argentina O congelamento de preços na Argentina: em busca de um discurso que o justifique1 José Fanelli A marca distintiva da atual conjuntura na Argentina é a persistência de significativos desequilíbrios macroeconômicos, que se expressam de diferentes formas: ● Rápido aumento da diferença entre o dólar oficial e o paralelo; ● Crescimento da inflação em janeiro: o índice anual supera confortavelmente os 30%; ● Maior dispersão nas expectativas dos preços devido ao aumento da incerteza; ● Futuras negociações salariais provavelmente conflituosas, com demandas sindicais baseadas na inflação esperada; ● Investimentos em nível baixo e clima de negócios enfraquecido por políticas discricionárias. Nesse contexto, as perspectivas em relação ao nível de atividade econômica e, especialmente, quanto à criação de empregos para 2013 são medíocres, enquanto que a inflação esperada é ascendente. Trata-se de um panorama pouco animador para os governistas em um ano eleitoral. Por isso, não é de surpreender que o governo tenha se mostrado muito ativo na esfera econômica. Neste ano, até o momento, foram lançadas diversas iniciativas que combinam em doses variadas o voluntarismo — pressão para que os sindicatos concordem com recomposições José Fanelli é economista do CEDES — Centro de Estudios de Estado y Sociedad, Argentina. 1 56 RBCE - 114 Artigo divulgado no portal Observatório Econômico da Rede Mercosul, no 53, em 18/02/2013. salariais abaixo da inflação e para que os produtores desovem seus estoques de soja — com a intervenção discricionária: controles de preços por 60 dias; racionamento aleatório da venda de dólar-turismo pela Administração Federal de Ingressos Públicos (Afip); aumentos disfarçados em tarifas de serviços; correção da renda mínima isenta de tributação com base em critérios pouco claros de equidade fiscal. O principal objetivo das medidas — em especial o congelamento de preços e a correção do imposto de renda — parece ser o de reduzir a inflação para uma faixa em torno de 20%, sem afetar em excesso o nível de atividade econômica. Convém ser cético, no entanto, em relação à capacidade dessas medidas para coordenar as decisões de empresas, sindicatos e províncias em um cenário de inflação de 20%. As iniciativas carecem de coordenação e não chegam a constituir um programa econômico articulado, capaz de se mostrar funcional para reduzir a incerteza e dissipar, assim, o risco de que a economia se aproxime do sombrio cenário de recessão com inflação. Avaliadas em conjunto, as medidas apresentam certas deficiências técnicas, que serão discutidas abaixo. Se formos além dos aspectos puramente técnicos, é fácil imaginar que as restrições encontradas pelos especialistas do governo para elaborar um plano anti-inflacionário estruturado têm origem principalmente no campo da política: para um funcionário seria difícil apresentar explicitamente as medidas como parte de um programa anti-inflacionário, pois no discurso político oficial a inflação não existe, ou, se existe, é um problema menor, um efeito colateral inevitável da implementação do que se considera uma estratégia ousada de política redistributiva. De fato, a inflação acima de 20% sequer existe nas medições do Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec). Então, nesse ponto, a lógica do discurso político colide com os requisitos técnicos da economia e dificulta o trabalho de coordenação das expectativas. Com isso, tem-se que, para aumentar a eficácia das medidas anti-inflacionárias, a primeira coisa a se fazer é inserir a inflação dentro do discurso (para dizê-lo no estilo um tanto barroco que é tão popular nos dias de hoje). Caso contrário, para alcançar uma desinflação, os custos serão maiores em termos de recessão, desemprego e efeitos redistributivos regressivos. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE PLANOS ANTI-INFLACIONÁRIOS HETERODOXOS Na década de 1980, os planos anti-inflacionários israelense e argentino utilizaram os controles de preços como instrumentos “heterodoxos” para desinflacionar a economia. O objetivo central desses planos era o de reduzir as taxas de inflação extremamente altas e de fazê-lo minimizando os custos em termos da queda do nível da atividade econômica e do desemprego. Tanto Israel quanto a Argentina daquela época vinham experimentando taxas de inflação extremamente altas por períodos prolongados. Na Argentina, por exemplo, a inflação anual era sempre maior do que 100%, podendo facilmente alcançar o dobro disso. Como resultado, havia se instalado uma “inércia” inflacionária que afetava a formação das expectativas: os agentes esperavam que a inflação fosse muito alta porque essa vinha sendo a sua trajetória recente, e fixavam os preços com base nessa expectativa. Confrontado com essas condições, um ministro ortodoxo trataria de desinflacionar a economia reduzindo drasticamente a emissão monetária. Estratégias de “choque monetário” desse tipo, no entanto, têm um risco: se os agentes demoram a se convencer de que o governo efetivamente pretende cumprir o compromisso de reduzir a emissão monetária, e seguem formando suas expectativas e fixando os seus preços de forma mais ou menos inercial, a desinflação será muito mais custosa em termos de desemprego. Na verdade, se o Banco Central reduzir fortemente a emissão e os preços continuarem subindo, haverá recessão, porque, ao RBCE - 114 57 O objetivo de utilizar o controle de preços e o congelamento como instrumentos no contexto de um plano anti-inflacionário é, justamente, o de evitar o viés recessivo aumentar os preços mais do que a oferta monetária, tanto a oferta de moeda quanto a de crédito cairiam em termos reais, a liquidez e as taxas de juros aumentariam e, como consequência, cairiam o consumo e o investimento. O objetivo de utilizar o controle de preços e o congelamento como instrumentos no contexto de um plano anti-inflacionário é, justamente, o de evitar o viés recessivo. O papel dos controles é, por um lado, gerar um sinal confiável de que os preços vão parar de subir, e, por outro, conseguir uma desindexação coordenada e simultânea de preços, salários, tarifas de serviços públicos e taxas de câmbio. Se isso for alcançado, o efeito da contração monetária desaparece: ainda que o Banco Central reduza a emissão drasticamente, como os preços deixam de crescer de forma inercial, a oferta de moeda e de crédito não cai, e o viés recessivo é mitigado. Os controles de preços, como instrumentos de desinflação heterodoxa, fazem parte da caixa de ferramentas à disposição de todo macroeconomista profissional. A decisão de fazer uso ou não dessas ferramentas em uma dada circunstância é um problema técnico. No entanto, como a estabilização heterodoxa já foi alvo de interpretações equivocadas, cabe fazer quatro esclarecimentos. ● Primeiro: tanto no caso ortodoxo quanto no heterodoxo é preciso parar 58 RBCE - 114 de emitir moeda para que a inflação caia. A diferença de enfoque se refere à dinâmica de convergência das expectativas, desde um cenário de inflação alta e inercial até outro de inflação baixa e economia desindexada. Ela não se refere, no entanto, ao ritmo de emissão no período seguinte à implementação do programa, em relação ao qual ambas as abordagens essencialmente coincidem. Na situação de equilíbrio pós-estabilização, a emissão monetária deve ser igual à soma da taxa de crescimento com a taxa de inflação, variável esta que seria baixa caso o plano fosse bem sucedido. ● Segundo: para controlar a emissão não deve haver dominância fiscal. Ou seja, se houver déficit fiscal no momento de lançar o programa, este não pode ser financiado por meio da emissão de moeda. Portanto, para evitar um ajuste fiscal como parte do programa, deve-se contar com financiamento não monetário: é preciso ter acesso aos mercados voluntários de crédito domésticos ou externos. Se o financiamento não estiver disponível, o programa terá necessariamente um viés recessivo em consequência do ajuste fiscal, independentemente de ser ortodoxo ou heterodoxo. Naturalmente, o efeito recessivo poderá ser mitigado, ou mesmo revertido, se o programa se mostrar tão confiável a ponto de sua aplicação levar a um boom de investimento privado que compense o efeito do ajuste fiscal. Para que isso aconteça, independentemente do grau de ortodoxia, é vital criar confiança não só de que as expectativas e a política fiscal e monetária estarão alinhadas, mas também de que o marco institucional e a sua aplicação não vão jogar contra o esforço do setor privado. ● Terceiro: congelar os preços de forma confiável quando existem grandes distorções de preços relativos é muito difícil. Por exemplo: se a taxa de câmbio real está muito defasada, os agentes vão saber antecipadamente que haverá uma correção cambial. Essa correção pode ocorrer porque a taxa de câmbio (o valor do dólar) sobe ou porque os preços baixam. No entanto, como os preços não caem exceto quando acompanhados por grandes recessões (por exemplo: a Espanha atualmente), a expectativa será no sentido de que haverá uma desvalorização e que, portanto, os preços subirão, violando os controles. Para evitar isso e adiar a necessidade de se promover um ajuste na taxa de câmbio real até que a desinflação esteja consolidada, seria necessário contar com financiamento ou ajuda externos ou com superávit da conta corrente pré-existente. ● Quarto: os programas heterodoxos sofrem do problema do dia “D”. Se o congelamento tem data de vencimento, corre-se o risco de que todos os agentes esperem até esse dia para corrigir seus preços, evitando assim ficar em maus lençóis com o governo. Se isso ocorrer, haverá uma aceleração inflacionária logo no dia “D”. Se, pelo contrário, o congelamento é sine die (sem data marcada), isso equivale a assumir que nunca mais será necessário corrigir os preços relativos, o que está em contradição com a essência de uma economia de mercado. Obviamente, a forma de solucionar esse dilema é aproveitar ao máximo o período de controles, de modo a alinhar a política fiscal e monetária, e, tendo feito isso, abandonar gradualmente os controles, confiando em que finalmente as expectativas estarão coordenadas dentro de um novo cenário sem inflação inercial. Um elemento chave é já ter preparado um novo regime para o dia “D”, o qual poderia ser, digamos, a implementação de um esquema de “metas de inflação”. O CONGELAMENTO POR 60 DIAS À LUZ DAS TÉCNICAS HETERODOXAS Quais as perspectivas do congelamento atual e das outras medidas recentes à luz dessas observações? ● Inconsistência com a política monetária. Em fins do ano passado, a emissão monetária evoluiu a uma taxa anualizada de cerca de 40%. Trata-se de algo dificilmente compatível com um congelamento de preços ou com uma inflação em torno de 20%, como parece ser a meta oficial. O governo não realizou nenhum anúncio mencionando que a taxa de emissão se adaptará ao objetivo planejado. Isso enfraquece a credibilidade e impede a coordenação das expectativas no cenário desejado. ● Inconsistência com a política fiscal. O déficit fiscal, somado ao pagamento da dívida vincenda, demanda financiamento, mas as autoridades não têm acesso ao mercado voluntário de crédito. Sob essas condições, a única forma de cobrir as necessidades de financiamento é por meio da emissão monetária. Isso cria a expectativa de que a emissão será mais similar à do ano passado do que a requerida para desinflacionar a economia. Em outras palavras, seria necessário acompanhar o congelamento com um ajuste fiscal. No entanto, é difícil que isso seja aprovado em um ano eleitoral. Se nesse contexto ocorrer um choque positivo — como, por exemplo, uma reativação superior à esperada no Brasil —, a taxa de inflação tenderia a se acelerar. Um nível maior de atividade econômica sem ajuste fiscal aumentaria a RBCE - 114 59 A defasagem entre o dólar oficial e o paralelo atua como um indicador da probabilidade de que o governo não siga as pautas que fixou para administrar a taxa de câmbio 60 RBCE - 114 pressão de demanda sobre uma oferta não muito elástica. ● Preços relativos distorcidos. A taxa de câmbio real se defasou significativamente nos últimos anos. O sinal mais evidente disso é que o governo impôs o controle do câmbio. Se o valor do dólar fosse o de equilíbrio, não haveria um excesso de demanda que obrigasse a implementação de um controle (“cepo cambiário”) da venda de divisas. Outro sinal no mesmo sentido é que o folgado superávit em conta corrente da década passada se exauriu. Também estão defasados os preços dos serviços subsidiados. A evidência, nesse caso, é o desaparecimento do superávit fiscal. O governo reconhece isso e revelou que a taxa de câmbio nominal subirá cerca de 20%. No entanto, isso equivale a corrigir os preços relativos em pleno congelamento, o que joga contra a efetividade do próprio congelamento. A situação ficará ainda pior se ocorrerem, além disso, ajustes nas tarifas de serviços ou se aumentar a brecha entre o dólar oficial e o paralelo. Note-se que um componente importante da estabilização heterodoxa é a fixação da taxa de câmbio nominal. A existência de um dólar paralelo equivale a ter o mercado segmentado entre um dólar administrado e outro flexível. Quanto maior for o peso deste último na formação de expectativas de preços, menor será a eficácia do congelamento. Outras experiências indicam que se a brecha entre o dólar oficial e o paralelo for muito grande, o governo acaba desvalorizando o câmbio, como mostra o caso recente da Venezuela. Os agentes consideram isso ao fixar os preços e, desse modo, a defasagem entre o dólar oficial e o paralelo atua como um indicador da probabilidade de que o governo não siga as pautas que fixou para administrar a taxa de câmbio. ● Credibilidade fraca. Implementar um congelamento sem dizer claramente que isso faz parte de um esforço generalizado para reduzir a inflação e sem informar quais são os preços congelados, de forma que seja possível comprovar se os preços sofreram alteração, enfraquece a credibilidade da medida. Nesse sentido, a proibição da publicidade das promoções dos supermercados não contribui em nada para o êxito da iniciativa, pelo contrário, pois torna a medida mais obscura, em vez de mais transparente. Ainda que isso significasse aumentar a rentabilidade dos meios de comunicação, seria melhor publicar listas com os preços acordados. Uma externalidade positiva adicional seria a de fornecer financiamento à liberdade de imprensa. ● Risco do dia “D”. Como a medida tem duração de 60 dias, aumenta o risco de que no dia 61 haja uma aceleração da inflação ao se coordenarem simultaneamente todos os ajustes de preços. Note-se que normalmente os ajustes de preços são feitos de forma solapada e não ocorrem ao mesmo tempo. Assim, mesmo quando no dia 61 ocorrerem os ajustes que não foram feitos antes, por estarem coordenados em um único ponto no tempo, haverá a sensação de que a inflação aumentou violentamente ao fim do período. ● As condições não se assemelham às dos anos 1980. Em relação à década de 1980, a inflação atual não é comparável, porque é muito inferior; o grau de inércia é relativamente baixo, porque os contratos não são formalmente indexados; e, embora não haja acesso ao crédito, a dívida pública é administrável. Sob essas condições, recorrer a controles de preços e a congelamentos não seja, provavelmente, tão necessário para coordenar as expectativas. Mas, independentemente disso, já que um plano heterodoxo requer medidas fiscais e monetárias consistentes com a meta de inflação que se busca, e dado que a “parte” heterodoxa do plano já foi implementada, seria conveniente que o governo complementasse o pacote com medidas fiscais e monetárias consistentes. Nesse sentido, não deveriam ser negligenciadas as lições aprendidas a partir das experiências de controle de preços tecnicamente mais sofisticadas do passado. Um fato particularmente relevante a esse respeito é que o Plano Austral fracassou, mas o israelense, não. No primeiro caso, a utilização dos instrumentos heterodoxos não pôde ser acompanhada pelos fundamentos fiscais e de financiamento externo necessários. No segundo, sim. Em suma, a mistura de voluntarismo e intervencionismo na elaboração das políticas e a ausência de um programa articulado de inflação não são novidades. São coerentes com o que o governo tem feito ultimamente. A diferença específica da conjuntura atual é que a margem de erro diminuiu muito, porque o contexto mudou: por um lado, no cenário atual há tanto déficit fiscal quanto externo, e, por outro, a inflação e os preços relativos estão muito desalinhados. As inconsistências fiscais, monetárias e cambiais observadas nos últimos anos se refletiram na perda dos superávits fiscal e em conta corrente, assim como na aceleração da inflação. Até recentemente, a economia vinha “metabolizando” as mudanças negativas, pois havia margem fiscal e externa. Hoje, porém, essas margens não existem mais. ■ RBCE - 114 61