Oftalmologia - Vol. 33: pp. 51- 56 Paramiloidose Ocular após Transplante Hepático Eliana Neto 1, Ana Ferreira 1, Leonor Almeida 2, Filomena Pinto2, M. Monteiro Grillo 3 1 – Interna do Internato Complementar de Oftalmologia 2 – Assistente Hospitalar Graduada de Oftalmologia do HSM 3 – Director do Serviço de Oftalmologia do HSM Clínica Universitária de Oftalmologia – Hospital de Santa Maria; Centro de Estudo das Ciências da Visão – Faculdade de Medicina de Lisboa [email protected] RESUMO Objectivo: A Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF) é uma patologia hereditária multissistémica caracterizada pela deposição extracelular de material amilóide. A proteína anómala é produzida predominantemente no fígado, pelo que o transplante hepático é considerado uma terapêutica eficaz como forma de bloquear a progressão da doença. São apresentados 2 casos clínicos de PAF tipo I após transplante hepático, em que manifestações oftalmológicas de novo e/ou a sua progressão, revelam a produção ocular da proteína amilóide. Material e Métodos: Caso 1: Mulher, 40 anos, diagnóstico há 8 anos e transplante hepático há 3 anos. Caso 2: Mulher, 55 anos, diagnóstico há 18 anos e transplante hepático há 11 anos. Realizou-se exame oftalmológico completo incluindo gonioscopia, retinografia, ecografia e ultrabiomicroscopia (UBM). Os achados clínicos foram comparados com os achados de observações anteriores. Resultados: Identificou-se a presença de material anómalo traduzido por queratoconjuntivite sicca, depósitos na face anterior do cristalino e bordo pupilar, irregularidade do bordo pupilar, anisocória, opacidades vítreas e anomalias dos vasos retinianos e conjuntivais. Em ambos os doentes foram identificadas manifestações de novo ou verificada a sua progressão, após transplante hepático. Conclusão: A produção ocular de proteína amilóide é autónoma da sua síntese a nível hepático e condiciona depósitos em vários tecidos oculares. A evolução das manifestações oftalmológicas de PAF é independente da evolução e duração do quadro sistémico e da realização de transplante hepático. A vigilância oftalmológica dos doentes com PAF torna-se fundamental a par da vigilância sistémica, mesmo após transplante hepático. ABSTRACT Introduction: Familial Amyloidotic Polyneuropathy (FAP) is an hereditary, multissistemic disorder, characterized by extracellular deposition of amyloid material. The abnormal protein is produced mainly in the liver, explaining why liver transplantation is considered an effective treatment used to block the disease progression. 2 cases of FAP type 1 are presented, both after liver transplantation. New and/or progressive ophthalmologic manifestations reveal ocular production of amyloid protein. Material and Methods: Case 1: woman, 40 years old, 8 years after diagnosis and 3 years after liver transplantation. VOL. 33, JANEIRO - MARÇO, 2009 51 Eliana Neto, Ana Ferreira, Leonor Almeida, Filomena Pinto, M. Monteiro Grillo Case 2: woman, 55 years, 18 years after diagnosis and 11 years after liver transplantation. A complete ophthalmologic evaluation was performed, including gonioscopy, retinography, ecography and ultrabiomicroscopy (UBM). Clinical findings were compared with previous observations. Results: The presence of abnormal material was revealed by keratoconjunctivitis sicca, deposits in the anterior lens surface and pupillary border, irregularities of pupillary border, anisocoria, vitreous opacities and retinal/conjunctival vessel abnormalities. In both patients new manifestations and/or their progression were identified, after liver transplantation. Conclusion: The ocular production of amyloid protein occurs independently of liver synthesis, conditioning deposits in several ocular tissues. The evolution of FAP´s ophthalmologic manifestations is independent of systemic disease and liver transplantation. Ophthalmologic follow-up of patients with FAP is mandatory as well as systemic follow-up, even after liver transplantation. Palavras Chave: Amilóide; PAF; Polineuropatia; Transplante Hepático. Key Words: Amyloid; FAP; Polyneuropathy; Liver Transplantation. Introdução O termo amiloidose refere-se a um vasto grupo de patologias definido pela presença de depósitos de proteína insolúvel (fibrilhas) nos tecidos. A sua classificação é feita consoante os sinais clínicos e o tipo bioquímico da proteína amilóide envolvida. As Polineuropatias Amiloidóticas Familiares (PAF) estão englobadas nas Amiloidoses Hereditárias. Dentro destas, a PAF tipo I, de Andrade ou tipo Português, é a forma mais frequente e severa. Apresenta transmissão autossómica dominante, sendo resultante de uma mutação (Val30Met) no gene da transtirretina (TTR), localizado no cromossoma 18 6. Clinicamente tem envolvimento multissistémico, cursando com alterações sensitivas, motoras e autonómicas, que afectam inicialmente o sistema nervoso periférico e evoluem de forma crónica e progressiva. A nível ocular estão descritas manifestações como anomalias dos vasos conjuntivais, queratoconjuntivite sicca, alterações pupilares, opacidades vítreas e glaucoma 7. A proteína anómala é produzida predominantemente no fígado, motivo pelo qual o transplante hepático é considerado a terapêutica de eleição 1. Brevemente, após a sua realização, está provado que os níveis serológicos da proteína 52 mutada descem para menos de 1% dos níveis pré-transplante 8. Dependendo da duração da doença sintomática antes do transplante, é verificada melhoria ou pelo menos estabilização da sintomatologia, sendo possível, em alguns casos, demonstrar objectivamente regressão das lesões. Sabe-se no entanto que a proteína amilóide também é produzida, se bem que em menor quantidade, nos plexos coroideus e tecidos oculares 3. No presente estudo os autores pretendem avaliar a produção ocular da proteína amilóide pela identificação de manifestações oftalmológicas de novo e/ou a sua progressão, após transplante hepático. Material e Métodos Foi feito o estudo de 2 doentes (4 olhos), com diagnóstico clínico e genético de PAF tipo I (mutação TTR Val30Met), já submetidos a transplante hepático. Caso 1: Doente do sexo feminino, de 40 anos, caucasiana, com diagnóstico clínico e genético de PAF I conhecido há 8 anos. Submetido a transplante hepático 5 anos após o diagnóstico. OFTALMOLOGIA Paramiloidose Ocular após Transplante Hepático Aquando do presente estudo, apresentava polineuropatia periférica com alteração da sensibilidade e grave atrofia muscular dos membros inferiores e em menor grau nos membros superiores, além de disfunção gastrointestinal e perda ponderal. O doente foi observado na consulta de Oftalmologia no ano anterior à realização de transplante hepático, tendo-se identificado como manifestações oftalmológicas da doença, queratoconjuntivite sicca e anisocória. Caso 2: Doente do sexo feminino, de 55 anos, caucasiana, com diagnóstico clínico e genético de PAF I conhecido há 18 anos. O transplante hepático foi realizado 7 anos após o diagnóstico. Aquando do presente estudo apresentava alteração da sensibilidade periférica e discreta atrofia muscular dos membros inferiores. O doente foi observado na consulta de Oftalmologia 6 anos após transplante, não apresentando alterações no exame oftalmológico. À data deste estudo (11 anos após transplante), o doente referia miodesópsias e diminuição da acuidade visual à esquerda, com um ano de evolução. Foi realizada avaliação oftalmológica completa dos doentes, incluindo gonioscopia. Efectuou-se retinografia, ecografia e ultrabiomicroscopia, para pesquisa de fibrilhas na córnea, câmara anterior, íris, ângulo, superfície anterior do cristalino, vítreo e retina. Os achados clínicos foram comparados com os achados das observações anteriores. conjuntiva, evidenciadas pelos corantes fluoresceína sódica e Rosa de Bengala, com maior gravidade à esquerda. O teste de Schirmer I, tendo sido subnormal, foi sugestivo de se tratar de queratoconjuntivite sicca. Identificaram-se depósitos de material fibrilhar na face anterior do cristalino (Fig. 1) e bordo pupilar, além de rectificação do bordo pupilar temporal superior em OE (Fig. 2). Não foram observadas fibrilhas na avaliação do ângulo por gonioscopia. A fundoscopia não revelou opacidades vítreas, sendo o aspecto do disco óptico, mácula e arcadas vasculares considerado normal em ambos os olhos. O estudo ecográfico realizado com sonda de 20 MHz revelou a manutenção da normal ecoestrutura do globo ocular, não se identifi- Fig. 1 – Deposição de material amilóide na face anterior do cristalino. Resultados Em ambos os doentes foram identificadas manifestações oftalmológicas de PAF. O doente do caso 1 apresentava anisocória, com reflexos pupilares mantidos mas lentificados à esquerda. A acuidade visual não corrigida era de 1.0 ODE e a tensão ocular era de 12 mm Hg bilateralmente, medida por tonometria de aplanação de Goldman. Na biomicroscopia observaram-se lesões epiteliais da córnea e VOL. 33, JANEIRO - MARÇO, 2009 Fig. 2 – Rectificação do bordo pupilar, temporal superior. 53 Eliana Neto, Ana Ferreira, Leonor Almeida, Filomena Pinto, M. Monteiro Grillo cando material ecogénico na cavidade vítrea. No estudo ultrabiomicroscópico da câmara anterior, efectuado com sonda de 50 MHz, não foram observados depósitos no ângulo irido-corneano. No caso 2, o exame oftalmológico revelou acuidade visual corrigida mantida em OD (1.0) mas reduzida em OE (0.7). A tensão ocular medida por tonometria de aplanação de Goldman foi de 16 mmHg no OD e de 18 mmHg no OE. Na biomicroscopia identificaram-se depósitos de material amilóide na face anterior do cristalino e no bordo pupilar, além da irregularidade do mesmo (Fig. 3). Pela gonioscopia não foi identificada a presença de fibrilhas no ângulo. o diagnóstico) relativamente ao segundo caso (17 anos após o diagnóstico). No caso 1, apesar do tempo de evolução do quadro sistémico (8 anos) ser inferior ao do caso 2 (18 anos), apresenta maior gravidade clínica. Fig. 4 – Fundo ocular à esquerda. Fig. 3 – Depósito de material amilóide e irregularidade do bordo pupilar. A observação do fundo ocular, apesar de dificultada pela presença de opacidades vítreas (mais evidentes à esquerda), revelou disco óptico e área macular de aspecto normal, bilateralmente (Fig. 4). As arcadas vasculares temporal superior e inferior apresentaram-se rectificadas. No estudo ecográfico realizado com sonda de 20 MHz foi possível identificar a presença de material fibrilhar hiperecogénico na cavidade vítrea, mais exuberante no olho esquerdo (Fig. 5). No estudo ultrabiomicroscópico da câmara anterior, efectuado com sonda de 50 MHz, observaram-se depósitos na superfície da íris, ao contrário do ângulo irido-corneano que se apresentou livre. As manifestações oftalmológicas ocorreram mais precocemente no primeiro caso (4 anos após 54 Fig. 5 – Opacidades vítreas evidenciadas no exame ecográfico do olho esquerdo. Discussão O transplante hepático, ao aumentar a sobrevida dos doentes com PAF, permite a identificação de manifestações oftalmológicas que surgem de novo, assim como a constatação da progressão de manifestações já observadas no período pré-transplante. OFTALMOLOGIA Paramiloidose Ocular após Transplante Hepático Existem na literatura várias referências ao estudo oftalmológico de doentes com PAF, na fase pós-transplante. São exemplo, casos descritos por Ando et al.1, em que novas manifestações oftalmológicas surgiram após transplante hepático, assim como depósitos de material amilóide nas leptomeninges e níveis aumentados de proteína mutada no líquido céfalo-raquidiano (LCR). Outros autores descreveram o caso de um doente submetido a vitrectomia por opacidades vítreas que surgiram após transplante hepático, condicionando deterioração progressiva da acuidade visual. Pela análise laboratorial, foi identificada no material vítreo a presença de fibrilhas amilóides 2. Foi ainda observado por Haraoka et al que os níveis de TTR (forma normal e mutada) no humor aquoso de doentes com PAF submetidos a transplante hepático, são equivalentes aos encontrados em doentes não transplantados 9. Adicionalmente, sabendo-se que a TTR não atravessa em quantidade significativa a barreira hemato-encefálica, uma fonte de produção local deverá existir de forma a justificar as manifestações oftalmológicas e o alto nível de proteína mutada no LCR 6. Vários estudos foram feitos para demonstrar a sua produção a nível dos tecidos oculares e dos plexos coroideus. Por hibridação in situ e polymerase chain reaction, foi identificada a expressão de mRNA da TTR não só no epitélio pigmentar da retina como também no epitélio pigmentar ciliar 4. No que se refere aos doentes em estudo, no caso 1 procedeu-se à comparação da avaliação oftalmológica do doente feita à data deste estudo e um ano pré-transplante. Os autores verificaram que as manifestações clínicas inicialmente identificadas apresentaram um carácter evolutivo, com agravamento da queratoconjuntivite sicca e manutenção da anisocória. Verificou-se ainda como manifestações oftalmológicas de novo (pós-transplante), a deposição de material fibrilhar na face anterior do cristalino e na bordo pupilar, com rectificação do bordo pupilar temporal superior do OE. No caso 2 as manifestações oftalmológicas identificadas pelos autores (deposição de material amilóide na face anterior do cristalino e VOL. 33, JANEIRO - MARÇO, 2009 bordo pupilar, irregularidade do bordo pupilar), não foram verificadas na sua última observação oftalmológica (6 anos após transplante). Constatou-se também que os sintomas de miodesópsias e diminuição da acuidade visual, ambos com um ano de evolução, se deviam à presença bilateral de opacidades vítreas, mais densas em OE. No presente estudo, ao serem identificadas manifestações oftalmológicas de novo (Tabela 1) e/ou verificada a sua progressão, foi corroborada a hipótese de que a síntese in situ da proteína mutada permanece activa, não sendo prevenida pelo transplante hepático. Tabela 1 – Manifestações oftalmológicas de novo e/ou com progressão após transplante hepático. Manifestações Oftamológicas «de novo» Caso 1 • Depósito amilóide na face anterior do cristalino e margem pupilar • Rectificação do bordo pupilar Caso 2 • Depósito amilóide na face anterior do cristalino e margem pupilar • Irregularidade do bordo pupilar • Opacidades vítreas Manifestações Oftamológicas com progressão após Transplante Hepático Caso 1 • Queratoconjuntivite sicca • Anisocória Desta forma, parece evidente que os doentes com PAF deverão permanecer sob vigilância oftalmológica, independentemente da evolução sistémica da doença e da realização de transplante hepático. No seu seguimento é de considerar que determinadas manifestações clínicas poderão ter um valor preditivo da evolução da doença ocular. É o caso da deposição de material amilóide no bordo pupilar, presente em ambos os casos apresentados, considerada por Kimura et al. um achado preditivo da evolução para glaucoma, num período aproximado de 2.55 +/- 1.43 anos10. 55 Eliana Neto, Ana Ferreira, Leonor Almeida, Filomena Pinto, M. Monteiro Grillo Conclusão A produção ocular da proteína amilóide é autónoma da sua síntese a nível hepático, mantendo-se após transplante hepático. Condiciona depósitos em vários tecidos oculares, sendo responsável por um vasto leque de manifestações tais como glaucoma, queratoconjuntivite sicca, deposição de material fibrilhar no bordo pupilar, face anterior do cristalino e vítreo. A evolução das manifestações oftalmológicas de PAF é independente da evolução e duração do quadro sistémico e realização de transplante hepático. A vigilância oftalmológica dos doentes com PAF torna-se fundamental a par da vigilância sistémica, mesmo após transplante hepático. 15. PLANTÉ-BORDENEUVE V.: The diagnosis and management of familial amyloid polyneuropathy. Rev Neurologie (Paris). 2006; 162 (11): p 1138-46 16. HOU X, AGUILAR MI, SMALL D.: Transthyretin and familial amyloidotic polyneuropathy. FEBS Journal, 2004 Apr, 274 (7): p1637-1650 17. ANDO E, ANDO Y, OKAMURA R, UCHINO M, ANDO M, NEGI A.: Ocular manifestations of familial amyloidotic polyneuropathy type 1: long-term follow up. Br J Ophthalmol. 1997 Apr 81 (4): p 295-8 18. ANDO E, ANDO Y, HARAOKA K.: Ocular Amyloid Involvement alter Liver Transplantation for Polyneuropathy. Annals of Internal Medicine 2001 Nov, 135 (10): p 931-2 19. 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