Revista Cientifica 003_04.P65 - Associação Catarinense de Medicina

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Arquivos Catarinenses de Medicina V. 33. no. 3 de 2004 15
0004-2773/04/33
Arquivos Catarinenses de Medicina
ARTIGO ORIGINAL
Medicina de urgência – passado, presente, futuro
Rubia Maria Albino1, Viviane Riggenbach2
Breve Histórico no Mundo
Os grandes avanços na medicina de urgência, especialmente no campo cirúrgico, sempre aconteceram durante as guerras.
Hipócrates 500 a. c. já afirmava: “quem deseja praticar cirurgia deve ir à guerra”.
Por volta de 1760, durante as guerras napoleônicas,
D. J. Larrey, cirurgião de Napoleão Bonaparte, providenciava a remoção dos feridos graves em carroças rústicas puxadas por homens ou cavalos e que receberam o
nome de ambulâncias (da raiz francesa ambulant – que
deambula) para locais onde os recursos humanos e materiais eram concentrados para o atendimento aos feridos (precursores das unidades de emergências). Até então, esperava-se o término das batalhas para o atendimento aos feridos. Existem duas interpretações para esse
fato: que os franceses julgavam haver menos risco no
translado dos soldados feridos do que expor a vida dos
escassos médicos da frente de batalha; ou que eles valorizavam o atendimento imediato dos pacientes em busca de melhores resultados finais.
A medicina de urgência é uma ciência relativamente
nova. O conceito de cuidado médico de emergência nasceu aproximadamente em 1940, nos Estados Unidos, a
partir do Corpo de Bombeiros, que foi o primeiro a prestar cuidados médicos ao enfermo durante o transporte.
Em 1960, a Academia Nacional de Ciências introduziu
normas para o treinamento do pessoal de ambulância e
o tratamento do paciente na cena, durante o resgate, transporte e transferência. Em 1962, nos EUA, foi criado o
primeiro serviço tal como se conhece na atualidade e se
programou o primeiro curso para a formação de técni-
cos em Emergências Médicas.
Os primeiros esforços foram direcionados para o tratamento das arritmias graves e morte súbita, em conseqüência de enfermidades coronarianas.
No entanto, é a guerra do Vietnã o marco da assistência pré-hospitalar – com o resgate feito através de
helicópteros, demonstrando melhora nos resultados da
assistência, dada a rapidez com que o atendimento médico podia ser praticado. A experiência com traumatizados de guerra no Vietnã, demonstrou que se pode reduzir a mortalidade no campo de batalha para cerca de 1%.
É óbvio que houve uma melhora na terapêutica de suporte e na técnica cirúrgico/anestésica, mas a redução
da mortalidade é atribuída, em grande parte, ao sistema
de resgate e transporte de soldados feridos. A intervenção passou a ser realizada no local do acidente e mantida durante o transporte, em helicópteros especiais – verdadeiras UTIs móveis – com resultados surpreendentes. A partir daí, surgiram nos EUA sistemas organizados que transpuseram a experiência de guerra para a vida
civil, especialmente para os politraumatizados (doente
que mais se assemelha ao soldado no campo de batalha), mas não só a estes.
Uma viagem pelo nosso passado
O que podemos dizer sobre o passado dos nossos
serviços de Emergência locais?
Que eles serviam de porta de entrada para os médicos que desejavam ingressar no Corpo Clínico do Hospital. Havia um pacto velado, por assim dizer: você começa a trabalhar na Emergência e, surgindo uma vaga
no serviço que você pleiteia e que tem dono, “você sobe
de posto”. E que médicos eram esses? Que especialidade ou formação se requeria para a contratação do profissional que iria atuar na Emergência? Qualquer uma. Não
havia nenhum pré-requisito que não fosse o de ter um
1 - Médica Clínica Geral do Hospital Governador Celso Ramos(HGCR)
Mestranda em Ciências Médicas da UFSC
2 - Médica Cirurgiã Geral do HGCR
Mestranda em Ciências Médicas da UFSC
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Medicina de urgência – passado, presente, futuro
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diploma de médico, daí que o médico emergencista ou
emergenciologista, para alguns, era chamado de “tudologista”. Eram equipes bastante ecléticas, pode-se dizer,
e que, quando acumulavam alguma experiência/prática
em urgências, saíam da Emergência.
Mas, perguntamos, por que os médicos só ficavam
na Emergência o tempo que lhes era, de uma certa forma, imposto? Por que na primeira oportunidade eles
pediam remoção para outro setor? Pela baixa remuneração? Diríamos que não! Um dos colegas que atua até
hoje numa Emergência local, e por quem temos grande
apreço, falava-nos outro dia que, nos tempos idos, com
o pró-labore de dois meses, ele comprou um alfa-romeu
zero quilômetros e à vista.
Arriscamos supor que as razões da alta rotatividade
de médicos na Emergência, o que ainda é um fato atual,
são basicamente duas:
- falta de formação acadêmica adequada durante o
período de graduação e pós-graduação – não se ensina
medicina de emergência nem em quantidade suficiente,
nem de forma eficiente;
- falta de perfil psico-afetivo do médico que se propõe àquela atividade.
Esses dois fatos associados geram algo muito difícil
de administrar dentro de qualquer indivíduo: a insegurança. E é humano você querer afastar-se daquilo que
lhe causa insegurança. É impossível ser feliz vivendo
situações de insegurança no seu dia-a-dia.
Os que continuam trabalhando nas Emergências, alguns poucos, ao longo de 25 ou 30 anos, tinham o perfil
psico-afetivo do qual lhes falamos. Não tinham a formação acadêmica, mas tinham o perfil e, por isso, foram em busca dos conhecimentos necessários para dirimir as suas inseguranças.
quer maneira, ao nosso ver, a formação acadêmica desses especialistas ainda é insuficiente para a atuação numa
sala de Emergência.
Temos, ainda, outros grandes problemas nos Serviços de Emergência e citaríamos três que são os mais
relevantes, na nossa opinião:
As finalidades dos nossos serviços de emergência
estão completamente deturpadas, na medida em que são
utilizados pela população local como um substitutivo
aos Postos de Assistência Básica (Postos de Saúde). E o
grave desse fato é que uma Emergência não supre as
deficiências geradas pela assistência básica. A estrutura
montada nas Emergências só permite assistência adequada aos casos urgentes e emergentes. Aos demais, é o
que chamamos de medicina do “faz de conta”.
Não temos protocolos de atendimento médico, não
temos rotinas de enfermagem, enfim, não temos organização no setor e, por isso, ele funciona totalmente baseado na experiência individual de cada um, dificultando,
ou mesmo, impossibilitando melhores resultados. Eu
diria até que funcionamos de uma forma meio empírica,
copiando práticas anteriores, sem nos preocuparmos com
fundamentação científica que as ampare.
Nossos serviços de emergência estão completamente
desaparelhados. Causa-nos espanto visitar serviços de
Emergência nos hospitais da Grande Florianópolis, públicos ou privados, e observar que dentro de algumas dessas
Unidades não existem: oxímetros de pulso, monitores cardíacos e, pasmem, desfibriladores cardíacos. E perguntamos, numa delas: como é que vocês fazem quando chega
uma criança em parada? “Nós vamos à sala de reanimação
de adultos e pegamos o desfibrilador de lá”!!! Como se
cada segundo que se perde numa parada não fosse fundamental. Citamos estes três equipamentos por julgar que,
nos dias de hoje, é o mínimo que uma sala de reanimação
cardiorrespiratória de uma Emergência deva ter. Mas estamos convictos de que isso só não é o suficiente. Cada uma
dessas Unidades deve ainda possuir: ventilador pulmonar
– quem de nós nunca teve que ficar durante horas ventilando um paciente com ambú, enquanto aguardávamos a disponibilidade de um leito de UTI? Um aparelho de ultrasonografia – como remover um paciente politraumatizado
grave e instável hemodinamicamente da sala de reanimação para conduzi-lo ao serviço de raios X, visando confirmar ou afastar um sangramento intra-cavitário, entre outras situações? – é preferível que se lance mão da velha
prática de punção abdominal diagnóstica, abandonada na
maioria dos serviços do primeiro e até em alguns do terceiro mundo, com o advento da ultra-sonografia. Caixas com-
Nosso presente
Numa visão otimista, diríamos que estamos numa fase
de transição entre o passado do qual lhes falamos, que
devemos abolir, e o futuro que, obrigatoriamente, teremos que planejar.
No momento, nossos emergenciologistas não são
mais “tudologistas”. A cada concurso realizado para os
hospitais públicos requerem-se médicos clínicos, cirurgiões, anestesistas e ortopedistas para comporem o corpo clínico e atuarem dentro das suas áreas de conhecimento nas Emergências. Os Regimentos Internos de
Corpo Clínico dos nossos grandes hospitais, inclusive,
exigem pós-graduação em nível de Residência Médica
nessas áreas, para a admissão desses médicos. De qual16
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pletas de materiais para toracotomia e laparotomia em caráter emergencial, que permita ao cirurgião abrir tórax ou
abdome num momento crucial, ali mesmo, na sala de reanimação, evitando que o paciente morra exangüinado dentro do elevador que o transporta, ao centro cirúrgico, em
vão. Nós, que já trabalhamos há anos em Emergência, certamente já vivenciamos todas essas situações e também já
perdemos pacientes em função delas.
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5.
6.
O futuro dos nossos Serviços de Emergência
Diríamos que a palavra chave é organização dos nossos serviços. E esta organização tem que começar pelo
médico, que é quem tem o cérebro com treinamento mais
abrangente e, então, capaz de perceber todos os níveis de
atuação de todos os profissionais que interagem no setor.
Sugerimos que a organização deva incluir alguns aspectos, como:
1. Montar equipes médicas com profissionais com vocação e formação adequada para a prática da medicina de Emergência.
2. Observar os erros do presente e do passado para não
repeti-los.
3. Valorizar o médico da Emergência, cujo processo
só pode ter início no próprio médico emergenciolo-
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gista, que deve melhorar a sua auto-estima.
Instituir protocolos médicos de abordagem inicial
para pacientes na Emergência, incluindo a triagem
que deve orientar sobre a impossibilidade do atendimento eletivo, evitando iludir o paciente com a
falsa impressão de atendimento.
Exigir a instituição de protocolos de enfermagem
no atendimento inicial aos pacientes graves.
Exigir e colaborar para instituir protocolos de atendimento de outros segmentos profissionais da Emergência (porteiros, escriturários, agentes de serviços
gerais, motoristas, etc.)
Solicitar e exigir os materiais e equipamentos necessários à boa medicina na Emergência.
Instituir a verdadeira interdisciplinaridade no atendimento ao paciente grave, dentro de princípios éticos e científicos, terminando de vez com a deletéria
vaidade de alguns segmentos que teimam em se sentir melhores do que outros.
Julgamos que essas sejam medidas de fácil execução, bastando para isso que o profissional médico seja
motivado a compreender a importância da sua atuação
como chefe de uma equipe que, de fato, salva vidas.
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