Somos 12 milhões de motivos não teóricos para a incorporação dos análogos de insulina no SUS A Constituição Federal Brasileira, em seus artigos 1º e 196, esclarece que nosso país é uma República Federativa, e que seu poder emana do povo, a quem a saúde deve ser garantida como um direito universal, enquanto dever do Estado Democrático de Direitos. O direito à saúde está intimamente ligado ao direito à vida, instituído pelo caput do artigo 5º constitucional como cláusula pétrea. Assim, o atendimento à saúde dos cidadãos deve ser propiciado de forma integral e igualitária, respeitando a capacidade financeira do Estado e os protocolos administrativos. Entretanto, há certas doenças que exigem do portador cuidados especiais, que não devem ser ignorados pelas instituições responsáveis, sob pena de violar o equilíbrio da distribuição da Justiça, pela qual os desiguais devem ser tratados desigualmente. Uma dessas doenças que exige rígidos cuidados e controle é o diabetes, em pauta nas consultas públicas nº 01/2014 e nº 04/2014. Tal cuidado, entretanto, não se vê presente nas constatações dos relatórios da CONITEC sobre a (não) incorporação dos análogos, posto que distantes das recomendações presentes das Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes de 2013/2014. No relatório sobre diabetes tipo 2, a CONITEC aponta que não há evidências científicas de melhoria do tratamento com os análogos de insulina de longa duração, e que a melhoria dos níveis glicêmicos dos diabéticos tipo 2 se relacionaria mais ao controle de peso e à aderência ao tratamento com insulina. Inicialmente, a ausência de diferença no tratamento a partir da análise da hemoglobina glicada não é universal. Nas Diretrizes da SBD (fls. 55/61) aponta-se que “podem existir diferenças significativas no resultado do tratamento quando se comparam os análogos com as insulinas NPH e regular naqueles pacientes com DM2 que seguem protocolos estritos de terapia e de ajustes de doses de insulina” 1. Assim, mesmo considerando como regra a ausência de benefícios dos análogos para diabéticos tipo 2, deveria existir uma previsão de fornecimento para estas pessoas que seguem protocolos estritos, ou seja, para as exceções à regra (porque não somos padrões, somos pessoas). Quanto ao controle de peso, considerando que, também conforme as Diretrizes da SBD (fls. 55/61), os análogos de insulina de ação prolongada (glargina e determir) estão associados a menor risco de ganho de peso2, afirmar que os análogos não trariam benefícios porque o problema é o excesso de peso é bastante contraditório. 1 Holleman F, Gale E. Nice insulins, pity about the evidence. Diabetologia. [10.1007/s00125-007-0763-4]. 2007; 50(9):1783-90 Oiknine R, Bernbaum M, Mooradian AD. A critical appraisal of the role of insulin analogues in the management of diabetes mellitus. Drugs. 2005; 65(15669878):325-40 Siebenhofer A, Plank J, Berghold A, Jeitler K, Horvath K, Narath M et al. Short acting insulin analogues versus regular human insulin in patients with diabetes mellitus. Cochrane database of systematic reviews(Online). [10.1002/14651858. CD003287.pub4]. 2006(16625575): CD003287. 2 McMahon GT, Dluhy RG. Intention to treat-initiating insulin and the 4-T study. The New England journal of medicine. [10.1056/NEJMe078196]. 2007;357(17890233):1759-61 Holleman F, Gale E. Nice insulins, pity about the evidence. Diabetologia. [10.1007/s00125-007-0763-4]. 2007; 50(9):1783-90 Pelo mesmo motivo, e tendo em vista que o uso de análogos exibe maior previsibilidade no controle glicêmico em função da ausência de picos de atuação (como afirmado no relatório da CONITEC) e reduz o risco de hipoglicemias em comparação com a insulina NPH, o que garante maior aderência dos pacientes tipo 2 ao tratamento, afirmar que a incorporação não lhes traria benefícios é também uma incoerência. No relatório sobre diabetes tipo 1, a CONITEC conclui que “ o controle metabólico intensivo seria o maior responsável pela redução de mortalidade e de complicações microvasculares, e não o tipo de insulina utilizada” . Mas antes de fazer esta afirmação esclarece que, nas pesquisas analisadas, não foram encontrados estudos com o desfecho morte, e que no Brasil o diabetes é subestimado como causa de morte por não constar nas certidões de óbito, já que a pessoa geralmente falece das complicações da doença. Se o desfecho morte não foi encontrado nas pesquisas, como seria possível concluir que o tipo de insulina não é responsável pela redução da mortalidade em diabéticos tipo 1? Também se repetem neste relatório as afirmações feitas em relação ao diabetes tipo 2, analisando apenas os estudos acerca da hemoglobina glicada (média do índice glicêmico de 3 meses): de que a diferença no tratamento residiria no paciente, e não nas insulinas utilizadas, e que, desta forma, não haveria como afirmar a superioridade dos análogos em relação às insulinas disponíveis no SUS (NPH e Regular). Quanto ao primeiro aspecto, de acordo com as Diretrizes da SBD 2013/2014 (fls. 107), a avaliação da hemoglobina glicada tem como foco a média das glicemias do paciente nos últimos 90 a 120 dias. Eventos mais recentes contribuem de forma mais significativa para o resultado final do exame (50% da média corresponde aos últimos 30 dias).3 Desta forma, e considerando que se um paciente é relapso ou metódico no cuidado com NPH e Regular também o será com os análogos, para avaliar a diferença da resposta terapêutica ao tipo de insulina utilizada seria necessário verificar os resultados da hemoglobina após 1 mês de modificação do tratamento, para a avaliação dos efeitos relacionados às características individuais do fator humano e do fator “tipo de insulina” sobre o controle glicêmico. Contradizendo o quanto afirmado no relatório de diabetes tipo 1 da CONITEC, as Diretrizes da SBD (fls. 78/86) nos informam que “Recente revisão baseada em evidências avaliou o uso da insulina asparte em pacientes diabéticos e demonstrou melhor controle glicêmico, sem aumento do risco de hipoglicemia e com maior flexibilidade na administração, quando em comparação com a insulina regular humana (A). Diversos outros estudos tem favorecido as insulinas de ação ultrarrápida em relação à insulina regular, mostrando nível de evidência 1, com grau de recomendação A” 4, ou seja, estudos com grande consistência científica. E as análises comparativas em relação à hemoglobina glicada, único índice verificado pelos relatórios da CONITEC, embora seja o mais importante de todos, constitui apenas uma maneira de se aferir o controle glicêmico. Sociedade Brasileira de Diabetes. Insulinoterapia intensiva e terapêutica com bombas de insulina. Atualização Brasileira sobre Diabetes. Rio de Janeiro: Diographic Editora; 2006. 3 Goldstein DE, Little RR, Lorenz RA, Malone JI, Nathan D, Peterson CM et al. Tests of glycemia in diabetes. Diabetes Care. 2004; 27(7):1761-73. 4 Haycox A. Insulin aspart: an evidence-based medicine review. Clin Drug Investig. 2004; 24(12):695-717 Plank J, Bodenlenz M, Sinner F, Magnes C, Gorzer E, Regttnig W et al. A double-blind, randomized, doseresponse study investigating the pharmacodynamic and pharmacokinetic properties of the longacting insulin analog detemir. Diabetes Care. 2005 May; 28(5):1107-12. Mais uma vez, em texto das Diretrizes da SBD sobre os métodos para avaliação do controle glicêmico (fls. 106/115), é possível verificar que embora a hemoglobina glicada seja um excelente indicativo, há fatores capazes de influenciar este parâmetro independentemente da glicemia, “falseando” os resultados obtidos5. Portanto, outros indicadores e fatores deveriam ter sido avaliados nestas pesquisas, além da hemoglobina glicada. A quantidade de hipoglicemias graves e hipoglicemias noturnas também foi analisada nos relatórios da CONITEC, mas, embora os resultados apontem que os análogos de insulina são eficientes para diminuir as hipoglicemias noturnas, que para muitos diabéticos representam a causa de crises convulsivas, este não foi um fator considerado importante para apoiar a incorporação dos análogos. Os custos da incorporação dos análogos de insulina, tanto para diabetes tipo 1 quanto para diabetes tipo 2, também não parecem ter sido adequadamente calculados. A CONITEC apresentou custos simples, apenas de compra dos medicamentos, substituindo a perspectiva de utilização atual de NPH e Regular pela utilização dos análogos de ação lenta e ultrarrápida nas mesmas doses, errando desde início os cálculos. Quando o diabético migra do esquema NPH + Regular para análogo lenta duração + ultrarrápida as doses são reduzidas. Portanto, os cálculos deveriam considerar doses menores para os análogos, e não as mesmas doses utilizadas com as insulinas, mostrandose os custos de compra superestimados. Também não foram considerados nos cálculos da CONITEC os custos indiretos do tratamento com as insulinas NPH e Regular, advindos dos efeitos do mau controle do diabetes, que são devastadores, e minam o funcionamento do corpo do doente em quase todos os órgãos. Há ainda os custos de atendimento hospitalar dos episódios pontuais de hipoglicemia e hiperglicemia, mais freqüentes no uso das insulinas NPH e Regular. A título de exemplo do que acontece nos dia atuais, só no Estado de São Paulo, 59 pacientes diabéticos são internados por dia, ou seja, a cada 24 minutos um diabético procura socorro hospitalar no SUS. Isto significa que o SUS terá gastos tanto para cuidar previamente do diabético, através do fornecimento de insulinas sem pico de atuação e que acarretam menores oscilações glicêmicas, ou, não fornecendo os análogos, através dos cuidados paliativos por complicações da doença. Assim, melhor "investir" (porque dinheiro aplicado em saúde é investimento, e não gasto) nos cuidados preventivos, garantindo qualidade de vida ao diabético (que vivendo melhor, trabalha melhor, consume melhor, ou seja, também contribui para o desenvolvimento econômico e social), do que gastar com hemodiálises, cirurgias de catarata, coração, e atendimentos ambulatoriais. A CONITEC também não considerou os números referentes à aquisição de medicamentos em função de ordens judiciais. Em 2010, o governo federal gastou R$ 134 milhões no pagamento de remédios. 5 Camargo JL, Gross JL. Glico-hemoglobina (HbA1c): Aspectos Clínicos e analíticos. Arq Bras Endocrinol Metab. 2004;48(4):451-63 Saudek CD, Brick JC. The clinical use of hemoglobin A1c. Journal of Diabetes Science and Tecnology. 2009; 3(4):629-34. Hammounda AM, Mady GE. Correction formula for carbamylated haemoglobin in diabetic uraemic patients. Ann Clin Biochem. 2001; 38(Pt 2):115-9. A incorporação dos análogos de insulina ao protocolo do SUS em diabetes eliminará boa parte das ações judiciais – e dos respectivos custos, cunhadas de “perversas” pelo Ministro da Saúde Artur Chioro no discurso de posse. O adjetivo foi atribuído pelo Ministro da Saúde sem uma contextualização do fenômeno da judicialização da saúde. Os processo de saúde representam a carência de muitas pessoas que não recebem o tratamento necessário à sua sobrevivência digna, porque não incluídos (ainda) nos protocolos do SUS. Lembremos que o passo inicial do tratamento de AIDS brasileiro, exemplo para o mundo, foi dado com inúmeras ações judiciais objetivando que o Estado garantisse o tratamento aos portadores de HIV. Portanto, perverso mesmo é saber que as hipoglicemias noturnas e as oscilações glicêmicas que tanto prejudicam o quotidiano do portador de diabetes não são relevantes para a inclusão dos análogos no rol de medicamentos fornecidos pelo SUS. Pior ainda são os possíveis efeitos judiciais da não incorporação dos análogos, já que estes relatórios certamente serão utilizados pelas Fazendas Estaduais e Municipais para contestar as ações com requerimentos de insumos de diabetes, justificados os pedidos ou não. Isso já aconteceu com a Nota Técnica nº 26/2012 da Advocacia Geral da União, largamente utilizada pelas Secretarias de Saúde para contestar o fornecimento judicial de análogos. O resultado disso será o fechamento concomitante de duas portas aos diabéticos, que não conseguirão os análogos de insulina nem pela via administrativa, ante a não incorporação ao protocolo do SUS, nem pela via judicial, já que os relatórios da CONITEC servirão de respaldo à contestação do fornecimento mesmo para casos em que se mostrem necessários na prática. A suposta eficiência do tratamento com o esquema NPH + Regular referida nos relatórios da CONITEC ignora as mortes por diabetes no Brasil, que demonstram claramente a ineficácia do programa de diabetes do SUS, o que inclui a insulinas fornecidas. Entre 2000 e 2010, o diabetes matou quase meio milhão de pessoas no Brasil. Assim, mesmo inexistindo evidências teóricas da superioridade dos análogos de longa duração no que tange à redução da mortalidade, pelo curto período de existência destes produtos no mercado (pouco mais de 10 anos), os números da NPH confirmam a ineficácia da insulina justamente por seu alto índice de mortalidade. Ainda, segundo dados de uma pesquisa efetivada na rede pública, divulgada no Congresso da Sociedade Brasileira de Diabetes realizado em outubro de ano de 2013, 60% dos diabéticos insulinodependentes estão descontrolados no Brasil, o que comprova a ausência de efetividade das insulinas fornecidas pelo Estado no controle glicêmico e ainda na prevenção de complicações da doença. Desta forma, a recomendação da CONITEC, insensível às hipoglicemias noturnas que levam muitos diabéticos à arriscada inconsciência frequente, cuja diminuição com o uso dos análogos não foi capaz de sustentar a aprovação no SUS, também não considerou os usuários dos medicamentos, nós diabéticos. Logicamente que a consulta pública serve justamente para este objetivo, para que os interessados possam manifestar suas opiniões e razões ao Ministério da Saúde, e, assim, fazer parte da tomada de decisões que afetam a saúde da população. Mas, considerando que antes mesmo das pesquisas técnicas da CONITEC no final de 2013, o Governo Federal já havia fechado contrato para investimento de 330 milhões de reais numa fábrica de insulina NPH em parceria com a Ucrânia em abril de 2013, estas consultas públicas parecem mera fantasia carnavalesca. A prioridade, como diz o texto da notícia do Ministério do Desenvolvimento, não parece ser a saúde dos diabéticos, mas a política industrial. Por outro lado, o Ministério da Saúde tem feito muitos esforços para aumentar a compreensão do diabetes pela comunidade. O programa autocuidado é prova disso. Também existe abertura ao diálogo, e sempre que alguma questão é posta via twitter, recebemos respostas. Tive inúmeras dúvidas solucionadas desta forma. Alexandre Padilha fez o teste de glicemia em apoio ao Dia Mundial do Diabetes, em 14 de novembro de 2013, após uma campanha pelo twitter. Sem contar a atenção dada em geral ao atendimento humanizado no SUS nos últimos 10 anos. Portanto, é necessário que cada um de nós diabéticos seja ouvido nesta consulta pública, em detrimento de pesquisas que ignoram os cidadãos com direito à saúde. Como bem explicou a questão o Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Rui Portanova, no julgamento da Apelação nº 70030340541: “(...) a referida medicação estar devidamente registrada e aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, cuja finalidade institucional é promover a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados. Num segundo momento, pode-se salientar quanto aos testemunhos apresentados pela parte requerida, o fato de que, em sua maioria, eles não possuem experiência direta com (...) pacientes que são objeto da presente discussão e, mais, que embasaram seus depoimentos em 'literatura médica' ao passo em que as outras pessoas ouvidas, de modo absolutamente diverso, referiram-se à prática, especialmente ao dia a dia destes pacientes. Neste sentido, levando-se em conta os fatos reais, ou seja, a prática vivenciada por profissionais que atuam nesta área, lidando diretamente com (...) portadores de Diabetes, em especial, a Melitus tipo 1, e não baseados apenas em teoria, conforme por vezes referido nos depoimentos, há ganhos com a eventual utilização desta droga, em detrimento da convencional (...). Assim, impende-se frisar que a indicação da Insulina ora pleiteada não se dá apenas por opção médica aleatória ao prescrever a medicação, mas por indícios e evidências que levam a concluir que, no caso em exame, este é o tratamento mais adequado, pois capaz de evitar hipoglicemias severas e, até mesmo, convulsões e, como é sabido, a ocorrência nestes casos, de alergia cutânea. E, dessa forma, evitando-se tais situações, notório é que não só a qualidade de vida das crianças e dos adolescentes será melhorada, como também diminuído o risco de seqüelas em face das possíveis oscilações no controle glicêmico, bastante freqüentes em diabetes desse tipo. Diante de tudo isso resulta evidente não se tratar o caso de opção pela Insulina Glargina por mero capricho, mas uma alternativa que, mesmo sendo mais onerosa no custo financeiro direto, representa, a médio e longo prazo, melhor qualidade de vida, menos riscos e, assim, de forma indireta, economia em escala maior para o ente Estado, como um todo. Pela prevenção, é de presumir que, via tratamento, se obterá uma menor possibilidade de complicações outras, ou seja, convulsões e, até mesmo, baixas hospitalares e, pior, eventuais sequelas neurológicas irreversíveis.” Contra os argumentos técnicos contestáveis, somos 12 milhões de motivos práticos para a incorporação dos análogos de insulina ao protocolo do SUS, e de outros medicamentos necessários ao completo atendimento dos portadores da doença. Mesmo que nem todas as pessoas com diabetes utilizem insulina, todas precisam de atendimento eficaz à saúde. E para muitas delas, as insulinas NPH e Regular e a metformina não estão cumprindo o papel de garantir a saúde, direito do cidadão e dever do Estado (artigo 196, da Constituição Federal). O direito à saúde, além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas, representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população diabética, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. Assim, os análogos de insulina devem ser incorporados ao SUS, tanto para diabetes tipo 1 quanto para diabetes tipo 2. Débora Aligieri OAB/SP 210.774