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A INTERPRETAÇÃO EQUIVOCADA DOS PRECEDENTES EM RELAÇÃO
ÀS TAXAS DE FISCALIZAÇÃO DE POSTES E ORELHÕES.
Sacha Calmon Navarro Coelho
Professor Titular da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
Eduardo Maneira
Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
Marcos Correia Piqueira Maia
Advogado. Mestrando em Direito na Universidade Cândido Mendes.
1.
Os princípios implícitos regentes das espécies tributárias.
Os impostos são regidos pelo princípio da capacidade contributiva e
da igualdade, por isso que seus fatos geradores são situações da vida a cargo dos
contribuintes. São essas situações que revelam as classes de capacidade contributiva
dos pagantes (ter renda, ser proprietário de automóveis, prestar serviços, etc.). Dispõe
o art. 16 do CTN:
“Art. 16. Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador
uma situação independente de qualquer atividade estatal específica,
relativa ao contribuinte.”
As taxas são regidas pelo princípio da comutatividade ou retributividade,
por isso que seus fatos geradores são atuações do Estado consistentes em exercer o
poder de polícia ou fornecer serviços, em ambas as hipóteses, de modo específico e
divisível a determinados beneficiários. Esses sobresforços do Estado devem ser
comutados pelas taxas, as quais, e por isso mesmo, não possuem caráter
arrecadatório, sendo necessário especificar o contribuinte, nome e endereço.
A base de cálculo das taxas é extraída do custo arcado pelo Estado por
medida certa ou a forfait, segundo os princípios da moralidade, proporcionalidade,
modicidade, eficiência e razoabilidade.
Reza o art. 145, II da Constituição Federal de 1988 (CR/88):
1
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
poderão instituir os seguintes tributos:
(...)
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela
utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e
divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;”
As contribuições são regidas pelo princípio da atributividade de
objetivos, porquanto os pagamentos são feitos para financiar as atuações finalísticas
do Estado em prol de classes específicas de contribuintes.
As pagas são para financiar as atuações do Estado nas áreas-fins
adrede referidas, vedados os desvios de finalidade, daí dizer-se que as contribuições
não passam de impostos finalísticos, a excepcionar o art. 167, IV da Carta.
O art. 145, § 2º, ostenta redação singela e objetiva, melhor que a da
Constituição de 1967, que preceituava não poder a taxa ter base de cálculo idêntica à
dos
impostos
previstos
naquela
Carta
outorgada.
Agora,
a
redação
está
cientificamente correta:
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
poderão instituir os seguintes tributos:
(...)
§ 2º. As taxas não poderão ter base de cálculo própria de
impostos.”
Correta sim, porque coloca a questão em campo abrangente. A taxa,
qualquer taxa, não pode ter base de cálculo de imposto enquanto espécie. Qual a ratio
da norma? Sem mais, a onipresente realidade da teoria dos fatos geradores
vinculados e não-vinculados a uma atuação estatal a permear o Sistema Tributário da
Constituição. A regra vigia a repartição das competências tributárias.
Sendo a taxa um tributo cujas hipóteses de incidência (fatos geradores)
configuram atuações do Estado relativamente à pessoa do obrigado, a sua base de
cálculo somente pode mensurar tais atuações. Entre a base de cálculo e o fato
gerador dos tributos existe uma relação de inerência quase carnal (inhaeret et ossa),
2
uma relação de pertinência, de harmonia. Do contrário, estaria instalada a confusão e
o arbítrio com a prevalência do nomen juris, i.e., da simples denominação formal,
sobre a ontologia jurídica e conceitual dos tributos, base científica do Direito Tributário.
Destarte, ilustrativamente, uma taxa de fiscalização do arroz para
prover, desde a sua comercialização, a sanidade do cereal em prol dos consumidores
(serviço do poder de polícia) que tiver por base de cálculo o valor de mercado do arroz
fiscalizado e não o trabalho fiscalizatório, ainda que estimado, será um imposto sobre
circulação de mercadorias.
Eis aí a grande serventia da base de cálculo como dado ou elemento
veritativo, além de suas funções puramente quantitativa (cálculo do valor a pagar) e
valorativa (elemento auxiliar para a fixação da capacidade contributiva pela valoração
do fato gerador em função do contribuinte)1.
O dispositivo sob comento, além de conferir à base de cálculo esta
missão de controle, assegura integridade ao sistema de repartição de competências
tributárias instituído na Constituição, tido por um dos mais perfeitos do mundo.
Na medida em que a Nação está politicamente organizada como
República Federativa, necessário se faz garantir a repartição dos diversos tributos
entre as pessoas políticas que convivem na Federação. A nossa discriminação de
competências tributárias é rígida, inadmitindo conflitos e superposições.
Não fosse esta regra aparentemente miúda, dadas pessoas políticas
poderiam criar fatos geradores de taxas com base de cálculo de imposto e, assim,
burlar o sistema, provocando invasões de competências em áreas já reservadas às
outras, com evidente sobrecarga tributária em desfavor dos contribuintes.
A redação dada ao preceito pela Constituição de 1988 é melhor do que
a dada pela de 1967 por mais uma razão. Agora, até mesmo as áreas tributáveis
passíveis de serem exploradas por impostos novos (ainda não criados), com esforço
na competência residual da União, restam preservadas. A redação da Constituição de
1967, com erronia, vedava base de cálculo idêntica à dos impostos existentes. Uma
A propósito, ver Misabel de Abreu Machado Derzi, in O Imposto sobre a Propriedade Predial e
Territorial Urbana, Saraiva, 1982, quando analisa as funções da base de cálculo dos tributos.
1
3
interpretação ao pé da letra levaria a limitar o alcance da vedação, sabendo que os
exegetas oficiais são férteis em imaginação e despiste na mira de aumentar as
tributações ao arrepio das normas jurídicas.
A regra constitucional in examen, arquitetada a partir dos insumos da
teoria dos fatos geradores vinculados ou não a atuações do Estado, reiterada aqui ad
nauseam, não deixa de ter origens históricas e motivações políticas. Celso Cordeiro
Machado deplorou, com a vivência de quem foi secretário da Fazenda, a mania que
tinha Minas Gerais de criar pseudotaxas, a ponto de vir a ser conhecida no passado
como “Estado taxeiro”. E Aliomar Baleeiro traceja os antecedentes que redundaram no
preceito:2
“Paradoxalmente, à proporção que se difundiu no Brasil a noção
teórica das taxas, os governos estaduais e municipais dela
desertaram, ensaiando bitributações que se mascaravam com o nome
desse tributo. Para isso, concorreram duas razões: 1ª) o conceito
errôneo dos Decs.-Leis nºs 1.804/39 e 2.416/40); 2ª) confusões com a
doutrina estrangeira proveniente de países cujas Constituições não se
referiam àquela noção teórica.
Mas os tribunais, sobretudo o STF, corrigiram aquelas deturpações,
fulminando
de
inconstitucionalidade
várias
falsas
taxas,
que
dissimulavam impostos de alheia competência (Vide Súmulas do STF,
nºs 128, 135, 144, 551, 595 etc.)
A Constituição, inspirada no propósito de pôr um ponto final em tais
abusos, que burlavam os principais pontos cardeais do sistema
tributário e multiplicavam litígios, estabeleceu a regra do § 2º do art.
18: – taxa não pode ter a mesma base de cálculo que tenha servido
para incidência de impostos. Embora não fosse inconstitucional, no
regime anterior, a taxa em disfarce de imposto da competência da
pessoa de Direito Público que a exigisse, a prática era irracional e
contraproducente. Hoje, por efeito desse § 2º do art. 18, há
inconstitucionalidade ainda quando a taxa, na realidade, representa
duplicata de imposto compreendido na competência do governo que a
decreta. Não se aplica aí, cremos, o art. 4 º do CTN. Com maior razão
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 335.
2
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se o imposto mascarado configura invasão de competência de outra
pessoa de Direito Público.
O princípio ainda se mostra mais explícito no parágrafo único do
art. 77 do CTN: – não só aí se proíbe a mesma base de cálculo senão
também o mesmo fato gerador de imposto. À primeira vista, poderá
parecer uma superafetação, já que o próprio CTN, em conformidade
com a teoria financeira, erige o fato gerador em elemento
característico de cada tributo em espécie. Estava implícita a vedação
da taxa que se caracteriza como imposto, por ter o fato gerador deste.
Os iterativos abusos a que já aludimos explicam a reiteração expressa
na regra lógica.
A vedação constitucional abrange a base de cálculo de imposto da
competência do próprio governo, que instituiu a taxa (p. ex. taxa
municipal com a base admitida para o ISS pelo art. 3 º do Dec.-Lei nº
834, de 1969).
O CTN no mesmo parágrafo do art. 77 impede ao legislador
ordinário a utilização do capital das empresas como base de cálculo
de taxas.”
ALIOMAR BALEEIRO escreveu esses escólios às luzes da Constituição
anterior, mas suas assertivas ostentam total pertinência em face da Constituição atual.
É assente na doutrina e na jurisprudência que, por se tratar de tributo
essencialmente comutatório de gasto governamental, deve haver uma razoável
equivalência entre o custo da taxa e o serviço público ou o poder de polícia a ser
remunerado.
O desequilíbrio nesta equação, de modo que o custo da taxa seja
desproporcional em relação ao do serviço ou da fiscalização exercida, ofende a
essência retributiva da taxa e acaba por afrontar a garantia da vedação à tributação
confiscatória, princípio basilar do ordenamento tributário constitucional inserto no art.
150, IV da CR/88.
Quanto a isto, doutrina e jurisprudência têm entendimento alinhado,
conforme ilustra Roque Antônio Carrazza:
5
“Se não houver equivalência entre o custo da atuação estatal
específica e o quantum da taxa, o tributo será inconstitucional, por
desvirtuamento de sua base de cálculo. Com isto, aliás, ele assumirá
feições confiscatórias, afrontando, pois, o art. 150, IV da CF.”
(CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário,
17ª Ed. Malheiros: 2002, pp. 477/479)
Outrossim, em questão de ordem instaurada na medida cautelar em ADI
2.551, o STF assim discorreu sobre a confiscatoriedade da taxa de expediente
cobrada das sociedades seguradoras no Estado de Minas Gerais:
“(...)
A
GARANTIA
CONSTITUCIONAL
DA
NÃO-
CONFISCATORIEDADE. (...) Dentre as garantias constitucionais que
protegem o contribuinte, destaca-se, em face de seu caráter eminente,
aquela que proíbe a utilização do tributo - de qualquer tributo - com
efeito confiscatório (CF, art. 150, IV). - A Constituição da República, ao
consagrar o postulado da não-confiscatoriedade, vedou qualquer
medida, que, adotada pelo Estado, possa conduzir, no campo da
fiscalidade, à injusta apropriação estatal do patrimônio ou dos
rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, em função da
insuportabilidade da carga tributária, o exercício a uma existência digna,
ou a prática de atividade profissional lícita, ou, ainda, a regular
satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação,
p.
ex.).
-
Conceito
de
tributação
confiscatória:
jurisprudência
constitucional do Supremo Tribunal Federal (ADI 2.010-MC/DF, Rel.
Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
A taxa, enquanto contraprestação a uma atividade do Poder
Público, não pode superar a relação de razoável equivalência que deve
existir entre o custo real da atuação estatal referida ao contribuinte e o
valor que o Estado pode exigir de cada contribuinte, considerados, para
esse efeito, os elementos pertinentes às alíquotas e à base de cálculo
fixadas em lei. - Se o valor da taxa, no entanto, ultrapassar o custo do
serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte, dando causa,
assim, a uma situação de onerosidade excessiva, que descaracterize
essa relação de equivalência entre os fatores referidos (o custo real do
serviço, de um lado, e o valor exigido do contribuinte, de outro),
6
configurar-se-á, então, quanto a essa modalidade de tributo, hipótese
de ofensa à cláusula vedatória inscrita no art. 150, IV, da Constituição
da República. Jurisprudência. Doutrina. TRIBUTAÇÃO E OFENSA AO
PRINCÍPIO
DA
PROPORCIONALIDADE.
-
O
Poder
Público,
especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente,
pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo
princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação
normativa do Poder Legislativo. - O Estado não pode legislar
abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à
rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte
teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos
e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da
proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a
neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções,
qualificando-se
como
parâmetro
de
aferição
da
própria
constitucionalidade material dos atos estatais. - A prerrogativa
institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao
Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos
de
caráter
fundamental
constitucionalmente
assegurados
ao
contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de
um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais
excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências
irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado.”
(ADI 2551 MC-QO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno,
julgado em 02/04/2003)
Atento, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais3 também vem
reconhecendo a inconstitucionalidade de taxas por violação ao art. 150, IV da CR/88
quando seu valor não guarde relação com o custo da atuação estatal. Confira-se a
seguinte ementa:
“TRIBUTÁRIO. TAXA DE EXPEDIENTE. PODER DE POLÍCIA.
BASE DE CÁLCULO. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO. LIMITAÇÕES AO PODER DE
TRIBUTAR. A espécie tributária taxa tem como princípio
3
Cf. art. 225, §2º da CR/88.
7
informador o da retributividade, ou seja, o contribuinte deve
retribuir pecuniariamente a atuação estatal ou as diligências que
levam ao exercício do ato de polícia. Portanto, a base de cálculo
da taxa deve guardar relação intrínseca com a medida da
atuação estatal referida diretamente ao contribuinte. No caso da
referida taxa de expediente – fiscalização de estabelecimentos de
bingo – notoriamente taxa em razão do exercício do poder de polícia,
o valor da taxa deveria ter ligação intrínseca com o custo das
diligências efetuadas pelo Poder Público Estadual. Apesar de se
tratar de um conceito de difícil determinação, uma taxa cobrada
em
valores
exacerbados,
desrespeitando
a
devida
proporcionalidade entre o valor do custo pela prestação estatal
e o valor cobrado pelo referido tributo, pode-se concluir que a
mesma tem efeitos confiscatórios, o que absolutamente defeso
pela Constituição Federal, em seu artigo 150, inciso IV, na seção
‘Das limitações ao poder de tributar’.” (TJMG. Processo nº
3214954-82.2000.8.13.0000. Rel. Des. MARIA ELZA, julgado em
21/08/2003).
2. Da jurisprudência do STF a respeito da taxa pelo exercício do
Poder de Polícia.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 145, II, que a
União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios poderão instituir taxas:
a) em razão do exercício do poder de polícia;
b) pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos
e divisíveis, prestados ao contribuinte os postos à sua disposição.
O Código Tributário Nacional, por sua vez, trata a questão de modo
mais detalhado e didático nos arts. 77 e seguintes, esclarecendo que as taxas têm por
fato gerador:
a) o regular exercício do poder de polícia assim considerado quando
desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável;
8
b) a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público, considerandose
utilizado
potencialmente,
quando
sendo
de
utilização
compulsória, sejam postos à disposição do contribuinte mediante
atividade administrativa em efetivo funcionamento.
A potencialidade está sempre vinculada ao serviço compulsório
colocado à disposição, mas que não foi efetivamente utilizado pelo contribuinte, por
razões exclusivamente de sua responsabilidade. Por exemplo: o caminhão que
recolhe o lixo passa regularmente na rua em que o contribuinte reside, mas por estar
de férias durante um mês, não se utilizou da coleta de lixo que estava à sua
disposição.
O exercício do poder de polícia, de sua vez, afasta qualquer
possibilidade de exercício potencial. O poder de polícia tem que ser regularmente
desempenhado para se caracterizar como fato gerador da taxa. Não se pode cobrar
taxa pela emissão de passaporte de quem não requereu e recebeu o documento, isto
é, não se pode cobrar indistintamente de todo e qualquer cidadão, taxa pela emissão
de passaporte, pelo simples fato de a polícia federal estar à disposição para cumprir
com tal tarefa.
Seria desnecessário dizer todas estas obviedades, não fosse a
confusão decorrente da aplicação equivocada de um julgamento do STF a respeito do
tema. É que o Supremo Tribunal Federal, bem como o Superior Tribunal de Justiça,
sempre entenderam que quando se trata de taxa pelo poder de polícia, o exercício
regular significa exercício efetivo, concreto, inequívoco.
Ocorre que quando julgou a constitucionalidade da Taxa de Controle e
Fiscalização Ambiental, instituída pela Lei nº 10.165/2000, o STF entendeu que a
referida exação poderia ser cobrada sem a efetiva comprovação da atividade
fiscalizadora, tendo em vista que, pela notoriedade do aparato administrativo do
IBAMA para fiscalizar empresas potencialmente poluidoras, o exercício do poder de
polícia poderia ser legitimamente presumido.
Ora, em momento algum o STF dispensou o efetivo exercício do poder
de polícia como fato legitimador da cobrança da taxa de polícia. Disse apenas que o
9
mesmo pode ser presumido desde que: a) o poder de polícia possa ser efetivamente
exercido; b) haja órgão administrativo em funcionamento que exercite tal poder de
polícia; c) que os valores da taxa sejam proporcionais ao grau de complexidade da
atividade fiscalizada.
A partir desse julgado, grande parte dos doutrinadores e de magistrados
passou a entender que o STF tinha mudado o seu posicionamento no sentido de que a
fiscalização não precisaria ser efetiva, pois, no julgamento da taxa do IBAMA, o
Tribunal havia manifestado o entendimento de que a taxa poderia ser cobrada
independentemente das empresas terem sofrido efetiva fiscalização.
Nada mais errado! O STF em momento algum disse isso. O
entendimento que prevaleceu naquele julgado foi o de que o efetivo exercício do poder
de polícia poderia ser presumido, jamais dispensado. Presumir a fiscalização reafirma
a necessidade de ela ocorrer, e não o contrário. O STF jamais equiparou presunção
de fiscalização com fiscalização em potencial, até pela impossibilidade de, pela
natureza das coisas, se admitir tal fenômeno, qual seja, de alguém ser potencialmente
fiscalizado, assim entendido “uma fiscalização de utilização compulsória colocada à
disposição do contribuinte”.
3.
Da interpretação equivocada do precedente do STF.
A aplicação equivocada do precedente da Taxa do Ibama tem ocorrido
em alguns julgados que tratam das chamadas taxas de fiscalização de postes e
orelhões, as quais são comumente denominadas pelos Municípios de Taxa de
Fiscalização de Ocupação e Permanência no Solo em Vias e em Logradouros
Públicos.
Tais exações vêm sendo sistematicamente utilizadas por alguns entes
para exigir valores altíssimos das concessionárias de serviços públicos sob o pretexto
de que seus bens são periodicamente fiscalizados. A máxima de que “o que fica
parado é poste” não vale nestes municípios, porque se exige - mensalmente ou
anualmente - o pagamento de taxas exorbitantes para que se verifique se o poste ou o
orelhão continuam realmente no mesmo lugar.
10
Por mais inusitadas que sejam as chamadas taxas de fiscalização de
postes, orelhões, etc., o Judiciário as tem legitimado, utilizando equivocadamente, com
todo o respeito, o precedente da Taxa do Ibama, no sentido de que a exação é
constitucional. Bastaria a comprovação da existência de órgão e de estrutura
competente para se considerar ocorrido o exercício do poder de polícia sobre bens
colocados há anos nas vias públicas. Ou seja, está-se aplicando a presunção nas
situações em que a presunção é descabida, onde não há objeto que demande a
realização de atos fiscalizatórios constantes.
Com efeito, para que seja legítima a cobrança de uma taxa de polícia, é
imperativo que a fiscalização recaia sobre uma atividade que esteja sendo
regularmente exercida pelo contribuinte - isto é, que esteja em pleno funcionamento e
que possua elementos em constante alteração que justifiquem as inspeções
frequentes do Poder Público -, como ocorre com as indústrias potencialmente
poluidoras, por exemplo.
O ente municipal, nessa situação, pode se dirigir periodicamente ao
estabelecimento do contribuinte com o escopo de verificar se todas as normas de
proteção ao meio-ambiente estão sendo cumpridas. Há, aqui, um objeto apto a ser
fiscalizado, vale dizer, uma atividade que está sendo exercida e que demanda a
atenção recorrente do Município.
Entretanto, no caso de postes e orelhões, resta mais do que claro que
não existe o que ser fiscalizado regularmente. Válido seria o pagamento da uma taxa
de polícia no momento em que os bens são colocados no solo municipal, quando a
Prefeitura poderia analisar se a instalação foi realizada ou não de forma correta. Essa
constitui a única atividade exercida pela concessionária que pode ser alvo de uma
fiscalização. Depois de concluída, qual será a atividade desempenhada pela empresa
sobre o poste ou sobre o orelhão que demandaria inspeções frequentes do Município?
Nenhuma!
Isso não quer dizer, evidentemente, que o Município não possa exercer
seu poder de polícia sobre os bens das concessionárias. Muito pelo contrário, se
algum agente da Prefeitura verificar algum descompasso entre a situação de
determinado poste e o código de posturas, deve imediatamente intimar a
concessionária para regularizar a situação, sob pena de multa. Tal conduta, aliás,
11
precisa ser tomada em relação a todos os bens localizados dentro dos limites
municipais, não só com postes e orelhões. Mas tal afirmação, por óbvio, não concede
ao ente a prerrogativa ilimitada de instituir taxa de polícia sobre tudo aquilo que julgue
interessante “fiscalizar”.
De fato, para se instituir uma taxa de polícia, é necessário que ocorram
efetivas fiscalizações, e só se consegue fiscalizar regularmente as atividades do
contribuinte que também são exercidas regularmente, cujos elementos estão em
constante funcionamento ou alteração. Se isso não se verifica, não há atividade a ser
fiscalizada, de modo que a taxa será inválida aos olhos da Constituição e do Código
Tributário Nacional.
E aqui se chega ao cerne do problema, pois a cobrança de taxa nesses
moldes não estará atrelada nem a uma fiscalização efetiva por parte do Município,
nem a uma fiscalização presumida. O que ocorrerá, na verdade, é a cobrança pela
potencial fiscalização que os postes ou orelhões podem vir a sofrer caso algum evento
(de caráter incerto, improvável ou remoto) altere seu status quo, colocando-os em
desconformidade com as normas municipais.
Não há, portanto, como se sustentar a validade dessas taxas cobradas
regularmente das concessionárias. A única atividade que ainda admitiria uma taxa de
polícia, repita-se, é a que ocorre no momento da instalação dos bens no solo
municipal, pois estaria fundada numa efetiva fiscalização que, dependendo das
circunstâncias, poderia até ser presumida.
Caso se entenda o contrário, os Municípios estarão em pouco tempo
cobrando taxa de polícia dos proprietários de imóveis sob a alegação de que todas as
construções particulares são constantemente fiscalizadas para fins de analisar se
continuam mantendo a distância correta das calçadas, conforme determina a
legislação municipal, se as varandas foram fechadas regularmente etc.
Tal situação absurda, como se observa, é idêntica a dos postes e
orelhões! Ora, depois de instalado um poste ou construída uma casa, sob a
autorização da Prefeitura, não há mais atividade a ser fiscalizada. Se alguém, por
porventura, vier a transgredir uma norma, que o Município exerça seu poder de polícia
12
multando o proprietário do bem, mas não cobrando uma taxa de polícia regular para
custear atos de fiscalização que não existem.
E, se os atos de fiscalização não existem (por ausência de um objeto
apto a ser fiscalizado), não há como se presumir a realização de qualquer inspeção, o
que demonstra ser inaplicável ao caso em questão o precedente sobre a Taxa do
Ibama.
E nem se diga, como tentam fazer alguns Municípios, que a taxa de
polícia sobre postes e orelhões seria legítima porque a Prefeitura presta alguns
serviços públicos que beneficiam as concessionárias, como a poda de árvores. Em
primeiro lugar, porque “prestação de serviço público” não é fundamento para cobrança
de “taxa de polícia”, por imperativo lógico. Em segundo lugar, porque esses serviços
são prestados em caráter uti universi, o que desautoriza por completo a instituição
dessa espécie tributária.
Assim sendo, vê-se que a taxa de polícia sobre postes e orelhões, em
última análise, acaba não diferindo em nada da Taxa de Uso e Ocupação do Solo
instituída pelo Município de Ji-Paraná/RO que foi analisada pelo Supremo Tribunal
Federal nos autos do RE nº 581.947 (Rel. Min. Eros Grau, em 27.05.10). Ao apreciar a
cobrança da referida exação da concessionária de energia elétrica local em função do
número de postes instalados nas vias públicas, o Plenário da Corte reconheceu sua
inconstitucionalidade, dentre outras razões, porque o mero uso do solo não pode ser
eleito como fato gerador de taxa.
Dito isso, pergunta-se: existe realmente alguma diferença entre uma
taxa de fiscalização de postes e uma taxa cobrada pelo simples fato dos postes
estarem instalados nas vias públicas? Evidentemente que não. Em ambos os casos, o
Município está exigindo uma remuneração pela simples ocupação do solo, pois já ficou
esclarecido que no caso da taxa de polícia não existe fiscalização possível de ser
realizada pela Prefeitura.
A finalidade dos Municípios, como se extrai de tudo o que foi exposto, é
puramente arrecadatória, ao arrepio da CF/88 e do CTN. Tanto é assim que, regra
geral, a base de cálculo adotada é completamente abusiva e desproporcional em
relação aos custos das supostas fiscalizações. Os entes municipais sequer tentam
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adequá-las, na medida do possível, aos valores que seriam despendidos dentro um
patamar razoável, pois levam em consideração apenas a capacidade econômica das
empresas. Em muitas localidades, por exemplo, o valor exigido a título de taxa de
fiscalização de postes ou orelhões chega a atingir milhões de reais por ano, o que vai
de encontro ao princípio do não confisco insculpido no art. 150, IV, da Carta Magna,
conforme já decidiu o Pretório Excelso nos autos da supracitada ADI-MC-QO nº
2551/MG.
Portanto, além das referidas taxas de polícia não se fundarem em
fiscalizações possíveis – o que desautoriza a aplicação do precedente do Ibama, pois
não há como se presumir aquilo que jamais poderia ocorrer -, vê-se que as exações
ainda tem sua validade maculada pelo nítido descompasso entre os valores exigidos
dos contribuintes e as despesas incorridas pelos Municípios nas supostas
fiscalizações de postes e orelhões.
4.
Conclusões.
O entendimento manifestado pelo STF a respeito da Taxa do Ibama,
como visto, vem sendo sistematicamente distorcido pelo Poder Judiciário para
legitimar a instituição de taxas de polícia vazias, sem objeto, que não se fundamentam
em fiscalizações efetivas sobre a atividade dos contribuintes. É importante deixar bem
claro que o Pretório Excelso nunca desvinculou a validade de uma taxa de polícia da
ocorrência de fiscalizações regulares. O que admitiu a Corte, no caso do Ibama, foi
apenas a presunção da realização das inspeções em função do aparato da citada
autarquia federal.
Entretanto, no caso dos postes e orelhões, havendo ou não estrutura
por parte da Prefeitura, não há como se presumir a ocorrência das fiscalizações em
face da inexistência de atividade que possa ser inspecionada, especialmente após a
colocação dos bens no solo municipal.
Trata-se, assim, de questão que precisa ser mais bem analisada pelo
Poder Judiciário, em respeito a todas as garantias previstas na Constituição Federal e
no Código Tributário Nacional.
14
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