6 Carta do IBRE Março 2011 Desafios do governo Dilma Hoje, a equipe econômica da presidente Dilma Rousseff trabalha com uma meta de crescimento do PIB superior a 5% ao ano. Talvez essa projeção decorra do fato de que, em três dos últimos quatro anos, o PIB brasileiro cresceu mais do que 5%.1 Em 2007, 2008 e 2010, a expansão da economia nacional foi, respectivamente, de 6,1%, 5,2% e 7,5%, o que aproximaria o país dos níveis asiáticos de crescimento. Todavia, o atual entusiasmo com a capacidade de crescimento do PIB nacional pode ser enganoso. O governo Lula, é bom lembrar, apresentou um crescimento médio de 4% — o que é um avanço em relação à tendência anterior, mas está longe de espetacular para uma economia emergente. Tomando-se a média do crescimento e do investimento nos últimos anos, não parece claro que a economia brasileira esteja ingressando num longo e estável período de crescimento acima de 5% ao ano. Para investigar essa questão de forma um pouco mais rigorosa, faz-se necessário examinar a tradicional equação de crescimento potencial, que aborda a economia pela ótica da capacidade de expansão da oferta. É verdade que muitos economistas desdenham do conceito de crescimento potencial, apontando para interações dinâmicas entre as variáveis da equação que desqualificariam os prognósticos baseados em projeções individuais para cada um dos seus componentes. Embora essa crítica não seja desprovida de lógica, a análise do potencial de crescimento a partir de perspectivas razoáveis (isto é, escoradas em projeções de séries históricas) de expansão dos fatores de produção e da produtividade é o único mapa, por mais precário que possa parecer, à disposição dos analistas para auscultar o futuro de médio e longo prazo da economia. Fora desses parâmetros, entra-se no campo da intuição pura e do pensamento mágico, para o qual a formação de economista é, evidentemente, de pouca utilidade. Dessa forma, é preciso examinar a evolução do estoque de capital, da oferta de trabalho e da produtividade, levando-se em conta dados de nível de utilização da capacidade instalada (NUCI), horas trabalhadas, participação do capital e do trabalho na renda nacional, taxa de depreciação do capital e taxa de investimento. Tendo em vista o período 2011-2014, correspondente ao atual mandato presidencial, um conjunto de hipóteses formuladas para esta Carta indicaria que o crescimento potencial seria ligeiramente superior a 4% ao ano. Conjecturas Para o exercício, supõe-se que o estoque de capital crescerá 4,1% ao ano, o que é compatível com uma taxa de investimento média ao longo dos próximos quatro anos de 19% do PIB. Não se pode deixar de mencionar que a taxa média de investimento trimestral caiu para 16,4% do PIB no período 2003-2010, depois de ter atingido 17,1% no período de 1995 a 2002. O percentual Carta do IBRE 7 Março 2011 projetado para a taxa de investimento está acima, consequentemente, tanto do registrado no governo Lula quanto do observado nos anos de presidência de Fernando Henrique Cardoso. Considera-se que a oferta de trabalho, por sua vez, se expandirá a uma taxa média anual igual à verificada ao longo dos últimos quatro anos — isto é, 1,8%, ainda, portanto, acima do crescimento da população economicamente ativa, PEA, que está rodando atualmente na casa de 1,5% ao ano. Por fim, admite-se um crescimento de 1,5% ao ano para a produtividade total dos fatores (PTF), comparado a uma média de 1,3% na era Lula, e de apenas 0,1% no governo FHC. Com esses parâmetros, chega-se a um crescimento potencial da economia brasileira de 4,3% ao ano. É possível objetar que o governo prevê que a taxa de investimento chegue aos 24% do PIB no final do primeiro mandato de Dilma, o que daria uma média anual superior a 19%. Além disso, pode-se fazer suposições mais otimistas para o crescimento da oferta do trabalho e, utilizando-se apenas o curto período de 2007 a 2010, projetar uma expansão anual de 2% na produtividade. Nesse caso, o crescimento efetivo superaria 5%. É pouco provável, entretanto, que esse cenário de sonhos, dependente da ocorrência simultânea de várias hipóteses otimistas, venha a se realizar. E há fatores concretos que não autorizam uma visão tão rósea do futuro. A começar pelo fato de a taxa de inflação estar acima da meta, e, por isso, estarmos vivendo um ciclo de aperto monetário. Trazer a inflação de volta ao centro da meta de 4,5% é um processo que, na visão quase consensual, deve durar pelo menos até o fim de 2012, consumindo, portanto, metade do atual mandato presidencial. A combinação à frente de elevada taxa de juros, algum ajuste fiscal e aperto das condições de crédito não se encaixa com projeções muito otimistas para o investimento nem para a oferta de trabalho, levando, por conseguinte, a uma visão não muito animadora do crescimento da economia no curto e médio prazo. Além disso, como tem sido apontado em diversas Cartas do IBRE, o maior inibidor ao crescimento brasileiro a taxas elevadas é a baixa poupança doméstica. Com uma taxa de poupança estável em um Em 2007, 2008 e patamar abaixo de 17% 2010, a expansão do PIB seria necessário da economia foi, um déficit em transações respectivamente, correntes superior a 7% de 6,1%, 5,2% do PIB para atingir-se os 24% do PIB de taxa de e 7,5%, o que investimento. Esse tamaaproxima o país nho do déficit externo é dos níveis asiáticos visto por diversos econode crescimento. mistas como perigosaTodavia, o atual mente próximo do limiar entusiasmo com de sustentabilidade para a capacidade de um país como o Brasil. crescimento do PIB Além disso, déficits externos dessa magnitude nacional pode ser correspondem a câmenganoso. Com bios muito valorizados, base em parâmetros mais valorizados do que realistas, chega-se a atual­ administração a um crescimento econômica tem dado potencial da mostras de tolerar. Perspectiva economia brasileira, ao longo dos próximos quatro anos, de 4,3% ao ano Com base nessa análise — e supondo-se a manutenção da consistência macroeconômica dos últimos 12 anos —, o crescimento médio da economia brasileira durante o primeiro mandato da presidente Dilma deve se situar em um patamar não muito acima de 4%. Assim, ao contrário do que ocorreu no mandato do presidente Lula em seus oito anos de governo, em que o ritmo de crescimento quase duplicou ante o de seu antecessor, Dilma governará um Brasil que manterá a trajetória do seu mentor político. 8 Carta do IBRE Março 2011 esteira dos aumentos reais. Somados ao Bolsa Família, são acréscimos significativos à renda de dezenas de milhões de famílias brasileiras. A contrapartida àquelas benesses é, além da elevação da carga tributária, o impacto negativo que a política gera no nível de emprego. No entanto, é importante destacar, que não há sinais de que a política de valorização real do salário mínimo tenha sido disfuncional para o comportamento do mercado de trabalho privado. Uma evidência quase direta é a queda na taxa de desemprego para 5,3% nas regiões metropolitanas no final de 2010, o menor nível desde o início da série do IBGE. A valorização real do salário mínimo tampouco provocou danos aos trabalhadores mais pobres na informalidade — desde 2004, o piso da renda real do trabalho no Brasil acompanhou o mínimo. É verdade que, na franja mais desqualificada dos trabalhadores, muitos provavelmente deixaram os seus baixos rendimentos para contar exclusivamente com as transferências da rede de proteção social ampliada. Esse efeito, porém, é aparentemente inevitável — e até desejável, para alguns — O período de 2003 a 2010 proporcionou a uma diante do impacto inexorável fatia expressiva da população brasileira ganhos do avanço tecnológico nas ocude bem-estar que não podem ser creditados pações. E, ao rarear o estoque de apenas à expansão média da produção trabalhadores desqualificados e e da renda da economia sem experiência dispostos a se empregar nos piores postos, a rede social tem o efeito indireto de aumentar o rendimento daqueles que, mesmo ampliação das transferências para as camadas popucom baixíssima ou nenhuma educação, têm prolares, incluindo os pobres e muito pobres. Para estes dutividade suficiente para permanecer no mercado últimos, o canal principal foi o Bolsa Família. Mas, de trabalho. com orçamento inferior a 0,4% do PIB, o programa De maneira mais geral, pode-se dizer que o não foi o responsável pelo grosso da elevação do pacote de políticas sociais implantado no governo dispêndio com transferências governamentais. Lula levou a uma significativa elevação da renda Esse papel coube, na verdade, à política de dos mais pobres, apesar do crescimento da ecovalorização do salário mínimo, que cresceu 63% nomia como um todo não ter sido tão expressivo. em termos reais no período 2003-2010. O salário De 2004 até 2010, nas regiões metropolitanas, a mínimo está atrelado ao piso da Previdência rural população ocupada cresceu à taxa de 2,4% ao e urbana, aos benefícios pagos a idosos pobres e ano, enquanto a população economicamente ativa ao seguro-desemprego. Houve por todos esses (PEA) teve alta média anual de 1,6%. canais grande ampliação das transferências na Em princípio, essa perspectiva deve parecer muito alvissareira para a presidente, levando-se em conta a fenomenal popularidade com que Lula despediu-se da presidência. Essa análise, no entanto, é simplista, uma vez que a velocidade nada espetacular de 4% ao ano de crescimento da economia não parece ser, como se verá adiante, o segredo do sucesso do governo Lula. Na verdade, o período de 2003 a 2010 proporcionou a uma fatia expressiva da população brasileira ganhos de bem-estar que não podem ser creditados apenas à expansão média da produção e da renda da economia. E, mais ainda, os ganhos futuros dificilmente continuarão a ocorrer com a mesma velocidade do governo Lula. Um primeiro ponto a se notar é que a carga tributária média nos oito anos do governo Lula atingiu 34% do PIB, em torno de quatro pontos percentuais acima do verificado nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso. Esse aumento na arrecadação foi convertido em sua maior parte em Março 2011 Comércio Carta do IBRE 9 pouco mais? É uma indagação de difícil resposta, tendo em vista o grande e complexo conjunto de variáveis envolvidas. Nesse contexto, não se pode deixar de arguir sobre o impacto da política de valorização do salário mínimo no nível de emprego. Até aqui, conseguiram-se ganhos reais no salário mínimo e redução na taxa de desemprego. No entanto, é possível que uma nova onda de valorização do mínimo tenha impacto negativo no mercado de trabalho. Em uma análise prospectiva, a própria regra de reajuste do salário mínimo sacramentada de forma aparentemente definitiva nessa última rodada de negociação — taxa de crescimento do PIB de dois anos antes mais a taxa de inflação do ano anterior —, indica que haverá substanciais ganhos reais a partir de 2012. Combinados com a necessária ênfase que a presidente Dilma coloca na retomada do investimento público, fica claro que não se deve esperar nenhuma trégua no front fiscal. Dessa feita, para manter e Outro fator presente na química do grande salto de percepção de melhora durante o governo Lula foi a valorização dos termos de troca da pauta de comércio brasileira. Na verdade, esse efeito pode ser percebido com maior intensidade a partir de 2009, na saída da grande crise global, devido, principalmente, à elevação do preço das commodities. No período 20032009, o ganho foi de 9%, e, até novembro de 2010, de 25,6%. Esse é um dos fatores por trás da valorização do real nos últimos anos. Em suma, é possível dizer que a combinação de aceleração do crescimento, forte redução do desemprego, alta dos termos de troca e aumento das transferências sociais, apesar da elevação da carga tributária, produziu o momento mágico de sensação de ganhos de bem-estar de boa parte da população nos anos finais do governo Lula. Como já se notou, esse sentimento positivo, que se traduziu na popularidade avassaladora do expresidente, vai muito além do que seria explicável pela simples aceleração do crescimento em Poderá a presidente Dilma manter a curva relação ao governo Fernando ascendente de melhora na distribuição de renda Henrique Cardoso. Nesse sentido, apesar de registrada no governo Lula, com o mesmo ritmo similaridades entre a ideologia de crescimento de 4% ao ano? moderadamente estatizante do final do governo Lula e a do período militar, em outros aspectos os dois períodos parecem quase oposampliar a agenda distributiva do governo Lula, tos. Enquanto no “milagre” houve crescimento aparentemente essencial para a popularidade excepcional, acima de 7% ao ano, com pouca presidencial, a sua sucessora precisará dar conatenção às políticas de distribuição de renda, os tinuidade à alta da carga tributária. Não se pode anos do presidente Lula apresentaram expansão perder de vista, no entanto, o risco em termos moderada do PIB e políticas que foram ao enconde perda de popularidade que o novo governo tro da melhora na distribuição de renda. corre ao adotar uma política arrecadatória mais Essa constatação, por conseguinte, leva a uma agressiva, uma vez que a carga tributária já se pergunta inevitável: poderá a presidente Dilma encontra no patamar de 36% do PIB. manter a curva ascendente de melhora na distribuição de renda registrada no governo Lula com 1 o mesmo ritmo de crescimento — sugerido pela A exceção foi 2009, quando a crise global levou o PIB a uma análise do produto potencial — de 4% ou um retração de 0,6%.