Distraído pelo barulho

Propaganda
Distraído pelo barulho
Distraído pelo barulho
Desatenção e notas baixas na escola não são sinônimo de falta de inteligência. Às
vezes o problema está na incapacidade de lidar com barulho, mas poucos médicos
sabem disso.
Por mais que estudasse, a paulista Glaudys Garcia não tirava notas maiores que 4. A
mãe e os professores se esforçavam para lhe ensinar coisas simples, mas ela não
prestava atenção em nada. Era insegura, distraída, tinha medo de falar ao telefone e
não se concentrava nos livros. Acabou se isolando dos colegas. Depois de passar por
vários médicos e psicólogos, sua mãe tentou um último recurso: levou-a a uma
fonoaudióloga. Em três meses Glaudys estava curada. Hoje ela tem 13 anos e no seu
último boletim não há nenhuma nota menor do que 6.
Pode parecer estranho, mas o problema era de audição. A menina, assim como
outras centenas de milhares de crianças, sofria de desordem do processamento
auditivo central, ou DPAC, um distúrbio reconhecido há apenas quatro anos que
raramente é diagnosticado pelos médicos, mas pode estar afetando milhões de
brasileiros. Em geral, a disfunção surge da falta de estímulos sonoros durante a
infância. As estruturas do cérebro que interpretam e hierarquizam os sons se
desenvolvem nos treze primeiros anos. Até essa idade, as notas musicais, as
palavras e os barulhos vão lentamente nos ensinando a lidar com a audição.
Justamente nessa fase, Glaudys pode ter tido problemas no ouvido que
atrapalharam a entrada de sons. Acabou formando mal o seu sistema auditivo.
Todos os inconvenientes pelos quais passou eram conseqüência disso.
Um dos principais sintomas da DPAC é a dificuldade em manter a concentração
num ambiente ruidoso. “Quem sofre desse mal não consegue prestar atenção em
uma coisa só”, diz a neurologista Denise Menezes, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. “Na sala de aula, não separa o que a professora diz do latido
de um cachorro do lado de fora”, acrescenta.
A DPAC é comum nas grandes cidades, onde o barulho excessivo prejudica a
percepção de estímulos sonoros e a poluição provoca alergias que bloqueiam a
orelha com muco. Crianças que têm inflamações freqüentes nos ouvidos também
podem sofrer da desordem. O pior é que, por ser pouco conhecida, a DPAC costuma
ser confundida com falta de inteligência ou com alguma deficiência mental. Mas,
como mostra o caso de Glaudys, uma coisa não tem nada a ver com a outra.
O mundo é barulhento demais
Para uma vítima de DPAC, o mundo se transforma numa interminável confusão de
barulhos desconexos e embaralhados de onde é quase impossível pescar os sons
que realmente interessam (veja infográfico). O ar-condicionado vira um zunido
infernal que se sobrepõe às vozes dos outros. O telefone torna-se uma máquina
indecifrável, porque o cérebro não consegue decodificar a fala do interlocutor em
meio à distorção normal de qualquer ligação. Também não é fácil entender a
entonação das frases. Uma pergunta pode soar como uma afirmação e uma ironia
acaba parecendo a frase mais séria do mundo. Os amigos acabam se afastando, já
que ninguém gosta de conversar com alguém que não entende o que os outros
dizem.
A fala também é prejudicada. “Os processos de linguagem se desenvolvem ao
mesmo tempo que os de audição”, explica a fonoaudióloga Liliane Desgualdo, da
Universidade Federal de São Paulo, pioneira no diagnóstico da DPAC no Brasil.
“Uma criança pode não aprender a falar bem se não souber lidar com os sons.” A
leitura acaba igualmente afetada. “Mesmo num lugar silencioso, uma pessoa com
DPAC encontra problemas em entender um texto porque, para tanto, é necessário
associar as palavras ao som que elas têm”, conta a psicopedagoga Ana Silvia
Figueiral, de São Paulo. Todo esse esforço para realizar atividades corriqueiras é
demais para o cérebro. Chega uma hora que ele não resiste e “desliga”. Por isso, as
vítimas do problema são sempre muito distraídas.
Enfim, tudo se torna uma tarefa dura. O ouvido até percebe os sons, mas o cérebro,
iludido pela falta de estímulos na infância, não sabe o que fazer com eles. Os
médicos geralmente não percebem a disfunção porque ninguém desconfia que
sintomas tão variados possam estar todos ligados à audição, menos ainda quando
constatam em exames que o ouvido funciona normalmente. E, se o diagnóstico não
é feito, não há como curar (veja quadro à direita).
Reaprendendo a escutar
A DPAC só foi reconhecida nos Estados Unidos em 1996, quando a Associação
Americana de Fala, Linguagem e Audição chegou a um consenso sobre seus
sintomas e suas formas de tratamento. Ainda se sabe pouco sobre as causas – a
falta de estímulos sonoros está entre elas, mas suspeita-se também de razões
genéticas e de má alimentação. “Uma coisa é certa: a desordem está relacionada à
classe social”, afirma Liliane. Ela fez uma pesquisa em colégios de São Paulo e
constatou que, nas escolas particulares, entre 15% e 20% das crianças têm DPAC
em algum grau. Nas escolas públicas, onde há uma proporção bem maior de alunos
pobres, o índice chega a alarmantes 70%. A razão disso é que crianças mais pobres
geralmente ouvem menos música, têm mais inflamações no ouvido, menos
acompanhamento de pediatras e psicólogos e se alimentam pior, o que também
pode prejudicar a formação do sistema auditivo. Infelizmente, a imensa maioria
delas carrega esse estorvo para a idade adulta sem ao menos desconfiar que a cura
pode estar ao alcance da mão.
Para Saber Mais
Processamento Auditivo Central – Manual de Avaliação, Liliane Desgualdo Pereira
e Eliane Schochat, Editora Lovise, São Paulo, 1997
Download