breve esboço a respeito da inexistência de uma teoria geral do

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BREVE ESBOÇO A RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE UMA TEORIA GERAL
DO PROCESSO1
Este pequeno artigo trata-se de uma espécie de
resumo da minha obra “Crítica à Teoria Geral do Processo”, publicada pela Editora
LexMagister,
2014,
Porto
Alegre/RS.
2
(http://www.multieditoras.com.br/produto.asp?id=1081&site=1).
Obviamente que, como todo resumo, não podemos
nos aprofundar sobre o tema (como o fizemos no livro acima referido), mas adianto que
ele tem como finalidade oferecer uma pequena contribuição para a desconstrução
definitiva a respeito da ideia de que existiria uma Teoria Geral do Processo e, como tal,
poder-se-ia conceber o Direito Processual como uma só categoria dentro da ciência do
Direito Processual. Pretendo, portanto, fazer uma crítica respeitosa, porém contundente,
à chamada Teoria Geral do Processo ou, como alguns preferem, à Teoria Unitária do
Processo. A razão pela qual me debrucei sobre o tema é que entendo ter o Direito
Processual Civil conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do
Direito Processual Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do
Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa
“processualização civil” do Processo Penal.
Com efeito, esta Teoria Geral é inadmissível
exatamente porque não há qualquer similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do
1
Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça na Bahia e Coordenador do Centro de
Especialização e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público da Bahia. Foi Assessor Especial da
Procuradoria Geral de Justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais e
Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos. Ex- Procurador da Fazenda Estadual.
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pósgraduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato
sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo
pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos).
Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de
Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais – IBCCrim. Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal.
Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do
Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos
JusPodivm (BA), Praetorium (MG), IELF (SP) e do Centro de Aperfeiçoamento e Atualização Funcional
do Ministério Público da Bahia. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e
“Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Sabbá Guimarães), ambas publicadas
pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais
Medidas Cautelares – Comentários à Lei nº. 12.403/11”, "Juizados Especiais Criminais", "Comentários à
Lei do Crime Organizado" e “Crítica à Teoria Geral do Processo”, todos estes publicados pela Editora
LexMagister, Porto Alegre/RS, além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito
Processual Penal”, publicado pela Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas.
Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.
2
A ideia foi do meu amigo Alexandre Morais da Rosa, grande processualista penal e verdadeiro
Magistrado. Fica aqui o meu agradecimento pela "dica". Valeu!
2
Processo Penal. Por óbvio que conceitos genéricos, tais como os de jurisdição (nada
obstante, no Processo Penal não se poder falar em lide), processo, órgãos judiciários,
competência (com muitas ressalvas), procedimento (idem), atos processuais, prova, etc,
servem para as duas disciplinas. A jurisdição, como a função de julgar, é una, por
exemplo. A natureza jurídica do processo, também. Da mesma forma, a garantia ao
duplo grau de jurisdição, e assim por diante... Igualmente em relação à natureza jurídica
do processo, ainda que se conceba o processo como relação jurídica (Oskar von Bülow),
como situação jurídica (James Goldschmidt), como instituição (Jaime Guasp), como
serviço público (Léon Duguit e Gaston Jèze), etc., etc.
Porém, evidentemente, que esta afirmação última
jamais pode ter o condão de admitirmos uma Teoria Geral do Processo, mesmo porque,
ainda que, por exemplo, o conceito de prova seja o mesmo, trate-se de Processo Civil ou
Processo Penal, há uma diferença abissal quando nos aprofundamos no seu estudo no
Processo Penal: a questão do ônus e da gestão da prova são exemplos irrespondíveis.
Sou daqueles que entendem que o Direito
Processual Civil tem o seu próprio conteúdo que o difere substancialmente do conteúdo
do Direito Processual Penal, razão pela qual não é possível aplicar princípios e regras do
Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa
“processualização civil” do Processo Penal.
A Teoria Unitária é inadmissível exatamente
porque não há similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal.
Eugenio Florian, já em 1927, teve a lucidez de estabelecer a contradição de uma Teoria
Geral do Processo. Para ele era inadmissível a tese da identidade dos dois processos: “A
nosso juízo, o processo penal e o civil são duas instituições distintas. O objeto essência
do processo penal é, como vimos, uma relação de direito público, porque nele se
desenvolve outra relação de direito penal. Já no processo civil o objeto é sempre ou
quase sempre uma relação de direito privado, seja civil ou mercantil. (...) O processo
penal é o instrumento normalmente indispensável para a aplicação da lei penal em
cada caso; o civil, ao contrário, não é sempre necessário para atuar as relações de
direito privado. (...) No processo civil o juízo está regido exclusivamente por critérios
jurídicos puros (...), ao contrário do processo penal em que se julga um homem e, por
isso mesmo, o juiz deve inspirar-se em critérios ético sociais. (...) O processo civil tem
caráter estritamente jurídico, e o penal, no qual se trata de julgar um homem, tem
também caráter ético. (...) Leva-se em consideração, equivocadamente, algumas formas
comuns entre o processo civil e o processo penal de mínima importância, descuidandose de elementos diferentes, que são decisivos. (...) O triunfo da tese unitária conduziria
a absorção da ciência do processo penal pela ciência do processo civil, perdendo o
primeiro a sua autonomia, resultando profundamente alterado em sua concepção e
estrutura.”3 (tradução minha).
Interessante que Ovídio Baptista da Silva,
consagrado processualista civil, ao escrever a sua Teoria Geral do Processo Civil (em
coautoria com Fábio Gomes), posiciona-se terminantemente contrário à Teoria Unitária
do Processo. Após alinhar alguns argumentos de outros autores a favor da tese, afirma:
“Não convencem, entretanto, as razões alinhadas em prol da construção de um
3
Eugenio Florian, Elementos de Derecho Procesal Penal, Barcelona, Bosch Editorial, 1933, págs. 20 a
23.
3
conceito unitário, bem como da elaboração de uma teoria geral adequada tanto ao
processo civil como ao processo penal. Muitos doutrinadores que defendem tal unidade
se contradizem logo de início. (...) Os próprios doutrinadores que defendem a unidade
fundamental do processo ressalvam a identidade própria dos respectivos ramos, o que,
a rigor, encerra uma contradição; a não ser que entendamos esta unidade em termos
extremamente finalísticos, mas, então, cair-se-ia no plano da teoria geral do direito.
(...) O direito processual civil, como o direito processual penal, juntamente como todos
os demais ramos da ciência jurídica, constituem uma vasta unidade, um conjunto
harmônico de normas coordenadas, cuja independência, entretanto, deve ser
respeitada.”4
A propósito, prefaciando o meu primeiro livro,
escreveu generosa e exageradamente, Calmon de Passos, adepto ferrenho de uma Teoria
Geral do Processo: “Em nenhum momento de minha vida de professor ministrei aulas
de Processo Penal, nem jamais publiquei algum artigo versando algum de seus
problemas relevantes. (...) Para não ser infiel à verdade, direi que se me faltam
credenciais como mestre de Processo Penal, não sou de todo desprovido das virtudes
de um bom aluno dessa disciplina. E que bom aluno tenho sido quando presente, e
sempre estou, às aulas que Rômulo ministra no Curso de Especialização em Processo
que coordeno na UNIFACS! Faço coro com meus colegas, unânimes em louvar a
clareza de sua exposição, o rigor lógico a que submete seu pensamento, sua correção
terminológica e seu empenho em fugir do “discurso” jurídico inconsequente, que
muitas vezes se pretende também eloquente. Esse rigor intelectual de Rômulo no
tocante ao que ensina é igual ao rigor ético que se impõe em seu comportamento
profissional. É esse mestre e esse homem que se revelam presentes nos trabalhos que
compõem este volume de estudos de Processo Penal editado pela Forense. Em todos os
artigos estão presentes as marcas da excelência de Rômulo: clareza, correção técnica e
erudição sem excesso. E concluo asseverando que tudo quanto dito aqui não foi ditado
pelo coração, sim pela razão fria e objetiva de um estudioso do Direito que se rejubila
quando se dá conta de que, sendo um apaixonado pelo saber que escolheu e alguém
consciente de já estar em fim de jornada, pode recompor suas forças com a certeza de
que a grande viagem que é a aventura humana prosseguirá, mesmo sem ele, nos que
foram ontem seus alunos e hoje já se podem intitular seus mestres.” (Salvador, 07 de
março de 2002). Grifei.
No mesmo sentido, o Professor René Ariel Dotti,
dono de um dos maiores escritórios de advocacia criminal do Brasil, ao receber o meu
livro acima referido, passou-me um telegrama, que ora transcrevo ipsis litteris:
“Agradeço a remessa de sua Crítica à Teoria Geral do Processo que envolve um tema
desafiador e fascinante para demonstrar a ilusão de ótica que processualistas civis
procuraram impor aos penalistas com a tentativa de misturar o azeite com o vinagre.
Meus parabéns pela iniciativa e pela sensibilidade em desmistificar essa crendice.”
Da mesma maneira, ao agradecer o envio de um
exemplar, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, generosamente, afirmou em um bilhete:
“Seu livro é a prova de que os problemas resultantes dessa ´coisa` estão vivos; e contra
isso é preciso lutar. Parabéns.”
4
Teoria Geral do Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, págs. 38 e 40.
4
Aliás, Gustavo Badaró, em acertada observação,
adverte que: “A própria relação jurídica processual penal é artificial. (...) Embora não
haja lide no processo penal, isso não quer dizer que se trate de um processo de
jurisdição voluntária. (...) O processo penal apresenta, em seu conteúdo, uma
controvérsia a respeito da veracidade ou não da imputação.”5
O mesmo se diga em relação aos conceitos de parte
e lide no processo penal. Mesmo em referência ao duplo grau de jurisdição podemos
identificar com uma grande facilidade diferenças tão contundentes que não condizem
com uma Teoria Geral do Processo.
Vejamos, ainda que en passant, o que se
pode entender como sendo uma teoria geral. Na acepção clássica da
filosofia grega, a palavra teoria é o “conhecimento especulativo,
abstrato, puro, que se afasta do mundo da experiência concreta,
sensível.” Nas palavras dos filósofos Hilton Japiassu e Danilo
Marcondes, é o “saber puro, sem preocupação prática” ou um “conjunto
de hipóteses sistematicamente organizadas que pretende, através de sua
verificação, confirmação ou correção, explicar uma realidade
determinada.” Por sua vez, e ainda sob o ponto de vista da filosofia, o
vocábulo geral denomina algo que é universal e se opõe ao particular.
Aliás, para Descartes, citado pelos autores acima referidos, “é próprio
do nosso espírito formar propriedades gerais do conhecimento das
particulares.”6 Já no campo do Direito, Miguel Reale define a teoria
como: “A conversão de um assunto em problema, sujeito a indagação e
pesquisa, a fim de superar a particularidade dos casos isolados, para
englobá-los numa forma de compreensão, que correlacione entre si as
partes e o todo.” (grifos no original).
Obviamente que sob estes aspectos é imperioso
uma Teoria Geral do Direito ou uma Teoria Geral do Estado, pois a Ciência Jurídica não
pode ficar “circunscrita à análise destes ou daqueles quadros particulares de normas,
mas procura estruturá-los segundo princípios ou conceitos gerais unificadores.” Isso
sim é necessário e evidente. Não, contudo, em relação aos mais diversos ramos do
Direito em particular. Portanto, a Teoria Geral do Direito existe, é imprescindível e de
induvidosa importância, pois não se pode deixar de fixar: “Os princípios ou diretrizes
capazes de elucidar-nos sobre a estrutura das regras jurídicas e sua concatenação
lógica, bem como sobre os motivos que governam os distintos campos da experiência
jurídica”, mesmo porque não adianta “conhecer um pouco de cada coisa, e de tudo
nada....7
5
Correlação entre Acusação e Sentença, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 106-108.
6
Dicionário Básico de Filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.
7
Miguel Reale Jr., Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 19o. ed., 1991, p. 18. Segundo
Arturo Orgaz, a Teoria Geral do Direito originou-se no empirismo e positivismo jurídico. Seu precursor
foi John Austin, na Inglaterra. Na Alemanha tomaram esta posição Falk y Merkel, entre outros
(Diccionario de Derecho y Ciencias Sociales, Cordoba: Editorial Assandri, 1952, p. 403, tradução minha).
5
A propósito, ainda Miguel Reale: “O Estado é uma
realidade cultural, isto é, uma realidade constituída naturalmente em virtude da
própria natureza social do homem, mas isto não implica, de forma alguma, na negação
de que se deva levar também em conta a contribuição que consciente ou
voluntariamente o homem tem trazido à organização da ordem estatal”.8
Em definitivo, há “coisas” completamente
diferentes entre o Processo Penal e o Processo Civil e não somente meras
peculiaridades, como costumam afirmar os adeptos da Teoria Unitária. Tais
“peculiaridades” do Processo Penal são tão evidentes e tão diversas que devemos, no
seu estudo, esquecer os princípios e regras orientadoras do Processo Civil.
Não esqueçamos que na ciência do
Processo Penal exige-se obediência cartesiana ao Princípio do Favor
Libertatis, possivelmente um dos grandes obstáculos para a
admissibilidade da Teoria Geral do Processo. Este postulado deve ser
obrigatoriamente observado em toda e qualquer interpretação das
normas processuais penais.
Ressalto que aqui não levo em consideração a
diferença entre postulado e princípio, mesmo porque só compreendo como essencial
diferençar princípios de regras, já que o grau de abstração dos primeiros impede-me
diferençá-los, nada obstante a autoridade de autores que o fazem, como Humberto
Ávila, aqui citado por todos, cuja obra consta das referências bibliográficas.
Ademais, o também chamado Princípio do Favor
Rei também impõe ao legislador processual penal a sua observância, quando da
elaboração destas disposições jurídicas o que, evidentemente, não ocorre no Processo
Civil, pois não se pode falar na relação processual civil qualquer atentado (ainda que
remoto) à liberdade de locomoção, com exceção da prisão civil do alimentante faltoso,
ainda assim por força de dispositivo constitucional.
Lembremos, com Giuseppe Bettiol: "Numa
determinada óptica, o princípio do favor rei é o princípio base de toda a legislação
processual penal de um Estado inspirado, na sua vida política e no seu ordenamento
jurídico, por um critério superior de liberdade.” (...) Não há, efetivamente, Estado
autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento. É
uma constante das articulações jurídicas de semelhante Estado, um empenho no
reconhecimento da liberdade e autonomia da pessoa humana.” (...) No conflito entre o
jus puniendi do Estado por um lado e o jus libertatis do arguido por outro, a balança
deve inclinar-se a favor deste último se se quer assistir ao triunfo da liberdade.”9
É um produto do século XX (Luigi Ferrajoli, Principia Iuris – Teoria del Diritto e della Democrazia,
Roma: Editori Laterza, 2007, p. 3).
8
9
Teoria do Direito e do Estado, São Paulo: Editora Livraria Martins, 1940, p. 8.
Instituições de Direito e Processo Penal, Coimbra: Editora LDA, 1974, p. 295. Tradução para o
português de Manuel da Costa Andrade.
6
Em relação à competência, sabemos que
no Processo Penal a regra (ao contrário do Processo Civil (arts. 94 a 100
do Código de Processo Civil) para a determinação da competência
territorial ou será o lugar da consumação do delito (art. 70 do Código de
Processo Penal) ou, excepcionalmente, o da prática da infração penal de
menor potencial ofensivo, nos termos do art. 63 da Lei nº. 9.099/95, tendo
em vista o Princípio da Ubiquidade (art. 6º., Código Penal).
Já o domicílio do réu é um critério subsidiário,
raramente utilizado na prática quando não se sabe o lugar do crime (art. 72, Código de
Processo Penal) ou na ação penal de iniciativa privada, facultando-se à vítima, neste
último caso, a escolha do foro competente (art. 73).
No Processo Penal também se determina a
competência o fato de o réu ser ocupante de uma determinada função pública (termo
aqui utilizado em sentido amplo, incluindo-se o mandato eletivo)10, a chamada
prerrogativa de função prevista no art. 69, VII do Código de Processo Penal e também
na Constituição Federal (arts. 29, X, art. 96, III, 108, I, “a”, 102, I, “b” e “c” e 105, I,
“a”) e nas Constituições estaduais (na Bahia, veja-se o art. 123, I, “a”, determinando ser
do Tribunal de Justiça a competência para julgar o Vice-Governador, Secretários de
Estado, Deputados Estaduais, o Procurador-Geral do Estado, os Defensores Públicos,
dentre outras autoridades públicas.
Neste aspecto, a diferença entre os diversos
Estados da Federação, pode-se afirmar, é mínima). Observo que não é uma competência
ratione personae, como se costuma afirmar com certa frequência, mas, exclusivamente,
em razão do exercício de uma função pública.
Ora, em matéria cível não há tal critério para se
determinar a competência, salvo raríssimos casos como a competência das varas da
Fazenda Pública (que não se trata, evidentemente, de uma “ação cível originária”) ou no
caso do art. 102, I, “d”, da Constituição.
Com efeito, e segundo a lição de Luiz Flávio
Gomes:“A competência por prerrogativa de função versa exclusivamente sobre
atividades criminais. Não se estende à investigação de natureza civil.”11
Aliás, veja-se a impropriedade desta disposição
encontrar-se em um código processual penal, quando se sabe que os atos de
improbidade administrativa não são ilícitos penais, mas infrações de outra natureza
(civil, administrativa e política). Logo, a previsão deveria estar contida em outro
diploma, jamais no Código de Processo Penal, livro reservado à disciplina da
persecutio criminis e de seus consectários. Maria Sylvia Zanella di Pietro esclarece
que: “A natureza das medidas previstas no dispositivo constitucional está a indicar que
a improbidade administrativa, embora possa ter consequência na esfera criminal, com
a concomitante instauração de processo criminal (se for o caso) e na esfera
10
Por todos, veja-se o conceito de função pública na obra de Maria Sylvia Zanella di Pietro, Direito
Administrativo, São Paulo: Atlas, 2002, 14ª. ed., págs. 439 e 440.
11
Ob. cit., p. 162.
7
administrativa (com a perda da função pública e a instauração de processo
administrativo concomitante) caracteriza um ilícito de natureza civil e política, porque
pode implicar a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade dos bens e o
ressarcimento dos danos causados ao erário.”12
Também o art. 37, § 4º. da Constituição Federal é
expresso no sentido de que: “os atos de improbidade administrativa importarão a
suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos
bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo
da ação penal cabível.” Observa-se que o próprio texto constitucional nitidamente faz a
distinção.
Merece também destaque a questão da
prevenção como critério determinador da competência penal. Se tal
hipótese é possível no Processo Civil, sem problemas (arts. 106, 107 e 219
do Código de Processo Civil), no Processo Penal é absolutamente
inconstitucional, pois fere os princípios e as regras atinentes ao sistema
acusatório (ver adiante quando trato do iniciativa instrutória do Juiz
penal).
É bem verdade que os arts. 69, VI, 75, parágrafo
único e 83 do nosso vetusto Código de Processo Penal estabelecem como um dos
critérios determinadores da competência exatamente a prevenção. Por ela, e em linhas
gerais, qualquer ato praticado por um Juiz de Direito, ainda que anterior ao processo,
torna o respectivo Juízo prevento.
Claro que tais disposições não deveriam constar de
um diploma processual penal de um Estado Democrático de Direito, pois a prevenção,
longe de atrair a competência do juízo penal, deveria excluí-la, visto que a prática deste
ato judicial anterior ao processo criminal atinge inevitavelmente a imparcialidade do
julgador.
Observe-se, por exemplo, que para se decretar a
prisão preventiva o Juiz deve obrigatoriamente, nos termos do art. 312 do Código de
Processo Penal, admitir a “existência do crime e indício suficiente de autoria”, o que já
significa um posicionamento quanto ao mérito da causa penal e, por conseguinte, um
julgamento prévio.
Não por menos que o Tribunal Europeu de
Direitos Humanos (TEDH) já decidiu, desde há muito, pela exclusão do julgador que de
alguma forma atuou na fase investigatória: “Sem dúvida, chegou o momento de
repensar a prevenção e também a relação juiz/inquérito, pois ao invés de caminhar em
direção à figura do juiz garante ou de garantias, alheio à investigação e verdadeiro
órgão supra partes, está sendo tomado o caminho errado do juiz instrutor. E, mais: a
imparcialidade do julgador está comprometida não só pela atividade de reunir material
ou estar em contato com as fontes de investigação, mas pelos diversos pré-julgamentos
que realiza no curso da investigação preliminar (como na adoção de medidas
12
Ob. cit., p. 678.
8
cautelares, busca e apreensão 13, autorização para intervenção telefônica14, etc.).”15
Grifos do original.
O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já
decidiu que “o princípio constitucional do justo processo legal manda que cada causa
tenha um magistrado competente para decidi-la”.
Neste julgamento, ao votar pela concessão do
habeas corpus, o relator, Ministro César Peluso afirmou que: "O juiz já teria feito um
pré-julgamento do réu ao receber a ação penal”. “Ele teve um contato com o réu que
não foi superficial. (...) A sentença condenatória penal estaria repleta de remissões aos
atos das investigações prévias, além de ter opiniões anteriormente concebidas e
expostas. (...) Ele teve um contato com o réu que não foi superficial. (...) A sentença
condenatória penal estaria repleta de remissões aos atos das investigações prévias,
além de ter opiniões anteriormente concebidas e expostas”. (Habeas Corpus nº.
94641).´
Veja-se que, ao contrário do Processo
Civil (art. 114, Código de Processo Civil), não há falar-se em
prorrogação de competência no Processo Penal, ainda que se trate de
competência relativa, pois, segundo o art. 109 do Código de Processo
Penal: “Se em qualquer fase do processo o juiz reconhecer motivo que o
torne incompetente, declará-lo-á nos autos, haja ou não alegação da
parte, prosseguindo-se na forma do artigo anterior.”
Logo, como afirmei acima, nada obstante não se
poder, do ponto de vista puramente conceitual e dogmático, enxergar uma diferença
entre a competência, seja em qual ramo do Direito estejamos tratando, uma Teoria Geral
do Processo não resolveria inúmeras questões atinentes à competência no âmbito do
Processo Penal, pois muitos dos chamados “critérios determinadores e modificadores”
devem ser analisados sob prisma completamente diverso, inclusive no que diz respeito à
conexão, à continência e ao desaforamento (arts. 76, 77 e 427 do Código de Processo
Penal).
Em relação ao ônus da prova, é cediço que
no Processo Civil compete ao réu alegar, na contestação, toda a matéria
de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o
pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir, cabendo
manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial,
presumindo-se verdadeiros os fatos não impugnados, salvo raríssimos
casos (esta regra apenas não se aplica ao advogado dativo, ao curador
especial e ao órgão do Ministério Público). É abissal a diferença entre os
dois ramos do Direito Processual, a impedir cogitar-se de uma Teoria
Geral do Processo.
13
Art. 242, Código de Processo Penal.
Art. 3º. da Lei nº. 9.296/96.
15
Aury Lopes Jr., Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ano 11 – nº. 127 – Junho/2003.
14
9
Os defendores de uma Teoria Geral do Processo,
todos, enfrentaram a questão exclusivamente sob a ótica de um processo em que não se
imputa a alguém a prática de um fato típico, antijurídico e culpável (além de punível) e
sem atentar para o Princípio da Inocência e do In Dubio Pro Reo. Eram, como se sabe,
Professores de Processo Civil... No Processo Penal, contudo, o ônus da prova é sempre
da acusação. Estabelecer, simples e categoricamente, que “a prova da alegação
incumbirá a quem a fizer”, repetindo o Código de Processo Civil (art. 333, I e II), é
fazer tábula rasa dos referidos princípios (conferir o art. 5º., LVII da Constituição
Federal).
Aliás, o próprio Michelli, após citar as obras de
Bettiol e Saraceno como decisivas para uma mudança de paradigma nesta questão,
afirma que, diferentemente do Processo Civil, no Processo Penal: “À acusação incumbe
a prova positiva da inexistência dos fatos que excluem o delito. Consequentemente, o
Juiz deverá absolver, quando não tenha provas suficientes de que o acusado cometeu o
fato que lhe foi atribuído, e também deverá absolver quando faltem provas suficientes
para excluir, por exemplo, a legítima defesa.” (Tradução minha).16
Efetivamente, Giuseppe Bettiol, muito influenciado
pela doutrina germânica, foi um dos responsáveis na Itália pela revisão da doutrina
clássica acerca da distribuição da prova no processo, fato observado por Michelli. 17 Para
Bettiol, com efeito: “É sobre o Ministério Público que recai todo o peso do ônus da
prova no processo penal. Isto no sentido de que ele é chamado a demonstrar (se
pretende eliminar da mente do juiz todo o resíduo de dúvida) a realidade dos fatos
constitutivos da pretensão punitiva (o acusado de crime de furto subtraiu efetivamente
uma coisa móvel de outrem) e a inexistência de fatos impeditivos (não se verificou a
favor do réu o estado de necessidade que justificaria o delito de furto): isto é, todo o
complexo dos pressupostos, elementos, condições e circunstâncias que tornam possível
a aplicação da pena.”18
Atentemos, outrossim, para a lição de Julio
MaierLa carga de la prueba de la inocencia no le corresponde al imputado o, de otra
manera, que la carga de demonstrar la culpabilidad del imputado le corresponde al
acusador y, también, que toda la teoria de la carga probatória no tiene sentido en el
procedimiento penal. (...) El imputado no tiene necessidad de construir su inocencia, ya
construida de antemano por la presunción que lo ampara, sino que, antes bien, quien lo
condena debe destruir completamente esa posición, arribando a la certeza sobre la
comisión de un hecho punible.”19
Evidentemente que esta conclusão decorre do art.
5.º, LVII da Constituição, pois se ninguém pode ser considerado culpado até trânsito em
julgado da sentença penal condenatória, “cabe indagar se a ilicitude da conduta é ou
não necessária para a condenação. Evidentemente que a resposta é positiva e, em
consequência, a ilicitude da conduta também é objeto da presunção de inocência: se
16
La Carga de la Prueba, Bogotá, Colombia: Editorial Temis S.A, págs. 241 e 242, tradução para o
espanhol de Santiago Sentís Melendo.
17
La Carga de la Prueba, Bogotá, Colombia: Editorial Temis S.A, pág. 238, tradução para o espanhol de
Santiago Sentís Melendo.
18
Instituições de Direito e de Processo Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 299 (tradução de
Manuel da Costa Andrade).
19
Derecho Procesal Penal – Fundamentos – Tomo I, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2ª. ed., 1999, p.
507.
10
houver dúvida sobre uma causa de excludente de ilicitude, o acusado deve ser
absolvido”, como bem nota Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró.20 Obviamente que:
“não se pode confundir o ônus da prova com interesse em provar determinado fato. O
acusado não tem o ônus de provar a existência da excludente de ilicitude, nem mesmo o
ônus de gerar dúvida, mas tem interesse em provar a sua ocorrência. Sendo o ônus da
prova uma regra de julgamento, que somente deve ser utilizado no momento decisório,
ante a dúvida do juiz sobre fato relevante, é evidente que o acusado tem interesse em
provar que a excludente efetivamente acorreu. Demonstrou a existência da excludente,
a sentença será absolutória, não sendo sequer necessário recorrer às regras sobre ônus
da prova. Este interesse, contudo, não se confunde com ônus de provar. Se o acusado,
embora interessado em provar plenamente a ocorrência da excludente, não consegue
levar ao juiz a certeza de sua ocorrência, mesmo assim, se surgir a dúvida sobre sua
ocorrência – o que significa que o acusador não conseguiu desincumbir-se do seu ônus
de provar plenamente a inocorrência da excludente -, a consequência será absolvição.
Em tal caso, fica claro, portanto, que o acusado tinha interesse em provar, por
exemplo, a legitima defesa, mas isto não significa que tivesse o ônus de demonstrar a
ocorrência da excludente de ilicitude.21
Outro argumento intransponível para
rejeitar a tese de uma Teoria Geral do Processo reside na impossibilidade
de se permitir ao Juiz penal atividade de natureza eminentemente
persecutória (agir de ofício), o que significa um gravíssimo atentado aos
postulados do sistema acusatório. O que é admissível no Processo Civil
(até por força do Princípio do Impulso Processual), soa absurdo no
Processo Penal. A propósito, Juan Montero Aroca: “Si el medio de
prueba practicado de oficio por el tribunal de instancia tiene por objeto la
comprobación de los hechos, esto es, se dirige a probar su existencia o
inexistencia, se produce la quiebra de la imparcialidad objetiva del
tribunal.”22
Tudo isso resulta da concepção que o único sistema
processual admissível em um Estado Democrático de Direito é o sistema acusatório que,
a par de distinguir perfeitamente as três funções precípuas em uma ação penal (o
julgador, o acusador e a defesa), afasta o Juiz completamente da gestão da prova, o que
não ocorre necessariamente no Processo Civil. Tais sujeitos processuais devem estar
absolutamente separados (no que diz respeito às respectivas atribuições e competência),
de forma que o julgador não acuse, nem defenda (preservando a sua necessária
imparcialidade), o acusador não julgue e o defensor cumpra a sua missão constitucional
de exercer a defesa técnica.
Nada obstante, vejamos esta observação de uma
processualista civil: "A doutrina costuma relacionar o modelo adversarial-dispositivo a
regimes não-autoritários, politicamente mais liberais, e o modelo inquisitivo a regimes
autoritários, intervencionistas. Trata-se de afirmação bem frequente na doutrina. A
ilação é um tanto simplista. Se é certo que dados culturais certamente influenciarão a
20
Ônus da Prova no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 319.
Gustavo Henrique Badaró, obra acima citada, p. 324.
22
Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo
Blanch, 1999, p. 89.
21
11
conformação do processo, método de exercício do poder, não há relação direta entre
aumento de poderes do juiz e regimes autocráticos, ou incremento do papel das partes e
regimes democráticos. Nem processo dispositivo é sinônimo de processo democrático,
nem processo inquisitivo significa processo autoritário."23
Observa-se que no sistema acusatório é vedado ao
Juiz proceder como órgão persecutório. É conhecido o princípio do ne procedat judex
ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório. Nele, segundo o professor da
Universidade de Santiago de Compostela, Juan-Luís Gómez Colomer: “Hay necesidad
de una acusación, formulada e mantenida por persona distinta a quien tiene que juzgar,
para que se pueda abrir y celebrar el juicio e, consecuentemente, se pueda condenar”24,
proibindo-se “al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora”25, “que
aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade
encarregue do julgamento”26.
Sobre o sistema acusatório, assim escreveu André
Vitu: “Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations
méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans
le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. Ce système, qui
ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits
qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. Dans l’organisation de la
justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la
défense.”27
O próprio José Frederico Marques, adepto da
Teoria Geral do Processo, afirmava: “A titularidade da pretensão punitiva pertence ao
Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal, tão-somente,
da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a
liberdade do réu. Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo.
Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. (...) O
juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional:
atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao
campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua
atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério
Público.”28 Grifo do autor citado.
Ainda como corolário dos princípios atinentes ao
sistema acusatório, aduzo a necessidade de se afastar o Juiz, o mais possível, da
atividade instrutória29. Um dos argumentos mais utilizados para a admissão
23
Didier Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil - Introdução ao Direito Processual Civil e Processo
de Conhecimento. Volume I. Salvador: Editora Jus Podivm, 2013. pg 92.
24
Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Editorial Ariel, S.A., Barcelona, 1989, p.
230.
25
Gimeno Sendra, Derecho Procesal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64.
José António Barreiros, Processo Penal-1, Almedina, Coimbra, 1981, p. 13.
27
Procédure Pánale, Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 13/14.
28
Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Forense, p. 64.
29
Sobre a atividade instrutória do Juiz no Processo Penal, remetemos o leitor a duas obras: “A Iniciativa
Instrutória do Juiz no Processo Penal”, de Marcos Alexandre Coelho Zilli, Editora Revista dos Tribunais,
26
12
do Juiz na colheita da prova é a decantada busca da verdade real,
verdadeiro dogma do processo penal 30. Ocorre que este dogma está em franca
decadência, pois hoje se sabe que a verdade a ser buscada é aquela processualmente
possível, dentro dos limites impostos pelo sistema e pelo ordenamento jurídico.
Como ensina Muñoz Conde: “El proceso penal de
un Estado de Derecho no solamente debe lograr el equilibrio entre la búsqueda de la
verdad y la dignidad de los acusados, sino que debe entender la verdad misma no como
una verdad absoluta, sino como el deber de apoyar una condena sólo sobre aquello que
indubitada e intersubjetivamente puede darse como probado. Lo demás es puro
fascismo y la vuelta a los tiempos de la Inquisición, de los que se supone hemos ya
felizmente salido.”31
Com efeito, não se pode, por conta de uma busca
de algo muitas vezes inatingível (a verdade...) 32 permitir que o Juiz saia de sua posição
de supra partes, a fim de auxiliar, por exemplo, o Ministério Público a provar a
imputação posta na peça acusatória. Sobre a verdade material ou substancial, Luigi
Ferrajoli afirma:“Ser carente de límites y de confines legales, alcanzable con cualquier
medio más allá de rígidas reglas procedimentales. Es evidente que esta pretendida
´verdad sustancial´, al ser perseguida fuera de reglas y controles y, sobre todo, de una
exacta predeterminación empírica de las hipótesis de indagación, degenera en juicio de
valor, ampliamente arbitrario de hecho, así como que el cognoscitivismo ético sobre el
que se basea el sustancialismo penal resulta inevitablemente solidario con una
concepción autoritaria e irracionalista del proceso penal”.
Por óbvio não se pode permitir no Processo Penal
(como se pode no Processo Civil) uma perigosa e desaconselhável iniciativa instrutória
levada a cabo diretamente pelo Juiz. Não é possível tal permissão em um sistema
processual acusatório, pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo
caracterizado, como diz Ferrajoli: “Por una confianza tendencialmente ilimitada en la
bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este sistema
“confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes
del poder que juzga”.33
2003 e “Poderes Instrutórios do Juiz”, de José Roberto dos Santos Bedaque, Editora Revista dos
Tribunais, 2ª. ed., 1994..
30
Sobre a matéria há obras importantes, a saber, por exemplo: “A Busca da Verdade Real no Processo
Penal”, de Marco Antonio de Barros, Editora Revista dos Tribunais, 2002; “O Mito da Verdade Real na
Dogmática do Processo Penal”, de Francisco das Neves Baptista, Editora Renovar, 2001 e “La verdad en
el Proceso Penal”, de Nicolás Guzmán, Editores del Puerto, Buenos Aires, 2006.
31
Búsqueda de la Verdad en el Proceso Penal, Buenos Aires: Depalma: 2000, p. 107.
32
“Classicamente, a verdade se define como adequação do intelecto ao real. Pode-se dizer, portanto, que
a verdade é uma propriedade dos juízos, que podem ser verdadeiros ou falsos, dependendo da
correspondência entre o que afirmam ou negam e a realidade de que falam (Hilton Japiassu e Danilo
Marcondes, Dicionário Básico de Filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 241). “A porta
da verdade estava aberta / Mas só deixava passar / Meia pessoa de cada vez / Assim não era possível
atingir toda a verdade. / Porque a meia pessoa que entrava / Só trazia o perfil de meia verdade / E a
segunda metade / Voltava igualmente como perfil / E os meios perfis não coincidiam. / Arrebentavam a
porta, derrubavam a porta, / Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. / Era
dividida em metades diferentes uma da outra. / Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. / Nenhuma
das duas era totalmente bela e carecia optar. / Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua
miopia.” (Carlos Drummond de Andrade, do livro "O corpo", editora Record).
33
Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604.
13
Neste ponto34 é importante uma rápida observação:
com efeito, não se pode humanamente e a qualquer custo buscar algo 35 (a verdade),
muita vez inatingível. 36
Esta figura lembra o Juiz Inquisidor “nascido na
era do Império Romano, mas com protagonismo acentuado na Idade Média, isto é,
época da Inquisição. Não é da tradição do Direito brasileiro e, aliás, também segundo
nosso ponto de vista, viola flagrantemente a atual Ordem Constitucional”.37
É evidente que tal possibilidade é teratológica, pois
não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses,
possa avaliar como “necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua
legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo
garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas
mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias
individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração da justiça.
Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em
um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança
individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom
juiz desterra o inquisidor’”.38
Parece-me claro que deixar (também) nas mãos do
Juiz a gestão da prova representa, efetivamente, uma mácula séria aos postulados do
sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade que deve nortear a
atuação de um Juiz criminal, o que não se coaduna com a feitura pessoal e direta de
diligências investigatórias. Como se disse acima, neste sistema estão divididas
claramente as três funções básicas da Justiça Penal, quais sejam: o Ministério Público
acusa, o advogado defende e o Juiz apenas julga, em conformidade com as provas
produzidas pelas partes. “Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas
procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para
profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem
acentua Alberto Binder.39
34
"Não quero ser o dono da verdade, pois a verdade não tem dono, não. Se o "V" de verde é o verde da
verdade, dois e dois são cinco, n'é mais quatro, não. Se o "V" de verde é o verde da verdade, dois e dois
são cinco, n'é mais quatro, não" (Let Me Sing, Let Me Sing, trecho de uma canção de Raul Seixas).
35
“Não tenho a menor noção do que é a verdade, mulher! Caguei pra verdade, a verdade é uma coisa
escrota, uma nojeira filosófica inventada pelos monges do século XIII, que ficavam tocando punheta nos
conventos, verdade o cacete, interessa a objetividade.” (“Eu sei que vou te amar”, de Arnaldo Jabor, Rio
de Janeiro: Objetiva, p. 65).
36
“A porta da verdade estava aberta / Mas só deixava passar / Meia pessoa de cada vez / Assim não era
possível atingir toda a verdade. / Porque a meia pessoa que entrava / Só trazia o perfil de meia verdade / E
a segunda metade / Voltava igualmente como perfil / E os meios perfis não coincidiam. / Arrebentavam a
porta, derrubavam a porta, / Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. / Era
dividida em metades diferentes uma da outra. / Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. / Nenhuma
das duas era totalmente bela e carecia optar. / Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua
miopia.” (Carlos Drummond de Andrade, do livro "O corpo", editora Record).
37
Luiz Flávio Gomes, Crime Organizado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª. edição, 1997, p. 133
38
Lopes Jr., Aury, Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 74.
39
Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43.
14
Como diz Juan Montero Aroca: “En correlación
con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del
juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete
a su decisión.”40
Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois
não acredito em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da
República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em
decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Como
notou Eros Roberto Grau: "Ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade
política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre.
Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.”41 São
inconfundíveis a neutralidade e a imparcialidade. É ingenuidade acreditar-se em um Juiz
neutro, mas absolutamente indispensável um Juiz imparcial.
Um Magistrado imparcial, como afirmam
Alexandre Bizzotto, Augusto Jobim e Marcos Eberhardt, implica em um “formal
afastamento fático do fato julgado, não podendo o Magistrado ter vínculos objetivos
com o fato concreto colocado à discussão processual. Coloca-se daí na condição de
terceiro estranho ao caso penal. (...) Já a neutralidade é a assunção da alienação
judicial, negando-se ingenuamente o humano no juiz. Este agente político partícipe da
vida social sente (a própria sentença é um ato de sentir), age, pensa e sofre todas as
influências provocadas pela sociedade pós-moderna. Afirmar que o juiz é neutro é
ocultar uma realidade.”42
A propósito da verdade real, que pode até ser
aceitável no Processo Civil, cito Michele Taruffo: “La distinción entre verdad formal y
verdad material es, sin embargo, inaceptable por varias razones que la doctrina menos
superficial ha puesto en evidencia desde hace tiempo. En especial, parece insostenible
la idea de una verdad judicial que sea completamente ‘distinta’ y autónoma de la vedad
‘tout court’ por el solo hecho de que es determinada en el proceso y por medio de las
pruebas; la existencia de reglas jurídicas y de límites de distinta naturaleza sirve, como
máximo, para excluir la posibilidad de obtener verdades absolutas, pero no es
suficiente para diferenciar totalmente la verdad que se establece en el proceso de
aquella de la que se habla fuera del mismo [...] La expresión ‘verdad material’, y las
otras expresiones sinónimas, resultan etiquetas sin significado si no vinculan al
problema general de la verdade.”43
Mais uma observação: como se sabe no
Processo Civil a confissão pode ser feita até por mandatários com
40
Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo
Blanch, 1999, p. 186.
41
Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, São Paulo: Malheiros, 2ª. ed., 2003, p.
51. Também neste sentido, veja-se Rodolfo Pamplona Filho, “O Mito da Neutralidade do Juiz como
elemento de seu Papel Social” in "O Trabalho", encarte de doutrina da Revista "Trabalho em Revista",
fascículo 16, junho/1998, Curitiba/PR, Editora Decisório Trabalhista, págs. 368/375, e Revista "Trabalho
& Doutrina", nº 19, dezembro/98, São Paulo, Editora Saraiva, págs.160/170.
42
A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal, obra organizada
por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Salo de Carvalho, Porto Alegre: Notadez, 2006, p. 20.
43
La Prueba de los Hechos, Madri: Editorial Trotta, 2005, pp. 24/25.
15
poderes especiais; ademais, admite-se a confissão extrajudicial, feita por
escrito à parte ou a quem a represente, tendo esta a mesma eficácia
probatória da judicial. Também aqui a confissão é, de regra, indivisível,
não podendo a parte, que a quiser invocar como prova, aceitá-la no
tópico que a beneficiar e rejeitá-la no que lhe for desfavorável.
Ora, tais disposições processuais civis são
inteiramente despropositadas se cotejadas com os princípios e regras orientadoras de um
Processo Penal garantidor.
Evidentemente que a confissão é um meio de prova
também previsto no Código de Processo Penal (arts. 197 a 200). Outrora considerada
como a regina probationum, hoje, contudo, seu valor probatório é relativo, devendo
ser corroborada por outros meios de prova também admitidos e avaliada em
conformidade com o sistema do livre convencimento (art. 197).
Para Carlos Duran: “La confesión del acusado
consiste en el expreso reconocimiento de haber ejecutado el hecho delictivo de que se le
acusa. Existe confesión aun cuando el reconocimiento del acusado sea parcial, bien
porque sólo admita una parte del hecho o de los hechos imputados al mismo, bien
porque se limite a considerarse como un simple cómplice de la perpetración del delito,
rechazando su consideración como autor o como cooperador necesario”. 44
Como dito acima, a confissão já foi considerada a
rainha das provas, a ponto de serem legítimos, para consegui-la, métodos
verdadeiramente desumanos, como a tortura. O seu apogeu deu-se durante o reinado do
processo inquisitivo. Em reação (e por razões eminentemente humanitárias), muitos
passaram a pregar uma posição diametralmente oposta e radicalmente concebida: o
desvalor absoluto da confissão, negando-se-lhe legitimidade como meio de prova,
taxando-a de imoral e cruel, sob o argumento de que feria a própria natureza humana o
admitir a própria culpa. Haveria, portanto, uma impossibilidade moral na confissão.
Hoje se valora relativamente tal prova, pois ainda
que não possa ser considerada de forma incontestável, tampouco se pode concebê-la
como meio de prova imprestável. Relativizou-se, portanto, o seu valor probatório. Esta
tendência doutrinária consubstanciou-se no art. 197 do Código de Processo Penal. Pelo
sistema do livre convencimento, o Juiz “deverá confrontá-la com as demais provas do
processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância”.
Justificando a relatividade da confissão no Juízo
penal, ao contrário do que ocorre, em regra, no cível, escreveu Malatesta: “A justiça
penal não atinge seus fins, golpeando um bode expiatório qualquer; precisa do
verdadeiro delinqüente, para que se torne legítima a sua ação. Sem a certeza da
culpabilidade, mesmo havendo a aquiescência do acusado, a condenação seria sempre
monstruosa, e perturbaria a consciência social mais que qualquer outro delito. Ora,
desde que nem toda confissão inspira certeza da culpabilidade, segue-se que a máxima
confessus pro judicato habetur, sempre boa no campo civil, deve ser rejeitada no do
direito penal.”45
44
45
Carlos Climent Durán, La Prueba Penal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 277.
A Lógica das Provas em Matéria Criminal, Vol. 2, São Paulo: Saraiva, 1960, p. 171.
16
É importante assinalar que, ao contrário do
Processo Civil, não há no Processo Penal a confissão ficta. Não existe no Código de
Processo Penal disposição similar àquela contida no diploma processual civil, segundo a
qual “não sendo contestada a ação, se presumirão aceitos pelo réu, como verdadeiros,
os fatos articulados pelo autor”. (art. 285, in fine). No Juízo criminal dizer-se tal coisa
representa uma verdadeira heresia, um descompasso doutrinário que beira à teratologia
jurídica.
Como diz Mittermaier:“A confissão deve ser o
produto da vontade livre do acusado; é preciso que ele tenha tido a intenção firme de
dizer a verdade; é preciso que nem o temor, nem o constrangimento, nem alguma
inspiração estranha pareça ditar-lhe os meios”.46
Ferrajoli adverte sobre a proibição: "No solo de
arrancar la confesión con violência, sino también de obtenerla mediante
manipulaciones de la psique, con drogas o con prácticas hipnóticas”.47
Importante, igualmente, analisar a
natureza jurídica da ação penal. Como se sabe, a ação penal, sob o ponto
de vista de uma classificação subjetiva, em que se leva em consideração o
titular da ação, pode ser pública (condicionada ou incondicionada), de
iniciativa privada ou mesmo popular (como veremos adiante). Por outro
lado, as duas regras mais importantes que regem a ação penal pública
são exatamente a da obrigatoriedade (ou como preferem outros, a da
legalidade) e a da indisponibilidade. A primeira impõe ao titular da ação
penal pública (privativamente o Ministério Público – art. 129, I, da
Constituição) o oferecimento da denúncia, obviamente havendo justa
causa (indícios suficientes da autoria e prova da existência de uma
infração penal), não havendo para este órgão estatal qualquer espaço de
discricionariedade, como em outros países onde se admite ao Ministério
Público fazer um juízo de conveniência e oportunidade para iniciar a
ação penal (por exemplo, na Alemanha, § 153, § 153a e § 153c da StPO).
Tal princípio encontra-se consagrado no art. 24 do Código de Processo
Penal.
Ora, sendo a ação um direito a ser exercido contra
o Estado (ou um direito potestativo exercido contra o adversário, como queria
Chiovenda), e sendo o direito uma “faculdade” que se pode livremente exercer ou não,
(não sendo, portanto, algo obrigatório), não concebo que a ação penal pública (seja
condicionada ou incondicionada) inclua-se nesta categoria. O Ministério Público, pelo
menos na maioria dos sistemas jurídicos que adotam a regra da obrigatoriedade da ação
penal pública, não tem esta “faculdade” de iniciar ou não a ação penal, com o
oferecimento da peça acusatória, salvo, evidentemente se não houver justa causa ou não
estiverem presentes as condições para o exercício da ação penal ou mesmo faltar algum
46
47
Tratado da Prova em Matéria Criminal, 3ª. ed., Campinas: Bookseller, 1996, p. 206.
Luigi Ferrajoli, ob. cit., p. 607.
17
pressuposto processual. Do contrário, resta um dever jurídico, um verdadeiro dever de
Estado em acusar o suposto autor da ação penal (com algumas exceções).
Um dos poucos autores brasileiros a enfrentar esta
questão foi José Antonio Paganella Boschi:“A ação penal pode ter natureza de direito
subjetivo público nas ações de iniciativa privada ou de dever jurídico nas ações
públicas, uma vez que, nas ações privadas, um dos requisitos é o próprio sujeito ou seu
representante, e nas ações publicas é dever do Estado.”48
Ainda que a contragosto (pois era um fascista e
advogado de Benito Mussolini) transcrevo a lição de Vicenzo Manzini, no sentido de
que no Processo Penal o Ministério Público:“Nada pede em seu próprio nome, mas atua
como órgão do Estado no exercício de uma função pública para a atuação do direito
objetivo. A pretensão punitiva do Estado que o Ministério Público faz valer ante o juiz,
não está vinculada a um direito subjetivo, senão ao poder-dever de atuar objetivamente
a vontade soberana da lei.” (tradução minha).49
Por outro lado, como se falar em uma Teoria Geral
do Processo se o Ministério Público não pode desistir da ação penal, segundo dispõem
categoricamente os arts. 42 e 576 do Código de Processo Penal? Oferecida a peça
acusatória ou interposto o recurso, não há falar-se em desistência do órgão público, o
que destoa completamente das regras e dos princípios atinentes ao Processo Civil. É a
chamada regra da indisponibilidade da ação penal pública (condicionada ou
incondicionada). Vale ressaltar que, assim como ocorre com a regra da obrigatoriedade,
alguns países adotam a regra da disponibilidade, ainda que se trate da ação penal
pública (neste sentido, mais uma vez, veja-se o Código de Processo Penal Alemão StPO).
É bem verdade que temos (ainda!) a ação penal de
iniciativa privada, um esdrúxulo caso de substituição processual (contra Aury Lopes
Jr.50). Efetivamente, nestes casos, podemos falar em direito de ação, pois aqui as regras
orientadoras são outras: a da oportunidade ou conveniência (por meio da renúncia ao
direito de queixa ou pela decadência) e a da disponibilidade (seja pelo perdão, seja pela
perempção). De todo modo, a ação penal de iniciativa privada aos poucos vem sendo
substituída pela ação penal pública condicionada (como ocorreu no Brasil,
recentemente, nos crimes contra os costumes e na injúria com preconceito), além de ter
sido completamente excluída no projeto de lei de reforma do Código de Processo Penal
que ora tramita no Congresso Nacional (PSL 156). Ressalvo, obviamente, a ação penal
de iniciativa privada subsidiária da pública (art. 29 do Código de Processo Penal), pois
cláusula pétrea (art. 5º., LIX c/c art. 60, § 4º., IV, da Constituição). A propósito, Jacinto
Coutinho Miranda também concorda ser a ação penal de iniciativa privada um caso de
substituição processual: “Temos assim, sempre, um conflito de interesses só
solucionável pela jurisdição que o compõe através do processo, o freio utilizado para
48
Ação Penal – Denúncia, Queixa e Aditamento, Rio de Janeiro: AIDE, 3ª. ed., 2002, p. 22.
49
Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo II, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 3ª.
edição, 1951, págs. 4, 5 e 6.
50
Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 9ª. ed., 2012, p 408.
18
tanto, após ser acionada pelo Estado- administração (no caso de ação penal pública),
ou um eventual substituto processual seu, em se tratando de ação penal de iniciativa
privada.51
A ação penal de iniciativa privada segundo JoseManuel Martinez-Pereda Rodriguez teve sua origem “no primitivo Direito Romano”:“Já
na Roma monárquica o processo era público ou privado segundo o rei procedesse ou
esperasse a queixa da parte lesionada. No primeiro caso o rei abre o processo e depois
de ouvir o parecer dos assessores pronuncia a sentença. Nos casos em que somente
houve um atentado contra a paz privada procede a instancia de parte, incumbindo a
esta fazer que compareça seu adversário perante o rei e podendo em certos casos
empregar a força.” (tradução minha).52
Alguns processualistas penais, influenciados pelo
Processo Civil e adeptos da Teoria Geral do Processo (como foi José Frederico
Marques) querem adotar para o Processo Penal uma classificação na qual se leva em
conta a tutela jurisdicional invocada ou objetivada. O próprio Frederico Marques cita
três processualistas italianos que o influenciaram neste aspecto: Eduardo Massari
(“quizás el procesalista penal sobre quien mayor influjo ejerció em su pátria el
procesalismo civil”, nas palavras de Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Levene,
Hijo)53, Giovanni Leone e Vincenzo Spiezia. 54
Assim, como no Processo Civil, teríamos a Ação
Penal de Conhecimento (Declaratória – Positiva ou Negativa, Constitutiva e
Condenatória), a Ação Penal Cautelar e a Ação Penal de Execução. Eis o problema!
Se não há dúvidas sobre a existência das ações
penais condenatórias, a questão é adequar satisfatoriamente esta classificação do
Processo Civil para o Processo Penal. Claro que existem no Processo Penal ações penais
de natureza não condenatória, como as ações autônomas de impugnação (Habeas
Corpus, a Revisão Criminal e o Mandado de Segurança contra ato jurisdicional penal)
que podem perfeitamente se ajustar ao conceito de ações penais constitutivas. Porém,
Frederico Marques, na obra citada, dá como exemplos de ações penais cautelares o art.
648, V, do Código de Processo Penal e o pedido de prisão preventiva (!). A ação de
execução estaria prevista no art. 688, I do código processual (hoje já sem qualquer
aplicação por força da Lei de Execução Penal – Lei nº. 7.210/84).
Com todas as vênias à memória do Mestre paulista,
somente com um exercício hercúleo é que se pode adaptar perfeitamente (e sem
percalços) tal classificação ao Processo Penal. Aliás, ele mesmo afirmava que: "Só se
pode falar em ação quando, com o pedido, se instaura uma relação processual. Outras
atividades postulatórias e são muitas – que qualquer dos sujeitos processuais exerça,
51
Coutinho, Jacinto Nelson Miranda. A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, Curitiba: Juruá,1998. p.
126.
52
El Proceso por Delito Privado, Barcelona: Bosch, Casa Editorial, S.A. 1976, p. 6.
53
Derecho Procesal Penal, Tomo II, Buenos Aires: Editorial Guillermo Kraft Ltda, 1945, p. 70, nota 23.
54
Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p 297.
19
refogem do conceito de ação (...) Se, com o pedido, instaurar-se uma nova instância,
esse pedido será manifestação do exercício do direito de agir.”55
Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Levene,
Hijo sobre esta classificação afirmam que: “No obstante, bueno será puntualizar que
aún en el caso de que la mencionada clasificación fuese inobjetable en cuanto a los
sectores en que se descompone, no sería en realidad, una catalogación de acciones,
sino de pretensiones y, además, que si por acción se entiende, como generalmente
sucede, la promovida por el actor, en lo penal ella es de condena, sin perjuicio de que
el resultado del proceso (o sea la sentencia) puede no serlo, o de que pretensiones
incidentales o ulteriores del acusado motiven provimientos de signo declarativo o
constitutivo”.56
Encontrar no Processo Penal ações penais
cautelares ou de execução é muito mais difícil do que um rico entrar no
reino dos céus ou passar um camelo pelo fundo de uma agulha
(plagiando Jesus, segundo disse Mateus 19:23-24).
Mesmo a Revisão Criminal, disciplinada nos arts.
621 a 631 do CPP difere completamente da Ação Rescisória, prevista nos arts. 485 a
495 do CPC. Dentre as inúmeras diferenças, poder-se-ia citar que não há prazo para o
direito de propor a revisional; ademais, podemos aduzir sobre a questão da prova nova
que pode ser alegada nas duas ações constitutivas: enquanto o art. 485, VII do CPC a
prova nova, após a sentença, deve se referir a fato já posto no curso do processo
original, aqui, no Processo Penal, para os mesmos fins, serve qualquer prova nova, diga
respeito ou não a fato alegado na ação penal condenatória, fato, inclusive, que não foi
sequer discutido no processo condenatório e mesmo aquele descoberto após a sentença
condenatória ou absolutória imprópria (aplicação de medida de segurança ao
inimputável).
O que Frederico Marques chamava de ações penais
cautelares nada mais são que meros provimentos cautelares que podem ser requeridos
ao Juiz, sejam antes do processo, durante e até na fase de execução penal
(monitoramento eletrônico, por exemplo – arts. 146-B a 146-D da Lei nº. 7.210/84).
Tampouco o Habeas Corpus tem esta natureza, nem mesmo o preventivo, pois se trata
de uma tutela preventiva e não cautelar ou antecipatória. O Habeas Corpus preventivo
não tem aquele caráter instrumental próprio das ações cautelares, mas, pelo contrário,
tem um caráter de definitividade. 57 Neste mesmo sentido é a lição de Rogério Lauria
Tucci, para quem no Processo Penal: “Só há lugar para a efetivação de medidas
cautelares, desenroladas no curso da persecução ou da execução penal, e não para
ação ou processo cautelar, que exigem , para sua realização, a concretização de
procedimento formalmente estabelecido em lei.”58
Também Vicente Greco Filho: “Também inexiste
ação ou processo cautelar. Há decisões ou medidas cautelares, como a prisão
preventiva, o sequestro, e outras, mas sem que se promova uma ação ou se instaure um
55
Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p 297.
Derecho Procesal Penal, Tomo II, Buenos Aires: Editorial Guillermo Kraft Ltda, 1945, p. 70, nota 23.
57
Conferir Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes,
Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 7ª. ed., 2011, p. 272.
58
Teoria do Direito Processual Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 107.
56
20
processo cautelar diferente da ação ou do processo de conhecimento. As providências
cautelares são determinadas como incidentes do processo de conhecimento.”59
Aliás, antes mesmo do início da ação penal já se
pode determinar a decretação de uma medida cautelar penal desde que haja
requerimento ao Juiz (art. 282, § 2º., do Código de Processo Penal).
E quanto à ação penal de execução?60 Tampouco
existe no Processo Penal, pois, como explica Vicente Greco, a execução penal realizase: “Por força da própria sentença, que já tem carga executiva. Executa-se por ordem
do Juiz, per officium iudicis, independentemente da instauração de nova relação
processual”, Filho. 61
O próprio Frederico Marques, após admitir que a
execução penal inicia-se pelo exercício officium iudicis, independentemente de
provocação do Ministério Público ou querelante, apontava (com razão, tendo em vista a
época em que escreveu a respeito), um único caso em que se poderia falar-se em ação
penal executória: o art. 688, I do Código de Processo Penal, mais tarde substituído pelo
art. 164 da Lei de Execução Penal (Lei nº. 7.210/84).62 Tratava-se da execução da
sentença condenatória à pena de multa. Este exemplo, porém, não mais serve, pois com
a promulgação da Lei n.º 9.268/96 foram modificados alguns dispositivos do Código
Penal, especificamente os seus arts. 51, 78, 92 e 114 todos da Parte Geral, além de ter
sido revogado expressamente o art. 182 da Lei de Execuções Penais. Com a inovação
legislativa, o primeiro daqueles artigos passou a determinar que, “transitada em julgado
a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as
normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que
concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.”
Vejamos um outro aspecto: a Constituição Federal
consagrou no art. 5º., LXXIII a Ação Popular que permite a “qualquer cidadão é parte
legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público
ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio
ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada máfé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.” Esta disposição está
regulamentada na Lei nº. 4.717/65 (recepcionada pela Carta Magna), além de,
subsidiariamente pelo Código de Defesa do Consumidor (Processo Penal Coletivo).
Assim é no Processo Civil. E no Processo Penal é possível falar-se em Ação
Penal Popular? Evidentemente que não, ao menos que se trate do
Habeas Corpus (que não é, por óbvio, ação penal de natureza
condenatória), pois, nos termos do art. 654 do Código de Processo Penal,
pode ser “impetrado” por qualquer pessoa. Tampouco, pode-se falar em
ação penal popular aquela tratada na Lei nº. 1.079/50, pois ali não se
59
Manual de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 2ª. ed., 1993, p. 102.
Especificamente sobre execução penal, é indispensável a leitura da obra coletiva organizada por Salo
de Carvalho, “Crítica à Execução Penal”, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. Também faz-se referência
aos trabalhos do nossos Defensores Públicos baianos que escreveram, em dois volumes, duas obras
igualmente coletivas, “Redesenhando a Execução Penal”, Salvador: Editora JusPodivm, 2010 (Vol. I) e
2012 (Vol. II).
61
Manual de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 2ª. ed., 1993, p. 101.
62
Obra citada, p. 300.
60
21
define crime nenhum, mas infrações político-administrativas a serem
julgadas pelo Parlamento (Jurisdição Política).
É bem verdade que já houve no Brasil uma
verdadeira ação penal popular de natureza condenatória, pois a Constituição Imperial de
1824 dispunha, no art. 157, que:“Por suborno, peita, peculato, e concussão haverá
contra elles acção popular, que poderá ser intentada dentro de anno, e dia pelo proprio
queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na
Lei.”
Poucos anos depois, o Código de Processo
Criminal de 1832, no art. 74, estabelecia que:“A denuncia compete ao Promotor
Publico, e a qualquer do povo: § 1º Nos crimes, que não admitem fiança. § 2º Nos
crimes de peculato, peita, concussão, suborno, ou qualquer outro de responsabilidade.
§ 3º Nos crimes contra o Imperador, Imperatriz, ou algum dos Príncipes, ou Princesas
da Imperial Família, Regente, ou Regencia. § 4º Em todos os crimes públicos. § 5º Nos
crimes de resistência ás autoridades, e seus oficiais no exercício de suas funções. § 6º
Nos crimes em que o delinquente for preso em flagrante, não havendo parte que o
acuse.”
Comentando especificamente este art. 74, escreveu
Galdino Siqueira que:“Tecnicamente a denúncia é sempre a forma da proposição da
ação penal publica, e nesse sentido é que a emprega o Código de Processo Criminal,
referindo-se ao mesmo tempo ao promotor público e a qualquer do povo.”63
Também na Espanha, tem-se a ação penal popular,
de natureza condenatória, pois a Ley de Enjuiciamiento Criminal dispõe que:“La acción
penal es pública. Todos los ciudadanos españoles podrán ejercitarla con arreglo a las
prescripciones de la Ley. (…) Todos los ciudadanos españoles, hayan sido o no
ofendidos por el delito, pueden querellarse, ejercitando la acción popular establecida
en el art. 101 de esta ley.” (arts. 101 e 270).
Outrossim, não esqueçamos que no Processo Penal,
em regra, é imprescindível para a propositura da ação penal uma investigação
preliminar de natureza criminal, não bastando meros documentos tal como exigido pelo
art. 283 do Código de Processo Civil. É o que chamamos de justa causa para a ação
penal (indícios suficientes da autoria e prova da existência de uma infração penal), sem
a qual a denúncia ou a queixa não será recebida (art. 395, III, Código de Processo
Penal). Via de regra, esta investigação preliminar, ao menos no Brasil, faz-se por meio
do inquérito policial, que é, nas palavras de Michel Foucault: “Precisamente uma forma
política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição
judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de auferir a verdade, de
adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir.”64
É um procedimento preliminar, extrajudicial e
preparatório para a ação penal, sendo por isso considerado como a primeira fase da
persecutio criminis (que se completa com a fase em juízo). É instaurado pela polícia
63
Curso de Processo Criminal, São Paulo: Livraria Magalhães, 2ª. ed., 1930, p. 73.
“A verdade e as formas jurídicas”, Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999, p. 11, apud Gilberto Thums,
Sistemas Processuais Penais, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 186.
64
22
judiciária e tem como finalidade a apuração de infração penal e de sua respectiva
autoria. No Código de Processo Penal está disciplinado entre os arts. 4º. e 23º.
Quanto aos elementos da ação penal, e
ainda que no Processo Penal os elementos da ação penal sejam os
mesmos do Processo Civil (as partes, o pedido e a causa de pedir), o
tratamento dado a estas categorias no Direito Processual Penal é
inteiramente diferente do Direito Processual Civil, como veremos a
seguir.
Com efeito, o clássico conceito de parte no
Processo Civil não encontra espaço no Processo Penal , primeiro porque não
há falar-se em lide penal ou conflito de interesses no Processo Penal; segundo porque na
ação penal pública cabe ao Ministério Público (até por sua feição constitucional),
fiscalizar a execução da lei, isto é, atuar também e obrigatoriamente como custos legis
(art. 257, II, Código de Processo Penal), inclusive pugnando sempre que necessário em
favor do réu. Ainda que se trate de uma ação penal de iniciativa privada, o querelante
pode perdoar o querelado (arts. 105 e 106, Código Penal) ou tornar perempta a ação
penal (art. 60, Código de Processo Penal), extinguindo, por uma forma ou por outra e
mesmo após iniciada a ação penal e instaurada a instância, a punibilidade, nos termos do
art. 107, IV e V do Código Penal. Ademais, não esqueçamos que o querelante é um
mero substituto processual, pois deduz atua em nome próprio um direito do Estado (jus
puniendi).
Neste sentido, bem a propósito é a lição de
Vicenzo Manzini (mais uma vez citado a contragosto): “O conceito de parte na causa
não guarda no direito processual penal o valor que tem no direito processual civil, e
sequer coincide necessariamente com o conceito de sujeito processual (o juiz,
evidentemente, não é parte).”
Mesmo em relação ao acusado, Manzini não
admite chamá-lo de parte: “Em sentido relativo, porque, afora outras coisas, pode
renunciar à tutela de seus próprios interesses sem que por isto, como ocorreria, ao
contrário, no juízo cível, deixe de ser processado ou de ser condenado
necessariamente.” (tradução minha).65
Como se sabe, todo acusado deve obrigatoriamente
ser defendido por um profissional do Direito, a fim de que se estabeleça íntegra a ampla
defesa, observando-se que esta defesa técnica não é meramente formal, mas
substancialmente consistente e potencialmente eficaz, pois, como já ensinava Frederico
Marques: "Dá-se defensor ao réu, para que haja atuação efetiva daquele órgão em prol
dos interesses do acusado. Certo é que se não pode traçar a priori a orientação a ser
seguida por aquele a quem a Justiça confiou o patrocínio da defesa do réu. Mas se
estiver evidente a inércia e desídia do defensor nomeado, o réu deve ser tido por
indefeso e anulado o processo desde o momento em que deveria ter sido iniciado o
patrocínio técnico no juízo penal. Abraçar entendimento diverso a respeito do assunto,
65
Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo II, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 3ª.
edição, 1951, págs. 4, 5 e 6.
23
além de constituir inaceitável posição diante da evidência ictu oculi de real ausência
de defesa, é ainda orientação de todo censurável e errônea, mesmo porque pode
legitimar situações verdadeiramente iníquas.”66
Porém, no Processo Penal, ao contrário do
Processo Civil, a constituição de defensor independe de instrumento de mandato,
conforme explicita o art. 266 do Código de Processo Penal: "A nomeação de defensor
no interrogatório judicial do réu dispensa a juntada de instrumento de mandato (artigo
226 do CPP). Impondo-se seja conhecido o agravo de instrumento instruído com o
termo de interrogatório. Ordem concedida” (Supremo Tribunal Federal – 2ª T- HC
92.822 – rel. Eros Grau – j. 09.09.2008 – DJU 14.11.2008).
Da mesma forma, ou seja, diferentemente do
Direito Processual Civil (salvo raríssimas hipóteses), o acusado não somente tem
legitimidade para recorrer (por óbvio), como tem capacidade postulatória (art. 577,
Código de Processo Penal), de tal maneira que basta a sua afirmação que deseja
recorrer, quando de sua intimação da sentença condenatória, que não há mais falar-se
em trânsito em julgado (evidentemente que as razões recursais deverão ser
obrigatoriamente feitas por um advogado, seja o dativo, ad hoc ou um Defensor
Público), pois, como se sabe, o defensor exerce a chamada defesa técnica, específica,
profissional ou processual, que exige a capacidade postulatória e o conhecimento
técnico.
O acusado, por sua vez, exercita ao longo do
processo (quando, por exemplo, é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa
material ou genérica. Ambas, juntas, compõem a ampla defesa. A propósito, veja-se a
definição de Miguel Fenech: “Se entiende por defensa genérica aquella que lleva a
cabo la propia parte por sí mediante actos constituídos por acciones u omisiones,
encaminados a hacer prosperar o a impedir que prospere la actuación de la
pretensión.. No se halla regulada por el derecho con normas cogentes, sino con la
concesión de determinados derechos inspirados en el conocimientode la naturaleza
humana, mediante la prohibición del empleo de medios coactivos, tales como el
juramento – cuando se trata de la parte acusada – y cualquier otro género de
coacciones destinadas a obtener por fuerza y contra la voluntad del sujeto una
declaración de conocimiento que ha de repercutir en contra suya.” Para ele, diferenciase esta autodefesa da defesa técnica, por ele chamada de específica, processual ou
profissional´: "Que se lleva a cabo no ya por la parte misma, sino por personas peritas
que tienen como profesión el ejercicio de esta función técnico-jurídica de defensa de las
partes que actuán en el processo penal para poner de relieve sus derechos y contribuir
con su conocimiento a la orientación y dirección en orden a la consecusión de los fines
que cada parte persigue en el proceso y, en definitiva, facilitar los fines del mismo”.67
Aliás, observa-se que a figura do Assistente no
Processo Penal em nada lembra qualquer tipo de intervenção de terceiros do Processo
Civil. É cediço qie o Estado, embora titular do jus puniendi, por vezes concede ao
ofendido a faculdade de intervir na relação processual penal, seja na condição de titular
da ação penal, como ocorre na ação penal de iniciativa privada, seja como assistente do
Ministério Público. Na primeira hipótese o ofendido figura na relação como parte
66
67
Elementos de Direito Processual Penal, Vol. II, Campinas: Bookseller, 1998, p. 388.
Derecho Procesal Penal, Vol. I, 2ª. ed., Barcelona: Editorial Labor, S. A., 1952, p. 457.
24
necessária, atuando como substituto processual, titular que é do jus accusationis; no
outro caso, porém, a vítima não é parte necessária no processo sendo considerada
sujeito secundário da relação processual, parte acessória, colateral, contingente ou
adjunta. A falta do assistente, portanto, não inviabiliza o início nem a continuidade da
relação processual.
Como assistente da acusação pode se habilitar a
vítima ou seu representante legal, ou, na falta, o cônjuge, ascendente, descendente ou
irmão. O art. 530-H do Código de Processo Penal dispõe que “as associações de
titulares de direitos de autor e os que lhes são conexos poderão, em seu próprio nome,
funcionar como assistente da acusação nos crimes previstos no art. 184 do Código
Penal, quando praticado em detrimento de qualquer de seus associados.”
Ao assistente é permitido propor meios de prova
que serão produzidos por decisão judicial, após a ouvida do Ministério Público, bem
como requerer reperguntas às testemunhas, aditar os articulados (não a denúncia),
participar do debate oral, arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público ou por
ele próprio e contra-arrazoar os interpostos pela defesa (considerando-se as contrarazões como os referidos articulados), requerer o desaforamento (art. 427 do Código de
Processo Penal), além de pedir a prisão preventiva do acusado (art. 311 do Código de
Processo Penal). Em relação à possibilidade do assistente da acusação requerer a
decretação da prisão preventiva, entendemos só ser possível por conveniência da
instrução criminal ou quando for cabível a substituição de medida cautelar
anteriormente decretada, especialmente aquelas indicadas no art. 319, IV e VIII.
Continuando, enquanto a causa de pedir
no Processo Civil consubstancia-se, conforme dessume-se do art. 282, III
do Código de Processo Civil, no Processo Penal constitui-se na exposição
do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, sob pena, inclusive e
principalmente, de inépcia da petição inicial (arts. 41 e 395, I, Código de
Processo Penal). Daí porque não se admite no processo penal uma
denúncia genérica, no qual se descreva todos os atos executórios e a
responsabilidade por eles de cada um dos acusados. Neste sentido, é
copiosa a jurisprudência da Suprema Corte.
Já o pedido no Processo Penal é sempre
genérico (ao menos nas ações penais condenatórias), não havendo
espaço para aquelas possibilidades constantes do Código de Processo
Civil (arts. 288 e 289). Aqui o que se pede é a aplicação de uma pena ou,
excepcionalmente, de uma medida de segurança quando se trata de réu
inimputável, nos termos do art. 26 do Código Penal (quando, então, dizse que ele será absolvido impropriamente, nos termos do art. 386,
parágrafo único, III do Código de Processo Penal).
Daí porque inadmissível a chamada imputação
alternativa no Processo Penal. Na definição de Afrânio Silva Jardim:“Diz-se imputação
alternativa quando a peça acusatória vestibular atribui ao réu mais de uma conduta
penalmente relevante, asseverando que apenas uma delas efetivamente terá sido
25
praticada pelo imputado, embora todas se apresentem como prováveis, em face da
prova do inquérito. Desta forma, fica expresso, na denúncia ou queixa, que a pretensão
punitiva se lastreia nesta ou naquela ação narrada. Por outro lado, como veremos mais
adiante, a alternatividade também pode referir-se ao sujeito ativo da infração penal,
acarretando um litisconsórcio no pólo passivo da relação processual penal.”68
Para o autor carioca, a imputação alternativa,
portanto, poderá ser real (objetiva) quando por mais de um fato delituoso é acusado
alguém; ou pessoal (subjetiva) quando mais de uma pessoa é acusada, alternativamente.
É a chamada cumulação imprópria de pedidos.69 Entre nós poucos doutrinadores
enfrentaram esta questão. Frederico Marques, ainda que sem muita fundamentação,
admite-a, afirmando que não há nada que a impeça:“Pois que em face de uma situação
concreta, que se apresenta equívoca, pode o acusador atribuir um ou outro fato ao réu.
Não será motivo de escândalo – diz Pasquale Saraceno – a citação ‘de Tício como
acusado de furto ou de receptação’. Também Luigi Sansò admite la imputazione
alternativa, uma vez que se traduza em acusação explícita, dizendo, por isso, que é
perfeitamente ‘concebível a imputação alternativa do fato delituoso’. E isto quer se
trate de alternativa entre um aliud e um aliud, e de alternativa entre um majus e um
minus, visto que em ambos os casos há fatos diversos imputados ao réu.”70
Evidentemente, até porque não estamos
trabalhando com princípios e regras do Processo Civil, não admito qualquer imputação
alternativa, pois estou convencido que toda acusação, seja pública, seja de iniciativa
privada, deverá sempre ser determinada, especificando-se, inclusive, o mais possível,
em que consistiu a conduta delituosa e a participação de cada um dos autores do fato,
salvo absoluta impossibilidade. Se o “quadro probatório relativamente incerto
constante do inquérito policial”71 não permite uma imputação certa, que sejam
devolvidos os autos para novas e esclarecedoras diligências.
O que não posso admitir é que o réu tenha que se
defender não se sabe exatamente de que, ou que alguém tenha que enfrentar todos os
percalços de um processo criminal sem que tenha sido imputado a ele, de uma maneira
mais ou menos certa (a denúncia exige, no mínimo, indícios da autoria) um fato
delituoso. Ademais, nos moldes em que se dá a imputação alternativa, não poderá o
acusado defender-se satisfatoriamente, já que dois fatos lhe foram imputados não
cumulativamente. O réu precisa (e tem o direito) de saber qual a infração penal que se
lhe atribuem, a fim de que possa, com o seu advogado, exercer a defesa em sua
plenitude.
Em relação às condições para o exercício
da ação penal, e em apertada síntese, podemos afirmar que as condições
para o exercício da ação são os elementos e requisitos necessários para
que o julgador decida do mérito, uma vez que o objetivo é a aplicação do
Direito positivo no caso concreto. Abstraindo-se as várias questões atinentes às
condições da ação (inclusive e principalmente o fato que a possibilidade jurídica do
pedido e o interesse de agir estão muito mais para mérito do que condições para o
68
Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 10ª. Ed., 2001, 149.
A cumulação própria existe normalmente no Direito Processual Penal, seja nos casos de co-autoria, seja
na hipótese de concurso de crimes.
70
Elementos de Direito Processual Penal, Vol. II, Campinas: Bookseller, 1998, p. 153/154.
71
Afrânio, idem.
69
26
exercício da ação penal), o certo é que no Processo Penal o tratamento dado a este tema
é substancialmente diferente do Processo Civil. Aliás, no Processo Penal, ao lado das
condições genéricas, temos ainda as chamadas condições específicas de procedibilidade.
Assim, considero que a possibilidade jurídica do
pedido constitui-se na existência de um fato típico, isto é, uma conduta relevante
penalmente. Em muitos casos, por exemplo, afasta-se a própria tipicidade como no caso
do consentimento do ofendido (em alguns casos), a aplicação do princípio da
insignificância, etc., etc.
Fala-se em interesse de agir como uma relação
havida entre a situação antijurídica denunciada e a tutela jurisdicional solicitada. A
denúncia deve descrever um fato típico. Mas somente isso não basta, é preciso que o
autor formule pedido idôneo, apto a provocar a movimentação da máquina judiciária.
No Processo Civil fala-se em interesse-utilidade, interesse-necessidade e interesseadequação. Ora, evidentemente que no Processo Penal, tanto o interesse-necessidade
quanto o interesse-adequação estão ínsitos em qualquer ação penal condenatória, pois
somente com o exercício da ação penal (seja ela pública seja de iniciativa privada) é
possível a aplicação de uma pena (ou medida de segurança) a quem cometeu uma
infração penal (ressalvando, como já referido supra a hipótese da transação penal – art.
76, Lei nº. 9.099/95). Logo, a ação penal será sempre adequada e necessária para um
pedido de condenação. Apenas posso trabalhar com a ideia do interesse, do ponto de
vista da utilidade, sempre que, por exemplo, nada obstante se tratar de um fato típico
(portanto, pedido juridicamente possível), haja induvidosamente uma causa excludente
de criminalidade ou culpabilidade (com exceção, obviamente, da inimputabilidade por
doença mental), o que torna a conduta lícita ou não culpável, respectivamente,
excluindo-se o crime. Outrossim, pode ocorrer que se tenha em mãos um fato típico,
antijurídico e culpável que esbarre numa situação que impeça a propositura da ação
como, por exemplo, uma causa de extinção de punibilidade que levará à rejeição da
denúncia ou queixa.
Considero esta a única condição para o exercício
da ação penal. No Processo Penal, ao contrário do Processo Civil, a legitimidade
passiva será sempre do suposto autor de uma infração penal, pessoa física maior de 18
anos (pouco importando se imputável ou inimputável), em relação ao qual haja indícios
suficientes da autoria (justa causa). No polo ativo da relação processual, nas ações
penais condenatórias públicas apenas o Ministério Público (art. 129, I, da Constituição)
e, excepcionalmente, o particular (nas ações penais de iniciativa privada).
Além das chamadas condições genéricas da ação
penal, é possível falar-se no Processo Penal em condições específicas, pois exigidas em
determinados e específicos casos, tais como o requerimento do ofendido ou a requisição
do Ministro da Justiça (nas ações penais públicas condicionadas), além das hipóteses
dos arts. 7º., § 2º. e 236 do Código Penal e art. 525 do Código de Processo Penal.
Da mesma maneira, as novas leis
processuais civis aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes: é a
repetida regra tempus regit actum (art. 1.211 do Código de Processo
Civil). Será, porém, possível no Processo Penal aplicarmos esta mesma
disposição, à luz de uma suposta Teoria Geral do Processo? Vejamos...
Duas regras basilares regem o direito intertemporal das leis em matéria criminal. A
primeira segundo a qual a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu (art. 2°.,
27
parágrafo único do Código Penal e art. 5°., XL da Constituição Federal). Se é certo que
a regra é a da irretroatividade da lei penal, e isto ocorre por uma questão de segurança
jurídico-social, não há de se olvidar a exceção de que se a lei penal for de qualquer
modo mais benéfica para o seu destinatário, forçosamente deverá ser aplicada aos casos
pretéritos, retroagindo. Insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da
nossa Carta Magna e tem aplicação imediata (§ 1°. do mesmo art. 5°.), além do que,
como garantia e direito fundamentais, tem força vinculante, “no sólo a los poderes
públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño 72, tendo
também uma conotação imperativa, “porque dotada de caráter jurídico-positivo”.73 A
segunda regra é a da aplicação imediata da lei processual penal, preconizada no art. 2°.
do Código de Processo Penal e que proclama a sua aplicação imediata (tempus regit
actum). Todavia, no Direito Processual Penal, nada obstante este dispositivo (e isto não
se trata, evidentemente, de uma mera peculiaridade, mas, ao contrário, de uma
imposição ditada pelas regras orientadoras deste ramo autônomo da Ciência Jurídica) é
preciso que se distinga a natureza jurídica da respectiva norma processual. Pode se tratar
de uma norma de natureza processual penal material, mista ou híbrida (penal e
processual) ou de uma norma de caráter puramente processual, formal, instrumental,
técnica. No primeiro caso, a retroatividade (ou ultratividade) impõe-se, pois,
indiscutivelmente, sendo disposições mais benéficas devem excepcionar a regra da
aplicação imediata da lei processual penal. No segundo, aplica-se o tempus regit
actum.
Esta matéria relativa a normas híbridas ou mistas,
apesar de combatida por alguns, mostra-se, a nosso ver, de fácil compreensão. Com
efeito, o jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de
Carvalho, após afirmar que: “Está em crescendo uma corrente que acolhe uma
criteriosa perspectiva material - que distingue, dentro do direito processual penal, as
normas processuais penais materiais das normas processuais formais, dentro de uma
visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis
processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei
desfavorável e o da retroactividade da lei favorável. (...) Tais normas, embora
processuais, são também plenamente materiais ou substantivas. (...) Klaus Tiedemann
destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas
processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas
processuais substancialmente materiais.”74
A propósito, veja-se a lição de Carlos
Maximiliano:“Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras
atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela:
direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra
hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância
imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de
diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os
caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do
Direito Transitório Material.”75
72
Los Derechos Fundamentales, Madrid: Editora Tecnos, 1993, p. 67.
Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 7ª. ed., 2001, p. 62.
74
Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra Editora, págs. 219/220.
75
Direito Intertemporal, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314.
73
28
Comentando a respeito das normas de caráter
misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci:“Daí porque deverão ser aplicadas,
a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação
prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais
mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados,
a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, - estas excepcionais
por natureza.”76
Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti
Castanho de Carvalho:“Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma
forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se
pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com
conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito
intertemporal penal e não processual.”77
Atente-se, ademais, “que a natureza processual de
uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu
conteúdo próprio”. 78 Aliás, não é apenas o fato de uma norma está contida em um
diploma de Processo Penal que a sua natureza será estritamente processual (e dever ser
aplicada a regra do tempus regit actum). Como afirmava Vicenzo Manzini79:“Estar
uma norma comprendida en el Código de procedimiento penal o en el Código penal no
basta para calificarla, respectivamente, como norma de derecho procesal o de derecho
material.”80
Ressalva-se, apenas, a coisa julgada como limite
lógico e natural de tudo quanto foi dito, pois é preciso que haja processo em curso ou na
iminência de ser iniciado. Se já houve o trânsito em julgado, não pode se cogitar de
retroatividade para o seu desfazimento, pois neste caso já há um processo findo, além do
que, contendo a norma caráter também processual, só poderia atingir processo não
encerrado, ao contrário do que ocorreria se se tratasse de lei puramente penal (lex nova
que, por exemplo, diminuísse a pena ou deixasse de considerar determinado fato como
criminoso), hipóteses em que seria atingido, inclusive, o trânsito em julgado, por força
do art. 2º., parágrafo único do Código Penal. 81
Muito a propósito, o ensinamento de Paulo de
Souza Queiroz e Antônio Vieira: “É corrente dizer-se que a lei processual,
diferentemente da lei penal, tem aplicação imediata, podendo retroagir mesmo em
prejuízo do réu. Pensamos, no entanto, que a irretroatividade da lei penal deve também
compreender, pelas mesmas razões, a lei processual penal, a despeito do que dispõe o
art. 2º do Código de Processo Penal, que determina, como regra geral, a aplicação
imediata da norma, uma vez que deve ser (re) interpretado à luz da Constituição
Federal. Portanto, sempre que a nova lei processual for prejudicial ao réu, porque
76
Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo: José Bushatsky, Editor, 1975,
124.
77
O Processo Penal em Face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.
78
Eduardo J. Couture, Interpretação das Leis Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 4ª, ed., 2001, p. 36
(tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano).
79
Que, nada obstante, advogado de Benito Mussolini e um camicia nera assumido, tinha o seu valor do
ponto de vista acadêmico, razão pela qual o cito.
80
Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951,
p. 108 (tradução do italiano para o espanhol de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín).
81
Neste sentido, a lição de Ada e outros, ob. cit., p. 49.
29
suprime ou relativiza garantias — v.g., adota critérios menos rígidos para a decretação
de prisões cautelares ou amplia os seus respectivos prazos de duração, veda a
liberdade provisória mediante fiança, restringe a participação do advogado ou a
utilização de algum recurso, etc. —, limitar-se-á a reger os processos relativos às
infrações penais consumadas após a sua entrada em vigor; afinal, também aqui — é
dizer, não apenas na incriminação de condutas, mas também na forma e na
organização do processo — a lei deve cumprir sua função de garantia, de sorte que,
por norma processual menos benéfica, se há de entender toda disposição normativa que
importe em diminuição de garantias, e, por mais benéfica, a que implique o contrário:
aumento de garantias processuais.Cumpre notar, por último, que nem sempre é fácil
distinguir norma penal de norma processual penal, não sendo infrequentes confusões
no particular, a exemplo do que sucedeu com o STJ que, contraditoriamente, já
considerou ser a vedação da liberdade provisória da Lei de Crimes Hediondos norma
processual (pelo que teria aplicação imediata)(10), e norma penal (entendendo não
poder incidir em processos por crime perpetrado antes da Lei nº 8.072/90).Por tudo
isso é que não se pode prescindir da irretroatividade da lei processual mais gravosa
sempre que haja alteração político-criminal do processo em desfavor do acusado. No
particular, é de todo irrelevante, portanto, a mui recorrente distinção entre lei penal e
lei processual penal, uma vez que ambas cumprem a mesma função político-criminal,
de garantia do mais débil (o acusado) frente ao mais forte (o Estado), além do que o
Direito é uno, não podendo, por isso, ser garantista num momento (penal) e
antigarantista noutro (processual). Dito de outro modo: no que toca ao tema da
retroatividade da lei, o que importa, numa perspectiva garantista, não é a natureza
jurídica da norma — se penal, se processual penal —, mas o grau de garantismo que
encerra. Afinal, tanto a infração penal quanto o modo de comprovação de sua
existência e aplicação da pena têm de vir previstos antes do fato que motivou a
intervenção jurídico-penal, a fim de que o cidadão saiba claramente o que deve e o que
não deve fazer, como também o que será sancionado, quais são as limitações do juiz e
quais são suas garantais no processo penal. Ou seja: as "regras do jogo" hão de ser
conhecidas antes mesmo de seu início, as quais não poderão, por isso, ser modificadas
depois de iniciado, salvo, obviamente, para favorecer o réu.Contrariamente, sempre
que a lei processual dispuser de modo mais favorável ao réu — v.g., passa a admitir a
fiança, reduz o prazo de duração de prisão provisória, amplia a participação do
advogado, aumenta os prazos de defesa, prevê novos recursos, etc. — terá aplicação
efetivamente retroativa. E aqui se diz retroativa advertindo-se que, nestes casos, não
deverá haver tão-somente a sua aplicação imediata, respeitando-se os atos validamente
praticados, mas até mesmo a renovação de determinados atos processuais, a depender
da fase em que o processo se achar. (...). Tratando-se de normas meramente
procedimentais que não impliquem aumento ou diminuição de garantias, como sói
ocorrer com regras que alteram tão-só o processamento dos recursos, a forma de
expedição ou cumprimento de cartas rogatórias, etc. —, terão aplicação imediata
(CPP, art. 2°), incidindo a regra geral, porquanto deverão alcançar o processo no
estado em que se encontra e respeitar os atos validamente praticados.Finalmente,
cuidando-se de normas de conteúdo misto — em parte favorável ao réu e em parte não
— vale a mesma disciplina destinada à irretroatividade da lei penal, sendo também
admitida a combinação entre as normas, desde que não sejam incompatíveis, de modo a
assegurar a irretroatividade de normas mais severas e permitir a retroatividade das
mais favoráveis. Assim, diante de norma processual que limitasse a decretação da
prisão temporária aos réus acusados de integrar organização criminosa e, de outro
lado, ampliasse seu prazo de duração, cumpriria aplicar imediatamente a primeira
30
parte (pondo em liberdade todos os presos temporários não relacionados com o crime
organizado) e irretroativamente a segunda (é dizer, havendo ultra-atividade da lei
anterior).82
Vê-se, mais uma vez, que não há espaço para uma
Teoria Geral do Processo...
E a garantia ao duplo garu de jurisdição?
É evidente que a garantia ao duplo grau de jurisdição é decorrente do postulado Devido
Processo Legal, garantindo, seja no Processo Civil, seja no Processo Penal, a
possibilidade de revisão dos julgados. A falibilidade humana e o natural inconformismo
de quem perde estão a exigir o reexame de uma matéria decidida em primeira instância,
a ser feito por juízes coletivos e magistrados mais experientes.
A Constituição Federal prevê o duplo grau de
jurisdição, não somente no art. 5º., LV, como também no seu art. 93, III (“acesso aos
tribunais de segundo grau”). Em França, segundo Étienne Vergès: “L´article
préliminaire du Code de procédure pénale dispose in fine que ´toute personne
condamnée a le droit de faire examiner sa condamnation par une autre juridiction`.”83
Há mais de vinte anos, o jurista baiano Calmon de
Passos mostrava a sua preocupação com:“A tendência, bem visível entre nós, em virtude
da grave crise que atinge o Judiciário, de se restringir a admissibilidade de recursos,
de modo assistemático e simplório, em detrimento do que entendemos como garantia do
devido processo legal, incluída entre as que são asseguradas pela nossa Constituição.
(...) O estudo do duplo grau como garantia constitucional desmereceu, da parte dos
estudiosos, em nosso meio, considerações maiores. Ou ele é simplesmente negado como
tal ou, embora considerado como ínsito ao sistema, fica sem fundamentação mais
acurada, em que pese ao alto saber dos que o afirmam, certamente por força da larga
admissibilidade dos recursos em nosso sistema processual, tradicionalmente, sem
esquecer sua multiplicidade.”84
Não esqueçamos que:“A adoção do duplo grau de
jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser,
num primeiro instante, uma opção política do legislador.”85
O duplo grau de jurisdição tem caráter de norma
materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê em
seu art. 8º., 2, h, que todo acusado de delito tem “direito de recorrer da sentença para
juiz ou tribunal superior”, e tendo-se em vista o estatuído no § 2º., do art. 5º., da CF/88,
segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Ratificamos,
também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque que no
82
Retroatividade da Lei Processual Penal e Garantismo, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais – IBCCRIM, São Paulo, v.12, n.143, p. 14-17, outubro/2004.
83
Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 49.
84
Estudos Jurídicos em Homenagem à Faculdade de Direito da Bahia, São Paulo: Saraiva, 1981, p. 88.
85
Moraes, Maurício Zanoide de, Interesse e Legitimação para Recorrer no Processo Penal Brasileiro, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 29.
31
seu art. 14, 5, estatui que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito
de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em
conformidade com a lei.”
É bem verdade que a doutrina se debate a respeito
da posição hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional. Parte
dela entende que caso a norma internacional trate de garantia individual, terá ela status
constitucional, até por força do referido § 2º.
Fábio Comparato, por exemplo, afirma:“A
tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas
internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a
consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (...)
Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos
entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de
prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da
dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema
jurídico”86: é o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável.87
Ada, Dinamarco e Araújo Cintra, após admitirem a
indiscutível natureza política do princípio do duplo grau de jurisdição (“nenhum ato
estatal pode ficar imune aos necessários controles”) e que ele “não é garantido
constitucionalmente de modo expresso, entre nós, desde a República”, lembram, no
entanto, que a atual Constituição:“Incumbe-se de atribuir a competência recursal a
vários órgãos da jurisdição (art. 102, II; art. 105, II; art. 108, II), prevendo
expressamente, sob a denominação de tribunais, órgãos judiciários de segundo grau
(v.g., art. 93, III).”88
Com a Emenda Constitucional nº. 45, temos uma
nova disposição constitucional, contida no art. 5º., § 3º., da Constituição Federal,
segundo a qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.”
Aliás, segundo Luiz Flávio Gomes, em razão:“Do
pensamento do Estado Moderno, da Revolução Francesa, do código napoleônico, onde
reside a origem da confusão entre lei e Direito; os direitos e a vida dos direitos
valeriam (exclusivamente) pelo que está escrito na lei; quando o correto é reconhecer
que a lei é só o ponto de partida de toda interpretação (que deve sempre ser conforme a
Constituição). A lei pode até ser, também, o ponto de chegada, mas sempre que conflita
com a Carta Magna, perde sua relevância e primazia, porque, nesse caso, devem ter
incidência (prioritária) as normas e os princípios constitucionais. A lei, como se
percebe, foi destronada. Mesmo porque, ao contrário do que pensava Rousseau, o
legislador não é Deus e nem sempre representa a vontade geral, ao contrário, com
86
Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua
Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91.
87
“Este princípio, perseguido pelo direito internacional geral, e vigorosamente defendido por setores da
doutrina brasileira, parece não haver ganho, até o presente, expressiva concreção na jurisprudência
brasileira, devendo ser lembrada a questão do depositário infiel.” (Saulo José Casali Bahia, Tratados
Internacionais no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 116).
88
Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros Editores, 1999, 15ª. ed., p. 74.
32
freqüência atua em favor de interesses particulares (ou mesmo escusos). Lei vigente,
como se vê, não é lei válida. Sua validez decorre da coerência com o texto
constitucional.”89
Vejamos, outrossim, estas observações de Dante
Bruno D’Aquino:“Como sua própria designação denota, a interpretação conforme a
Constituição pressupõe um trabalho de exegese da norma infraconstitucional.
Fundamenta-se, em primeiro plano, na superioridade hierárquica das normas
constitucionais. Ou seja, no princípio pelo qual todas as normas devem se
compatibilizar com a Constituição, encontrando nela, como já ressaltado por Kelsen, o
seu fundamento de validade. Ao lado do primado da superioridade hierárquica das
normas constitucionais está a presunção de legalidade da atividade legiferante do
poder público. Esta presunção de legalidade, que, ressalte-se, admite prova em
contrário, é o outro alicerce de alçada da interpretação conforme a Constituição.
Noutro dizer, a superioridade hierárquica da Constituição Federal e a presunção de
legalidade das leis demandam que, no exercício da atividade interpretativa, dê-se
preferência ao sentido normativo que esteja consentâneo com a Carta Constitucional.
(...) Importante constatar que a interpretação conforme a constituição, para além de
uma categoria interpretativa distinta das modalidades clássicas, constitui um eficaz
mecanismo de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Ao identificar
a interpretação mais harmônica com a Constituição, afasta da norma a possibilidade
de interpretações que surtam efeitos inconstitucionais.”90
E no Direito Processual Penal esta garantia
constitucional guarda as mesmas características, as mesmas regras do Processo Civil.
Obviamente que não. Aqui também nada que se falar em uma Teoria Geral.
Em primeiro lugar é preciso atentar que no Direito
Processual Penal, em razão de seus próprios princípios, esta garantia constitucional
transcende o mero interesse do réu, pois:“En interés del hallazgo de la verdad y de una
defensa efectiva, puede, sin duda, actuar también en contra de la voluntad del
inculpado, por ejemplo, interponer una solicitud para que se examine su estado
mental”.91
Segundo Étienne Vergès:“Le défenseur (le plus
souvent un avocat), occupe une place primordiale dans l´exercice des droits de la
défense, Ainsi, l´article 6§3-c Conv. EDH permet à l´accusé (au sens large) de se
defender lui-même ou d´avoir l´assistance d´un défenseur de son choix.”92
Também no Processo Penal, diferentemente do
Processo Civil, admite-se a interposição de recurso mesmo contra a vontade do réu,
pois:“Deve, como regra geral, prevalecer a vontade de recorrer, só se admitindo
solução diversa quando, por ausência do interesse-utilidade, não seja possível
89
“Ser diplomado (já) não significa ter emprego ou sucesso profissional” –
www.ultimainstancia.ig.com.br – 21 de junho de 2005.
90
“Interpretação conforme a Constituição” - [email protected] (19/06/2005).
91
Klaus Tiedemann, Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Barcelona: Ariel, 1989,
p. 185.
92
Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 42.
33
vislumbrar, em face de circunstâncias do caso, vantagem prática para o acusado. (...) A
regra da disponibilidade dos recursos sofre exceções no processo penal, em que a
relação jurídica de direito material controvertida é de natureza indisponível, havendo
limitações à disponibilidade dos recursos quando estejam em jogo os direitos de acusar
e de defender. (...) Havendo conflito de vontades entre o réu e o advogado, a opinião
mais coerente com as garantias da defesa é a de que deve prevalecer a vontade do
defensor, que recorreu, não só em razão de seus conhecimentos técnicos, mas
sobretudo para melhor garantia do direito de defesa.”93
Óbvio, pois:“para que haya un proceso penal
propio de un Estado de Derecho es irrenunciable que el inculpado pueda tomar
posición frente a los reproches formulados en su contra, y que se considere en la
obtención de la sentencia los puntos de vista sometidos a discusión”.94
Ademais, diferentemente do Processo Civil, no
Processo Penal o Ministério Público não pode desistir de recurso que haja interposto,
conforme norma contida no art. 576 do Código de Processo Penal. Aliás, tal proibição,
absolutamente estranha aos postulados do Direito Processual Civil, decorre exatamente
da regra da indisponibilidade da ação penal pública, regra já referida e constante do art.
42 do Código de Processo Penal. Por outro lado, se o querelante desistir da ação penal,
configurar-se-á um caso típico de perempção, ensejando a extinção da punibilidade
(arts. 60, Código de Processo Penal e 107, IV, Código Penal). A propósito, confira-se os
Enunciados 705 e 708 do Supremo Tribunal Federal.
De se ressaltar que a coisa julgada no Processo
Penal, tratando-se de uma sentença condenatória ou absolutória imprópria (aquela na
qual se aplica uma medida de segurança ao réu inimputável) 95, é sempre relativizada,
em razão da figura da Revisão Criminal, cuja similitude com a Ação Rescisória Cível só
tem a sua natureza jurídica (ações de natureza constitutiva). E só! Legitimidade, prazos,
procedimento, condições da ação, etc., tudo é diferente.
A legitimidade para agir é muito, mas muito mais
ampla que no Processo Civil, além do que o próprio condenado tem, além da
legitimidade, óbvio, capacidade postulatória para o exercício da referida ação (art. 623,
Código de Processo Penal). O interesse de agir é a coisa julgada e a possibilidade
jurídica do pedido é uma sentença condenatória ou absolutória imprópria.
Podemos ainda identificar a possibilidade jurídica
da causa de pedir, que são as três hipóteses legais de cabimento da ação revisional (art.
621, I, II e III), sendo possível a dilação probatória. É também cabível em relação às
decisões proferidas no Tribunal do Júri, tanto o juízo revidente/rescindente quanto o
93
Ada Pellegrini Grinover e outros, Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 3a. ed., 2001, págs. 42 e 130. Nesta matéria trava-se séria divergência jurisprudencial (veja-se
na obra citada a página 79). Conferir também excelentes trabalhos de Sergio Demoro Hamilton,
publicado na Revista Consulex, nº. 18, junho/1998, Afrânio Silva Jardim, Revista do Ministério Público
do Estado do Rio de Janeiro, nº. 07, 1998 e de Ana Sofia Schmidt de Oliveira, Boletim do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, nº. 48, junho/1996.
94
Klaus Tiedemann, Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Barcelona: Ariel, 1989,
p. 184.
95
Neste sentido, conferir o art. 8.4 do Pacto de São José da Costa Rica: “O acusado absolvido por
sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.” A chamada
Revisão “pro societate” é encontrada em países como a Alemanha, Portugal, Noruega e Suíça.
34
juízo rescisório/revisório (neste sentido, ver Habeas Corpus nº 19.419 - DF – Superior
Tribunal de Justiça - RT 811/557).
Não é necessário o recolhimento à prisão
(Enunciado 393 da súmula do Supremo Tribunal Federal).
O respectivo procedimento está previsto no Código
de Processo Penal e a competência na Constituição Federal e nas Constituições
estaduais, sendo perfeitamente possível o julgamento extra ou ultra petita, desde que
seja para, evidentemente, favorecer o autor, pois não se admite a reformatio in pejus,
inclusive a indireta.
Permite-se, ademais, a reiteração da ação (com os
mesmos elementos), desde que haja novas provas (ainda que haja identidade de ações),
nos termos do art. 622.
Também é possível na Revisão Criminal um
pedido de natureza cível, sendo, neste caso, indispensável a citação da Fazenda Pública,
pois arcará com eventual pagamento (art. 630).
Como se sabe a Lei nº. 11.719/2008 alterou alguns
dispositivos do Código de Processo Penal relativos à suspensão do processo, emendatio
libelli, mutatio libelli e aos procedimentos. A grande novidade foi a possibilidade de na
própria sentença condenatória penal o juiz fixar “valor mínimo para reparação dos
danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido” (art.
387, IV).
Assim, além de aplicar a sanção penal, o Juiz
criminal deverá também estabelecer a sanção civil correspondente ao dano causado pelo
delito, algo semelhante ao que ocorre em alguns países, como no México onde, na lição
de Bustamante, se:“Establece que la reparación del daño forma parte integrante de la
pena y que debe reclamarse de oficio por el órgano encargado de promover la acción
(o sea, que es parte integrante de la acción penal), aun cuando no la demande el
ofendido.”96
Trata-se, evidentemente, de um julgamento extra
petita autorizado (e mesmo imposto) pela lei, pois a decisão refere-se a algo que não foi
pedido pelo autor na peça vestibular. Não cremos ser necessário ao acusador requerer
nada neste sentido ao Juiz (ele o fará de ofício). Os elementos da peça acusatória
continuam a ser aqueles do art. 41 do Código de Processo Penal. Neste sentido, por
unanimidade, os Ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram não fixar valor
mínimo para reparação dos danos causados pelas infrações cometidas pelos réus da
Ação Penal (AP) 470. O relator, Ministro Joaquim Barbosa, lembrou que não houve
pedido formal nesse sentido, tanto por parte das pessoas que sofreram o prejuízo quando
por parte do Ministério Público, que só o fez em alegações finais. Ao votar pela não
fixação desse valor, o Ministro afirmou que o caso da AP 470 tem algumas
singularidades: “A extrema complexidade dos fatos e a intensa imbricação dos crimes
tornam inviável a fixação de forma segura de um valor, ainda que mínimo, para
reparação dos danos causados pelos delitos praticados por cada um dos réus”.
96
Apud Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 20ª. ed., 1998, p. 9.
35
Inteiramente contrário ao Código de Processo
Civil, o Código de Processo Penal estabelece no art. 366 que se o acusado, citado por
edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso
do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas
consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva (art. 312):“Em respeito
à garantia do devido processo legal e seus corolários da ampla defesa e do
contraditório, na hipótese do imputado, procurado, não ser encontrado para a
constituição de defensor e apresentação da defesa prévia, resta ao magistrado, por
analogia, a aplicação do art. 366, do CPP, com a determinação de notificação
editalícia. Escoado o prazo, sem o comparecimento em juízo do averiguado ou
constituição por este de defensor, deve ser suspenso o feito, bem como o curso da
prescrição.” (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - HC 2009.059.00366 – rel.
Desembargador Gilmar Augusto Teixeira).
A propósito deste dispositivo, e após
entendimentos jurisprudenciais e doutrinários diversos, tentando resolver a questão, o
Superior Tribunal de Justiça, equivocadamente, editou o Enunciado 455.
A intimação das partes: eis outra matéria cujo
tratamento é inteiramente diverso do Processo Civil. Com efeito, dispõe o Enunciado nº.
710 da súmula do Supremo Tribunal Federal que “no processo penal, contam-se os
prazos da data da intimação, e não da juntada aos autos do mandado ou da carta
precatória ou de ordem.”
Quanto ao Júri, merece atenção neste
trabalho, pois é o procedimento a ser observado no Processo Penal em
relação ao crimes dolosos contra a vida (e os que lhe forem conexos),
absolutamente inaceitável no Processo Penal.
Com efeito, em tal procedimento, é possível a
recusa de até três juízes (jurados) com uma simples palavra: “recuso”! O motivo? O
mais ignóbil que seja: racismo, homofobia, gênero, classe social, instrução, etc. (art. 468
do Código). É possível tal coisa no Processo Civil? Seria uma simples peculiaridade?
E o sigilo das votações, o que dizer, à luz do
Princípio da Publicidade? E a motivação das decisões judiciais, também à luz do
Princípio do Livre Convencimento Motivado? E possibilidade expressamente prevista
pelo Código de uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III,
D)? Como explicar tais “peculiaridades” sob a ótica de uma Teoria Geral?
Questões fundamentais a serem enfrentadas é a
existência no Processo Penal da lide e da pretensão. Neste aspecto, é conhecida lição de
Francesco Carnelutti:“Lide é conflito que deflagra em um contraste de vontades,
portanto, um modo de ser do conflito de interesses (...) e pretensão é a exigência da
prevalência de um interesse próprio sobre um interesse alheio.”97
Se tais conceitos, repetidos ao longo de
décadas, adequam-se ao Processo Civil, por outro lado, nada mais
impróprio que se falar em lide no processo penal e mesmo, ao menos do
97
Teoria Geral do Direito, São Paulo: LEJUS, 1999, págs. 108/109.
36
ponto de vista carneluttiano, em pretensão. Até admito a chamada pretensão
acusatória (não punitiva) no Processo Penal, desde o momento em que é oferecida uma
peça acusatória (denúncia ou queixa), mas nunca como uma “a exigência da
prevalência de um interesse próprio sobre um interesse alheio”, mesmo porque não há
falar-se em interesse próprio do acusador, seja o Ministério Público, seja o querelante,
muito menos em interesse prevalente. Qual interesse? A descoberta da verdade? Que
verdade? Descobrir a verdade é algo impossível! Sobre o tema, um dos primeiros
doutrinadores pátrios a se pronunciar com precisão sobre o tema foi Rogério Lauria
Tucci, adjetivando como “inaceitável” o conceito civilístico de pretensão para o
processo penal:“Apresentando-se ela (a pretensão) como elemento caracterizador da
ocorrência de lide – seja pela resistência oposta pelo sujeito passivo da relação
jurídica, cuja definição constitui a meta do processo extrapenal de conhecimento; seja
pela insatisfação do direito neste reconhecido, ou reconhecível, dada a omissão ou,
mesmo, atuação da parte vencida ou demandada -, é, igualmente, irrelevante no âmbito
do processo penal, para cuja existência se mostra suficiente a ocorrência (suposta que
seja) de infração, por membro da comunidade, a norma penal material. (...).”98
Daí porque Tucci, na obra citada, não admitir o
nomen juris de litispendência no Processo Penal, mas de “causa pendente”, “dada a
proclamada irrelevância do conceito de lide”.Veja-se, por exemplo, não ser:“Incomum
haver consenso entre as partes e o processo ser necessário por imposição da própria
lei (...) O desejo do réu de submeter-se à pena é irrelevante (...). Não se pode negar que
o processo é uma das formas mais comuns de composição do conflito de interesses.
Entretanto, urge admitir que a lide não lhe é essencial, podendo o processo ser
concebido sem uma efetiva oposição do réu à pretensão do autor”, como afirma
Afrânio Silva Jardim (que, sei, é um dos processualistas penais brasileiros adeptos da
Teoria Geral do Processo).99
Também Eugenio Florian critica a existência da
lide no Processo Penal. Para ele, não haveria conflito de interesses e sim um possível
embate entre as partes, mas não de interesses, já que estes não seriam suscetíveis de
disposição no processo. Vejamos o que ele escreveu, em tradução minha:“A realidade é
que no processo penal não há debate sobre dois interesses, pois o interesse é um só: a
determinação da verdade, em torno da qual pode surgir ou não a controvérsia. Em todo
caso, pode dar-se, se se quer contenda entre as partes; mas não de interesses, já que
estes (à exceção dos patrimoniais da vítima) não são susceptíveis de disposição no
processo penal. (...) Se houvesse lide, só poderia ser entre o Ministério Público e o
acusado. Mas, ainda assim, o conceito de lide repugna a estrutura e os fins do moderno
processo penal e suas tendências atuais.”100
Exatamente por isso, Jacinto Miranda Coutinho
afirma ser inaceitável no processo penal a lide para referir o conteúdo do processo
penal, que deve ser apresentado pela expressão caso penal.101 Outros preferem
“controvérsia penal” (como Florian) ou “caso penal”.
José Carlos Teixeira Giorgis, citando Giulio Paoli,
adverte que:“No processo penal o Ministério Público tem interesse na condenação do
98
Teoria do Direito Processual Penal, São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2002, p. 35.
Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 160/161.
100
Elementos de Derecho Procesal Penal, Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1933, págs. 24 e 25.
101
A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, Curitiba: Juruá, 1998, p. 152.
99
37
culpado, mas não do acusado, pois se este é inocente a instituição estatal tem interesse
em sua absolvição. Daí, quando o juiz absolve, não sacrifica em nada o interesse do
Ministério Público ou seja, do Estado-acusador, havendo então uma coincidência entre
os interesses do estado e do inocente. A sentença absolutória, pois, não compõe um
conflito, mas antes o exclui!”102
Giovanni Leone, no mesmo sentido:“Lide, no
processo penal, não deve significar conflito de atividade, conflito aparente de interesses
(...), ao contrário, no processo penal significa conflito permanente e indisponível de
interesses e por isso mais vital, enquanto transcende cada reflexo particular e
contingente.”103
A Teoria Geral do Processo não “é um excerto da
Teoria Geral do Direito”. O Direito Processual Penal é sim “uma disciplina filosófica,
especificamente epistemológica.” Tampouco “é o ramo da Epistemologia do Processo
dedicado às elaboração, organização e articulação dos conceitos jurídicos processuais
fundamentais (conceitos lógico jurídicos processuais)”, mesmo porque tais conceitos
são completamente diferentes quando se trata de Processo Penal e Processo Civil, razão
pela qual processo não é um “conceito jurídico fundamental primário da Teoria Geral
do Processo.” A Teoria Geral do Processo, muito menos, serve como “repertório
conceitual à compreensão” do Processo Penal, nem é “metalinguagem doutrinária” ou
“linguagem sobre a Ciência do Direito Processual”. Este papel sempre coube, na
verdade, à Teoria Geral do Direito.
Por outro lado, exatamente porque não se pode
confundir “as Teorias Individuais ou Particulares do Processo, que são construções
doutrinárias elaboradas para a compreensão de determinado Direito positivo ou de um
grupo de ordenamentos jurídicos, respectivamente” é que não se pode admitir a Teoria
Geral do Processo.
Ademais, o fato inconteste de ter havido
“transformações na metodologia jurídica, que caracterizam uma fase histórica já
denominada de neopositivismo ou neoprocessualismo”, não é razão plausível para
sustentar uma suposta reconstrução da Teoria Geral do Processo (que nunca foi
construída em verdade), muito menos pela necessidade (que não existe) de uma
“revisão de conceitos inadequados ou obsoletos e a incorporação de novos conceitos
jurídicos fundamentais processuais.” Não há nenhuma necessidade de ensinar, “no
curso de graduação em Direito, a Teoria Geral do Processo”, muito menos na pósgraduação, mesmo porque não se trata de uma “enciclopédia jurídica propedêutica.”104
(!) Parece-me uma pretensão um tanto quanto exagerada.
É preciso afirmar e reafirmar que o Processo Penal
funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio necessário e inafastável
de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do
Direito Penal (como o Processo Civil é um mero instrumento de efetivação do direito
102
A Lide como Categoria Comum do Processo, Porto Alegre: Letras Jurídicas Editora Ltda., 1991, p.
101.
103
Apud Borges, Clara Maria Roman, Jurisdição e Amizade, um resgate do pensamento de Etienne La
Boetie, in Crítica a Teoria Geral do Direito Processual Penal, Organização, Coutinho, Jacinto Nelson de
Miranda. Renovar. RJ. 2001, p. 81.
104
Obra citada, págs. 181 e 182.
38
material extra penal), mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos
humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado.
Certamente sem um processo penal efetivamente
garantidor, não podemos imaginar vivermos em uma verdadeira democracia 105. Um
texto processual penal deve trazer ínsita a certeza de que ao acusado, apesar do crime
supostamente praticado, deve ser garantida a fruição de seus direitos previstos
especialmente na Constituição do Estado Democrático de Direito. Como afirma Ada
Pelegrini Grinover: “o processo penal não pode ser entendido, apenas, como
instrumento de persecução do réu. O processo penal se faz também – e até
primacialmente – para a garantia do acusado. (...) Por isso é que no Estado de direito
o processo penal não pode deixar de representar tutela da liberdade pessoal; e no
tocante à persecução criminal deve constituir-se na antítese do despotismo,
abandonando todo e qualquer aviltamento da personalidade humana. O processo é
uma expressão de civilização e de cultura e consequentemente se submete aos limites
impostos pelo reconhecimento dos valores da dignidade do homem.”106
O Processo Penal é antes de tudo “um sistema de
garantias face ao uso do poder do Estado.” Para Alberto Binder, por meio do Processo
Penal: “procura-se evitar que o uso deste poder converta-se em um fato arbitrário. Seu
objetivo é, essencialmente, proteger a liberdade e a dignidade da pessoa”107
Norberto Bobbio afirmava que: “Os direitos do
homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento
histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem
democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.
Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam
cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais. (...) Os direitos
do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos
em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades
contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de
uma vez por todas.”108
Assim, a norma processual, ao lado de sua função
de aplicação do Direito Penal (que é indiscutível), tem a principal missão de tutelar
aqueles direitos previstos nas constituições e nos tratados internacionais. Exatamente
por isso, o processo penal de um País o identifica como uma democracia ou como um
Estado totalitário. Hélio Tornaghi com muitíssima propriedade já afirmava que: “a lei
de processo é o prolongamento e a efetivação do capítulo constitucional sobre os
direitos e as garantias individuais”, protegendo “os que são acusados da prática de
infrações penais, impondo normas que devem ser seguidas nos processos contra eles
105
Apesar de que, como ensina Norberto Bobbio, “(...) a Democracia perfeita até agora não foi realizada
em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto.” (Dicionário de Política, Brasília: Universidade de
Brasília, 10ª. ed., 1997, p. 329).
106
Liberdades Públicas e Processo Penal – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. ed., 1982, pp. 20
e 52.
107
Introdução ao Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 25, na tradução de
Fernando Zani.
108
Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 01 e 05.
39
instaurados e impedindo que eles sejam entregues ao arbítrio das autoridades
processantes.”109
Evidentemente que não podemos confundir o
Direito Processual Penal com um Código de Processo Penal (é óbvio!). O nosso, por
exemplo, surgiu em pleno Estado-Novo110 e traduzia a ideologia de então, mesmo
porque: “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales
del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio
de las cuales fueron promulgadas” (grifo nosso).111
À época tínhamos em cada Estado da Federação
um Código de Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do
sistema processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a
competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização
judiciária.
Como já referimos: “a questão é tentar quase o
impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema
Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência
legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado
pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo
penal regido pelo Sistema Inquisitório.”112
Como notara José Frederico Marques: “O golpe
dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições
jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse
acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação
da lei penal (...) Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos
autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto
moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal (...) Continuamos
presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do
sistema escrito (...) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na
crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados
Brasileiros. (...) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos
legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o
pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob
princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito
com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.”113
Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a
vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe
consigo, até por questões históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado
pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco
109
Compêndio de Processo Penal, Tomo I, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1967, p. 15.
Período que abrange parte do governo de Getúlio Vargas (1937 – 1945) que encomendou ao jurista
Francisco Campos uma nova Constituição, extra-parlamentar, revogando a então Constituição
legitimamente outorgada ao País por uma Assembléia Nacional Constituinte (1934).
111
Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes, Madri: Reus, 1927, p. 579
(tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz).
112
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro,
Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.
110
113
Marques, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998,
págs. 104 e108.
40
Campos, in verbis: “Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao
poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo
do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.”
Para finalizar, vejamos a conhecida Fábula da
Cinderela, de Francesco Carnelutti:
“Havia uma vez três irmãs que tinham em comum ,
pelo menos, um dos seus pais. Elas se chamavam a ciência do direito penal, a ciência
do processo penal e a ciência do processo civil. Ocorreu que a segunda, em
comparação com as outras duas irmãs (que eram mais belas e prósperas), havia tido
uma infância e uma adolescência desafortunadas, sofridas. Com a primeira das irmãs,
esta segunda dividiu durante muito tempo o mesmo quarto; e aquele teve para si tudo
de bom e do melhor ”. (Tradução minha).114
114
Cuestones sobre el Proceso Penal, tradução para o espanhol de Santiago Sentís Melendo, Buenos
Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, 1961, p. 15
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