Por trás das máscaras da crueldade É difícil encontrar alguém que ainda não tenha ouvido falar do Estado Islâmico (EI). Seja pelos inúmeros vídeos divulgados em redes sociais que mostram o grupo terrorista decapitando, queimando, afogando seus opositores ou por seu vasto poderio militar, que vem culminando no domínio de grandes faixas de terra no Iraque, na Síria e, mais recentemente, na Líbia. Há tempos não se notava tamanho temor por parte das potências ocidentais em relação aos guerrilheiros jihadistas. Apesar da grande difusão midiática dos atos do grupo, uma grande cortina de fumaça ainda paira sobre suas origens e seus objetivos, tornando cada vez mais difícil uma perspectiva concreta sobre sua estrutura, suas raízes ideológicas e seus aspectos religiosos. Os grandes veículos da mídia tradicional não se aprofundam no tema e preferem reproduzir estereótipos pouco fundamentados, sempre amparados por uma dose de sensacionalismo. Escrito pelo jornalista norte-americano Patrick Cockburn, A Origem do Estado Islâmico - O Fracasso da "Guerra ao Terror" e a Ascensão Jihadista, primeira e única obra em português sobre o tema, tem como objetivo esclarecer o embrião deste movimento e os motivos pelos quais o grupo obteve tamanho êxito militar em regiões do Iraque e da Síria. O título é o primogênito da recém fundada editora Autonomia Literária, mais uma a reforçar o ramo das editoras independentes que tentam oxigenar o mercado de livros no Brasil. "Tive certa facilidade em escrever o livro, por um lado, pois já estava produzindo um material sobre como, paralelamente, o Estado Islâmico estava ficando mais forte e o governo do Iraque ficando mais fraco.", disse Cockburn, em entrevista à Brasileiros. Primeiramente cabe entender as raízes do Estado Islâmico. O EI, ou ISIS (Islamic State of Iraq and Syria), como é conhecido internacionalmente, começou como uma espécie de 'filial' da AlQaeda no Iraque. Liderado por Abu Bakr al-Baghdadi, que se tornou o grande nome da organização depois de ver diversos antecessores serem mortos em ataques dos Estados Unidos, o grupo de princípios sunitas ganhou força a partir de 2011 e logo se viu com sustentação suficiente para ser independente da Al-Qaeda. De maneira sucinta, os sunitas e xiitas divergem essencialmente em um aspecto histórico da trajetória do Islã. Os xiitas acreditam que a legitimidade política dos califados está diretamente atrelada à autoridade dos descendentes do profeta Muhammad. Já os sunitas tem uma visão política e religiosa do islamismo mais moderada e conciliatória, com interpretações mais flexíveis dos textos sagrados, possibilitando que todos os muçulmanos, independente de sua ascendência, possam se tornar líderes religiosos. Cockburn ressalta de maneira detalhada como os Estados Unidos foram fundamentais para a revivência da Al-Qaeda, que vinha completamente esfacelada após a guerra de 2003 e as revoltas sunitas em 2006 e 2007 no Iraque. Desde o período em que ocupavam o Iraque até os dias atuais os norte-americanos consentiram com uma perseguição institucionalizada aos sunitas, que foram caçados e marginalizados, levando a uma insurreição desta que é a mais populosa corrente do Islã. "Eu não acredito que exista muito entendimento real, nem da população e nem das autoridades dos Estados Unidos quanto à ascensão do ISIS." O jornalista também diz que Obama foi muito criticado quando ordenou a retirada das tropas norte-americanas do Iraque, principalmente pelos adversários republicanos. A perseguição aos sunitas se acirrou quando Nouri al-Maliki, de ascendência xiita e apoiado pelos Estados Unidos, subiu ao poder em 2006 e intensificou as políticas sectárias para com os sunitas. A explosão da revolta dos sunitas contra Bashar al-Assad na Síria em 2011 afetou diretamente o Iraque, que começou a presenciar cada vez mais rebeliões da vertente islâmica marginalizada. O Estado Islâmico ganha força neste terreno fértil onde a vasta maioria dos sunitas do Iraque se via desamparada. O ápice do grupo veio em junho de 2014, quando 'tomou' a segunda maior cidade do país, Mosul, de maioria sunita. Na verdade, o EI já era muito presente na região há anos, mesmo quando era ainda uma vertente da Al-Qaeda, e estava enchendo seus cofres com propinas cobradas de comerciantes através de seus líderes. A cidade caiu definitivamente nas garras do grupo jihadista quando uma série de ataques, incluindo homens-bomba, destruíram diversas bases governamentais. “A queda de Mosul foi uma evidência forte de que minha teoria estava correta mas, curiosamente, as pessoas continuam subestimando o ISIS”, disse o autor. Um fato importante levantado por Cockburn no livro é a passividade das populações da cidade que são tomadas pelo Estado Islâmico. Em função das políticas discriminatórias e da perseguição religiosa que assolou o país entre 2006 e 2014, sob o comando de al-Maliki, os cidadãos sunitas preferiram ser governados, mesmo que de forma desumana e autoritária, pelos jihadistas do que pelo governo sectário. Outro país de importância fundamental para se entender o crescimento exponencial do Estado Islâmico é a Arábia Saudita. Os sauditas, que são de origem wahabista, uma vertente sunita ultrafundamentalista e conservadora do Islã, viram no fanatismo religioso dos jihadistas do EI uma forma de propagar sua ideologia. Mais do que isso, a Arábia Saudita enxerga no Estado Islâmico uma possibilidade de aniquilar os xiitas, considerados hereges pela família Saudi. O apoio dos sauditas aos grupos terroristas de origem sunita wahabista não é de hoje. Relatórios da CIA de 2002, antes mesmo do fatídico 11 de setembro, divulgados por Cockburn no livro, mostram que a própria inteligência norte-americana já sabia que a principal nação patrocinadora do terrorismo no Oriente Médio era a Arábia Saudita. Em 2009, um despacho da então secretária de Estado dos Estados Unidos, Hilary Clinton, queixava-se de que doadores sauditas eram os principais financiadores dos grupos terroristas. "Muitos norte-americanos atualmente já acreditam na tese de que é absurdo os Estados Unidos, após o 11 de setembro, terem ido atrás de Saddam Hussein, e não da Arábia Saudita e das monarquias do Golfo Pérsico", argumentou Cockburn. Os novos capítulos deste conflito sectário não são nada animadores. Apesar da vitória em janeiro deste ano dos curdos sírios em Kobane, cidade na fronteira da Turquia com a Síria, a maior imposta ao ISIS desde o começo dos conflitos, os jihadistas conquistaram em maio dois pontos estratégicos: as cidades Ramadi, no Iraque, e Palmira, na Síria. Contudo, para Cockburn o EI já está atingindo o limiar das suas conquistas: "Provavelmente o Isis já atingiu seu limite de dominação no Iraque pois todas as terras de maioria sunita já estão dominadas". A negligência norte-americana com os grupos jihadistas no Oriente Médio pode ser interpretada como má-fé, já que a Arábia Saudita é o principal aliado dos Estados Unidos no Oriente Médio. Como a central de inteligência mais inteligente do mundo não enxerga o que está exposto a todos? Por estas e outras perguntas suscitadas que a obra de Cockburn pode ser considerada uma das mais esclarecedoras sobre o assunto, que parece ser interminável.