da execução das garantias inibe a aplicação de recursos no setor imobiliário, a nova lei tem em vista criar as condições necessárias para revitalização e expansão do crédito imobiliário e, partindo do pressuposto de que o bom funcionamento do mercado, com permanente oferta de crédito, depende de mecanismos capazes de imprimir eficácia e rapidez nos processos de recomposição das situações de mora, permitiu a utilização da alienação fiduciária como garantia nos negócios imobiliários. Presumivelmente, a aplicação da propriedade fiduciária de bens imóveis em garantia há de se fazer com mais freqüência e em maior porção no mercado de produção e de comercialização de imóveis com pagamento parcelado, dado que é aí que se verifica a concessão de crédito imobiliário em maior escala. Isso não obstante, a lei que a regulamenta não tem sentido restritivo, permitindo, ao contrário, que essa propriedade especial seja constituída para garantia de quaisquer obrigações, nada importando o fato de ter sido disciplinada no contexto de uma lei na qual prepondera a regulamentação de operações típicas do mercado imobiliário, financeiro e de 136 capitais. São nesse sentido as disposições do parágrafo único do art. 22 da Lei nº 9.514/97, pelo qual a alienação fiduciária pode ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no sistema de financiamento imobiliário, e o art. 51 da Lei nº 10.931/2004, pelo qual as obrigações em geral poderão ser garantidas por propriedade fiduciária de coisa imóvel. Na configuração dessa nova modalidade de garantia, adota-se a concepção básica do art. 66 da Lei nº 4.728/65, com a redação dada pelo Decreto-lei nº 911/69, e alguns aperfeiçoamentos, inclusive mediante adoção de princípios que norteiam a configuração da propriedade fiduciária constante no Projeto de Código Civil, que, quando da formulação do Projeto de Lei que veio a ser convertido na Lei nº 9.514/97, ainda tramitava no Congresso Nacional, e, obviamente, com as adaptações requeridas pela natureza peculiar da propriedade imobiliária, sobretudo quanto aos aspectos registrários. (CHALHUB, 2006, p. 248-249). O art. 22 da Lei nº 9.514/97 restou alterado pela Lei nº 11.481/2007, mas apenas para ampliar seu objeto, como se colhe: Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. §1º A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena: I – bens enfitêuticos, hipótese em que será exigível o pagamento do laudêmio, se houver a consolidação do domínio útil do fiduciário; II – o direito de uso especial para fins de moradia; III – o direito real de uso, desde que suscetível de alienação; IV – a propriedade superficiária. §2º Os direitos de garantia instituídos nas hipóteses dos incisos III e IV do §1º deste artigo ficam limitados à duração da concessão ou direito de superfície, caso tenham sido transferidos por período determinado. (BRASIL, 2007). E para que não restem dúvidas quanto à interpretação realizada pelo retro mencionado autor, transcreve-se a literalidade do art. 51 da Lei nº 10.931/2004: Art. 51. Sem prejuízo das disposições do Código Civil, as obrigações em geral também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel. (BRASIL, 2004). Outrossim, conforme consolidado, “O contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do devedor” (Súmula 28 do Superior Tribunal de Justiça). Portanto, a propriedade fiduciária disposta nos referidos dispositivos legais, passa a representar valiosa forma de garantia a obrigações de qualquer natureza, o que certamente servirá para o fomento da economia, que por longo tempo amargava as deficiências das demais garantias reais. E como destaca o retro mencionado autor, a generalização feita pelo 137 Legislador através da aplicação da Lei nº 9.514/97, revela sua intenção de fomentar o setor imobiliário, em toda sua amplitude, incluindo-se a busca pelo desenvolvimento de um mercado secundário de créditos imobiliários, conforme destaca: E não poderia ser de outra forma, pois o funcionamento de um mercado secundário de créditos imobiliários se faz, necessariamente, mediante uma dinâmica pela qual os créditos imobiliários, em geral, gerados por qualquer pessoa física ou jurídica, que produz ou comercialize imóveis, bem como pelos que emprestem dinheiro, possam circular no mercado. Ora, sendo esse o propósito da lei, é evidente que, para ser descontável no mercado, mediante cessão, o crédito deverá estar constituído de acordo com determinado padrão, válido para todos os níveis em que se desenvolvem as operações do mercado, notadamente com as garantias nele utilizadas. Observe-se que, ainda com esse mesmo propósito de viabilizar o funcionamento do mercado secundário, a Lei 9.514/97 também autorizou a que em qualquer operação de comercialização de imóveis, com pagamento parcelado, sejam aplicadas todas as demais condições permitidas para as entidades que operem no sistema de financiamento imobiliário, como, por exemplo, a contração de seguros, a capitalização de juros e os critérios e índices de reajuste monetário, entre outras. Visa a lei, assim, que o mercado harmonize suas linhas de operação, de forma a viabilizar a constituição de créditos homogêneos, e por isso suscetíveis de circular com mais facilidade, sem obstáculos no mercado, ensejando a captação de recursos em larga escala para esse setor da produção. (CHALHUB, 2006, p. 255-256). Desta forma, será de maior ocorrência as situações de aquisição de imóveis, seja de forma direta, entre vendedor e adquirente, seja com a intervenção de uma instituição financiadora. Vale dizer, será a construção civil que deverá gerar o maior volume de créditos a serem negociados no mercado secundário, não se encontrando restrita a alienação fiduciária desse jaez às instituições financeiras. E, repise-se, “admitem-se quaisquer outras operações em que se possa transmitir a propriedade de coisa imóvel para garantia de qualquer operação de crédito, e não somente para garantia do financiamento utilizado na aquisição do imóvel, tal como soe acontecer, por exemplo, com um empréstimo comum com garantia hipotecária.” (CHALHUB, 2006, p. 258). Esse o espírito da Lei, que visa a circulação do crédito imobiliário sem quaisquer obstáculos, permitindo seu desconto por quem quer que seja seu titular, mediante cessão a uma companhia securitizadora, a qual promoverá a circulação no mercado financeiro, razão pela qual procurou, ainda, padronizar as formas de garantia, tal como se constata do art. 1735 e do art. 22. 35 Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por: I – hipoteca; II – cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis; III – caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis; IV – alienação fiduciária de coisa imóvel. 138 Quanto à celeridade de execução dessas garantias previstas na Lei nº 9.517/97, o Legislador cuidou também dessa relevante questão, já que a via judicial revela-se incompatível com a dinâmica do mercado, o qual necessitava, com urgência, de instrumentos jurídicos que permitam a rápida recomposição das situações de mora. Assim, também prevê a Lei nº 9.514/97 procedimentos extrajudiciais para tanto, bem como procedimentos judiciais mais céleres. Pela via extrajudicial autoriza, uma vez constituído em mora o fiduciante por oficial do Registro de Imóveis competente, e não paga a dívida no prazo de quinze dias, que seja realizada a consolidação da propriedade do imóvel em nome do fiduciário. Em seguida, deverá o fiduciário realizar leilão público, restituindo o que sobejar ao fiduciante. Para a reintegração da posse ao fiduciário, cessionário, sucessores ou adquirente do bem em leilão, determina-se a concessão de liminar para desocupação em sessenta dias, assegurando-se, ainda, na hipótese de insolvência do fiduciante, a restituição do imóvel ao fiduciário. De todo o exposto, em se tratando de securitização de créditos imobiliários, a Lei nº 9.514/97 é de inconteste serventia pois, a um só tempo, constitui afetação patrimonial sobre esses ativos que servirão de lastro a emissão dos valores mobiliários, institui regime fiduciário, de forma a impedir que outras operações realizadas pela sociedade de propósito específico e respectivas dívidas desta possam comprometer esses mesmos ativos. De igual sorte, a segurança daí advinda, associada à padronização dos contratos e créditos que servirão de substrato patrimonial para os títulos emitidos, propiciam o desenvolvimento do mercado secundário. Ademais, por generalizar a instituição de propriedade fiduciária sobre bens imóveis e sobre créditos de natureza imobiliária, legitimando como credores-fiduciários quaisquer pessoas físicas e jurídicas, e não apenas instituições financeiras, revela sua utilidade também em operações de securitização de ativos de outra natureza, de duas formas distintas. Para as empresas comerciais, prestadoras de serviços e de quaisquer atividades, que vislumbrem interesse em antecipar receitas, podem entabular com seus devedores a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, o que acarretará não apenas a melhoria da qualidade dos créditos que possuem, mas igualmente a securitização desses créditos, como se ativos de natureza imobiliária fossem, já que, ao fim e ao cabo, encontram-se, de fato, garantidos por propriedade fiduciária sobre bem imóvel. 139 Entretanto, para as empresas que atuam no varejo e, assim, pela desproporcionalidade entre o valor devido pelos seus produtos ou serviços, não encontrem viabilidade na constituição de propriedade fiduciária com seus devedores, ou mesmo para as hipóteses em que os devedores não possuam um bem imóvel para tal finalidade, pode a empresa-originadora entabular com a sociedade de propósito exclusivo alienação fiduciária em garantia de imóvel de sua propriedade, como garantia colateral, de forma a melhorar o rating da operação. Ademais, esta restará desonerada, posto desnecessária a contratação de seguro ou fiança bancária e outra sorte de garantias colaterais, como, por exemplo, a cessão de um maior volume de ativos do que o necessário a fazer frente ao numerário antecipado na operação. 4.5.4 O contrato de fidúcia A essa altura é de se questionar o porquê de não ter o Legislador pátrio cuidado de melhor sistematizar a matéria, estabelecendo uma lei única a disciplinar a constituição da propriedade fiduciária, permitindo-se, assim, sua aplicação irrestrita aos mais diversos tipos de negócio, inclusive em operações de securitização de crédito. A resposta remonta décadas. Conforme já mencionado anteriormente, são antigos os questionamentos tendentes a buscar, no seio de um ordenamento jurídico de origem romano-germânica, um instrumento capaz de alcançar efeitos similares ao do trust anglo-saxão. As figuras retro analisadas foram positivadas para atendimento de finalidades específicas, mas que não abarcam a securitização de todos tipos de créditos. Os efeitos almejados para tanto poderiam ser obtidos pela via do negócio fiduciário, mas desde que contasse com uma afetação patrimonial em relação aos bens transferidos pelo fiduciante, o que, como visto, não ocorre, somente sendo possível através de lei que regule a questão. Após o negócio fiduciário prestar-se a suprir lacunas, transformando-se em modalidade de negócio pela mescla de um contrato tipificado e do elemento confiança, em dado momento pretendeu-se revesti-lo de nova feição, tendente à afetação patrimonial, tanto naqueles contratos em que a transferência é realizada com escopo de garantia, como para fins de administração em proveito do fiduciante ou de terceiro, para alcançar efeitos similares ao do trust. 140 Conforme entendimento esposado por Orlando Gomes (1965), ainda que não seja possível transplantar o trust para outros ordenamentos jurídicos em sua inteireza, com todas suas implicações teóricas e práticas, é possível fazê-lo em relação à sua idéia dominante, consistente na formação de patrimônio separado, através de construção de instituto similar, o contrato de fidúcia, que se pretendeu positivar no Anteprojeto do Código de Obrigações de 1965, o qual pode ser conceituado da seguinte forma: A fidúcia é o negócio jurídico pelo qual, mediante a transferência de bens móveis ou imóveis que formem patrimônio separado, confere uma pessoa a outra o encargo de administrá-los em proveito de outrem, a quem deve entregá-los a certo tempo ou sob determinada condição. Nada impede se constitua em benefício do próprio transmitente. [...] Embora seja, de fato, inconcebível a dissociação da propriedade nos termos admitidos no direito inglês, pode-se naturalizar o instituto, considerando-se resolúvel a propriedade do fiduciário em relação aos imóveis, ainda tendo êle a faculdade de disposição, mas obrigado, quanto aos móveis que alienar, a sub-rogá-los em outros. [...] Necessário assim, que tais bens constituam patrimônio separado. Não podem confundir-se com os do fiduciário, estando subtraídos, portanto, à execução de seus credores, ainda em processo de falência. (GOMES, 1965, p. 12-13). Com base nesses esclarecimentos, o referido autor decompõe o contrato de fidúcia como sendo a transferência gratuita, mas efetiva, da propriedade ao fiduciário, mas encontrando-se este último vinculado a praticar a gestão da massa patrimonial nos moldes instituídos pelo fiduciante. “Tem-se, assim, o que se poderia denominar direito funcional, isto é, propriedade que não configura pleno direito subjetivo com a faculdade, por conseguinte, de gôzo no interesse próprio.” (GOMES, 1965, p. 13). O fiduciário adquire a propriedade de bens de forma temporária, para usá-los em benefício e fruição de outros. As obrigações do fiduciário, diferentemente do que se passa nos negócios fiduciários stricto sensu, são de natureza real, vinculadas à propriedade dos bens, devendo reverter os bens aos beneficiários. Em que pese exista a possibilidade de venda dos bens no contrato de fidúcia, restaria a obrigação de substituí-los por outros. Verifica-se, assim, que não se ousou criar uma dupla propriedade sobre os bens transmitidos. Estes são do fiduciário, mas constituem uma universalidade (patrimônio separado), os quais deverão ser revertidos, e não alienados, a favor dos beneficiários. Desta forma, seriam características do contrato de fidúcia a transmissão da propriedade, a afetação dos bens transmitidos, a temporariedade e a reversão. 141 Encontram-se presentes a figura do instituidor, do fiduciário e do beneficiário. Este último é o destinatário dos proveitos da administração do patrimônio separado, que lhe pertence, mas sem disposição até que cesse o direito do fiduciário. Mas são partes da relação jurídica apenas o instituidor e o fiduciário, não sendo necessária a aceitação do beneficiário, em que pese seja pessoa indispensável à persecução da finalidade do contrato, podendo, inclusive, ser o próprio instituidor. Conforme esclarece Chalhub (2006), a razão dessa restrição encontra-se diretamente relacionado ao receio de viabilização da prática de negócios usurários, dos quais resultariam incontestes prejuízos ao fiduciante. Mister trazer à baila seus apontamentos, inclusive por mencionar os ensinamento de Moreira Alves, que já se pronunciara quanto ao tema quando da análise do Anteprojeto das Obrigações: O propósito da restrição era dificultar a utilização dessa garantia em negócios usurários, daí porque, como observa José Carlos Moreira Alves, a generalização do Código Civil há de ser complementada por legislação processual que, “pelo menos no tocante à utilização dessa garantia por outrem que não qualquer das referidas entidades [financeiras], possibilite ao devedor defesa mais ampla quando da busca e apreensão.” Pondera Moreira Alves, entretanto, que essa forma eventual de obstaculização à prática da usura não é a maneira mais adequada de coibi-la, sendo certo que “o justo temor da usura deve levar ao combate desta, e não à limitação de uma garantia que se vem impondo por sua maior eficácia em face das até então admitidas.” (CHALHUB, 2006, p. 131-132). Os desdobramentos desse Anteprojeto, como se sabe, não foram fecundos, inviabilizando o estabelecimento da fidúcia em termos gerais, muito embora as discussões estabelecidas tenham servido para elaboração de leis específicas, como é o caso das já mencionadas. Na atualidade encontra-se em tramitação o Projeto de Lei nº 4.809, de 1998, de elaboração de Melhim Namem Chalhub, constando como autor o Deputado José Chaves e como Relator o Deputado Max Rosenmann, que versa sobre o contrato de fidúcia, tendo sido reconhecida pela Câmara dos Deputados sua relevância, mas sem ter desatado a questão até o presente momento. Ainda que à guisa de esclarecimentos, merecem ser transcrito alguns dos artigos desse Projeto de Lei: Art. 1º Pelo contrato de fidúcia uma das partes, denominada fiduciante, transmite a propriedade fiduciária de bens ou direitos a outra, denominada fiduciário, para que este os administre em proveito de um terceiro, denominado beneficiário, ou do próprio fiduciante, e os transmita a estes ou a terceiros, de acordo com o estipulado no contrato. 142 §1º A fidúcia requer forma escrita e pode ter como objeto bens e direitos presentes e futuros, com caráter revogável ou irrevogável. §2º Na fidúcia para fins de garantia o fiduciário pode ser o beneficiário, nas condições estabelecidas no contrato. [...] Art. 3 Os bens e direitos objeto da fidúcia, bem como seus frutos e rendimento, constituem propriedade fiduciária, limitados os poderes a ela inerentes na conformidade do que dispuser o contrato de fidúcia. §1º Considera-se fiduciária a propriedade de coisa, ou a titularidade de direito, subordinada a durar somente até o implemento de uma condição resolutiva ou até o advento de um termo, quando se opera a transmissão da coisa ou do direito ao beneficiário, ao fiduciante ou a terceiros ou sua consolidação no fiduciário, conforme o caso, nos termos do contrato. §2º O caráter fiduciário da propriedade produzirá efeitos perante terceiros a partir do registro do contrato de fidúcia, no Serviço de Registro ou no órgão público competente, conforme a natureza dos bens objeto da fidúcia. §3º Quando previsto no contrato, o fiduciário investir-se-á na propriedade fiduciária dos bens ou direitos que vier a adquirir com os frutos ou rendimentos do objeto da fidúcia, ou com o produto da alienação desses bens, devendo dos atos de aquisição constar a origem dos recursos. §4º Nos condomínios organizados para fins de investimento, de qualquer natureza, nas sociedades sob a forma mutualista, ou sob qualquer outra forma, que tenham por finalidade o autofinanciamento dos associados, a entidade administradora figurará como proprietária fiduciária dos bens objeto dos respectivos negócios do grupo. Art. 4º Os bens e direitos objeto da fidúcia manter-se-ão apartados dos ativos do fiduciário e do fiduciante e constituem patrimônio autônomo, afetado à finalidade determinada no título de constituição da fidúcia, não respondendo pelas dívidas pessoais do fiduciário ou do fiduciante, salvo, quanto às do fiduciante, nos casos de fraude. §1º O fiduciário poderá dispor ou gravar os bens dados em fidúcia, nas condições e para os fins previstos no contrato de fidúcia. §2º O fiduciário deverá diligenciar para que os bens objeto da fidúcia não se comuniquem, nem se confundam, com os bens e direitos do seu patrimônio ou de outros patrimônios sob sua administração. §3º As obrigações inerentes ao patrimônio fiduciário serão satisfeitas exclusivamente com o fruto e rendimentos por ele produzidos, ou com o produto da alienação dos bens ou direitos dele integrantes, procedendo-se, em caso de insuficiência, nos termos que dispuser o contrato de fidúcia. [...] (CHALHUB, 2006, p. 472-474). Verifica-se, assim, que a referida proposição apresenta todas as características necessárias a implementar quaisquer tipos de negócios fiduciários, seja para fins de administração, seja para fins de garantia, além de dotá-lo de estrema flexibilidade, por facultar as partes estipular as minúcias, conforme o objetivo visado, no próprio contrato. A opção do legislador brasileiro, na edição de diversas leis, objetivando prestigiar apenas alguns setores, preponderantemente o imobiliário, representa, sem dúvida, um entrave a diversos negócios, da mais variadas naturezas, não apenas à securitização de créditos, conforme restará mais claro no tópico a seguir, do seu confronto com a opção realizada pela maioria dos países da América Latina. 143 4.5.5 O fideicomisso nos países da América do Sul Apesar de no Brasil a palavra fideicomisso remeter a figura de natureza sucessória, em alguns países da América do Sul tal tem sido empregado em sentido mais amplo, nos moldes do negócio fiduciário para fins de administração, utilizado nas mais diversas situações. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) desenvolveu estudo específico sobre o tema, denominado o “Fideicomisso como Facilitador do Crédito na América do Sul”. Neste, aponta o fideicomisso como instrumento adequado à execução de projetos de infra-estrutura, já que possibilita a transferência da titularidade de ativos com a constituição de um patrimônio de afetação, na mesma linha do que foi analisado no presente trabalho. Acrescenta a inexistência de lei similar no ordenamento jurídico brasileiro36, o que seria de vantajosa ocorrência para fomentar investimentos em infra-estrutura. Para justificar esse posicionamento, descreve o período de turbulência econômica vivenciado nos países emergentes na década de 90, com retração das linhas de crédito externas, aumento de risco, com encarecimento do crédito e fuga de capitais. De forma a tornar suas economias menos vulneráveis a crises financeiras internacionais, alguns países da America do Sul buscaram constituir bases para um crescimento sustentável, com prioridade aos grandes investimentos em infra-estrutura, como setores de transporte, energia e telecomunicações. Todavia, essa empreitada demandaria enormes investimentos, e não contavam com recursos públicos, dada a delicada situação fiscal da maioria desses países, já com alto grau de endividamento. Agravando essa situação, quaisquer aplicações de recursos por eventuais investidores interessados acabariam sendo comprometidos por dívidas pré-existentes. Como solução para atração de capital privado para essas empreitadas, buscou-se uma via que reduzisse essa preocupação por parte dos investidores, a qual necessariamente deveria ter como premissa o isolamento dos novos fluxos de capital, dos passivos já existentes. E foi então que se formulou a idéia do negócio fiduciário, na busca dos efeitos do trust, conforme aponta o artigo em comento: 36 Acredita-se que nesse particular esteja se referindo a negócios fiduciários para fins de administração destinados a quaisquer tipos de atividades, com ênfase em projetos de infra-estrutura, já que referido artigo data de março de 2007, época em que o ordenamento jurídico pátrio já havia, há algum tempo, regime fiduciário devidamente instituído na área imobiliária, tal como visto neste trabalho. 144 Foi nesse contexto que alguns países sul-americanos realizaram alterações na legislação que regula o fideicomisso, um dos mais antigos institutos jurídicos, derivado do direito romano. Essas modificações permitiram a criação de um marco regulatório que levou à execução de projetos que, de outra forma, seriam pouco atrativos ao setor privado. O “fideicomisso sul-americano” guarda semelhanças com o trust e serve como instrumento para segregar ativos e para canalizar o recebimento de recursos privados e aportes governamentais. Além da vantagem jurídica de proteger o fluxo de caixa de um investimento dos riscos a que pode estar sujeito o patrimônio da empresa beneficiária, o fideicomisso elimina possíveis conflitos de interesse durante a execução do projeto, confere transparência na gestão dos recursos e centraliza a tomada de decisões envolvendo os investimentos em infra-estrutura. (BNDES, 2007, p. 179). Dispensam-se maiores explicações sobre o negócio fiduciário empregado nessa empreitada, com finalidade de administração, tendo em vista que o descrito nesse artigo encontra-se em consonância com o já apontado no decorrer deste trabalho. O artigo ora analisado revela-se interessante por demonstrar a relevância econômica da regulamentação dessa modalidade de negócio fiduciário, demandada cada vez mais na atualidade, em que as estruturas negociais, com diversos partícipes, associado ao extremo dinamismo em que se dão, demandam formas seguras no seu desfecho. A afetação patrimonial decorrente desse instrumento é indispensável, seja para garantia das partes e investidores, seja por dispensar maiores aprofundamentos sobre a higidez financeira dos contratantes, o que demandaria tempo e desnecessário dispêndio de recursos. Ademais, terminaria por causar a ruína de empresas em situação financeira irregular, pois seriam excluídas do mercado, por não contarem com as características demandadas. Sob qualquer aspecto que se analise a instituição do negócio fiduciário para fins de administração, sua introdução é medida que se impõe, não apenas para resolver, de vez, os anseios das operações realizadas no mercado de capitais, mas igualmente por solucionar diversos outros entraves, na obtenção de financiamentos de suma importância para o país. De qualquer sorte, outro aspecto interessante deste artigo, é a colação de leis sobre fideicomisso de diversos países da América do Sul, em relação às quais se recomenda a transcrição, quando menos, de alguns artigos daquela de origem argentina, a Lei 24.441, de 24 de dezembro de 1994: Art. 1º Haverá fideicomisso quando uma pessoa (fiduciante) transmitir a propriedade fiduciária de determinados bens a outra (fiduciário), que se obriga a exercê-la em benefício de quem for especificado em contrato (beneficiário), e a transmiti-los ao fiduciante, ao beneficiário ou ao fideicomissário após o decurso de um prazo ou condição. [...] 145 Art. 14 Os bens fideicomitidos constituem um patrimônio separado do patrimônio do fiduciário e do fiduciante. [...] Art. 15 Os bens fideicomitidos restarão excluídos da ação singular ou coletiva dos credores do fiduciário. Tampouco poderão agredir os bens fideicomitidos os credores do fiduciante, ressalvando-se os casos de fraude [...] (BNDES, 2007, p. 181, tradução nossa37). Conforme também destaca o estudo realizado pelo BNDES (2007, p. 182), as “alterações na legislação dos países sul-americanos que instituíram o fideicomisso, tal como utilizado na Argentina, foram realizadas na Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela”. E assim tem sido feito nos referidos países da America do Sul, na utilização do fideicomisso na estruturação financeira de diversas operações, o que revela considerável êxito, já que, por exemplo, na Colômbia, foram transferidos recursos a fideicomissos privados da ordem de treze bilhões de dólares no ano de 2000 e de aproximadamente vinte e quatro bilhões em 2004, conforme também aponta o estudo realizado pelo BNDES. 37 Art. 1º Habrá fideicomisso cuando uma persona (fiduciante) transmita La propriedad fiduciaria de bienes determinados a otra (fiduciario), quien se obliga a ejercerla en beneficio de quien se designe en el contrato (beneficiario), y a transmitirlo ao cumplimiento de un plazo o condición al fiduciante, al beneficiario o al fideicomisario. Art. 14 Los bienes fideicomitidos constituyen un patrimonio separado del patrimonio del fiduciario y del fiduciante. Art. 15 Los bienes fideicomitidos quedarán exentos de la acción singular o colectiva de los acreedores del fiduciario. Tampoco podrán agredir los bienes fideicomitidos los acreedores del fiduciante, quedando a salvo la acción de fraude. 146 5 A LEI DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA EMPRESA Conforme visto nos tópicos anteriores, algumas das leis analisadas estipulam a criação de patrimônios separados, assim como, em relação à propriedade fiduciária, sua constituição é dotada dos mesmos efeitos daqueles, de forma a excluir os bens afetados dos integrantes da insolvência ou falência, seja do credor, seja do devedor. Hipótese contrária seria, no mínimo, contraditória, na medida em que fulminaria a própria ratio legis demonstrada pelo Legislador na sua criação e, ademais, esvaziaria sua utilidade. Desta forma, as leis analisadas, que cuidaram de instituir a afetação de determinado patrimônio a uma finalidade, expressamente cuidaram de excluir os elementos que o compõe de eventual liquidação, insolvência ou falência de seus respectivos titulares ou administradores. É o que se colhe dos já citados art. 7º, inc. III, da Lei nº 8.668/93, do art. 31F da Lei nº 4.591/64, com a alteração da pela Lei nº 10.931/04, assim como do parágrafo único do art. 15 da Lei nº 9.514/97. No que se refere especificamente à propriedade fiduciária, as conseqüências são as mesmas, seja em relação aos efeitos da falência ou insolvência do devedor-fiduciante, seja em relação à do credor-fiduciário. Afinal, ao contrário do que ocorre em um negócio fiduciário stricto sensu, a constituição de propriedade fiduciária “implica a afetação do bem ou do direito objeto da garantia fiduciária, excluindo-os dos efeitos da insolvência.” (CHALHUB, 2006, p. 178). Assevera esse mesmo autor: A garantia real constituída mediante registro do contrato de alienação fiduciária é representada pela propriedade resolúvel do bem, vale dizer, a propriedade é transmitida ao credor, mas com escopo de garantia. De outra parte, na medida em que é propriedade resolúvel do fiduciário, esse bem constitui propriedade potencial do devedor-fiduciante, sendo este titular de um direito eventual, também chamado direito expectativo, à propriedade plena do bem. Essa peculiar situação decorrente da alienação fiduciária implica necessariamente a criação de um patrimônio de afetação, que tem por objeto o bem alienado fiduciariamente. Por isso, o domínio que o credor tem sobre o bem deve “durar somente até o cumprimento da condição resolutiva, para o efeito da restituição da coisa ao seu antigo dono.” (CHALHUB, 2006, p. 242). 147 Na falência do devedor alienante, dispunha o Decreto-lei nº 911/69, em seu art. 7º38, o direito do proprietário fiduciário pedir a restituição. Tal possibilidade foi mantida, já que constante do art. 20 da Lei nº 9.514/9739, também aplicável à alienação fiduciária em garantia de que trata a Lei nº 4.728/65, conforme disposto no parágrafo 4º, do art. 66-B. Neste caso, após realizada a restituição do bem, será realizada a venda do mesmo, devolvendo-se o que sobejar a favor da massa. Caso a falência seja do credor-fiduciário, a massa falida irá assumir a posição daquele e, após o pagamento da dívida pelo devedor, o bem há de lhe ser entregue. Não ocorrendo o pagamento, será realizada a venda da coisa, restituindo-se ao devedor o que ultrapassar o crédito devido. Não bastasse o trato dessa questão em leis específicas, assim como o entendimento doutrinário a respeito, cuidou também a Lei nº 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, de expressamente consolidar essa situação, de forma a não deixar quaisquer dúvidas quanto a esses efeitos. É o que se colhe, primeiramente, do art. 49, §3º, que exclui a propriedade fiduciária dos efeitos da recuperação judicial: Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. [...] §3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendamento mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o §4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. (BRASIL, 2005). Quanto ao patrimônio de afetação, o art. 119, inc. IX, é que cuida de excepcioná-lo, além de seu inc. VIII determinar o vencimento antecipado das obrigações constituídas no âmbito do sistema financeiro nacional: 38 Art. 7º. Na falência do devedor alienante, fica assegurado ao credor ou proprietários fiduciário o direito de pedir, na forma prevista na lei, a restituição do bem alienado fiduciariamente. Parágrafo único. Efetivada a restituição o proprietário fiduciário agirá na forma prevista neste decreto-lei. 39 Art. 20. Na hipótese de falência do devedor cedente e se não tiver havido a tradição dos títulos representativos dos créditos cedidos fiduciariamente, ficará assegurada ao cessionário fiduciário a restituição na forma da legislação pertinente. Parágrafo único. Efetivada a restituição, prosseguirá o cessionário fiduciário no exercício dos seus direitos na forma do disposto nesta seção. 148 Art. 119. Nas relações contratuais a seguir mencionadas prevalecerão as seguintes regras: [...] VIII – caso haja acordo para compensação e liquidação de obrigações no âmbito do sistema financeiro nacional, nos termos da legislação vigente, a parte não falida poderá considerar o contrato vencido antecipadamente, hipótese em que será liquidado na forma estabelecida em regulamento, admitindo-se a compensação de eventual crédito que venha a ser apurado em favor do falido com créditos detidos pelo contratante; IX – os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer. (BRASIL, 2005). Assim ocorrendo, se insolvente o credor-fiduciário, a massa assume sua posição, o mesmo ocorrendo no caso da recuperação judicial de empresa, cabendo trazer os apontamentos a seguir: Por essa forma, o crédito do credor-fiduciário permanece afastado dos efeitos da recuperação judicial da empresa devedora, mantendo o contrato seu curso normal até a integral extinção da dívida, quando se dará o cancelamento da propriedade fiduciária; colocando-se em mora ou tornando-se inadimplente o devedor, estará o credor legitimado a adotar os procedimentos previstos na legislação especial que disciplina os meios de realização da garantia fiduciária. A exclusão de que trata esse dispositivo alcança a garantia fiduciária constituída sobre bens móveis, imóveis, e, bem assim, sobre os direitos e títulos de crédito a que se refere o art. 66B da Lei nº 4.728/65, com a redação data pela Lei nº10.931/2004, devendo-se entender que a expressão “propriedade fiduciária” foi empregada pelo legislador em sentido abrangente, compreendendo não só a propriedade sobre bens corpóreos, mas, também a titularidade fiduciária sobre direitos e sobre títulos de crédito. É que, como já visto, a constituição de garantia fiduciária, de qualquer espécie, importa na afetação do bem ou do direito objeto da garantia, de modo tal que ele permanece segregado e imune aos efeitos da insolvência tanto do credor como do devedor, com vistas ao cumprimento de sua destinação. Nesse sentido, o inciso IX do art. 119 da Lei nº 11.101, de 2.8.2005, coerentemente com as disposições específicas da legislação especial sobre as garantias fiduciárias, enuncia uma regra genérica de exclusão dos patrimônios de afetação, em geral, dos efeitos da falência, estando compreendidos nesses patrimônios especiais todas as espécies de garantia fiduciária, sejam aquelas que tenham por objeto os bens móveis ou imóveis como aquelas constituídas sobre direitos, sobre móveis ou imóveis, e títulos de crédito; para todas essas hipótese, esse dispositivo prescreve que esses “bens, direitos e obrigações” permanecerão separados, prosseguindo o curso normal dos respectivos contratos até o cumprimento da finalidade da afetação, isto é, da garantia fiduciária.” (CHALHUB, 2006, p. 244-245). Apesar da literalidade dos referidos dispositivos não deixar dúvidas quanto à não sujeição da propriedade fiduciária e do patrimônio de afetação à recuperação judicial, cumpre esclarecer também os fundamentos econômicos que influíram na redação da Lei em comento. 149 E, quanto isso, colhem-se os ensinamentos de Jean Carlos Fernandes (2009). Antes mesmo de abordar a Lei de Recuperação de Empresas, referido autor traz apontamentos relativos à recuperação de empresas e aos contratos de garantia financeira na Comunidade Européia, a qual buscou regulamentar normas aplicáveis aos Estados-Membros. São preservados os direitos reais no processo de insolvência, podendo seus respectivos titulares liquidar ou exigir a liquidação de tais direitos, além de outras prerrogativas, e destaca, dentre outros aspectos, o escopo dos regulamentos lá instituídos: Nota-se, portanto, que o Regulamento (CE) n. 1346, de 2000, seguindo a diretriz da União Européia de criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, estabeleceu que, para o bom funcionamento do mercado interno, os processos de insolvência se efetuem de forma eficiente e eficaz, protegendo, principalmente, os credores ou terceiros titulares de direitos reais, incluindo cessão de crédito a título de garantia. Complementando tal orientação, veio a Diretiva n. 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de junho de 2002, que entrou em vigor na data da sua publicação, relativa aos acordos de garantia financeira. [...] A Diretiva n. 2002/47/CE reconheceu que a ausência de um quadro jurídico uniforme sobre o regime de garantias afeta a conclusão das operações, e, indiretamente, o nível global de eficiência dos mercados. Objetivou, portanto, assegurar um mercado financeiro europeu integrado, com a redução dos riscos de crédito, diante da necessidade de harmonização da constituição, proteção, transferência e execução das garantias. (FERNANDES, 2009, p. 154-155). Posteriormente, esse mesmo autor, ao tratar dos motivos ensejadores da exclusão, na recuperação judicial, dos créditos relacionados no §3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005, aponta para o princípio da redução do custo do crédito como determinante desta opção, e elucida: O princípio da redução do custo do crédito no Brasil consta expressamente no Relatório da Comissão de Assuntos Econômicos sobre o PLC n. 71, de 2003, oriundo do PL n. 4.376, de 1993, que originaram a Lei n. 11.101, de 2005, nos seguintes termos: “é necessário conferir segurança jurídica aos detentores de capital, com preservação das garantias e normas precisas sobre a ordem de classificação de créditos na falência, a fim de que se incentive a aplicação de recursos financeiros a custo menor nas atividades produtivas, com o objetivo de estimular o crescimento econômico” (MACHADO, Rubens Approbato (Coord.). Comentários à nova lei de falências e recuperação de empresa. São Paulo: Quartier Latin, 2005, PP. 343-383). (FERNANDES, 2009, p. 191). Esse entendimento resta ainda mais confirmado quando se percebe, de forma evidente, esse mesmo espírito em outros dispositivos da Lei em comento, tal com se dá no retro transcrito art. 119, incisos VIII e IX. Como se tal não bastasse, encontra-se ainda outra importante inovação no art. 136, §1º, a revelar mais uma vez a preocupação do Legislador 150 com a proteção do crédito e, consequentemente, dos investidores e com o desenvolvimento do mercado de capitais: Art. 136. Reconhecida a ineficácia ou julgada procedente a ação revocatória, as partes retornarão ao estado anterior, e o contratante de boa-fé terá direito à restituição dos bens ou valores entregues ao devedor. §1º Na hipótese de securitização de créditos do devedor, não será declarada a ineficácia ou revogado o ato de cessão em prejuízo dos direitos dos portadores de valores mobiliários emitidos pelo securitizador. (BRASIL, 2005). Conforme aponta Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 357), “Caso a ineficácia não fosse por lei expressamente afastada na securitização de recebíveis, essa alternativa de financiamento da atividade empresarial simplesmente deixaria de existir”. De fato, nos termos analisados no decorrer deste trabalho, a securitização é estruturada a partir da premissa de que houve a segregação dos riscos próprios do originador em relação à sua atividade, de tal sorte que o rating da operação se dá apenas com enfoque na SPE, passando-se as informações assim obtidas ao mercado, para que os investidores tomem sua decisão. Os investidores sabem que há risco relativo à adimplência, ou não, dos devedores dos créditos cedidos, mas que tal risco encontra-se diluído, “pulverizado” como se costuma dizer, dentro da massa de créditos formada de tal sorte que, associado à diversidade dos créditos utilizados e garantias colaterais prestadas, se obtém uma melhoria do crédito com um todo, razão da atratividade dos valores mobiliários emitidos. Assim ocorrendo, fosse possível cogitar que riscos próprios da atividade do originador viessem a afetar esse substrato patrimonial, lastro indispensável ao resgate dos títulos, equivaleria a remeter o público investidor a uma álea de difícil ou impossível mensuração, a desaconselhar fortemente essa forma de desintermediação financeira. Daí a singular relevância econômica da securitização de créditos, que tem a aptidão de proporcionar a diversas atividades e projetos, público e privados, o necessário investimento, a um custo menor daquele obtido junto a instituições financeiras, o que, de resto, a depender do tamanho da empreitada, sequer seria possível. Quanto a isso, vale a transcrição da opinião abaixo, que destaca parte desses aspectos, voltados ao fomento da atividade empresarial, revelando, mais uma vez, a intenção do Legislador em proteger os investidores e, com isso, o próprio mercado de capitais: 151 Com a securitização tem-se um processo pelo qual as empresas podem captar recursos no mercado mediante antecipação no recebimento de créditos vincendos sem afetar o nível de endividamento do seu balanço. Surgiu, assim, interesse de investidores de mercado, que podem conflitar com interesse dos credores do falido. O legislador ao incorporar o dispositivo do §1º do art. 136, protegeu os portadores de valores mobiliários que adquiriram os recebíveis, pois estes participam do importante papel de financiar as atividades empresariais, obtendo como garantia indireta a obrigação ativa de que é credora a empresa beneficiada pela compra dos securities e como garantia direta o patrimônio do securitizador. [...] Tratando-se de processo moderno para a captação de recursos no mercado, a fim de agilizar a atividade empresarial, é evidente que as soluções aventadas na Resolução n. 2493 do Conselho Monetário Nacional, estão de acordo com o legislador que editou a Lei 11.101/2005, especialmente na necessidade de se promover a recuperação de empresas viáveis. A securitização é, na verdade, um dos processos de viabilização para a recuperação da atividade empresarial e não poderia, portanto, ser desprestigiada num diploma legal que tem como seu ponto forte, justamente, o incentivo à recuperação de empresas. (MARTIN, 2006, p. 473). A Resolução nº 2.493/98 do CMN foi revogada pela Resolução nº 2.686/2000, que estabelece condições para a cessão de créditos a sociedades anônimas de objeto exclusivo e a companhias securitizadoras de créditos imobiliários, e dispõe em seu art. 5º, parágrafo único, inc. II, a necessidade de previsão no instrumento de emissão dos valores mobiliários o tratamento a ser dado no caso de insolvência ou falência ou liquidação de seus devedores. Não obstante todos os aspectos retro delineados, imperioso perquirir quanto ao real alcance da ineficácia disposta nesse dispositivo, que não pode ter pretendido ressalvar até mesmo hipóteses de fraude que, infelizmente, podem surgir, como em qualquer outro negócio jurídico. É o que se colhe da interessante hipótese abaixo cogitada: Quis o legislador, nesse dispositivo, incorporado ao texto da lei pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, proteger os investidores e a própria atividade de securitização de créditos, mas, no seu afã, saiu-se com redação muito infeliz, que pode permitir aos desavisados o entendimento de que se concedeu uma espécie de carta de corso à securitização, que poria à salvo de questionamento judicial qualquer fraude que por meio dela se perpetrasse. Muito obviamente, não é essa a correta leitura do §2º do art. 136. A interpretação que me parece acertada é a seguinte: se houve um conluio fraudulento entre o falido e o securitizador, não se poderá retirar eficácia da cessão dos créditos que lastrearem a emissão dos títulos, sem prejuízo de se exigir reparação desse último. Se, no entanto, da fraude participaram também os investidores, a alienação dos créditos deverá cair sob o golpe da revocatória. Tomese um exemplo: uma rede de varejo securitiza uma carteira de crédito direto ao consumidor (CDC), emitindo títulos por um preço absurdamente vantajoso, e, sem a participação da securitizadora, faz com que testas-de-ferro subscrevam esses valores mobiliários. Obviamente essa cessão tem de ser privada de efeitos – pensar o contrário equivale a supor que a lei criou uma hipótese de fraude legalmente permitida, o que agride até mesmo o bom senso. (TEPEDINO, 2007, p. 410-411). 152 De fato, não há como se pretender uma proteção absoluta. Como em todo negócio jurídico, na ocorrência de fraude devem ser considerados ineficazes os atos praticados, e buscar a restituição ao status quo ante. Entretanto, por certo que a intenção do Legislador foi preservar o crédito e, consequentemente, os investidores, tal como se colhe da literalidade do referido artigo e de uma interpretação sistemática da Lei em comento, de tal sorte que somente quando houver participação dos investidores em eventual fraude praticada é que em relação a esses não valerá o beneplácito do parágrafo 1º, do art. 136. Portanto, deve-se ter em vista que as operações de securitização de crédito, dada a sua importância no contexto do desenvolvimento do sistema financeiro nacional e da economia, demandou a efetiva proteção do público investidor, contando, assim, com particular proteção nos casos de falência do originador. 153 6 CONCLUSÃO Conforme visto, as securitizações de créditos imobiliários já se encontram satisfatoriamente regulamentadas. Contando com a instituição de regime fiduciário e consequente segregação dos ativos que servirão de lastro a emissão dos valores mobiliários, afastam-se os temores relativos à solvabilidade da originadora, assim como da própria securitizadora, quando esta se prestar a mais de uma operação. Afinal, os valores mobiliários ou títulos emitidos encontram-se estritamente vinculados aos ativos, não podendo servir de garantia a outras dívidas que não aquelas próprias da securitização em que se encontram. De igual sorte, a segurança daí advinda, associada à padronização dos títulos emitidos, propiciam o desenvolvimento do mercado secundário. Entretanto, para as demais espécies de ativos, inclusive aqueles oriundos da atividade empresarial e financeira, a questão não se encontra tão clara, dada a falta de regulamentação adequada, o que impõe, na estruturação da operação, a busca por instrumentos hábeis a atribuir a segurança almejada. Após a análise da propriedade fiduciária instituída pela Lei nº 4.728/65, com as alterações da Lei nº 10.931/2004, que acrescentou o art. 66-B, verifica-se a possibilidade de se conferir os efeitos almejados. Para tanto, na transferência dos créditos que servirão de lastro à emissão de valores mobiliários, ao invés de se utilizar uma cessão ordinária, torna-se possível a realização de uma cessão fiduciária dos mesmos. As conseqüências, como visto, serão aquelas próprias da constituição de um patrimônio separado. O parágrafo terceiro do art. 66-B faculta ao credor fiduciário a posse direta do bem cedido, e seu parágrafo quarto estende a aplicação dos arts. 18 a 20 da Lei nº 9.514/97, os quais, por sua vez, permitem a cobrança direta pela cessionária dos devedores dos créditos cedidos, restituindo-se ao cedente o que eventualmente ultrapassar o valor devido ou, pelo contrário, cobrar o saldo remanescente, nas condições convencionadas no contrato. Essa última disposição revela, assim, a faculdade das partes contratantes regerem a forma de amortização e final quitação do débito, sem que a alienação fiduciária instituída pela referida Lei imponha, necessariamente, a devolução dos títulos ao cedente, ou que o pagamento da dívida seja feita por ele próprio. Faculta-se, pelo contrário, que a amortização da dívida, até sua final quitação, seja feita pelo próprio cessionário, através da cobrança dos devedores dos créditos cedidos. 154 Ademais, por força do art. 35 da Lei 9.514/97, dispensa-se a notificação dos devedores dos créditos nas cessões de que trata o art. 18, do que decorre o benefício de verem-se minorados os ônus financeiros decorrentes da estruturação da operação. A opção ora apontada também não encontraria óbice no argumento de que essa operação somente estaria legitimada quando operada por instituição financeira, na medida em que se encontra prevista na própria Lei nº 4.728/65, que disciplina o mercado de capitais e as operações a ela relacionadas, sendo os Fundos de Investimento e as companhias securitizadoras, indubitavelmente, integrantes desse mercado. Não à toa, diversas ações de busca e apreensão são comumente ajuizadas pelos mesmos. Lado outro, e conforme já demonstrado anteriormente, as instituições financeiras encontram-se presentes na estruturação da securitização, seja na condição de companhia securitizadora, seja na condição de administradora de fundos de investimento, de onde se extrai sua legitimidade para esse mister. É o que dispõe a Instrução CVM nº 356/2001, que institui o Fundos de Investimento em Direitos Creditórios, e em seu art. 33 atribui poderes à administradora para “exercer os direitos inerentes aos direitos creditórios que integrem a carteira do fundo”. Mas a questão ganhou novos ares com o advento da Lei nº 9.514/97. Conforme visto, referida Lei generalizou a instituição de propriedade fiduciária sobre bens imóveis e sobre créditos de natureza imobiliária, legitimando como credores-fiduciários quaisquer pessoas físicas e jurídicas, e não apenas instituições financeiras, a revelar sua utilidade também em operações de securitização de ativos de outra natureza, de duas formas distintas. Para as empresas comerciais, prestadoras de serviços e de quaisquer outras atividades, que vislumbrem interesse em antecipar receitas, podem entabular com seus devedores a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, o que acarretará não apenas a melhoria da qualidade dos créditos que possuem, mas, igualmente, permitirá a securitização desses créditos, como se ativos de natureza imobiliária fossem, já que, ao fim e ao cabo, encontram-se, de fato, garantidos por propriedade fiduciária sobre bem imóvel. Entretanto, para as empresas que atuam no varejo e, assim, pela desproporcionalidade entre o valor devido pelos seus produtos ou serviços, não encontrem viabilidade na constituição de propriedade fiduciária com seus devedores, ou mesmo para as hipóteses em que os devedores não possuam um bem imóvel para tal finalidade, pode a empresa-originadora entabular com a sociedade de propósito exclusivo alienação fiduciária em garantia de imóvel de sua propriedade, como garantia colateral, de forma a melhorar o rating da operação. Ademais, esta restará desonerada, posto desnecessária a contratação de 155 seguro ou fiança bancária, bem como qualquer outra sorte de garantias colaterais, como, por exemplo, a cessão de um maior volume de ativos do que o necessário a fazer frente ao numerário antecipado na operação. Já a utilização da propriedade fiduciária prevista no Código Civil de 2002, a seu turno, não se mostra a mais recomendável quando se trata da conjugação de instrumentos jurídicos para realização de uma securitização de créditos, tendo em vista que, mesmo se tiver como objeto bens infungíveis, a cessionária não contaria com a ação de busca e apreensão, ou com o procedimento previsto na Lei nº 9.514/97, se necessário fosse, mas tão somente com uma ação de reintegração de posse. Com relação à segunda etapa da operação, com a emissão de títulos e o vínculo que passa a se formar entre investidores e a sociedade de propósito exclusivo, a questão se encontra de difícil solução, nos casos em que esta última se preste à realização de mais de uma operação. Caso existisse a previsão legal de um negócio fiduciário com finalidade de administração, os créditos que servem de lastro à operação, indubitavelmente, configurariam patrimônio separado, a salvo de outros credores. Mas, infelizmente, a tanto não chega a propriedade fiduciária, como a própria denominação aponta, para fins de garantia. Não obstante, ainda assim é de se questionar a real necessidade de edição de lei específica para o trato, de forma geral, das operações de securitização de créditos. A Lei nº 9.514/97 criou importantes instrumentos jurídicos ao desenvolvimento da economia, principalmente daqueles relacionados ao mercado de capitais. Eventuais restrições de sua aplicação, impostas pelos órgãos reguladores, como, por exemplo, a impossibilidade de coobrigação da originadora pelos créditos cedidos, em razão da necessidade de maior fiscalização e controle em alguns setores e atividades, é matéria afeta à política econômica a ser adotada e, consequentemente, não aponta necessariamente para a deficiência do ordenamento jurídico pátrio. A evolução legislativa dos últimos anos revela o reconhecimento da necessidade de instituir garantias efetivas a fomentar a concessão de crédito e a circulação de riquezas, assim como busca o desenvolvimento do mercado financeiro e de capitais, indispensáveis ao financiamento de projetos, geração de empregos e, portanto, ao crescimento da economia, inclusive com atração de investidores externos. Até que sejam devidamente sedimentadas essas recentes inovações, e considerando, ainda, a constante mutação das necessidades comerciais, pode ser precipitada a edição de lei 156 tendente a regular de forma genérica a operação de securitização de créditos, aplicável a qualquer tipo de ativos, sob pena de dificultar a fiscalização pelos órgãos reguladores, ou engessar a operação em relação a modalidades negociais ainda não previstas. Entretanto, o mesmo não se pode dizer quanto à conveniência de se regulamentar, de uma vez por todas, os negócios fiduciários para fins de administração, nos moldes já analisados, em situação análoga ao do trust anglo-saxão. As operações realizadas no mercado financeiro apontam para a relevância social e econômica dessa medida, com efetiva necessidade de proteção do público investidor e da própria economia popular, e uma inovação desse jaez em nada comprometeria a fiscalização por parte do poder público. Muito pelo contrário, já que a segregação patrimonial daí decorrente é sinônimo de transparência e segurança. E por não impor de forma obrigatória sua utilização às operações de securitização de crédito, não haveria risco de comprometer outros futuros modos de estruturação da operação. De resto, quanto aos alegados inconvenientes advindos de possível malversação do negócio fiduciário em sua livre utilização nas mais variadas relações civis e comerciais, inclusive para camuflar negócios usurários, acredita-se que esse receio não justifica o atraso na edição da lei em comento, e sequer é a forma adequada de combate à usura. Não é pela ausência dessa lei que a prática da usura deixou de existir, muito pelo contrário, é feita por outras vias e contratos, na tentativa de esconder sua prática. Ademais, em específico no que se refere ao mercado de capitais, há natural regulação exercida pelo próprio mercado, em conjunto com aquela desempenhada pelos órgãos reguladores e demais partícipes de uma securitização, dificultando a ocorrência de negócios fraudulentos. É de indiscutível relevância uma inovação dessa natureza no ordenamento jurídico pátrio. A falta de lei sobre o negócio fiduciário, com a conseqüente segregação patrimonial que encerra, causa prejuízos diários ao país, que se relega a situação de evidente desvantagem em determinados setores, quando comparado com seus concorrentes da América Latina que já cuidaram de proporcionar o instrumental adequado à dinâmica e segurança exigidas na atualidade. Portanto, conclui-se que apesar de não ser recomendável uma lei que regulamente, de forma genérica, as operações de securitização de créditos em todas as suas facetas, o mesmo não se pode dizer quanto à conveniência de se instituir os negócios fiduciários para fins de administração, com a conseqüente afetação do substrato patrimonial envolvido. 157 Caso tal se desse, de forma similar ao regime fiduciário das leis que versam sobre as operações imobiliárias, os principais receios quanto à insolvência do originador e da sociedade de propósito exclusivo restariam mitigados. Lado outro, não estaria presente qualquer inconveniente de cunho econômico, na medida em que a constituição desse regime seria uma faculdade, a ser instituída conforme o perfil do negócio, e tampouco impediria a regulação do mercado nos moldes a serem determinados pelos órgãos competentes. Acredita-se fortemente que a instituição de negócios fiduciários desse jaez são sinônimos de transparência e segurança, o que em muito acrescentará para o desenvolvimento da economia pátria e, em específico, da própria operação de securitização de créditos. 158 REFERÊNCIAS ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. São Paulo: Saraiva, 1973. ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 14ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2008. ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria Geral da Relação Jurídica. Vol. I. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. ARAGÃO NETO, Orlando. O penhor no direito brasileiro. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. BANCO CENTRAL. Circular do Banco Central n. 1.979/1991. 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