JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE Tatiana Vieira de Lima1 Claudio Ramos2 RESUMO O tema saúde é bastante abrangente abarcando a esfera social, econômica e jurídica, sendo, portanto, um assunto de grande destaque na sociedade atual, sabese que o direito a saúde, como também o direito social esteve sempre relegado a um segundo plano, visto até mesmo pela história brasileira. A judicialização da saúde é um fenômeno que tem preocupado magistrados e gestores públicos pelo impacto financeiro que causa. Entretanto sua real dimensão é desconhecida. O objeto do trabalho é caracterizar a judicialização do direito a saúde no estado de Rondônia, através de decisões judiciais O estudo foi a partir de registro dos processos judiciais da 1ª e 2ª Vara da Fazenda Pública do estado entre junho de 2015 e outubro de 2016. A coleta de dados foi nos processos inseridos no PJE. As principais variáveis analisadas foram: produtos solicitados, prescrição medica, prescrição alternativa (genéricos) medicamento padronizado pela ANVISA, representação jurídica. O trabalho traz um levantamento sobre o histórico da saúde pública no Brasil, traz o posicionamento do judiciário das 1ª e 2ª Varas da Fazenda Pública do município de Porto Velho. Por fim a análise de todos os dados analisados conclui-se que a busca judicial de tratamento no presente trabalho mostrou-se ineficaz uma vez que as demandas solicitadas foram na grande maioria indeferidas. Palavras-Chave: Judicialização da Saúde - Acesso à saúde pública. Histórico da Saúde. ABSTRACT The health issue is very comprehensive covering the social sphere, economic and legal, and therefore a large prominent issue in today's society, it is known that the right to health, as well as the social right has always been relegated to the background, as even by Brazilian history the legalization of health is a phenomenon that has preoccupied judges and public officials the financial impact it causes. But its real dimension is unknown. The work object is to characterize the legalization of the 1 Graduando em Direito na Faculdade Católica de Rondônia – FCR, Porto Velho-RO, [email protected] 2 Professor da Faculdade Católica de Rondônia-FCR, Porto Velho-RO, [email protected] Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas Porto Velho/RO 29 e 30 de novembro de 2016 P. 603 a 628 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas right to health in the state of Rondônia, through judicial decisions The study was from recording of court proceedings of the 1st and 2nd Court of the Treasury of the state between June 2015 and October 2016. data collection was in the process inserted in PJE. The main variables analyzed were requested products, prescription medication, prescription alternative (generic) medicine standardized by ANVISA legal representation. The paper presents a survey of the history of public health in Brazil, brings the position of the judiciary of the 1st and 2nd sticks Treasury of the city of Porto Velho. Finally the analysis of all the data analyzed it is concluded that the court seeking treatment in this study proved ineffective since the demands were requested in the great majority rejected Key-word: Legalization of Health - Access to health care public. Health History INTRODUÇÃO Saúde trata-se de um tema bastante amplo e não somente o âmbito de doenças e tratamentos. As políticas de saúde deveriam ser destaques nos governos. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) saúde pode ser definida como um estado completo de bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças. Apesar das políticas de saúde terem melhorado substancialmente, cresceu nos últimos anos a busca de medicamentos e tratamentos especializados através do âmbito judicial. A Constituição Federal Brasileira de 1988 em seu artigo 196 traz de forma expressa que é dever do Estado prover aos cidadãos o acesso à saúde. Art. 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988). 1 HISTÓRICO DA SAÚDE O Brasil institucionalizou o direito à saúde a todos os cidadãos brasileiros com a promulgação da Constituição Federal em 1988, quando criou o Sistema Único de Saúde, (SUS). As discussões prévias, consolidadas na VIII Conferência de Saúde e materializadas na Constituinte pela luta dos sanitaristas, gestores e políticos comprometidos com a reforma do sistema vigente, com isso ofereceu ao 604 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos povo brasileiro a oportunidade de efetivar um sistema integrado e gratuito que cuida da prevenção, promoção, cura e reabilitação da saúde, fortalecendo a cidadania. O SUS é tido como a política de maior inclusão social já implementada no Brasil e representa em termos constitucionais uma afirmação política do compromisso do Estado Brasileiro para com seus cidadãos. Seus avanços são significativos, mas persistem problemas a serem enfrentados para consolidá-lo como um sistema público universal e equânime. Esse é o desafio de todos. A administração portuguesa, no Brasil, não se caracterizou, pelo menos até a metade do século XVIII, pela organização do espaço social visando a um combate às causas das doenças. Antes do século XIX, não se encontra, seja nas instituições propriamente médicas, seja no aparelho de Estado, a relação explícita entre saúde e sociedade. A atuação do Estado e dos médicos tem como objetivo evitar a morte (MACHADO, 1978). O século XIX assinala para o Brasil o início de um processo de transformação política e econômica que atinge igualmente o âmbito da medicina, inaugurando duas de suas características, que têm vigorado até o presente: a penetração da medicina na sociedade, que incorpora o meio urbano como alvo da reflexão e da prática médica, e a situação da medicina como apoio científico indispensável ao exercício de poder do Estado. Nasce um tipo específico de medicina que pode ser chamado de medicina social (MACHADO, 1978). Efetivamente, somente no século XX, iniciam-se políticas de saúde para enfrentar o quadro sanitário existente no país. 1.1 A SAÚDE NA COLÔNIA E NO IMPÉRIO A vinda da Corte Portuguesa para o Brasil em 1808 determinou mudanças na administração pública colonial, até mesmo na área da saúde. Como sede provisória do império português e principal porto do país, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se centro das ações sanitárias. Era necessário, então, criar rapidamente centros de formação de médicos, que até então eram quase inexistentes em razão, em parte, da proibição de ensino superior nas colônias. Assim, por ordem real, foram fundadas as academias médico-cirúrgicas, no Rio de Janeiro e na Bahia, na primeira década do século XIX, logo transformadas nas duas primeiras escolas de medicina do país. 605 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas Por volta de 1829, foi criada a Junta de Higiene Pública, que se mostrou pouco eficaz e, apesar de várias reformulações, não alcançou o objetivo de cuidar da saúde da população. No entanto, é o momento em que instâncias médicas assumem o controle das medidas de higiene pública. Seu regulamento é editado em 20 de setembro de 1851 e a transforma em Junta Central de Higiene Pública. Tem como objetivos a inspeção da vacinação, o controle do exercício da medicina e a polícia sanitária da terra, que engloba a inspeção de alimentos, farmácias, armazéns de mantimentos, restaurantes, açougues, hospitais, colégios, cadeias, aquedutos, cemitérios, oficinas, laboratórios, fabricas e, em geral, todos os lugares de onde possa provir danos à saúde pública (MACHADO, 1978). Até 1850, as atividades de saúde pública estavam limitadas a: i) delegação das atribuições sanitárias às juntas municipais e ii) controle de navios e saúde dos portos. Verifica-se que o interesse primordial estava limitado ao estabelecimento de um controle sanitário mínimo da capital do Império, tendência que se alongou por quase um século. A Junta não resolveu os problemas de saúde pública. Mas, embora não tenha destruído as epidemias, ela marca uma nova etapa na organização da higiene pública no Brasil. Essa forma é que será mantida durante o século XIX. A fase imperial da história brasileira encerrou-se sem que o Estado solucionasse os graves problemas de saúde da coletividade. Tentativas foram feitas, mas sem os efeitos desejados. 1.2 A SAÚDE NA REPÚBLICA A Proclamação da República, em 1889, foi embalada na ideia de modernizar o Brasil. A necessidade urgente de atualizar a economia e a sociedade, escravistas até pouco antes, com o mundo capitalista mais avançado favoreceu a redefinição dos trabalhadores brasileiros como capital humano. Essa ideia tinha por base o reconhecimento de que as funções produtivas são as fontes geradoras da riqueza das nações. Assim, a capacitação física e intelectual dos operários e dos camponeses seria o caminho indicado para alterar a história do país, considerado no 606 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos exterior como “região bárbara”. Nesse contexto, a medicina assumiu o papel de guia do Estado para assuntos sanitários, comprometendo-se a garantir a melhoria da saúde individual e coletiva e, por extensão, a defesa do projeto de modernização do país (BERTOLLI FILHO, 2004). País predominantemente rural, com um contingente de analfabetos estimado em 70% no censo de 1920 – analfabetos e doentes, como apregoou os que se engajaram no movimento sanitarista da época, esse era o Brasil das três primeiras décadas do século XX. No âmbito das políticas sociais, pela Constituição de 1891, cabia aos estados a responsabilidade pelas ações de saúde, de saneamento e de educação. As políticas de saúde, cujo início efetivo pode ser indicado em fins da década de 1910 encontravam-se associadas aos problemas da integração nacional e à consciência da interdependência gerada pelas doenças transmissíveis. Foi o resultado do encontro de um movimento sanitarista, organizado em torno da proposta de políticas de saúde e saneamento, com a crescente consciência por parte das elites políticas sobre os efeitos negativos do quadro sanitário existente no país (LIMA, 2005). A falta de um modelo sanitário para o país deixava as cidades brasileiras à mercê das epidemias. No início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro apresentava um quadro sanitário caótico, caracterizado pela presença de diversas doenças graves que acometiam a população, como a varíola, a malária, a febre amarela e, posteriormente, a peste. Esse quadro acabou gerando sérias consequências, tanto para a saúde coletiva quanto para outros setores, como o do comércio exterior, visto que os navios estrangeiros não mais queriam atracar no porto do Rio de Janeiro em razão da situação sanitária existente na cidade. Além de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, Adolpho Lutz, Arthur Neiva e Vital Brasil, entre outros, destacam-se na definição de rumos para a saúde pública e na criação de instituições. Um ativo movimento de Reforma Sanitária emergiu no Brasil durante a Primeira República, sob a liderança da nova geração de médicos higienistas, que alcançou importantes resultados. Entre as conquistas, destaca-se a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), em 1920. Durante a Primeira República, foram estabelecidas as bases para a criação de um Sistema Nacional de Saúde, caracterizado pela concentração e pela verticalização das ações 607 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas no governo central. As medidas de proteção social e, em particular, a assistência médica só viriam a ter reconhecimento legal como política pública com a aprovação da Lei Eloi Chaves, de 1923, resultado do crescente impacto do que passou a ser definido como a questão social no país. Até então, muitas categorias de trabalhadores organizavam associações de auxílio mútuo para lidar com problemas de invalidez, doença e morte. A Lei que regulamentou a criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) tem sido indicada como o momento inicial da responsabilização do Estado pela regulação da concessão de benefícios e serviços, especialmente da assistência médica. Tratava-se de organizações de direito privado, criadas para grupos específicos de servidores e organizadas segundo princípios de seguro social, ou seja, um modelo em que os benefícios dependiam das contribuições dos segurados (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER, 2005). A Lei deveria ser aplicada a todos os trabalhadores. Para que fosse aprovada no Congresso Nacional, dominado na sua maioria pela oligarquia rural, foi imposta a condição de que esse benefício não seria estendido aos trabalhadores rurais. Fato que, na história da previdência do Brasil, perdurou até a década de 1960, quando foi criado o Funrural. Assim foi aprovada, contemplando somente o operariado urbano. Tratando-se de um sistema por empresa, restrito ao âmbito das grandes empresas privadas e públicas, as CAPs possuíam administração própria para os seus fundos, formada por um conselho composto de representantes dos empregados e dos empregadores. O Estado não participava propriamente do custeio das Caixas, que, de acordo com o determinado pelo artigo 3° da Lei Eloi Chaves, era mantido por empregados das empresas (3% dos respectivos vencimentos), empresas (1% da renda bruta) e consumidores dos serviços destas (CORDEIRO, 2004). 2 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA O primeiro governo Vargas é reconhecido pela literatura como um marco na configuração de políticas sociais no Brasil. As mudanças institucionais que ocorreram, a partir de 1930, moldaram a política pública brasileira, estabelecendo 608 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos um arcabouço jurídico e material que conformaria o sistema de proteção social até um período recente. Coube ao Estado Novo acentuar e dirigir o processo de expansão do capitalismo no campo, de maneira a impedir que nele ocorressem alterações radicais na estrutura da grande propriedade agrária. Em 1937, é promulgada nova Constituição, que reforça o centralismo e a autoridade presidencial (ditadura). O trabalhismo oficial e as suas práticas foram reforçados a partir de 1940 com a imposição de um sindicato único e pela exigência do pagamento de uma contribuição sindical. As políticas de saúde, então implementadas, corresponderam a alterações em diversos campos. Na esfera institucional, a principal mudança consistiu na criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp), o qual passou por sucessivas reformulações. Ao Mesp cabia a saúde pública, ou melhor, tudo que dissesse respeito à saúde da população. A 3ª Conferência Nacional de Saúde (3ª CNS), realizada em dezembro de 1963, foi o último evento na experiência democrática. Os principais pontos da 3ª CNS eram a rediscussão da distribuição de responsabilidades entre os entes federativos, uma avaliação crítica da realidade sanitária do país e uma clara proposição de municipalização dos serviços de saúde, intenção revelada no temário da Conferência e explicitada nos discursos do presidente da República, João Goulart, e do ministro da Saúde, Wilson Fadul. 2.1 O MOVIMENTO SANITÁRIO Com a rearticulação paulatina dos movimentos sociais, tornaram-se mais frequentes as denúncias sobre a situação caótica da saúde pública e dos serviços previdenciários de atenção médica e amplificaram-se as reivindicações de solução imediata para os problemas criados pelo modelo de saúde existente. Nesse contexto, sindicatos das diversas categorias profissionais da saúde principalmente médicos, acadêmicos e cientistas debatiam em seminários e congressos as epidemias, as endemias e a degradação da qualidade de vida do povo. Um movimento pela transformação do setor de saúde fundiu-se com outros movimentos sociais, mais ou menos vigorosos, que tinham em comum a luta pelos 609 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas direitos civis e sociais percebidos como dimensões imanentes à democracia (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER, 2005). A Conferência Internacional sobre a Atenção Primária à Saúde, realizada em Alma-Ata (localizada no atual Cazaquistão), em 1978, foi o ponto culminante na discussão contra a elitização da prática médica, bem como contra a inacessibilidade dos serviços médicos às grandes massas populacionais. Na Conferência, reafirmouse ser a saúde um dos direitos fundamentais do homem, sob a responsabilidade política dos governos, e reconhece-se a sua determinação intersetorial. Em contrapartida, as pressões sociais e políticas do setor da saúde resultaram na criação de mecanismos de coordenação interministerial com o objetivo de se elaborar um projeto de grandes proporções para o reordenamento do setor. A primeira versão do projeto, de julho de 1980, denominada originalmente de Pró-Saúde e, mais tarde, Prev--Saúde, passou por diversas redefinições. Foi na 8ª Conferência Nacional de Saúde, entre 17 e 21 de março de 1986, em Brasília, que se lançaram os princípios da Reforma Sanitária. Nessa Conferência, que contou com a presença de mais de quatro mil pessoas, evidenciou-se que as modificações no setor da saúde transcendiam o marcos de uma simples reforma administrativa e financeira. Havia necessidade de uma reformulação mais profunda, com a ampliação do conceito de saúde e sua correspondente ação institucional. Questão fundamental para os participantes da Conferência foi a da natureza do novo sistema de saúde: se estatal ou não, de implantação imediata ou progressiva. Recusada a ideia da estatização, manteve-se a proposta do fortalecimento e da expansão do setor público. Seu documento final define o conceito de saúde como “resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde”. Esse documento serviu de base para as discussões na Assembleia Nacional Constituinte (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1986). Assim, foi na 8ª Conferência Nacional de Saúde que se aprovou a criação de um Sistema Único de Saúde, que se constituísse em um novo arcabouço institucional, com a separação total da saúde em relação à Previdência. 610 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos Cabe lembrar que, antes da criação do Sistema Único de Saúde, o Ministério da Saúde desenvolvia quase que exclusivamente ações de promoção da saúde e prevenção de doenças, como campanhas de vacinação e controle de endemias. A atuação do setor público na chamada assistência médico-hospitalar era prestada por intermédio do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), autarquia do Ministério da Previdência e Assistência Social, e a Assistência à Saúde desenvolvida beneficiava apenas os trabalhadores da economia formal, segurados do INPS e seus dependentes, não tendo caráter universal (SOUZA, 2002). 2.2 O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) O Sistema Único de Saúde (SUS) é constituído pelo conjunto das ações e de serviços de saúde sob gestão pública. Está organizado em redes regionalizadas e hierarquizadas e atua em todo o território nacional, com direção única em cada esfera de governo. O SUS não é, porém, uma estrutura que atua isolada na promoção dos direitos básicos de cidadania. Insere-se no contexto das políticas públicas de seguridade social, que abrangem, além da Saúde, a Previdência e a Assistência Social. 3 RESPONSABILIDADE DAS TRÊS ESFERAS DE GOVERNO A Constituição brasileira estabelece que a saúde seja um dever do Estado. Aqui, deve-se entender Estado não apenas como o governo federal, mas como poder público, abrangendo a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios. A Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990) determina, em seu artigo 9º, que a direção do SUS deve ser única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida, em cada esfera de governo, pelos seguintes órgãos: I. No âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II. No âmbito dos estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; III. No âmbito dos municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente. 611 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas 3.1 ARCABOUÇOS LEGAIS DO SUS Em 1988, concluiu-se o processo constituinte e foi promulgada a oitava Constituição do Brasil. A chamada “Constituição Cidadã” foi um marco fundamental na redefinição das prioridades da política do Estado na área da saúde pública. A Constituição Federal de 1988 define o conceito de saúde, incorporando novas dimensões. Para que se tenha saúde, é preciso ter acesso a um conjunto de fatores, como alimentação, moradia, emprego, lazer, educação etc. O artigo 196 cita que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Com esse artigo fica definida a universalidade da cobertura do Sistema Único de Saúde. O SUS faz parte das ações definidas na Constituição como sendo de “relevância pública”, sendo atribuído ao poder público a sua regulamentação, a fiscalização e o controle das ações e dos serviços de saúde. Conforme a Constituição Federal de 1988, o SUS é definido pelo artigo 198 do seguinte modo: As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I. Descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II. Atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III. Participação da comunidade. Parágrafo único – O Sistema Único de Saúde será financiado, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. 612 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos O texto constitucional demonstra claramente que a concepção do SUS estava baseada na formulação de um modelo de saúde voltado para as necessidades da população, procurando resgatar o compromisso do Estado para com o bem-estar social, especialmente no que refere à saúde coletiva, consolidando-o como um dos direitos da cidadania. Ao longo do ano de 1989, procederam-se negociações para a promulgação da lei complementar que daria bases operacionais à reforma e iniciaria a construção do SUS. A Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Essa lei regula em todo o território nacional as ações e os serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais e, ou jurídico de direito público e privado (BRASIL, 1990). A Lei n. 8.080/90 institui o Sistema Único de Saúde, constituído pelo conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo poder público. A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde em caráter complementar. As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal de 1988, obedecendo ainda a princípios organizativos e doutrinários, tais como: » Universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; » Integralidade de assistência, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; » Equidade; » Descentralização político-administrativa com direção única em cada esfera de governo; » Conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população; » Participação da comunidade; 613 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas » Regionalização e hierarquização. A Lei n. 8.080/90 trata: a) da organização, da direção e da gestão do SUS; b) da definição das competências e das atribuições das três esferas de governo; c) do funcionamento e da participação complementar dos serviços privados de assistência à saúde; d) da política de recursos humanos; 3.2 RESULTADOS DO SUS O SUS consolidou-se, ao longo de duas décadas, como a maior política de Estado do País, promotor de inclusão e justiça social. Fruto de uma permanente construção coletiva, nele se manifesta o melhor da tradição política brasileira: o diálogo, a composição e a busca do acordo. Pelo princípio da universalidade, todos os brasileiros têm direito aos serviços do SUS, e esse acesso universal, em nenhuma circunstância, pode ser restringido. O SUS deve ofertar, a todos os brasileiros, um conjunto de serviços sanitária e socialmente necessários, com base em protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas e por meio de amplo movimento de discussão que envolva os gestores de saúde na Comissão Intergestores, Tripartite e o Conselho Nacional de Saúde. 3.3 O FINANCIAMENTO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE São princípios gerais do financiamento para o SUS: responsabilidade das três esferas de gestão União, estados e municípios pelo financiamento do SUS; redução das iniquidades macrorregionais, estaduais e regionais, a ser contemplada na metodologia de alocação de recursos; repasse fundo a fundo definido como modalidade preferencial na transferência de recursos entre os gestores e financiamento de custeio com recursos federais, constituídos e transferidos em blocos de recursos. Com o início da implantação do SUS, em 1990, o financiamento passou a ser a questão central da política de saúde. Até então, a escassez de recursos, 614 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos embora relevante, não tinha a magnitude que passou a ter nos últimos vinte anos. Vários fatores têm contribuído para dar à questão do financiamento a importância política que tem atualmente. Primeiro, porque no passado a assistência médicohospitalar, principal componente do gasto com saúde, estava restrita à população previdenciária, criando uma situação de verdadeira apartheid médico ao segmentar cidadãos em pacientes de 1ª (previdenciários urbanos, trabalhadores do setor formal), 2ª (previdenciários rurais) e 3ª classes (aqueles sem proteção previdenciária, então chamados, “indigentes”). Somente depois de 1988, passou a ser universal, não obstante os avanços graduais nesse sentido ocorridos a partir do final dos anos 1940 mediante políticas públicas de inclusão. Essa conquista, que qualifica o SUS como, possivelmente, a principal política de inclusão social na história brasileira contemporânea, coincidiu justo com um contexto mais agudo de escassez agravado com as medidas de ajuste fiscal que, sobretudo no âmbito federal, começaram a ser implementadas na primeira metade da década de 1990. São dessa época os primeiros antagonismos de bastidores entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Fazenda/Secretaria do Tesouro Nacional (STN) com acusações recíprocas de insensibilidade social e ineficiência administrativa. Segundo, porque a atenção médica na Previdência Social, uma prestação de natureza assistencial, esteve até outubro de 1988, legalmente, condicionada à disponibilidade de recursos depois de atendidas às despesas com os compromissos securitários como pensões e aposentadorias. Hoje é um direito universal inteiramente desvinculado da condição de contribuinte, embora na prática pareça fiel à mesma regra. Terceiro, porque o boom econômico da década de 1970, particularmente forte no setor moderno da economia, propiciou o crescimento do mercado de trabalho formal urbano, inflando as receitas previdenciárias. Nessa época, o peso relativo dos benefícios previdenciários estava ainda muito distante do que tem hoje. A partir dos anos 1990, o mercado de trabalho formal entrou em crise e os recursos oriundos da folha de salário logo deixaram de ser suficientes até mesmo para o pagamento de benefícios. Neste caso, como decorrência da combinação sinérgica de diferentes fatores como a criação de novos direitos sociais pela Constituição de 1988 e a inclusão na conta da seguridade social (OSS) das despesas com inativos e pensionistas civis e militares da União, antes custeadas com recursos do Tesouro (impostos gerais). Como resultado, a receita de 615 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas contribuições de empregados e empregadores, uma fonte de financiamento tradicional da assistência médica, passou em 1993 a financiar exclusivamente o pagamento de benefícios, compelindo o Ministério da Saúde (MS) ao endividamento para atender despesas de custeio. Quarto, porque o envelhecimento da população e a incorporação de novas tecnologias médicas, fatores universalmente reconhecidos como responsáveis pelo incremento do gasto com saúde, avançavam de forma muito mais lenta no passado do que hoje. A judicialização da saúde tende a se tornar um quinto fator de pressão sobre as despesas setoriais, embora ainda esteja longe da importância econômica que tem nos Estados Unidos. Naquele país, o apelo ao Poder Judiciário está mais relacionado à malpractice (erro médico) e atinge principalmente médicos e hospitais privados. Com isso, gera não só processos vultosos de reparação e indenização como, consequentemente, eleva o preço do prêmio do seguro, sobretudo em especialidades médicas identificadas como de maior risco. Ademais, incentiva a prática da chamada medicina defensiva. No Brasil, o ônus das decisões judiciais, embora atinja também o setor privado, em particular a medicina suplementar, recai com mais frequência sobre os gestores públicos subnacionais. A razão está no instituto do Mandado de Segurança com a concessão de Liminar, uma formidável ferramenta jurídica de defesa dos direitos do cidadão. No âmbito do SUS, ela visa, via de regra, garantir algum tratamento negado pelo gestor. Entre os casos mais frequentes, estão à fila de espera para alguma cirurgia importante ou o recebimento de algum medicamento, geralmente de alto custo, crítico para a sobrevivência do paciente. A questão fica polêmica quando a decisão judicial alcança terapias experimentais ainda sem eficácia comprovada ou não reconhecida no país. Ou, então, quando eficazes e acessíveis a quem pode pagá-las, não integram o conjunto de procedimentos do SUS. 4 O DIREITO A SAÚDE E A JUDICIALIZALAÇÃO EXCESSIVA No final do século XX e início do século XXI, propaga-se um sentimento de que os problemas de saúde estão acumulando-se e os modelos assistenciais não correspondem mais às expectativas da população, uma vez que as vias 616 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos administrativas são geralmente lentas e a burocracia da saúde costuma ser omissa frente às demandas impostas pela sociedade, enfatizando assim, os dramas individuais, colocando em questão sua função social. (SABROZA, 2004). Nos últimos anos, a Constituição conquistou, verdadeiramente, força normativa e efetividade. A jurisprudência acerca do direito à saúde é um exemplo emblemático do que se vem de afirmar. As normas constitucionais deixaram de ser percebidas como integrantes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em particular, converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela judicial específica. Em grande parte, a luta da população por seus direitos tem sido em decorrência das omissões do Estado e descrédito da população, onde o poder judiciário tem sido acionado, dando respostas que seriam de responsabilidade do poder público, garantindo não somente a dispensa de fármacos e/ou insumos necessários ao tratamento de saúde, mas a efetivação dos seus direitos fundamentais, exigindo uma melhor atuação por parte da gestão nos serviços públicos diante das demandas apresentadas. (ROCHA, 1999). Nesse sentido, as sentenças proferidas pelos tribunais em favor do cidadão determinam que os gestores forneçam determinados tratamentos, medicamentos e/ou insumos terapêuticos, dentre os quais podemos pontuar: insumos, cirurgias, órteses e próteses, medicamentos, reabilitação, tratamentos fora de domicilio, contratação de tratamentos compulsórios de drogadição, etc., devolvendo ao usuário não somente o direito à vida, mas a efetivação e garantia de seus direitos em todos os níveis de atenção, principalmente no tocante aos direitos sociais, “buscando inclusive, meios judiciais para sua concretização, conferindo assim, um sentido ao termo “judicialização da saúde” (OLIVEIRA, 2010)”. A questão da judicialização teve início na década de noventa, com a procura pelos medicamentos antirretrovirais para combater o avanço do vírus HIV, fazendo com que o Estado fornecesse de forma gratuita não apenas os medicamentos, mas todo o tratamento necessário ao bem estar do paciente (PEPE et al, 2010), abrindo precedentes para outras patologias, dentre as quais podemos pontuar: tratamento 617 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas oncológico, hepatite C, hipertensão, diabetes, micose sistêmica e oportunista e vários outros agravos. A judicialização da saúde, é considerada por Pepe et al. (2010) como um fenômeno multifacetado, que expõe limites e possibilidades institucionais estatais e instiga a produção de respostas efetivas pelos agentes públicos, do setor de saúde e do sistema de justiça. Tais intervenções judiciais no âmbito da gestão ganharam destaque no Supremo Tribunal Federal – STF, uma vez que por um lado há a fiscalização por parte do judiciário nas ações negligenciadas pelo Estado contra seus cidadãos; por outro a judicialização é vista pelos gestores como impactante no orçamento da administração pública, por entender que o cumprimento das determinações judiciais desvia recursos de ações coletivas em prol do atendimento de um indivíduo. Após a Constituição de 1988, essa discussão sobre o acesso a medicamentos via mandados judiciais no Brasil ganhou notoriedade, envolvendo gestores públicos, poder judiciário, órgãos afins, universidades e sociedade civil, sendo regulamentada através da Lei nº 8080/1990, “atribuindo ao setor saúde a responsabilidade pela execução de ações de assistência terapêutica integral e farmacêutica”. (BRASIL, 1990). Desde então, pesquisas têm sido realizadas, buscando avaliar os vários aspectos que levam à judicialização da saúde, dentre os quais podemos elencar: o acesso do indivíduo ao medicamento prescrito; a dispensação com orientação profissional baseada na certeza de que a medicação está relacionada às reais necessidades do paciente e a garantia do direito à saúde e a universalização dos serviços (SILVA & BUSSINGER, 2011). O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado, não há um critério firme para a aferição de qual entidade estatal, União, Estados e Municípios deve ser responsabilizada pela entrega de cada tipo de medicamento. Diante disso, os processos terminam por acarretar 618 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos superposição de esforços e de defesas, envolvendo diferentes entidades federativas e mobilizando grande quantidade de agentes públicos, aí incluídos procuradores e servidores administrativos. Desnecessário enfatizar que tudo isso representa gastos, imprevisibilidade e disfuncionalidade da prestação jurisdicional (BARROSO). Ademais, observa-se muitas vezes, que ao se fornecerem medicamentos por ordem judicial, não está sendo avaliado se aquele tratamento realmente é o melhor em termos de relação custo/benefício, se o indivíduo realmente necessita do medicamento pleiteado e este não pode ser substituído por outro disponível nos programas de assistência farmacêutica do SUS, além de que se o paciente tem condições financeiras de pagar o tratamento ou, até mesmo, o advogado e, ainda, se não estão sendo infringido alguma lei ou algum princípio fundamental do sistema de saúde. (CHIEFFI; BARATA, 2009). Por esses motivos que a principal crítica à atuação do Poder Judiciário na concessão de medicamentos em casos individuais, diz respeito a questão de parecer como solução salvadora, na realidade, apresenta-se extremamente prejudicial à população, em virtude de que a canalização de recursos para situações individualizadas, independente de valor a ser destinado e da organização do SUS, fere, se assim pode-se dizer, o “espírito” do artigo 196 da Constituição, que é proporcionar o acesso universal e igualitário às ações e serviços da saúde. (ANTUNES; GONÇALVES, 2010). Dessa forma, observa-se no Brasil, que se de um lado é inegável que o Poder Judiciário é dotado de papel constitucional de interpretar e aplicar a norma jurídica, vindo a realizar o controle de constitucionalidade dessas normas e atos, inclusive a atinentes as políticas públicas; por outro lado, as decisões judiciais condizentes as políticas públicas, implica, por mais de vez, a realocação forçada de recursos, prejudicando um longo e exaustivo trabalho de planejamento que no Brasil é praticado pelo Poder Executivo. (SABINO, 2011). 5 A NECESSIDADE DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA A necessidade de previsão orçamentária é outro argumento nebuloso que precisa ser enfrentado. Aliás, esta é sem dúvida a principal justificativa evocada pelo Estado mais particularmente pelos Municípios de recursos para concretização de 619 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas políticas públicas de caráter social não parece mais sensibilizar os tribunais, para quem as normas de caráter programático não podem converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. Para evitar condenações ou mesmo suspender liminares já deferidas em ações que veiculam pedidos de fornecimento de medicamentos ou tratamentos médicos em geral. Esse argumento de que é necessária previsão orçamentária e disponibilidade material. É evidente que estamos diante de normas em colisão, cujos textos cada qual envolvem aspectos constitucionais que interferem diretamente na utilização dos recursos pelo Estado e, claro, na melhoria da qualidade de vida das pessoas. A aplicação dos recursos orçamentários pelo Poder Público é, na verdade, uma verdadeira ciência a ser estudada por diversos ramos do conhecimento como a economia, a sociologia, a matemática e o próprio Direito. Este, aliás, tratou do tema, em âmbito constitucional, nos arts. 165 a 169, prevendo, inclusive, situações de realização de despesas que excedam os créditos orçamentários (art. 167, inc. II), além da possibilidade de transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa (art. 167, inc. VI). 5.1 O PRINCÍPIO DO MÍNIMO EXISTENCIAL Mínimo existencial é o conjunto de garantias materiais para uma vida condigna, no sentido de uma vida saudável, que não é o mesmo para cada direito social. “É preciso se garantir um patamar mínimo de vida para todos os seres humanos da sociedade brasileira, cabendo ao Estado o dever de proteger os direitos sociais, principalmente da parcela da população que não tem acesso a esses direitos. ” Essa garantia abrange mais do que a garantia à mera sobrevivência física, no designado mínimo de sobrevivência ou mínimo vital que se situa além do limite da pobreza absoluta, em respeito à dignidade da pessoa. 620 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos A Constituição Federal não prescreve textualmente o direito ao mínimo existencial, porém, este é decorrente da própria proteção da vida e da dignidade da pessoa humana. Dignidade essa que, conforme Kant, com três características próprias da moralidade: “incondicionalidade (absoluta prioridade), superioridade absoluta (acima de qualquer preço) e incomensurabilidade (nenhum equivalente) ”. Essa dignidade não está condicionada ou adstrita tão somente à condição de ser humano, que diferentemente de outras criaturas, é uma realidade moral. A concretização dos direitos fundamentais sociais, cuja extensão depende de cada caso, despende recursos financeiros, que são escassos, cabendo sua realização nos limites da denominada “reserva do possível”. Os direitos positivos possuem inegavelmente custo, já os direitos de defesa, somente pela via reflexa, sem muita relevância no âmbito de sua eficácia e efetivação. Mas, em todos os casos, há algum custo ao poder público, cabendo satisfazer esse mínimo existencial a todos, porém, quando há o dever de prestação e a incapacidade financeira ou material, algum parâmetro deve ser estabelecido. Considerando que em matéria de saúde pública a responsabilidade dos entes estatais é solidária, e com o crescente número de ações judiciais no Estado. Pretende-se assim, com o presente artigo, trazer uma reflexão quanto à atitude dos tribunais de imporem ao Estado o fornecimento de medicamentos e/ou tratamentos de alto valor para uma pequena parcela da população, que teve acesso ao processo judicial para requerê-lo, priorizando a saúde de um determinado indivíduo em detrimento da saúde do coletivo; fazendo-nos questionar até que ponto deve o Estado disponibilizar um medicamento e/ou tratamento de alto custo, para um só. 5.2 A IMPORTÂNCIA DO CONJUNTO PROBATÓRIO Quando se trata de processo judicial postulando a condenação da União, do estado e/ou do município ao fornecimento de medicamento ou de tratamento o juiz precisa analisar alguns requisitos para o acolhimento do pedido. Nesse aspecto, a Lei n. 12.401 (BRASIL, 2011) alterou a Lei n. 8.080 (BRASIL, 1990), estabelecendo, no sistema jurídico, regras sobre a assistência 621 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Uma primeira inovação é de natureza institucional, materializada na criação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), cujo papel é assessorar o Ministério da Saúde na incorporação, exclusão ou alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, além de auxiliar a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica. A atividade da Conitec é desenvolver estudo técnico para auxiliar o Ministério da Saúde na incorporação de novas tecnologias. A decisão pela incorporação ou não da nova tecnologia é proferida de forma democrática, tendo em vista que a Conitec é entidade plural, cuja composição contempla um representante indicado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e um representante, especialista na área, indicado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). As decisões da Conitec são divulgadas em seu sítio eletrônico, permitindose o acompanhamento da sociedade na evolução do trabalho no âmbito do SUS. Além das demandas avaliadas, a Conitec também promove consultas públicas e recebe sugestões ou propostas de incorporação de novas tecnologias. Todos os relatórios e decisões da entidade são publicados, a fim de conferir a necessária legitimidade da atividade desenvolvida pela instituição. A segunda importante inovação trazida com a Lei n. 12.401/2011 foi à necessidade de observância de alguns requisitos à incorporação de novas tecnologias no âmbito do SUS. Vale dizer, deve-se observar a existência de evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo de incorporação. Além disso, também é indispensável à avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos: domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível. Tais requisitos, portanto, também devem ser observados quando houver a judicialização de uma nova tecnologia, produto ou medicamento. Assim, a autoridade judiciária responsável por processo em que se postula a concessão de medicamento, tratamento ou tecnologia deve observar as decisões proferidas pela Conitec, eis que baseadas em critérios técnicos. 622 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos Se a decisão da Conitec foi favorável à incorporação da tecnologia no SUS, parece evidente que o magistrado não pode contrariá-la, salvo comprovação científica distinta, contemporânea ou superveniente. De outro lado, se a posição da aludida entidade é para não autorizar a incorporação da tecnologia no âmbito do SUS, o juiz somente poderá deferir o pedido veiculado na via judicial se houver prova técnica refutando a conclusão da Conitec. Na hipótese de ausência de decisão técnica na via administrativa, a autoridade judiciária pode se valer de consulta à Conitec, que responde, inclusive por e-mail, todos os questionamentos acerca de produtos e tecnologias postulados na via judicial. É importante mencionar que a decisão judicial destituída de fundamentação fática é nula, por descumprir o comando do artigo 93, IX, da Constituição (BRASIL, 1988). Isto é, não basta mencionar apenas que o direito à saúde está garantido na Constituição a partir do artigo 5º e do artigo 196. É necessário, também, na análise do caso judicializado, a investigação do diagnóstico, quadro clínico e principalmente, a comprovação da melhor prática de evidência científica, além da eficácia, da acurácia, da efetividade e da segurança do medicamento, produto ou procedimento postulado, sem dispensar, também, a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas (observância da relação custo-benefício). Ou seja, considerando que o Judiciário tem criado políticas públicas de saúde, proferindo decisões judiciais de concessão de medicamentos e tratamentos não previstos no âmbito do SUS, é inegável a decisão judicial deverá cumprir as exigências da Lei n. 12.401 (BRASIL, 2011), a não observância por parte do judiciário às decisões proferidas pela Conitec e os requisitos fixados na Lei n. 12.401 (BRASIL, 2011). Poderá colocar em risco a segurança do pretenso beneficiário e do próprio sistema de saúde. A judicialização da saúde, relativa a medicamentos, tem por base duas hipóteses. A primeira delas é aquela na qual o fármaco tem previsão na lista do SUS, mas não está disponível ou não foi dispensada administrativamente pelo ente público. Tendo assim um problema de gestão e não jurídico razão pela qual é muito alto o índice de sucesso nas demandas desta natureza. E assim deve ser. Este é o 623 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas nítido exemplo de questão que deveria ser resolvida no plano extrajudicial, sem a judicialização. A outra hipótese esta é a causa das maiores discussões diz respeito a postulações de medicamentos, tratamentos ou tecnologias não previstos no SUS e não há previsão legal à sua concessão pelo administrador. Trata-se, assim, de situação em que o Judiciário tem analisado com maior frequência. Nesses casos, o juiz precisa ser criterioso e deve, observar a decisão da Conitec, analisar a existência de evidências científicas sobre a eficácia, efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento; fazer a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos: domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível e observar se o pedido judicial está em conformidade com as Recomendações n. 31 e n. 36 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O que não pode existir e isso é muito comum é condenação judicial com base em mero atestado ou requisição médica. Tal decisão macula a cláusula de inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição) 6 RESULTADOS Foram identificados 35 processos propostos contra a Secretaria de Saúde do estado de Rondônia, sendo 24 processos judiciais da 2ª Vara da Fazenda Pública e 11 processos judiciais da 1ª Vara da Fazenda Pública no período de junho de 2015 a outubro de 2016. Dos 35 autos processuais figuravam como réu, o Estado na figura da Secretaria de Saúde. Tendo por objeto o fornecimento de medicamento em 19 processos, cirurgias, 5 internações em Unidade de Terapia intensiva (UTI) 2, exames de alta complexidade 4, nutrição enteral 1, internação compulsória 1, internação para tratamento de quimioterapia 1, tratamentos alternativos 2 (ecoterapia e theraisut) e um processo foi indeferido por incompetência absoluta do juiz. Quanto ao responsável pelos processos impetrados 15 dos casos apresentavam a representação jurídica privada (advogados) e 20 a estatal 624 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos (Defensoria Pública ou Ministério Público) em ambos os casos havia pedidos de gratuidade processual que obtiveram reconhecimento judicial da hipossuficiência. Em relação ao teor das decisões proferidas observou-se que dos 24 processos propostos na 2ª Vara da Fazenda Pública 20 processos foi Indeferido a Limar e apenas 2 foi Deferido a Liminar. Em relação ao teor das decisões proferidas pela 1ª Vara da Fazenda Pública dos 11 processos analisados 3% foi Deferido a Liminar, em 2 processos o juiz declarou-se incompetente, 3 foi indeferido a liminar, 1 requerente desistiu da ação e 2 a ação perdeu o objeto, pois os pacientes já recebiam a medicação. No que concerne à indicação do tratamento todos os processos apresentavam prescrição médica para o tratamento, no entanto nenhum médico prescreveu tratamento alternativo. Os medicamentos mais solicitados estavam relacionados ao tratamento de neoplasias, doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo. Entre os procedimentos cirúrgicos os mais solicitados foram doenças cardíacas e do sistema osteomuscular. Em todos os processos foram utilizados o conjunto de leis e princípios constitucionais para formular o pedido. Dentre eles os mais utilizados foram: Direito a saúde, a vida, dignidade da pessoa humana, risco de dano irreparável, universalidade, risco de morte e o alto custo do medicamento e/ou tratamento cirúrgico. Dada à urgência dos pedidos todos solicitaram decisão liminar. Em relação às decisões liminares desfavoráveis aos requerentes, é possível observar no fundamento jurídico que a preocupação com impactos orçamentários referentes ao custo dos medicamentos (argumento da reserva do possível) tem pouca importância. A razão principal para o indeferimento de liminares é a ausência de comprovação de urgência do caso e em particular na 2ª Vara o fato do medicamento não está previsto na lista do SUS e nem nas recomendações da Comissão Nacional de incorporação de Tecnologias do SUS - CONITEC. Este posicionamento não foi observado nas decisões da 1ª Vara. Dois processos em especial chamaram a atenção o primeiro requerente apresenta tetraparesia espástica de natureza congênita, apresentando, portanto, atraso no desenvolvimento psicomotor na fala, com acentuada espasticidade, que 625 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas limitam os seus movimentos diários. O requerente apresenta uma ENCEFALOPATIA CRÔNICA, não evolutiva, solicitando o tratamento de reabilitação EQUOTERAPIA, em caráter de urgência. Em análise do caso o juiz negou a liminar alegando ser um tratamento de alto custo e observando que oferecer o tratamento adequado não importa oferecer o tratamento mais novo ainda em fase experimental não sendo comprovação de melhor efeito. Assim relatou: Em que a saúde, como direito social, deve ser examinada à luz do princípio da reserva do possível, porquanto tais pleitos em face do Estado devem ser razoáveis, com atenção à carência de recursos e à cautela para não privilegiar uma minoria em detrimento da coletividade. (Edenir, Sebastião Albuquerque da Rosa. 2016. Juiz de direito). O segundo é mais inusitado a requerente representada por sua mãe sofre de Encefalopatia Crônica não Evolutiva - CID 10 G 80.0, secundária a má-formação no sistema nervoso central, provocada pela falta de oxigenação das células cerebrais. Como sequelas da doença a Autora apresenta quadro clínico de “Diparesia Espática Hiperreflexa e instabilidade axial” que consiste no comprometimento das suas funções motoras, como exemplo diminuição na força muscular, dificuldade de coordenação motora, movimentos involuntários. Em virtude disso solicitou o tratamento THERASUIT, FISIOTERAPIA MOTORA E HIDROTERAPIA. Esse Tratamento de Therasuit consiste em um método desenvolvido por fisioterapeutas americanos o qual consiste em um tratamento que visa à reabilitação do paciente onde está veste uma roupa chamada de “Pinguim Suit”, composta por uma série de cordas elásticas e realiza exercícios com a vestimenta. O valor do tratamento é estimado em R$ 13.500,00 (treze mil e quinhentos reais) mensais, razão pela qual o juiz indeferiu a liminar alegando ser um tratamento de alto custo e em fase experimental. A ação foi proposta pela Defensoria Pública que recorreu da decisão a instancia superior que ainda não julgou o mérito da causa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Essa pesquisa analisou as tendências do Poder Judiciário frente às demandas sobre o direito a saúde por meio de um estudo de casos de demandas 626 Tatiana Vieira de Lima e Claudio Ramos judiciais propostas na 1ª e 2ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de Rondônia no período de junho de 2015 a outubro de 2016. O estudo levou a duas conclusões principais: a judicialização da saúde é um fenômeno complexo que engloba outros bens além de medicamentos e a tese que a judicialização favorece as elites não foi verificada neste estudo tendo em vista que a maioria dos requerentes foi considerada hipossuficiente. A literatura sobre a judicialização da saúde no Brasil concentra-se de forma majoritária na análise da obrigação de fornecimento de medicamentos imposta pelo Poder Judiciário. Tese está comprovada no presente trabalho. O trabalho demonstra que quase a totalidade dos processos judiciais foram interpostas por Defensor Público, A saúde é direito de todos e dever do estado conforme assegura a Constituição Federal de 1988. A Universalidade é um princípio que garante que os serviços e bens de saúde fornecidos pelo estado sejam distribuídos a todos conforme suas necessidades. É difícil julgar e decidir o que é justo, certo ou errado quando estamos tratando do direito à vida. No presente estudo observou-se que alguns processos foram extintos sem julgamento da lide por óbito do requerente. Não sendo possível avaliar a relação de causa e efeito entre o óbito o processamento judicial. Ao contrário do esperado o número de liminares concedidas é baixo e a causa desses indeferimentos é a ausência de comprovação da urgência do caso. No entanto na maior parte dos indeferimentos o juiz solicitou manifestação da parte Ré nesse caso a Secretaria de Saúde estadual que apresentasse suas considerações a certa do procedimento pleiteado e em resposta, o Estado alega que os procedimentos solicitados são de alto custo, portanto sendo competência da União, alega ainda que os medicamentos pleiteados não estão disponíveis na rede do SUS sendo assim os mesmos não podem ser adquiridos. REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS BARROSO. Luís Roberto, Professor Titular de Direito Constitucional. Interpretação E Aplicação Da Constituição - Fundamentos De Uma Dogmática Constitucional Transformadora. Saraiva. Rio de Janeiro, 1999. 232 p. 627 Anais do I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas BARROSO. Luís Roberto, Da Falta De Efetividade À Judicialização Excessiva: Direito À Saúde, Fornecimento Gratuito De Medicamentos E Parâmetros Para A Atuação Judicial. Disponível em: http://www.conjur.com.br/dl/estudobarroso.pdf. Acesso em 10/05/2016 BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Direito à Saúde/Conselho Nacional de Secretários de Saúde: CONASS. Brasília, 2015. 113 p. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado; 1988 BRASIL. Constituição Federal 1988 Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm. Acesso em: 16/05/2016. BRASIL, Sistema Único de Saúde/O Financiamento da Saúde - CONASS Coleção para entender a Gestão dos SUS/2011 volume 1e 2. Disponível em: http// conass.gov.br. Acesso em 10.05.2016. BRASIL, CONASS para entender a gestão dos SUS – 2015. Disponível em: http// conass.gov.br. Acesso em 10.05.2016 DRESCH. Renato Luís. O Acesso À Saúde Pública e a Eficácia das Normas de Regulação do SUS. DUTRA. Ricardo Assis Alves. O Poder Normativo do Gestor de Saúde: Possibilidades e Limites http//Conitec.gov.br acesso em 17.10.2016 SHULZE. Clenio Jair, Judicialização da Saúde: Importância do Conjunto Probatório e da Oitiva do Gestor 628