ESPECIAL/GUERRAS ESPECIAL/GUERRAS EE APH APH LEGADO DAS GUERRAS armados contribuem com tecnologias para o APH civil em todo o mundo, mas falta preparação e estrutura para que sejam adotadas pelos serviços brasileiros MAJ. ROBERT BOCKHOLT, SOCOM/ARMY.MIL Conflitos Emergência 24 Emergência 24 NOVEMBRO / 2015 O s primeiros registros detalhados de uma forma organizada de transporte de pacientes remontam às guerras napoleônicas. No século XIX, o Barão Dominique-Jean Larrey, médico no Exército de Napoleão Bonaparte, observou que o atraso no atendimento aos soldados feridos reduzia suas chances de sobrevivência e que o cavalo percorria o campo de batalha rapidamente, inclusive portando itens pesados. Então, imaginou que os animais pudessem auxiliar num sistema para remoção das vítimas do campo de batalha para o hospital de campo. Assim, ele desenhou uma carroça puxada por cavalos, adaptada para o transporte de pacientes. A ideia foi evoluindo junto à civilização, culminando nas atuais ambulâncias utilizadas no atendimento pré-hospitalar em diversos países. Mas as ambulâncias não são os únicos progressos resultantes das guerras e aplicados no APH. Várias outras tecnologias, técnicas, medicamentos, equipamentos, estratégias e metodologias de atendimento são contribuições de conflitos armados. Estes ambientes são propícios para o desenvolvimento e testagem de inovações, já que os recursos são, em geral, escassos. Na urgência de salvar vidas, é necessário improvisar com o que se tem à mão e, nestas ocasiões, manifesta-se a criatividade humana. “Existe uma máxima militar que diz: em tempo de guerra, a proporção do desenvolvimento tecnológico é de dez para um. Ou seja, o que levaria dez anos para ser desenvolvido pode levar apenas um ano quando existe a pressão da guerra, influenciando os envolvidos com a necessidade imediata de resultado”, compara o paramédico Jorge Alexandre Alves, especializado em Emergências Médicas, instrutor dos programas PHTLS (Prehospital Trauma Life Support) e ACLS (Advanced Cardiac Life Support), e sócio-diretor da Fire & Rescue Group. Reportagem de Priscilla Nery NOVEMBRO / 2015 Emergência Emergência 25 25 ESPECIAL/GUERRAS E APH “Historicamente, as guerras têm funcionado como um grande laboratório para o desenvolvimento de novas técnicas, novos recursos e equipamentos. Até hoje isto ainda acontece”, resume o médico especialista em Cirurgia Geral e do aparelho digestivo Ricardo Galesso, gerente de Treinamento do GRAU (Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências) da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Ele cita como grandes contribuições para o APH os torniquetes, curativos hemostáticos, kits para cricotireoidostomia cirúrgica, dispositivos para drenagem torácica sem selo d’água, ultrassom e monitores multiparâmetro portáteis, além da telemedicina. “Tudo isto já foi usado e testado em ambiente de guerra, e hoje é utilizado no APH civil em muitos lugares do mundo”, comenta. AVANÇOS A humanidade, desde seus primórdios, aprende em ambiente bélico como tratar lesões graves e, de uma forma ou outra, transporta este árduo aprendizado para o cenário civil. Conforme observa o médico especialista em Cirurgia Geral com área de atuação em Cirurgia do Trauma Bruno Pereira, membro da SBAIT (Sociedade Brasileira de Atendimento Integrado ao Traumatizado) e professor da disciplina de Cirurgia do Trauma na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas/SP), vítimas de ferimentos por arma de fogo levadas para qualquer grande centro de trauma ou sala de emergência da cidade certamente beneficiam-se de técnicas que uma geração de emergencistas e cirurgiões aprenderam, primeiramente, em cenários de combate. JORGE ALEXANDRE ALVES GUERRAS E APH NOS EUA Técnica de hemostasia, utilizando uma atadura (bandagem) compressiva Referencial no atendimento pré-hospitalar mundial devido a iniciativas pioneiras, os Estados Unidos souberam adaptar diversas descobertas testadas durante as guerras para o APH civil. Veja abaixo algumas contribuições expressivas, adotadas a partir da década de 1970: O desenvolvimento de profissionais dedicados ao atendimento pré-hospitalar, como Técnicos em Emergências Médicas e Paramédicos, sendo esta a principal diferença para a evolução dos Sistemas de Emergências Médicas da área civil nos Estados Unidos; O desenvolvimento dos Sistemas de Comando de Incidentes e protocolos para atendimentos a múltiplas vítimas, como o método S.T.A.R.T. - Simple Triage and Rapid Treatment/ Transportation; O uso de aeronaves para resgate (Casevac – Casualty Evacuation) e para remoções aeromédicas (Medvac - Medical Evacuation); O desenvolvimento da medicina aeroespacial e hipobárica; O desenvolvimento da medicina hiperbárica e tabelas de tratamento hiperbárico com ar e misturas respiratórias; O desenvolvimento de equipamentos e materiais para hemostasia, tais como as bandagens e substâncias hemostáticas, clamps (grampos) de fechamento de ferimentos, além dos torniquetes de combate, entre outros para prevenir o estado de choque hipovolêmico; O desenvolvimento das técnicas e equipamentos para reinfusão sanguínea em campo de combate; O desenvolvimento de técnicas e equipamentos para acessos intraósseos; O desenvolvimento de selos de tórax e conjuntos de punção torácica para controle do pneumotórax; O desenvolvimento de biotelemetria para monitorização e acompanhamento à distância dos campos de batalha pelos centros médicos e especialistas de referência; O desenvolvimento da telemedicina com uso de equipamentos robóticos para cirurgias à distância. Fonte: Jorge Alexandre Alves, paramédico especializado em Emergências Médicas, instrutor dos programas PHTLS (Pre-Hospital Trauma Life Support) e ACLS (Advanced Cardiac Life Support), e sócio-diretor da Fire & Rescue Group. 26 Emergência “Apesar de toda a destruição e caos, a guerra estimula, sem sombra de dúvidas, os avanços médicos. Historicamente, tratamentos de cirurgia do trauma, cuidados de emergência e doenças infecciosas são aquelas áreas que mais avançam por consequência de conflitos bélicos”, avalia. Ele cita como exemplos a descrição, por cirurgiões romanos, de ligaduras de artérias para controlar o sangramento; e a invenção do torniquete, em 1718, quando o cirurgião do Exército francês Jean Louis Petit tornou possível amputar as pernas acima do joelho, evitando que o paciente sangrasse até morte. “Seu dispositivo - que, neste caso, impede o fluxo da artéria femoral - faz parte até hoje do kit de primeiros socorros de combatentes militares”, completa o especialista. Por volta de 1862, “ambulâncias voadoras” foram utilizadas para transportar soldados feridos durante a Guerra Civil Americana (1861-1865), graças ao médi­co americano Jonathan Letterman. O mesmo médico foi responsável pela redução da mortalidade de combatentes durante o mesmo conflito, quando decidiu posicionar postos de primeiros socorros mais próximos ao front de batalha. Aliás, a Guerra Civil Americana impactou de forma significativa a prática da Medicina nos EUA. “O cirurgião Blaisdell, tido por alguns como o pai do moderno conceito de centro de trauma, estabeleceu as normas para lidar com vítimas em massa e para a combinação de hospitais de campanha com grandes hospitais de estilo pavilhão. Este último se tornou o modelo para os hospitais municipais construídos pelos Estados Unidos durante os próximos 75 anos adiante”, detalha Pereira. “O tratamento de um soldado baixado por pessoal médico no local do acidente deriva da guerra de trincheira - Primeira Guerra Mundial, e evoluiu por meio dos médicos de combate da Segunda Guerra Mundial”, lembra Marcio Leandro Reisdorfer, major da Polícia Militar de Santa Catarina, socorrista formado em Medicina Tática e piloto de avião e helicóptero. Já o uso de aeronaves para agilizar o transporte do acidentado para um hospital veio de procedimentos de evacuação aeromédica desenvolvidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939– 1945) e Guerra da Coreia (1950 – 1953), culminando com as operações militares aéreas no Vietnã (1955 - 1975). Este último NOVEMBRO / 2015 ESPECIAL/GUERRAS E APH de trauma tem sido relativamente lenta. CONHEÇA OS PRINCIPAIS FERIMENTOS FATAIS EM ÁREA DE COMBATE: MEDICAMENTOS Novidades que vêm sendo testadas em meio aos conflitos são o fator VII ativado recombinante e o ácido tranexâmico, que têm se mostrado potencialmente eficazes no controle da hemorragia e diminuição do risco de morte. Porém, as maiores novidades estão no formato e possibilidades de vias de acesso das medicações aos organismos, oferecendo menor exposição ao risco das equipes de atendimento médico de combate e melhor eficiência de ação das drogas no organismo. “A mentalidade é poder desenvolver técnicas de tratamento de fácil aplicação pelo combatente e medicamentos que possam ser utilizados nos soldados atingidos, e que sejam armazenados em pequenos volumes e com o menor peso possível, pois cada combatente levará consigo o necessário para um atendimento. O acesso intraósseo é um exemplo de tecnologia para facilitar a infusão da medicação necessária na emergência, já que o combatente não tem a habilidade de fazer um acesso venoso periférico com um dispositivo de grosso calibre para infusão rápida da medicação necessária. No Brasil, estas tecnologias só podem ser utilizadas pela equipe avançada (médicos e enfermeiros treinados), diferente dos combatentes americanos, por exemplo”, cita a especialista em Medicina de Urgência e Transporte Aeromédico Júnia Shizue Sueoka, coordenadora-geral do SAMU de Diadema/SP, integrante do GRAU e professora em cursos de Primeiros Socorros e Urgências. Hemorragias de extremidades – 60% Pneumotórax hipertensivo – 33% Obstrução de Vias Aéreas – 6% TCE (Traumatismos Cranioencefálicos) – penetrantes – 40% (mortes inevitáveis) Grandes hemorragias com morte imediata (em menos de seis minutos) - 90% conflito foi marcado ainda pela presença do paramédico - ou seja, os próprios soldados americanos recebiam formação para socorrer companheiros feridos.O conceito de Paramedicina logo foi levado para o meio civil. Em 1973, quando a Guerra do Vietnã ainda se desenrolava, o presidente Nixon adotou a ideia para atender vítimas do trânsito americano. “Paradoxalmente, as colisões veiculares nas ruas e estradas feriam mais pessoas do que a guerra em curso. O currículo nacional nos EUA é publicado pelo DOT (Department Of Transportation), para formação de First Responders (Emergency Medical Responder) e paramédicos. Ou seja, o DOT define as atribuições dos profissionais que atuam na estabilização da vítima para transporte. Diferente do Brasil, onde o atendimento a feridos no trânsito é regulado pela Saúde, e não pelo Transporte”, explica Randal Fonseca, diretor da RTI (Rescue Training International), instrutor formador NSC (National Safety Council) de Emergências Médicas e Condução Segura e instrutor de Gestão de Emergências e Sistema de Comando de Incidentes. O conflito em terras vietnamitas rendeu ainda a adaptação da remoção aeromédica para o meio civil. “O Pentágono - cérebro do Exército Americano -, em 1968, emprestou helicópteros para um programa piloto para resgatar as vítimas de acidentes de trânsito em San Antonio, Dallas e Baltimore, quando o cirurgião de trauma Adams Cowley convenceu as autoridades de Maryland a criar o primeiro sistema de transporte e resgate aéreo em todo o estado, no início de 1970. O sistema de resgate aéreo mundial evoluiu muito com estas experiências, de forma global”, relata o médico Bruno Pereira. ATUAIS No entanto, as maiores conquistas 28 Emergência chegaram a partir das guerras recentes, como Afeganistão e Iraque. Iniciado em 2003, o controverso conflito trouxe inovações em controle da hemorragia, reanimação e monitorização, resultando num percentual de mortalidade de apenas 10% entre os soldados feridos. Esta porcentagem significa um grande salto quando se observa que, na Guerra do Vietnã, 24% dos pacientes morriam e, na Segunda Guerra Mundial, a taxa era de 30%. Nestes conflitos recentes, o choque hemorrágico, que em geral ocorre a partir de amputação traumática ou ferimento penetrante, continua sendo a causa principal de morte de soldados em combate. Para prevenir e tratar o choque hemorrágico, muitas vezes, os pacientes recebem transfusões de sangue. “Assim, novos consensos surgiram sobre transfusões de sangue e sua relação com seus próprios derivados, sugerindo a transfusão de concentrados de hemácias, plaquetas e plasma na mesma proporção, de forma que o sangue recebido pelo combatente ferido fosse, desta forma, o mais próximo daquele que conhecemos como sangue total”, conta o médico Bruno Pereira. Outro aprendizado com os conflitos bélicos recentes é o tratamento agressivo da chamada “tríade letal” - quando a vítima se encontra em estado crítico, com hipotermia (temperatura abaixo de 35ºC), acidose (excesso de ácido nos líquidos do corpo) e coagulopatia (distúrbio da coagulação sanguínea). O uso de técnicas hemostáticas, a intervenção cirúrgica precoce e o controle de danos com ativação do protocolo de transfusão maciça levaram a taxas de sobrevivência, em ambientes militares, de mais de 86%, contra 40-60% em configurações civis - sem a utilização destas intervenções. Conforme avalia Pereira, a adoção destas práticas de transfusão em cenário civil JORGE ALEXANDRE ALVES Fonte: Jorge Alexandre Alves, paramédico especializado em Emergências Médicas, com base em dados da NAEMT (National Association of Emergency Medical Technicians) O acesso intraósseo é um exemplo de tecnologia vinda de conflitos NOVEMBRO / 2015 Medicina Tática Aplicação de ações da Medicina de Guerra ARQUIVO MARCIO REISDORFER nos conflitos urbanos Profissionais que atuam em distúrbios civis praticam a chamada Medicina Tática Fruto da evolução iniciada há séculos, o atual conceito de Medicina de Guerra considera as ações praticadas por profissionais de saúde militares, sendo desenvolvidas em hospitais localizados em cidades próximas às áreas de guerra ou em postos hospitalares avançados com estruturas e pessoal mobilizável; ou ainda por militares com formação específica em Técnicos em Emergências Médicas e/ou Paramedicina, que atuam nas frentes de combate. Estes profissionais recebem treinamentos específicos para atendimentos de emergências em ambiente bélico, como o TCCC (Tactical Combat Casualty Care – veja detalhes no box). Com o passar dos anos, observou-se que as inovações desenvolvidas durante as guerras poderiam ser úteis diante de conflitos urbanos, manifestações, etc., já que é comum haver feridos nestas ocasiões - sejam eles policiais, sequestradores, populares. “Nos conflitos urbanos, muitas vezes, o ambiente ao redor da zona quente permanece no seu estado de normalidade, o que exige um cuidado maior das equipes envolvidas, para evitar maiores danos às pessoas ou ao patrimônio próximo ao local de conflito. Outra diferença quando comparamos conflitos urbanos com as guerras está na disponibilidade de recursos e na proximidade dos centros de trauma. Nos conflitos urbanos, normalmente há NOVEMBRO / 2015 mais recursos disponíveis para o APH (inclusive suporte avançado, que muitas vezes não existe no ambiente de guerra), e o tempo para o transporte até o hospital costuma ser menor”, analisa Ricardo Galesso, gerente de Treinamento do GRAU (Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências) da Secretaria de Saúde do Estado de SP. Os profissionais que atuam em distúrbios civis praticam a chamada Medicina Tática. “São profissionais com formação específica em Técnicos em Emergências Médicas e/ou Paramedicina que atuam como policiais em ações de confronto urbano, tanto em repressão a crimes, terrorismo ou distúrbios civis. Estes profissionais recebem treinamentos específicos para atendimentos de emergências, como o LEFR-TCC (Law Enforcement and First Response Tactical Casualty Care)”, explica o paramédico especializado em Emergências Médicas Jorge Alexandre Alves. NACIONAL No Brasil, Alves observa que práticas da Medicina Tática enfrentam a empecilhos como a falta de profissionais técnicos em emergências médicas e paramédicos atuando em grupos policiais; e a carência de recursos materiais e sistematizações para os procedimentos corretos e seguros, quando consideradas reEmergência 29 ferências de países onde a Medicina Tática está bem alicerçada, a exemplo dos Estados Unidos. As dificuldades para o desenvolvimento da Medicina Tática em território nacional esbarram na própria falta de reconhecimento das profissões Técnico em Emergências Médicas e Paramédico, que não existem na legislação. Além dos conhecimentos médicos e da competência para executar procedimentos de suporte avançado de vida, estes profissionais possuem, em sua formação, conhecimentos sobre equipamentos e técnicas para proteção e acesso a áreas com diversos riscos, em ambiente SAIBA MAIS SOBRE O TCCC Criado após o conflito na Somália, em 1993, o TCCC (Tactical Combat Casualty Care, ou Atendimento a Vítimas de Combate Tático) foi publicado em 1996 nos anais de Medicina Militar nos Estados Unidos. O curso é voltado especificamente para militares, e aborda técnicas de salvamento baseadas em evidências e estratégias para proporcionar o melhor atendimento ao trauma no campo de batalha, segundo a NAEMT (National Association of Emergency Medical Technicians) - entidade americana que é referência no setor e oferece o TCCC. O treinamento está sendo trazido ao Brasil pelos médicos habilitados junto à NAEMT, Júnia Sueoka e Fabio Almeida. “Neste curso, o aluno aprende a lidar com as principais situações de trauma causadas pelo conflito, que podem levar a vítima à morte. Aprende a utilizar os equipamentos e a aplicar as táticas de deslocamento, avaliação, tratamento e evacuação da vítima para um centro de referência. O resultado é muito melhor do que esperar até que uma equipe especializada chegue até o local para, então, iniciar o tratamento pré-hospitalar adequado”, detalha Júnia. JORGE ALEXANDRE ALVES ESPECIAL/GUERRAS E APH Curso de Resgate Tático para a Força Nacional de Segurança pré-hospitalar. Já o major Marcio Leandro Reisdorfer, socorrista formado em Medicina Tática e piloto de avião e helicóptero, comenta que a Medicina Tática no Brasil é tratada de forma incipiente, sendo mantida e fomentada por poucas corporações policiais. Quase sempre, são os próprios grupos de operações especiais e/ou unidades táticas que buscam treinar tais situações, assim como ocorreu nos Estados Unidos há duas décadas, no início destas ações naquele país. Ele salienta que, atualmente, não há nenhuma literatura escrita ou traduzida a respeito do assunto em terras brasileiras, o que dificulta sua difusão e, consequentemen- Realidade brasileira Especialistas avaliam a aplicação das novidades da Medicina de Guerra nos serviços de APH no país SGT. 1ST CLASS CHRISTOPHER FINCHAM/ARMY.MIL Seja pelo desconhecimento ou a postura do país, que não costuma se envolver em conflitos bélicos, é fato que o APH no Brasil ainda não assimilou boa parte das inovações desenvolvidas em guerras. Todavia, é necessário avaliar a importância do conhecimento e aplicação destas inovações no enfrentamento dos diversos conflitos urbanos vivenciados por toda a nação. O “Mapa da Violência 2015”, levantamento realizado pelo Governo Brasileiro, UNESCO (Organização da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura) e FLACSO (Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais) e divulgado em maio deste ano revelou que, só em 2012, 42.416 brasi30 Emergência te, a formulação de diretrizes. Para Jorge Alexandre Alves, as iniciativas existentes no Brasil podem ser classificadas como Resgate Tático, pois os profissionais que as exercem não possuem capacitação correspondente à prática da Medicina Tática do exterior. “Temos visto algumas iniciativas de instituições policiais para desenvolverem procedimentos e técnicas de Resgate Tático, como o curso de 40h que desenvolvi em 2010 para a FNS (Força Nacional de Segurança)”, pontua, reforçando que o profissional treinado para atuação no ambiente tático sem supervisão deve dominar tanto as técnicas de saúde quanto o uso, se necessário, de armas de fogo. leiros morreram vítimas de armas de fogo. Destes, 40.077 foram assassinados. O número de óbitos por disparo de armas de fogo aumentou 387% entre 1980 e 2012.“Sem sombra de dúvidas, baseado nos fatos históricos e nas evidências atuais, o conhecimento de técnicas e equipamentos de Medicina de Guerra é importante no Brasil e pode melhorar sobremaneira a sobrevida de pacientes em situações de emergência e trauma”, reflete o médico especialista em Cirurgia Geral com área de atuação em Cirurgia do Trauma, Bruno Pereira. Agulhas intraósseas, por exemplo, facilitam a administração de líquidos e analgésicos em cenários de trauma, sendo importantes NOVEMBRO / 2015 SGT. 1ST CLASS MICHAEL SAURET/ARMY.MIL APH no Brasil ainda não assimilou boa parte das inovações desenvolvidas em guerras a fazê-lo. O APH que fazemos em nosso dia a dia já possui um elevado nível de risco a ser gerenciado; o APH Tático tem este risco elevado exponencialmente”, diz. FORMAÇÃO Júnia Sueoka, coordenadora-geral do SAMU Diadema/SP, lamenta a falta de preparação dos profissionais de emergência no país. “Infelizmente, a formação dos profissionais está muito precária. Caso eles queiram se aperfeiçoar, têm que fazer uma especialização à parte, uma pós-graduação. Se eles não buscarem por esta especialização, não terão acesso às novas tecnologias e, portanto, não terão conhecimento necessário para a sua utilização. Como os conflitos urbanos estão cada vez mais semelhantes a uma guerra, todos os que trabalham com emergência deveriam conhecer estas no- JORGE ALEXANDRE ALVES quando profissional e paciente estão em movimento devido ao transporte aéreo ou à circulação em estradas em más condições. Portanto, este recurso é interessante para países como o Brasil, devido a condições ruins em diversas vias e terreno acidentado. A administração de medicamentos durante o transporte nestas condições pode mover o acesso venoso para fora de seu lugar de origem, causando danos irreversíveis ao paciente crítico. “Acessos intraósseos são, agora, prática padrão para atendimento de trauma em países de alta renda, para o uso em trauma grave e acidentes de trânsito. A relativa facilidade de treinamento e colocação pode torná-los uma proposta atraente para uso por pessoal de saúde comunitária e enfermeiros, que muitas vezes são os primeiros a prestar cuidados em contextos de países de renda média-baixa como o Brasil”, explica o especialista. Na avaliação do gerente de Treinamento do GRAU, Ricardo Galesso, os serviços brasileiros estão começando, aos poucos, a utilizar a tecnologia vinda dos conflitos armados. “Isto depende muito dos recursos financeiros disponíveis para cada serviço. Em relação ao conhecimento, posso dizer que, no momento, ele está sendo construído. Não temos padronização de condutas, e existem muitas ofertas de cursos de Medicina Tática, os quais não sabemos a origem nem o nível de qualidade do ensino. Portanto, é necessário ter muito cuidado e critério quando se procura adquirir este novo conhecimento. Pesquisar a qualidade e a confiabilidade de um curso é essencial antes de se propor Profissionais afirmam que técnicas e equipamentos de Medicina de Guerra são importantes para os conflitos urbanos no país NOVEMBRO / 2015 vas tecnologias e saber como e quando aplicá-las”, fala a médica. Na opinião de Randal Fonseca, diretor da RTI, instrutor formador NSC (National Safety Council) de Emergências Médicas e Condução Segura, antes de se adotar, no APH brasileiro, equipamentos de última geração, desenvolvidos pelos EUA para melhorar o atendimento aos soldados feridos nos conflitos armados, será necessário começar pela organização geral dos serviços de APH. “É fundamental ter um Currículo Nacional Básico, livre dos interesses sectários, que seja verdadeiramente consistente e com abertura para alinhar às situações peculiares encontradas no território nacional - incluindo, florestas, ilhas e áreas de navegação, por exemplo”, esmiúça. Fonseca acredita que esta discussão não deva partir apenas de órgãos governamentais, e sim contar com a participação da iniciativa privada e da população, considerando que cada pessoa pode atuar dentro do sistema de atendimento a emergências, e fazer a diferença. “Se é para aprendermos alguma coisa com as guerras, vamos tirar proveito desta lição. Vamos colocar os munícipes na posição dos soldados. Cada um pode aprender a fazer uma parte do processo. Em vez de soldados-cidadãos, podemos ter socorristas-cidadãos. Precisamos focar na gestão. Sem gestão, sem formação, os equipamentos de alta tecnologia, como ocorre com ambulâncias, virarão sucata - vítimas, eles mesmos, daquilo que chamamos de ‘nossa realidade brasileira’”, conclui o instrutor. Emergência 31