31º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS 22 a 26 de outubro de 2007 - Caxambu - MG Seminário Temático nº 3 - Antropologia das Emoções José Miguel Rasia Universidade Federal do Paraná – Departamento de Ciências Sociais Dívida e Gratidão: Uma etnografia com transplantados Hepáticos Dívida e Gratidão: Uma Etnografia com Trasnpalntados Hepáticos José Miguel Rasia D.C.S.-HC-UFPR [email protected] Introdução Esta comunicação é parte de um conjunto de pesquisas1 que estamos realizando com transplantados hepáticos, do Serviço de Transplante Hepático, do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. As pesquisas em questão tomam como foco teórico fundamental para a compreensão das questões envolvidas na doação e no transplante de órgãos o Ensaio sobre a Dádiva de Mauss (1923/4) e os trabalhos que a reinterpretam na contemporaneidade. Os dados a que se refere esta comunicação foram extraídos da pesquisa sob minha responsabilidade, Itinerário Terapêutico, Dádiva e Identidade entre Transplantados Hepáticos. O objeto da pesquisa é a compreensão da atribuição de significados para os processos de doação de órgãos e do transplante, entre transplantados hepáticos, e, como esta atribuição está determinada pelo itinerário terapêutico, a forma como se dá a doação e a produção de uma nova identidade: a de sujeito transplantado. O método utilizado consiste na reconstrução etnográfica da forma como os transplantados se situam diante do processo de transplante, compreendido desde o diagnóstico de sua necessidade, ou seja, a de ser um sujeito portador de uma doença hepática grave, até o período do pós-transplante. Os sujeitos – homens e mulheres – aos quais se refere a etnografia são doentes hepáticos, que haviam realizado transplante a pelo 1 O conjunto de pesquisas a que me refiro compreende: J.M.Rasia: Itinerário terapêutico, dádiva e identidade entre transplantados hepáticos; C. T. Lazzaretti: O doador no transplante hepático inter-vivos e S. M. Maciel de Lima: Subjetividade médica e uso de alta tecnologia: o caso do transplante hepático. menos três meses antes do início do trabalho de campo. Não foram tomados sujeitos no pós-transplante imediato pelo fato destes estarem muito inseguros com o processo de recuperação e suas preocupações voltarem-se essencialmente para as possibilidades de rejeição do enxerto ou de outras intercorrências. Nesse sentido, saber deles sobre o objeto da pesquisa apresentou-se como uma impossibilidade. Os dados coletados e os resultados são ainda parciais, pois o trabalho de campo ainda está em andamento, mas já se pode adiantar algumas conclusões. O que se apresenta aqui são resultados provisórios do trabalho realizado entre abril de 2006 e março de 2007. 2- Complexidade e Fragilidade: Pacientes e Equipe de Cuidados A primeira questão que precisamos considerar quando se trata de doentes hepáticos graves, candidatos a transplantes e transplantados é o alto grau de sofisticação da tecnologia empregada no processo de transplante. Isto compreende não só o ato cirúrgico através do qual se enxerta, via de regra, o órgão ou parte deste, mas também os exames para determinar a gravidade da doença e acompanhar sua evolução, finalizando com os cuidados médicos e o auto-cuidado após o transplante. No tempo que se segue ao transplante os cuidados são fundamentais para o sucesso da cirurgia. E aqui se apresenta a primeira questão no tocante ao transplante, que por ser um ato de alta complexidade do ponto de vista médico, exige cuidados redobrados da equipe de cuidadores (médicos responsáveis pelo acompanhamento clínico, residentes, enfermeiros e psicólogos) dentro do hospital, do próprio transplantado e de sua família na volta para casa. Do ponto de vista dos pacientes ainda observamos um outro problema grave para aqueles que dependem exclusivamente do sistema público de saúde: a dificuldade e a demora na realização de exames, o que implica em longas esperas e a dificuldade que periodicamente se apresenta para conseguir medicamentos. Em alguns momentos, a falta de medicamentos retrovirais e imunossupressores no sistema público de saúde, põe em risco pacientes que esperam por um transplante ou estão se recuperando da cirurgia e também, pacientes já transplantados, que procuram manter boas condições de vida. Uma das questões que mais chama atenção é a fragilidade emocional do transplantado. A equipe hospitalar e a família precisam estar atentas para atender o paciente, não só no que diz respeito ao medicamento e outros cuidados típicos das cirurgias com alta complexidade, mas também dar-lhe suporte para as questões subjetivas que o transplante suscita. Assim, a complexidade dos cuidados acompanha, pari passu, a complexidade do ato cirúrgico. A racionalidade médica encontra sua contra parte nas vicissitudes de um pós-cirúrgico delicado. No caso do HC permissões especiais são dadas aos familiares para acompanhamento do paciente durante a internação no pós-transplante imediato. A maior dificuldade observada diz respeito à constituição das equipes de cuidados, em geral, muito pequenas e assoberbadas de trabalho, tendo que tomar conta de muitos pacientes ao mesmo tempo. E mais, pacientes em condições muito diversas: pacientes no pós-transplante imediato, pacientes re-internados por alguma intercorrência - rejeição e processos infecciosos estão dentre as mais comuns -, exigindo cuidados a partir de protocolos específicos. O que se observa também é que a composição das equipes tem um tamanho aquém do ideal ou que muitas vezes o adoecimento freqüente dos cuidadores os afasta do trabalho por longos períodos. Isto resulta num acréscimo de trabalho para aqueles que permanecem trabalhando e, obviamente, pode implicar na redução da qualidade dos cuidados. O volume de trabalho e o nível de stress a que continuamente estão submetidos os cuidadores podem ser fatores de risco para o sucesso do transplante. A racionalidade implicada no ato cirúrgico, por vezes não tem seu correspondente no nível dos cuidados. Não que falte preparação técnica ou dedicação dos cuidadores, mas pela insuficiência numérica destes em relação à carga de trabalho a que estão submetidos e ao tipo de demanda que o transplantado representa. Se por um lado, está posta na medicina hospitalar a questão da humanização dos cuidados, por outro as equipes que assumem para si a responsabilidade sobre o cuidado do transplantado, não são cuidadas com a intensidade devida. O que observamos é que se o discurso da humanização da relação médico- paciente, corrente no discurso médico contemporâneo, os limites de sua realização na prática médica concreta ainda estão longe de serem superados de forma satisfatória. No caso que estamos estudando não existe uma política de cuidados para dar conta das questões que os cuidadores enfrentam ao lidarem constantemente com pacientes em situação de tal dimensão: doença grave, risco de morte e complexidade cirúrgica. As tensões que se concentram do lado dos cuidadores, nem sempre têm o melhor destino. E como já dissemos, produzem muitas vezes longos afastamentos e constantes ausências do trabalho. Além do mais as condições oferecidas pelo hospital no que diz respeito a espaço para interações e convívio social entre os cuidadores não existe. A unidade de internamento, onde os cuidadores atuam, não possui nenhum lugar específico para uma pausa para o café, por exemplo. Foi feita uma reforma na unidade transformando um pequeno espaço em cozinha e no fundo desta uma porta que dá num corredor estreito, conduz a um banheiro com um vazo sanitário e uma pequena pia. O balcão no qual de fato se pode lavar as mãos, dentro dos padrões exigidos de higiene, se situa numa área de circulação da unidade. Na medida em que não se tem um espaço adequado para um intervalo e um lanche é comum encontrar cuidadores tomando um café ou fazendo um pequeno lanche na sala de enfermagem ou mesmo na sala na qual se analisam os prontuários, se comentam os casos e se tomam decisões sobre as condutas clínicas para cada paciente. Assim, as tensões que vão se acumulando no trabalho só são resolvidas individualmente pelas estratégias de defesa que cada um possa encontrar. E na medida do seu acúmulo muitas vezes o adoecimento se manifesta como resultado dessas tensões sobre o corpo dos cuidadores. Neste sentido, podemos afirmar que ao conjunto de medidas de cuidados que se põe em prática, no que concerne aos pacientes, não corresponde a nenhuma medida mais efetiva em relação aos próprios cuidadores. O discurso da humanização no interior da prática médica e do hospital e as exigências dele decorrentes revelam uma decalagem entre o cuidado do outro e o cuidado de si. A noção de cuidado de si perde-se no emaranhado das solicitações quase sempre urgentes dos pacientes. Há uma ética do cuidado, constituída entre os cuidadores, para a qual as demandas do paciente são sempre soberanas. Ou seja, são elas que conduzem e imprimem o ritmo de funcionamento da rotina entre os cuidadores. Assim, poderíamos pensar com Bourdieu (2006), que o que prevalece aqui é um habitus do cuidado, que se desdobra nas mínimas atividades que cada cuidador realiza. Tudo é regrado pelas normas que regem o funcionamento de uma unidade médica de alta complexidade. O que estamos dizendo, é que não há espaço para o improviso, nem para um saber particular do sujeito que cuida. Com isto, não estamos afirmando que exista uma ritualização burocrática que destitui de significado a atividade de cuidar. Ao contrário, o que existe é uma ritualização que reforça a cada atividade, a cada dia, o significado do cuidado em seus mínimos detalhes. Por exemplo, coisas tão simples como a higiene do paciente, assume um caráter ritual, no sentido de que se não for feita de acordo com certo protocolo, pode comprometer, não só o sucesso do transplante, mas a vida do paciente. Os perigos da contaminação (DOUGLAS, 1976) que se listam entre as grandes ameaças externas para pacientes tão delicados, estão incorporados no conjunto daquilo que se constitui no habitus dos cuidadores. O uso de sapatilhas, máscaras, luvas e jalecos de proteção, na maioria das situações, se constituem numa extensão do corpo do cuidador. Todo este aparato de proteção, segundo os cuidadores mais que uma regra da boa prática dos cuidados e do dever de proteger, os livra do medo e dos perigos de contaminar um paciente. Assim, para além das funções práticas, o uso do material de proteção, aponta para uma dimensão imaginária, qual seja a de afastar de si a responsabilidade por algum procedimento que possa ter contaminado o paciente. Ao pensarem nesta responsabilidade, os cuidadores não estão senão marcando o espaço da tensão que vivenciam no cotidiano, pois como dizem, “não adianta fazer uma cirurgia tão complexa e com tantos riscos se depois não tomarmos o máximo de cuidados. Sem isto, tudo o que foi feito pode ser perdido2”. Um ato tão complexo como a cirurgia para o enxerto só atinge, de fato, os resultados esperados por todos, se a equipe responsável pelos cuidados estiver “muito afinada com os cirurgiões”, na compreensão de todos os aspectos que envolvem o transplante e que perdura, mesmo depois do pós-transplante imediato. Cada vez que um transplantado volta para o serviço de transplante, a equipe toda se sensibiliza com sua presença. Quando o paciente está bem e vem para a rotina programada, todos fazem questão de encontrá-lo, de saber como está. Se não podem vê-lo, os que o vêem transmitem aos outros as notícias do estado de saúde do paciente. Nessa circulação da informação, são comuns as manifestações de sentimentos de gratificação e recompensa pelo trabalho realizado. O encontro com um transplantado em bom estado de saúde reatuliza, para todos os vínculos simbólicos desenvolvidos durante o pré-transplante e o pós-transplante. Se poderia pensar, que nestas situações estamos diante de um fenômeno que se aproxima da “expressão obrigatória de 2 Todas os trechos entre aspas e em itálico nesta comunicação, são parte de falas dos informantes, sejam eles da equipe de cuidados ou pacientes. sentimento”(MAUSS,1999). Esta expressão tem aqui um caráter mutuo. Ou seja, o paciente exprime sua gratidão aos que o cuidaram, “que o livraram de uma morte com dia marcado para acontecer.” Do ponto de vista dos cuidadores o que se reforça é o sentimento do “esforço correspondido pelo paciente que também sabe se cuidar depois que saiu do hospital” e ainda, de um vínculo que nomeiam como familiar. É corrente entre os cuidadores o sentimento de que pertencer à unidade de transplante é “fazer parte de uma mesma família” O sentimento de pertencimento a uma mesma família produz certa identidade social para os cuidadores e uma filiação simbólica a uma instituição; funciona ainda como elemento de distinção na comparação que fazem das atividades desenvolvidas em outras unidades ou serviços médicos do hospital, não tão complexas. Estes sentimentos, porém, não desfazem o sentido da hierarquia entre os cuidadores. Encontramos sempre no topo desta os médicos responsáveis pela clínica, a psicóloga do serviço, os residentes R3 da unidade, os residentes R2 e R1, a enfermeira chefe, os outros enfermeiros, os técnicos de enfermagem e os funcionários burocráticos. Para efeitos dessa hierarquização, embora não tenhamos colocado os cirurgiões pela preocupação em mostrar as posições ocupadas pelos responsáveis pelos cuidados, a etnografia nos mostrou, que para além das funções de direção da unidade, o trabalho do cirurgião, considerado altamente complexo pelos demais membros da unidade, o coloca na posição hierárquica mais elevada na unidade. Além dessas questões discutidas brevemente aqui, observamos ainda que na equipe predomina um sentimento de solidariedade entre seus membros. A divisão do trabalho reforça entre eles a visão de que o sucesso do transplante é de responsabilidade de todos. Se por um lado, podemos observar a existência desse sentimento, por outro, muitas vezes também percebemos manifestações de descontentamento e de reprovação dentre os ao cuidadores. Não se pode pensar que toda a equipe funcione coesa e sem conflitos. Muitas vezes os conflitos tem origem em situações muito simples, como o julgamento de um dos membros da equipe que se acha prejudicado por estar trabalhando mais em determinado momento ou ter mais atribuições que o outro, numa mesma posição hierárquica. Ao nos aprofundarmos na observação foi possível perceber que o conflito apresentado sob a forma de queixa, está muitas vezes relacionado com situações de tensão geradas por um paciente que teve seu estado piorado ou pela ocorrência de um óbito, ou ainda a falta de medicamentos em determinados momentos. Em outros, se pode observar também que a situação conflituosa teve origem em situações domésticas como desentendimentos com o cônjuge, a falta de dinheiro, problemas com os filhos etc... Assim, as situações de conflito que puderam ser observadas estão sempre relacionadas às condições de ordem material ou subjetiva dos envolvidos. A principal causa, porém diz respeito ao estado de um paciente que não apresenta melhoras em seu estado. O ambiente ao tornar-se tenso, neste caso, contamina os cuidadores, que num circuito de culpabilização e deslocamentos, atribuem a outro cuidador a causa do paciente não estar bem ou não ter apresentado melhoras. Não se pode perder de vista também que muitos dentre os cuidadores disputam a atenção e o amor do paciente e seus familiares. Querem ser reconhecidos como os principais credores pelo bom estado do paciente e o sucesso do transplante. Assim, numa situação que compreende uma prática médica de alta complexidade técnica, de muita especialização e do emprego de cuidados e medicação de ponta, o que podemos observar foi a presença em alto grau de pontos de muita fragilidade. Ou seja, mesmo que muitos dos fatores envolvidos neste tipo de prática médica possam ser controlados, ressaltamos dentre os que escapam à racionalidade da medicina contemporânea aqueles que dizem respeito à subjetividade dos envolvidos nesse tipo de tratamento. 3– Doar e Receber: Quem Pode3? Quando falamos de transplante, as decisões consentir com a cirurgia, doar e aceitar a doação não é um ato de vontade pura e simplesmente. É sempre uma decisão conjunta envolvendo o médico, o doador e o receptor. Para o entendimento do ato de doação, partimos do modelo da troca simbólica desenvolvido por Mauss (1923/24), mas tivemos que introduzir nele um elemento novo, ou seja, o fiador simbólico da doação. A doação para o transplante só se efetiva se passar pela aprovação da equipe médica. Isto compreende a avaliação clínica e os exames de compatibilidade, passando pela escuta analítica da 3 Os dados referentes aos doadores aqui mencionados foram coletados na pesquisa que vem sendo realizada por Claire Lazzaretti, citada na nota 1 desta comunicação. psicóloga da equipe. Portanto, as questões de ordem subjetivas, como os afetos, que podem aproximar doador e receptor, sempre são “filtradas” pelo saber médico. Sempre que um candidato a doador precisa ser rejeitado, independentemente do motivo, o que se apresenta como justificativa para o candidato a doador e ao receptor “fica” no âmbito da razão médica: incompatibilidade de ordem clínica. Mesmo quando os motivos são de ordem subjetiva, como a obrigação moral de doar, a satisfação de uma expectativa familiar para quem se erige em doador ou a valorização heróica do ato de doação, todos os motivos para descarte de um doador, aparecem sempre como clínicos e como tais são comunicados pelo responsável da equipe de transplantes ao par doador-receptor. Em nenhuma comunicação de incompatibilidade observamos a presença de motivos subjetivos para tanto. Esta prática é utilizada para minimizar os possíveis danos produzidos por uma comunicação que pudesse prejudicar a relação entre doador e receptor, o lugar ocupado pelo doador na estrutura familiar e sua posição na configuração social a qual pertencem. A confiança que doador e receptor, nos transplantes com doador vivo, possuem na equipe médica, não é suficiente para as garantias que necessitam diante do risco que se propuseram correr. Mesmo sabendo que a grande maioria dos transplantes já feitos obtivera êxito, a confiança na racionalidade técnica do procedimento médico, na competência da equipe, não é suficiente para tranqüilizá-los e garantir que tudo vai correr bem. O que se pode afirmar ainda sobre este ponto é que sempre que a vida está em jogo, a razão por si só não consegue dar ao doador e ao receptor, todas as garantias de que eles necessitam. O conhecimento dos riscos que correm, pois ambos se submetem a procedimentos cirúrgicos, para um e outro aponta sempre para a possibilidade de que a racionalidade do ato está marcada pela possibilidade da “falha”. Nestas condições a invocação da proteção divina é uma forma de revestir de significados, situações que tocam no limite da existência humana, remetendo à condição de mortalidade. Para ambos a razão não basta nem é compreendida como tendo o poder de sustentar algo tão complexo e distante de sua compreensão como o transplante, apesar de muito desejado. Neste sentido o que parece funcionar no processo de transplante não é só o saber e o discurso médicos, fundados na razão, mas entra na sustentação do ato, e posteriormente na explicação do sucesso, um elemento mágico representado pela intercessão divina: “Agradeço muito aos médicos, pois devo minha vida a eles, mas não esqueço de agradecer também a Deus, porque se ele não quisesse os médicos nada poderiam”. Assim, estamos diante de uma decalagem entre a longa convivência com exames sofisticados que se repetem periodicamente, a doença grave que por vezes parece insolúvel, o saber médico que nomeia, classifica e dá sentido ao que se passa no corpo do candidato a doador e ao candidato a transplante e as explicações mescladas de razão e fé que possuem. Quando a intervenção mais radical no corpo se faz necessária e está em vias de se concretizar pela cirurgia, a razão médica e todo seu corolário clínico não são suficientes para sustentá-los diante da iminência do ato: “O senhor não tenha medo, diz uma mulher transplantada a um candidato a transplante sentado a seu lado na sala do ambulatório. Tem que ter fé em Deus. Eu quando vim pra cá para fazer a cirurgia, parecia que não ia sobreviver. Era isso o que mais me preocupava. A doutora dizia para eu parar com isso, que ia dar tudo certo. Mas eu quase não acreditava que era possível sobreviver. Por isto digo ao senhor: tem que ter fé em Deus, que tudo dá certo”. Muitas vezes irrompe no receptor um medo paralisante na iminência do transplante, como pode ser observado neste relato: “Na véspera da viagem para cá (a paciente não reside em Curitiba) para o transplante briguei com todos em casa. Briguei com minha filha que vinha para ser doadora. Não vou!...Não vou...Não quero ir. Não quero mais fazer esse transplante, quero morrer em paz, não vai adiantar mesmo! Minha filha disse: tá bom, a gente não vai. Pode rasgar a passagem, eu disse. Não vou mais fazer esse transplante! Pois não é que ela rasgou as passagens na minha frente. Aí eu me acalmei. De tarde ela me chamou e disse: Mãe eu rasguei as passagens velhas. E então, ela perguntou, vamos para Curitiba? Aí eu vi que ela estava muito decidida. - A gente vai, eu disse. A gente entrega na mão de Deus e vai. Foi tão engraçado porque eu fiquei tão calma... Em outras situações o medo que toma conta dos pacientes os leva a desistir do transplante na hora em que são chamados e assim adiam a cirurgia por algum tempo. Este tempo talvez não se configura num tempo qualquer. Mas é o tempo que necessitam para elaborar subjetivamente o que possa se passar com eles durante a cirurgia: “Eu vou lhe contar que quando ligaram do hospital, dizendo que era para vir que tinham conseguido um fígado para mim, eu disse não, pode passar pra outro, eu não vou. Passaram três meses me ligaram de novo e eu repeti: Não, podem passar para outro. Só vim para a cirurgia na terceira vez que me chamaram. Na verdade eu amarelei duas vezes. Mas não sou só eu. Todo mundo na última hora fica com medo da cirurgia”. A equipe médica lida com esse tipo de situação dando mais tempo para o paciente decidir. Quando se trata de transplante com órgão de cadáver o candidato fica na espera e é chamado outro candidato. Como dissemos, há um tempo no qual é possível realizar o transplante. Em todas as situações os pacientes que desistiram uma ou mais vezes quando chamados apontaram sempre que não estavam suficientemente preparados para o transplante e que fizeram o que era certo naquele momento. Não explicitam de que estão falando quando dizem que não estão preparados para o transplante, mas podemos levantar a hipótese de que estão falando de condições emocionais para enfrentar, não só a cirurgia, mas a vida como transplantados. Mesmo sabendo que suas condições gerais melhoram, que sua vida ganha em qualidade, admitem que é difícil adaptar-se ao ritmo impresso pela nova condição. Ficam muito assustados com o fato de saberem que terão que tomar medicamentos e fazer acompanhamento médico para o resto de suas vidas. Para a equipe médica embora cada transplante seja único, existe um cálculo do risco que assegura o sucesso, não só do ato cirúrgico, mas do transplante como um todo. Mesmo as intercorrências, quando acontecem, estão na ordem do previsível e dos fatores a serem controlados. Esta certeza se deve ao grau de desenvolvimento da medicina contemporânea e ao conjunto de conhecimentos acumulado sobre transplante; deve-se também considerar a sofisticação técnica a que se chegou na medicina contemporânea, quer do ponto de vista dos exames apurados para o estabelecimento de diagnóstico e acompanhamento da evolução da doença, quer do ponto de vista dos recursos farmacológicos e também das técnicas cirúrgicas. Nesse sentido para explicar os diferentes níveis de compreensão que a equipe médica possui do ato de transplantar e a explicação dada para este mesmo ato ao paciente, repousam não só no uso da razão, mas também no nível de complexidade a que chegou o saber e o fazer médicos na contemporaneidade. É o conhecimento e seu domínio, que tornam possíveis ao médico este tipo de intervenção. 4 – A Expressão Simbólica do Transplante No transplante hepático dominam duas formas: o transplante inter-vivos em que o receptor recebe parte do fígado do doador vivo e o transplante com doador cadáver, no qual o receptor recebe, via de regra, o órgão inteiro. Tanto num caso como no outro o nível de complexidade do ato cirúrgico exige um alto grau de habilidade técnica da equipe. No caso de transplante inter-vivos existe uma peculiaridade que deve ser ressaltada: a retirada de parte do órgão do doador e seu enxerto no receptor são cirurgias que ocorrem simultaneamente. Isto comporta dois corpos “lado a lado”, e como já observou Lazzaretti (2002), analisando transplantados renais inter-vivos a troca se faz corpo a corpo. O nível de complexidade da cirurgia de retirada é um pouco mais simples do que o da implantação do enxerto. Porém, para os transplantados inter-vivos, esta simultaneidade e o fato de doador e receptor estarem passando no mesmo momento por um ato cirúrgico na situação lado a lado, representa “uma comunhão de sentimentos, a divisão de um mesmo espaço e o compartilhar de um mesmo sofrimento”. Neste sentido, o tempo imediato que antecede a cirurgia é um tempo compartilhado. Doador e receptor ficam próximos, embora em quartos separados e, em geral, na véspera da cirurgia à noite “vão até a capela do hospital, ou no próprio quarto rezam juntos e pedem proteção divina para que tudo corra bem com os dois”. Nas palavras de uma informante: “A gente ficou conversando até tarde, eu e minha filha, perguntei mais uma vez se de fato ela estava certa do que estava se dispondo fazer, correndo risco para me dar parte de seu fígado. Aí ela me respondeu que não tinha a menor dúvida, que queria doar, que daria a vida por mim. Eu continuei e disse se tu tens algum medo, a gente ainda pode desistir. Ela respondeu com firmeza que sabia o que estava fazendo, e que nada aconteceria nem para mim nem para ela. Depois a gente se deu às mãos, rezamos e pedimos a Deus para que tudo corresse bem. Pedimos que Deus guiasse as mãos dos médicos...E como o senhor vê, hoje estou curada e minha filha está muito bem já terminou a Faculdade...E eu peço que Deus não pare de abençoá-la, por tudo que ela fez por mim.” Deste depoimento tomarei dois elementos para comentar. O primeiro deles é o fato da mãe (receptora) e filha (doadora) reconhecerem-se em situação de igualdade quanto ao risco representado pela cirurgia e o segundo, o fato das duas pedirem a Deus que guiasse a mão dos médicos durante a cirurgia. O primeiro elemento nos permite pensar que a situação de prontidão para a doar e receber estavam efetivamente consolidadas entre mãe e filha. E que a mãe só aceitara receber a doação porque entende que a filha reafirma horas antes da cirurgia que estava absolutamente certa do que estava fazendo. A disposição para doar e receber é reafirmada neste momento por ambas. Ou seja, um novo laço, que não somente o de mãe e filha já estava inaugurado, laço este ancorado na dádiva, estabelecido bem antes da troca se realizar. Ou melhor, se estabelece como condição para que a troca se realize. Para tornar mais claro o que estamos afirmando sobre a fundação do laço entre a mãe receptora e a filha doadora, neste caso, retomaremos um pouco a situação que precede seu estabelecimento. Primeiro, ressaltando o momento em que se faz imperativa a existência de um doador do ponto de vista médico e segundo, como a filha decide doar. Como estamos dizendo a fundação do laço possui um momento bem demarcado que se inaugura quando a busca por um doador se torna necessária e explícita. Ou seja, quando o médico aponta o transplante como a única medida terapêutica possível para que o paciente possa continuar vivo. Isto cria no paciente uma necessidade de aceitar o outro. Este momento é vivenciado com grande conflito pelo receptor. A decisão de aceitar algo do outro, quando a vida é que está em jogo, coloca o paciente numa situação de escolha entre continuar vivo ou morrer. A concorrência do médico e também da equipe é fundamental nesse momento, ou como afirma Mary Douglas (2007), nas questões de vida e morte nunca se pode decidir sozinho. O que estamos afirmando aqui vale não só para a paciente e a doadora citadas, mas para todos os casos observados. Constitui-se numa regra para todos os pacientes que observamos. Para tanto não basta somente o diagnóstico de doença hepática crônica. É necessário que a doença tenha atingido um estagio de desenvolvimento no qual a medicação se torne ineficaz para manter a vida do doente com qualidade. A palavra do médico possui o efeito de predispor o doente e seus familiares a se mobilizarem no sentido de encontrar alguém dentre eles que possa ser o doador. A mesma informante havia dito numa conversa anterior: “Num domingo os três filhos reunidos na hora do almoço disseram que queriam conversar comigo. Aí falei o que foi? Ai a filha mais velha disse: “Mãe nós vamos ver quem de nós pode ser doador e vamos resolver o teu problema. Eu falei que não queria por a vida deles em risco. Aí a filha mais velha disse, mãe tu não vai morrer. Se precisar eu até morro por ti. Eu vou ser a doadora. Eu já estava no fim, só tinha uma célula viva no meu corpo...” A construção do laço entre mãe e filha se completa quando os exames médicos confirmam a possibilidade médica da troca entre elas. O que num primeiro momento. se apresenta como disposição para doar e prontidão para receber precisa, agora, concretizar-se na compatibilidade clínica entre mãe e filha. A compatibilidade clínica ao ser constatada confirma a decisão da filha em doar e a prontidão da mãe para receber. O que de pronto se reconhece aqui é a dívida simbólica entre mãe e filha, e não só a dívida da mãe para com a filha: “Eu peço a Deus que não pare de abençoá-la por tudo que ela fez por mim”- diz a mãe. Ao passo que ao falar da filha doadora diz: “desde o primeiro momento em que pensamos na possibilidade do transplante ela disse que queria ser doadora”. A mãe prossegue: “aí eu falei, mas tu vai correr risco por mim, tu sabe disso? Será que vale a pena?” Ao que a filha, segundo a mãe respondeu: “E tu não me deste a vida!” Observe-se na fala da filha a reciprocidade da dívida. É a reciprocidade que irá permitir a aceitação pela mãe que a filha possa correr todos os riscos implicados numa cirurgia para tornar-se doadora. Porém não basta que haja o reconhecimento da reciprocidade somente entre doador e receptor, para que a doação se concretize é necessário o reconhecimento dessa qualidade da troca pela equipe responsável pelo transplante. E neste ponto é necessário reconhecer a função mediadora da escuta feita pela psicóloga da equipe, que funciona como fiadora simbólica da doação, interpondo-se entre o par doadorreceptor e a equipe cirúrgica. O que afirmamos até aqui refere-se a transplantados que receberam órgão de doador vivo. O conjunto dos informantes são receptores que passaram pelo transplante inter-vivos ou tiveram que se submeter a um segundo transplante com doador cadáver e ainda há entre eles aqueles que passaram por um único transplante com doador cadáver, o que podemos perceber é que a forma como se situam diante da dívida simbólica contraída para com o doador não é a mesma quando o enxerto que vinga provém de um doador vivo de quando o enxerto que vinga provem de um doador cadáver. E, mais a dívida simbólica sempre se estabelece para com o doador cujo enxerto vingou. Assim, um transplante inter-vivos, cujo enxerto precisou se substituído, pouco tempo depois da cirurgia, por outro transplante agora com doador cadáver a dívida é nestes casos é para com este último. que se estabelece Dívida e gratidão como formas de reconhecimento ao doador só se constituem após um longo percurso de elaboração do que significa o transplante e o órgão recebido. Não há uma construção imediata possível, até mesmo porque no pós-transplante imediato, inferior a três meses4, o sentimento que domina os transplantados é de insegurança em relação ao sucesso do transplante e de certo estranhamento em relação à presença em seu corpo de um órgão que veio de outro corpo. Para os transplantados que receberam órgão de cadáver o primeiro problema que enfrentaram ocorre “logo quando a gente acorda da cirurgia. Na UTI ainda a gente se dá conta que tem um pedaço (um órgão) de um estranho dentro da gente. É um problema saber que agora, daqui para frente vai ser assim. Viver carregando parte de um estranho dentro da gente”. Antes de qualquer possibilidade de atribuição de significado ao órgão recebido o que os transplantados verbalizam é da ordem da realidade, na qual o que está presentificada é a morte do outro, e algumas informações sobre esse outro: jovem, saudável e que morreu em circunstâncias não naturais, em geral de acidente ou outra forma de morte violenta. “No meu caso é um moço de 18 anos, que levou um tiro na cabeça”. Este dado sobre a morte violenta do doador ainda é um dado que não se confirma para todos os informantes. Mas o que sabemos é que sempre as informações chegam aos receptores, e muitas vezes, atravessadas pelo imaginário que impera na sala do ambulatório, 4 Este tempo é um tempo médio definido pelos pacientes e não tem nenhuma relação com o tempo real observado pela equipe médica para saber se o enxerto vingou ou não. E, além do mais para cada paciente este tempo pode ter uma duração. Ver a este respeito RASIA, J. M. Temporalidade e subjetividade em presença do Câncer.In: RASIA, J. M. & GIORDANI, R.C.F (orgs). Olhares e Questões Sobre a Saúde, a Doença e a Morte. Curitiba: Editora da UFPR, 2007, p.73.98 que freqüentaram para tratamento no pré-transplante e onde fazem também o acompanhamento pós-transplante. Mesmo havendo a possibilidade de estarem fantasiando sobre a morte do doador, não é de todo incorreto afirmar que muitos dos doadores morreram em situações violentas. Os efeitos imaginários da condição do doador podem ser percebidos mesmo nas poucas informações que os transplantados possuem sobre os doadores. A vida do doador morto coloca interrogações para o receptor, que dizem respeito à elaboração dos significados atribuídos ao órgão recebido. Na maioria das vezes a morte por acidente é a condição mais fácil de ser trabalhada. Porém, quando sabem que o órgão recebido vem de alguém cuja forma de vida o transplantado reprova, porque é socialmente reprovada, coloca-se um novo problema para este. Não basta somente “apropriar-se” do órgão recebido, mas também elaborar a história de uma vida moralmente reprovável: “Veja o senhor, não está sendo fácil pra mim. Soube que o fígado que recebi pertenceu a um sujeito qualquer. Dizem que era um bandido, que matou e roubou. Ficou preso muito tempo. Não sei se não morreu na cadeia! Imagine eu com o fígado de um assassino! Nunca nem imaginaria uma coisa dessas pra mim, mas foi o que veio, tenho que aceitar. Quem sabe ele quis ser doador para ser perdoado? A única coisa que posso fazer é rezar muito pra ele nas minhas orações. Pedir que Deus lhe dê um bom lugar no céu, afinal ele me devolveu a vida. Acho que ele já está perdoado. O que o senhor acha?” Em outros casos, o doador por ter sua identidade conhecida publicamente e ter vivido uma vida moralmente aceita, acaba sendo “adotado” pelo receptor. Encontramos esta situação num caso em que a doadora foi uma moça, morta num acidente que teve grande repercussão na cidade. Ao referir-se ao fígado recebido a transplantada afirma: “agora nós vamos embora”. Nós quem? - lhe foi perguntado. Ao que ela responde: “eu e a Y ... (dizendo o nome da doadora). O fato do órgão recebido, ser nomeado com o nome do doador, não significa necessariamente que será mais fácil para o receptor resolver os problemas subjetivos decorrentes da presença de um órgão de um outro em seu corpo. O que está definitivamente marcado em todos os casos de transplante com órgão de cadáver é a condição de mortalidade. Para os pacientes que receberam órgão de cadáver a dívida e a gratidão apresentam um duplo aspecto, pois incluem não só o morto, mas a família doadora “que soube compreender a necessidade do outro (doente) e ao mesmo tempo revelou um grande desprendimento, doando o órgão de um parente morto” e mais do que isso, “fez isto num momento de muita dor”. A inclusão da família do doador, no círculo da dádiva, nos faz pensar novamente na presença nesta situação de mais um elemento que não está presente nos elementos que participam da troca simbólica tal qual apresentada por Mauss. A expressão desse sentimento em relação à família doadora é atravessada por muita emoção, no sentido que “foi preciso uma morte para que a vida pudesse ser continuada”. O morto e a família doadora são, para este tipo de transplantado, considerados próximosdistantes. Pouco sabem deles ou quase nada querem saber. Predomina entre os receptores de órgão de cadáver um medo fantasmático que a família exija que o receptor cuide do que recebeu. Perguntado se sabia quem havia sido o doador um informante responde: “Um pouco a gente sempre sabe. Mas não quero saber muito. Não é uma ingratidão com a família. Mas tenho medo que a família fique me cobrando: ‘cuide bem desse fígado porque ele era do fulano’. Seria difícil conviver com essa cobrança. Talvez um dia queira saber mais sobre o doador e a família, mas por enquanto não quero.” Volta a insistir: “não é questão de ingratidão é um certo medo da cobrança que a família possa me fazer, no sentido de me lembrar o tempo inteiro que tenho que cuidar do fígado que recebi como se ele fosse o fulano. É só isso”. Este depoimento revela que para os transplantados os cuidados a que a família se refere, transcendem ao órgão doado. Esta demanda por cuidados é tomada como um imperativo: cuide o que vive em ti daquele que morreu! A situação delicada que enfrentam, nestas condições é uma outra forma de medo, decorrente de um possível contato com a família doadora. No caso do contato, imaginam que a família procurará estabelecer vínculos afetivos e que reconheça no transplantado a continuação do parente morto. O que todos procuram evitar é a possibilidade deste vínculo se transformar numa forma de parentesco simbólico. Nesse sentido, embora expressem dívida e gratidão, os transplantados procuram se manter o mais distante possível da família doadora. A maioria admite que “só depois de muito tempo transcorrido do transplante e, portanto da morte do doador, conseguiriam conversar com a família”. O que se teme nestas situações também é “reviver uma dor muito profunda para os familiares do morto, devido às circunstâncias da morte do doador”. Quando se considera os transplantes inter-vivos, os informantes também se sentem em dívida para com o doador e expressam o mesmo sentimento de gratidão, observado entre os transplantados com órgão de cadáver. Algumas diferenças, porém, foram observadas. O fato do transplante inter-vivos ser feito com parte do fígado do doador, não diminui a dívida simbólica nem o sentimento de gratidão. O que dizem os transplantados é que o doador só se propôs a doar porque “já possuía um vínculo afetivo muito profundo com o receptor”. Em geral, os doadores são parentes muito próximos, pai, mãe, irmãos ou tios. Outro fato importante para os transplantados na produção de sentido que lhes facilita entender o ato da doação é o fato de que o órgão do qual se retirou uma parte se regenera. O medo que se apresenta para eles, não tem uma característica fantasmática, mas inscreve-se no processo de transplante: “quem se dispõem a doar está correndo risco, porque tem que passar por uma cirurgia”, mas consentir na doação implica numa “solidariedade que tem como base a plena compreensão do sofrimento e da necessidade do outro. Isto não é para qualquer um”. Mesmo quando o receptor reconhece o grau de solidariedade do outro, não está livre do sentimento de gratidão e nem da dívida simbólica. Ao contrário, reconhece no outro seu salvador, “alguém que lhe deu uma segunda vida, pela qual agora deve cuidar”. Se o ato de doar e receber revela entre os vivos a prontidão para a troca, é aí que se funda o verdadeiro sentido da dívida e da gratidão. No caso de transplante inter-vivos , não há um terceiro elemento ( a família doadora) como nos transplantes com órgão de cadáver, envolvido na troca. E nas avaliações que os transplantados fazem do doador e seu gesto, redefine-se as posições sociais do doador no interior da configuração familiar. 5 – A Vida Depois do Transplante: Da Normalidade Possível Se por um lado, o fato de ter passado por um transplante hepático impõe ao sujeito transplantado a necessidade de atribuir um sentido para o enxerto, por outro, isto não esgota o conjunto de questões que uma experiência de doença e de um tratamento tão longo e delicado no pré-transplante e que se prolonga pela vida toda após o transplante. Não vamos discutir aqui todas as implicações possíveis postas pela situação. Mas vamos apenas retomar a experiência de doença e a normalidade possível, como as mais visíveis e objetivamente vivenciadas pelos transplantados. A experiência de doença mesmo depois do transplante feito continua a ditar o ritmo da vida de cada um, através da rotina de medicamento, dos cuidados com alimentação, das atividades que lhe são interditadas e da freqüência com que precisam retornar ao ambulatório para as rotinas de acompanhamento médico. “- É claro que não é uma vida como era antes de adoecer. A gente tem que se cuidar muito mais. Tem uma rotina de medicamento que não dá para descuidar. Tem dias que a gente está bem, tem dias que na, mas a gente tem que ter objetivos isso eu aprendi com a minha doença ... -... Se não estou muito bem, me deito um pouco, espero passar. Mas não quero ficar dependendo dos outros. Sabe a gente não morre por qualquer coisa. A minha vida, mesmo com este tipo de problema é boa, muito boa, depois do transplante melhorou muito.” Aqui nos encontramos com as teses de Canguilhem(1995) sobre a normalidade na experiência de doença. Ao mesmo tempo, podemos afirmar que do ponto de vista do sujeito que adoece gravemente o período da doença, introduz uma ruptura na linha traçada por sua biografia, o que exige dele constantes reformulações subjetivas, para que possa se colocar na perspectiva da produção de sentido diante da adversidade de uma doença grave e crônica e que, no limite, exigiu uma intervenção radical não só terapêutica (o transplante), mas nos seus hábitos e na sua forma de viver. Quando estas situações ocorrem o transplantado constitui para si normas próprias que o permitem continuar sua vida: “Quando fiquei doente e sabia que tinha que fazer transplante me separei do marido alcoólatra (sic). Não queria mais me incomodar com ele. E quando esperava na fila do transplante minha filha mais velha engravidou. O que eu mais pedia a Deus era que ele me deixasse ver meu neto que ia nascer. Agora tenho quatro netos dos meus três filhos. Eu quero ver eles crescerem, me dão muitas alegrias. Eu sou uma pessoa alegre agora, porque depois de tudo o que eu passei eu não tenho como não ser alegre. A gente nunca imagina quanto a gente é forte e pode resistir a doença. Hoje sei que a gente não morre por qualquer doencinha, ainda mais se a gente quer viver. Por que lhe digo isto? Porque se eu quisesse poderia ter ficado doente para o resto da minha vida, na cama com todo mundo em volta de mim. Mas isso eu não quero. Quero ter minha própria vontade. Um dia estou bem, no outro nem tanto, mas vou vivendo com alegria, não me entrego.” São muitos os elementos que apontam para uma reformulação subjetiva nesta paciente. A fala da paciente considera a experiência de doença como algo não só vivido, mas incorporado à sua condição de sujeito. Para esta mulher, a doença e o transplante fazem parte da sua vida como o ex-marido “alcoólatra”, os filhos e os netos. O julgamento contido na afirmação “a gente não morre por qualquer doencinha, ainda mais se a gente quer viver”, recoloca a paciente na perspectiva de compreender que a experiência de doença assume o lugar que lhe cabe em sua vida. Ou seja, um acontecimento que embora a tenha marcado para sempre, sua vida não se reduz à condição de doente. E, ainda que estar bem ou estar mal, são situações que se alternam em sua vida, mas isto não a impede de viver. Trata-se, pois de uma normalidade conquistada pela paciente e que só a ela se aplica. Quando se trata de pensar a normalidade, não como medida estatística, não se encontra uma regra que possa ser observada entre os pacientes. Cada um a constrói de forma muito particular, ou como os próprios pacientes dizem, “é preciso dar um jeitinho para continuar”. Nesta perspectiva vejamos a estratégia desenvolvida por um outro paciente transplantado, para constituir o que ele considera ser normal: “Agora sei que posso viver muito bem com a minha doença. Faço planos para cada três anos. De três em três anos de vida planejo tudo. Agora estou no segundo ano, depois que passar esse ano, completo três anos e faço plano para mais três anos. É assim que vou vivendo, de três em três”. Nesta perspectiva temos observado entre os pacientes uma compreensão muito clara que após o transplante, e isto vale para todos os transplantados observados, não se pode voltar a uma condição anterior não só ao transplante, mas ao aparecimento da doença, seus sintomas e seu diagnóstico. “Eu sempre fui um sujeito muito forte. Trabalhava no pesado. Tudo começou quando comi um pedaço de chocolate, perto da Páscoa e não me senti bem. E aí foi. Desse mau estar passou para uma hemorragia. No fim foi diagnosticado hepatite B. Não teve mais jeito, não consegui mais trabalhar no mesmo ritmo que trabalhava. Tinha épocas que ficava melhor, tinha épocas que piorava, mas sempre me tratamento e sabia que não poderia escapar sem um transplante. Nunca mais fui o que eu era antes da doença aparecer...” Se este paciente, hoje transplantado se diz que está vivendo bem. Este “vivendo bem” significa que melhoraram muito, suas condições de vida depois do transplante. Mas mesmo assim, não considera que esteja na mesma situação que se encontrava antes dos primeiros sintomas da doença e seu diagnóstico. O diagnóstico de doença grave e crônica marca para os pacientes um momento de passagem para uma outra forma de vida que inclui a de dependência de medicamentos, de hospital, de acompanhamento clínico, de exames etc...Enfim, imprime-lhes um outro ritmo e introduz outros hábitos em suas vidas. O transplante embora seja a solução terapêutica possível nestes casos, mesmo que imprima novas condições de vida com mais qualidade, não livra os doentes de certa dependência. Diminuem os internamentos, diminui a freqüência dos exames, muda os hábitos alimentares e introduz uma rotina de medicamentos. A manutenção pelo paciente dos resultados terapêuticos produzidos pelo transplante implica na obediência da prescrição médica para o resto de suas vidas. 6 -Referências Bibliográficas BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006 CAILLÈ, A. A antropologia do dom. Petrópolis: Vozes, 2002 CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995 DOUGLAS, M. Como as instituições pensam. São Paulo: Edusp, 2007 DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976 GODBOUT, J. & CAILLÉ , A. (Col). O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: FGV, 1999 LAZZARETTI, C. T. Transplante renal: trajetória e reconstrução de identidade social. Curitiba:UFPR – programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2002 (Diss. de Mestrado) LAZZARETTI, C. T. & RASIA, J. M. Kidney transplant: the search for better quality of life. In: MANCUSO, D. W. (Editor). New York: Nova Science Publishers, 2006, p.105-22 MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.2003 MAUSS, M. Antropologia. São Paulo: Atica. 1979 RASIA, J.M. Temporalidade e subjetividade em presence do cancer. In: RASIA, J. M. & GIORDANI, R. C. F. (orgs). Olhares e questões sobre a saúde, a doença e a morte. Curitba: Editora da UFPR, 2007. p.73-98