Excelentíssimo (a) Senhor (a) Juiz (a) da ___ Vara Federal Cível de Vitória, Seção Judiciária do Estado do Espírito Santo. DISTRIBUIÇÃO URGENTE O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República que esta subscreve, com fulcro nos arts. 127, caput e 129, III, da Constituição da República Federativa do Brasil; e arts. 5º, III, “e”, e V, “a”, e 6º, VII, “a”, “c” e “d”, da Lei Complementar n° 75/93; e arts. 4º e 5º, caput, da Lei nº 7.347/85, e com fundamento no Procedimento Administrativo nº 1.17.000.001370/2007-96 (cópia em anexo), vem, perante Vossa Excelência, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedido de antecipação de tutela em face, do ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, pessoa jurídica de direito público interno, representado por sua Procuradoria-Geral, situada na Av. Governador Bley, 236, Ed. Fábio Ruschi, 10/11º andares, Centro, Vitória/ES, CEP 29010-150; da UNIÃO, pessoa jurídica de direito público interno, representada por sua Advocacia-Geral, na pessoa do seu Procurador-Chefe, com endereço na Av. César Hilal, 1415, 6º andar, sl. 601, Santa Lúcia, Vitória/ES, CEP 29.052-231; da UFES – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, autarquia federal, pessoa jurídica de direito público, citada na pessoa de seu representante legal, na Av. Fernando Ferrari, s/n, Goiabeiras, Vitória/ES, CEP: 29.075-910, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos pelas razões fáticas e jurídicas expostas abaixo: 1 – Do Objeto. Fornecimento de medicamento de alto custo a pacientes portadores leucemia. Pretende-se com a presente Ação a prestação da tutela jurisdicional que assegure aos pacientes com quadro de leucemia mielóide crônica o fornecimento do medicamento MESILATO DE IMATINIB (GLIVEC) em regime de gratuidade, desde o momento em que haja prescrição médica do SUS, em consonância com a Constituição Federal, a Lei n.º 8.080/90 e a Norma Operacional da Assistência à Saúde – NOAS/SUS n.º 01/2002. A presente ação tem por objetivo não só garantir o imediato fornecimento do medicamento aos portadores de leucemia mielóide crônica como também evitar que no futuro novas demandas individuais voltem a se tornar corriqueiras em face da omissão estatal. Com efeito, trata-se pretensão de cunho coletivo que se dirige ao enfrentamento da situação presente e ao afastamento do fundado risco de não fornecimento no futuro. 1.1. Da eficácia do GLIVEC. Na Ação Civil Pública nº 2007.72.09.000511-0/SC, no bojo da qual se postula o fornecimento do GLIVEC em favor da paciente MARIA DA APARECIDA MARON GMACH, dentre outros, num indicativo de dosagem de 400mg ao dia em uso contínuo(fls. 05), se encontra receituário subscrito pela Dra. Karin Stoeterau. A questão foi assim descrita (fls. 04 e 04-v): “MARIA DA APARECIDA MARON GMACH Leucemia Mielóide Crônica Primeira fase crônica diagnosticada em 12 de abril de 2007, necessita iniciar tratamento de primeira linha com Imatinibe – Glivec 400mg/dia, via oral. Porém, a portaria Ministerial que orienta o tratamento desta doença no Sistema Público não autorizou esta medicação nesta fase da doença (primeira fase). Solicito viabilizar Glivec 400mg/dia 1cp/dia 30gr/mês uso contínuo para a paciente supracitada. Grata Karin Stoeterau 22/05/2007”. Na mesma ocasião, foi apresentado documento subscrito pela mesma médica expondo o mecanismo de atuação do medicamento: “Florianópolis, 21 de abril de 2007 Justificativa para solicitação de IMATINIBE para tratamento de primeira linha para pacientes com Leucemia Mielóide Crônica em primeira fase crônica A Leucemia Mielóide Crônica é uma doença mieloproliferativa clonal, caracterizada por uma translocação citogenética específica envolvendo os braços longos dos cromossomos 9 e 22 [t(9;22) (q34;q11), resultando em 2 derivativos, o 9q+ e o pequeno 22q-, conhecido como o cromossomo Philadelphia (Ph). A conseqüência molecular desta translocação recíproca entre os cromossomos 9 e 22 é a formação do gene de fusão Bcr-Abl (22q-) responsável pela codificação de uma proteína quimérica (p210), cuja atividade tirocino quinase é bem mais elevada que da proteína Abl normal. Esta atividade exacerbada da proteína p210 é crucial na potogênese da LMC através da ativação de sinais mitogênicos, redução da apoptose (morte celular programada) e adesão celular ao estroma, determinando assim uma vantagem proliferativa em favor das células leucêmicas sobre as células hematopoiéticas normais. A incidência anual é de 1 a 2 casos por 100.000 indivíduos, correspondendo a 7% a 20% das leucemias dos adultos. Trata-se de uma doença trifásica, com uma primeira fase crônica ou estável, caracterizada pela proliferação de células mielóides diferenciadas, com duração média de 4 a 6 anos, com posterior evolução através de uma fase acelerada para uma fase blástica, invariavelmente fatal. Quando tratada com quimioterápicos (hidroxiuréia e busulfan) a sobrevida média varia de 20 a 60 meses conforme fatores prognósticos, já com o tratamento a base de Interferon estes valores aumentaram para 45 a 102 meses, porém as custas de efeitos colaterais significativos causados por esta medicação (dores musculares, perda de peso, inapetência, astenia, hipotiroidismo e quadros auto imunes). Através do conhecimento preciso do mecanismo molecular responsável pela patogênese da LMC, iniciou-se a partir de 1990, estudos de compostos capazes de bloquear a atividade tirocino-quinase do gene Bcr-Abl, através de competição pelos sítios de ligação da molécula de ATP a esta enzima. Uma destas moléculas o STI-571 (IMATINIBE), mostrou-se altamente eficaz em inibir a proliferação das células que expressam Bcr-Abl tanto “in vitro” como “in vivo”. Os estudos fase II iniciaram-se em 1998 em pacientes com LMC em fase crônica que falharam ou foram intolerantes ao Interferon, bem como pacientes em fase acelerada e blástica. Os resultados mostraram-se bastante promissores especialmente na fase crônica onde, com dose média de 400mg ao dia, obteve-se resposta citogenética maior (<35% de células Ph+) em 66,3% dos pacientes sendo que destes 54,6% foram resposta citogenética completa, ou seja, 0% de células Ph+. A probabilidade estimada de manterse livre de progressão de doença (evolução para fase acelerada ou blástica), bem como a sobrevida global em 48 meses, foi de 74,6% e 82,4% respectivamente. No estudo prospectivo, multicêntrico, multinacional de fase III (International Randomized Study of Interferon and STI571/IRES) onde foram randomizados 1106 pacientes com LMC em primeira dase crônica para IMATINIBE 400mg via oral ou INTERFERON 5MU/m2 subcutâneo ao dia combinado com Aracetym 20mg/m2 por 10 dias, observou-se aos 18 meses de tratamento resposta citogenética maior (87% vs.35%), resposta citogenética completa (76% vs 14%), sobrevida livre de progressão (8% vs. 14%) e intolerância (1% vs. 19%) no grupo tratado com IMATINIBE e INTERFERON respectivamente. A partir destes dados preliminares o IMATINIBE passou a ser o tratamento de escolha para primeira linha em pacientes com LMC fase crônica, sendo aprovado pelo Food and Drug Administration em maio de 2001 e pela Europa e Japão em novembro de 2001 para uso rotineiro em diferentes estágios evolutivos da doença. Atualização recente do estudo IRES, com seguimento médio de 60 meses, demonstrou 98% de resposta hematológica completa, 92% de remissão citogenética maior, 87% de remissão citogenética completa nos pacientes tratados com IMATINIBE bem como apenas 5,1% de perda da resposta molecular maior e 6,3% de progressão para fase acelerada ou blástica no mesmo período. O transplante alogênico com células tronco hematopoiéticas é curativo em um grupo selecionado de pacientes, sendo mais efetivo quando realizado na fase crônica precoce (no primeiro ano do diagnóstico), onde a sobrevida média pode variar de 30 a 60% em dez anos. Apenas um terço dos pacientes terão um doador aparentado HLA compatível e mesmo nos pacientes que transplantam em ótimas condições (idade abaixo de 40 anos, fase crônica precoce, doador aparentado) e nos melhores centros transplantadores correm um risco de mortalidade associada ao procedimento de 10% a 20%. Estudo recente do grupo de Seattle com 131 pacientes transplantados em primeira fase crônica, com doador aparentado e idade média de 43 anos, a mortalidade não relacionada à recaída em 3 anos foi de 14% e a sobrevida livre de doença foi de 78%, sendo que 60% dos sobreviventes apresentavam-se com doença enxerto contra hospedeiro crônica extensa. Diante do que foi exposto fica claro que o IMATINIBE (GLIVEC) é a medicação de escolha para tratamento de pacientes com Leucemia Mielóide Crônica em primeira fase crônica. A portaria SAS número 431 de 03 de outubro de 2001 que estabelece as diretrizes para o tratamento da LMC do adulto no Brasil, liberando somente o uso de IMATINIBE (GLIVEC) para pacientes em primeira fase crônica refratários e ou intolerantes ao Interferon, está desatualizada e em não conformidade com as diretrizes já adotadas nos países da América do Norte e do continente Europeu. A maior sobrevida destes pacientes esta diretamente relacionada à utilização do IMATINIBE imediatamente depois de realizado o diagnóstico de LMC. A Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia está trabalhando junto ao Ministério da Saúde para que se altere a portaria em questão adotando-se os princípios já estabelecidos pelos estudos expostos, porém até o momento não obteve sucesso. O nosso dever como médicos especialistas é garantir o tratamento mais efetivo e com melhor qualidade de vida para os nossos pacientes. Dra. Karin Beatriz Lima Stoeterau CRM SC 5475”. Como se vê a eficácia medicamentosa do GLIVEC para o tratamento de leucemia mielóide crônica é inegável. Médicos vem se utilizando do medicamento para substituir o transplante de medula óssea. A correta dispensação do medicamento no momento adequado pode significar a diferença entre a vida e a morte. Aliás, a eficácia é reconhecida pelo próprio HUCAM, que mesmo que de modo absolutamente precário, vinha (ou vem) fornecendo esse medicamento. 2 – Dos fatos. Reiterada omissão estatal no fornecimento de medicamento essencial para o adequado tratamento de pacientes graves. Tramita nesta Procuradoria da República o procedimento administrativo nº 1.17.000.001370/2007-96, que monitora as atividades do HUCAM - Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes. No decorrer do procedimento, verificou-se várias representações apresentadas por portadores de Leucemia Mielóide Crônica necessitando do medicamento Mesilato de Imatinib (Glivec), deficientemente fornecido pelo HUCAM a pacientes que realizam tratamento oncológico nesse Hospital1. Num dos termos de declaração, encaminhado pelo GETIPOS do Ministério Público Estadual (fl. 130), o Sr. Aloísio da Silva Gonzada relatou que até aquela data, havia 28 pessoas cadastradas no Hospital para receber o medicamento, sendo que o Hospital só o havia adquirido para 10 pessoas. Frisou, inclusive, que o medicamento que possuía para usar em janeiro deste ano havia sido fornecido por outro paciente, pois se houvesse interrupção no tratamento poderia falecer. Com escopo em suas declarações, este parquet encaminhou ofício recomendatório ao Diretor-Geral do HUCAM, recomendando a regularização do fornecimento do medicamento, sob pena de responsabilização administrativa, civil e criminal (fl. 131). 1 Segundo declarações dos pacientes, o tratamento com o Glivec pode custar por mês até R$ 18.000,00 (dezoito mil reais). Também foi noticiada irregularidade no fornecimento pelo Sr. José Nilton Cuzzuol (fl. 146 do PA). Igualmente foi encaminhado ofício recomendatório à direção do hospital. A par disso, encontram-se nos autos outros relatos de irregularidades no fornecimento. São eles: a) a Sra. Maria Lemke Grulke (fl. 289 do PA), também portadora da doença, narra que vem encontrando dificuldades em obter o medicamento, mencionando “Estou passando por momentos em que necessito pegar alguns comprimidos emprestados com outros pacientes na condição de repô-los assim que consigo obter os meus.” b) Sra. Carmem Dea Sunderhus Pinto (fl. 296), relata que vem obtendo o “Glivec” com irregularidade, fato que vem contribuindo para a progressão de sua doença. Também a necessidade de “empréstimos” de medicamentos entre os pacientes em razão do fornecimento irregular. c) Jacyro José Ribeiro (fl. 298); Clodoaldo Travezani (fl. 305); Osmar Antônio Bugamaschi (fl. 307) e Delci da Silva Matos (fl. 330) também prestaram declarações nos mesmos termos. Por determinação do MPF, realizou-se no Auditório desta Procuradoria Audiência Pública com o Diretor do Hospital para discutir a questão. O Diretor-Clínico relatou que o HUCAM enfrenta problemas gravíssimos, tais como insuficiência no quadro de pessoal da UFES, a existência de muitos funcionários cedidos pela SESA ou terceirizados que laboram mediante convênio com outras entidades; déficit no financiamento nas ações do Hospital, que recebe uma grande demanda por serviços, sendo que em alguns casos o medicamento custa mais que o procedimento e o Hospital é ressarcido com base numa tabela inferior ao custo total (fls. 259/263). Objetivando apurar as irregularidades o Ministério Público Federal, em conjunto com Promotores de Justiça do GETPOS, obteve informações de que os pacientes que realizam tratamento oncológico, no âmbito do Sistema Único de Saúde, costumam receber os respectivos medicamentos dos “Centros de Alta Especialidade em Oncologia”, cujos serviços são regulados na Portaria nº 741/2005 da SAS/MS, incluindo-se o medicamento no custo do procedimento realizado. Conforme informações da SESA (fls. 154/155 do PA), que recebe recursos do Ministério da Saúde para custear, mediante ressarcimento, os procedimentos realizados pelos CAEOs, o HUCAM deve realizar o procedimento (e fornecer o medicamento). E a SESA, que gerencia os recursos específicos para este fim, emitirá APACs - Autorização de Exames de Alta Complexidade, com base na Tabela SIA/ONCO, para ressarcir o procedimento realizado (e o medicamento fornecido). Como o Glivec, tais como todos os medicamentos oncológicos, está excluído do rol dos medicamentos excepcionais, impondo as normas do Ministério da Saúde que o mesmo seja fornecido pelos CAEOs, que são ressarcidos pelas Secretarias Estaduais, o entrave burocrático acarreta graves transtornos físicos e psicológicos para pacientes leucêmicos, com freqüente agravamento do quadro. Na fl. 196 encontra-se solicitação do Departamento de Administração do HUCAM ao departamento financeiro, solicitando informações sobre dotação orçamentária para suportar a despesa referente ao custeio do medicamento Glivec 400mg para 20 pacientes. Na fl. 198, o Departamento Financeiro respondeu que o hospital se encontra endividado, sendo obrigado a transpor para o exercício seguinte as dívidas acumuladas, o que limitaria a ação administrativa. Concluiu aduzindo que não é possível gastar mais do que o legalmente autorizado. Por fim, registre-se que as Recomendações expedidas à SESA e ao HUCAM não restaram cumpridas. O histórico do problema já permite antever que o fornecimento do medicamento, caso não haja intervenção judicial, continuará absolutamente deficitário e irregular. Tudo indica que a postura omissiva dos entes demandados de não fornecer o medicamento continuará. Necessária a tutela jurisdicional para forçar o respeito ao direito constitucional à saúde. 3 – Da Competência da Justiça Federal. A competência da Justiça Federal no caso concreto encontra fundamento no artigo 109, I, da Constituição Federal de 1988. Figurando a União e a UFES como rés, justificada está, nos termos do artigo 109, I, da CF/88, a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento da presente demanda. Os recursos destinados à aquisição dos medicamentos a serem, posteriormente, fornecidos às pessoas são provenientes do Sistema Único de Saúde, de cujo financiamento participam, dentre outras fontes, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, consoante dispõe a Constituição Federal. Neste sentido é o art. 198 da Carta Magna2. O art. 9º da Lei n.º 8.080/90 estabeleceu também a participação de União, Estados e Municípios no financiamento e gestão. Por conseguinte, a União, em cumprimento ao seu dever de participar do financiamento do SUS, repassa ao Estado do Espírito Santo recursos para a finalidade apontada e gere programas, com a cooperação estadual, de alta complexidade. Já o HUCAM, órgão da UFES, tem o papel de executar os procedimentos relacionados aos pacientes oncológicos, quer utilizando recursos próprios, quer recorrendo ao ressarcimento preconizado pelas normas regulamentares já mencionadas. Com efeito, qualquer demanda relacionada ao problema do não fornecimento de medicamentos excepcionais envolverá inexoravelmente a União, por ser a principal financiadora e gestora dos programas de alta complexidade, e os Estados, por serem os principais executores locais dessas espécies de programas de alto custo. No caso em voga é inevitável ainda a inserção da UFES no pólo passivo, porquanto a maioria dos “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I. descentralização, com direção única em cada esfera de governo;II. atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;III. participação da comunidade.Parágrafo único. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”. 2 pacientes que reclamam das recorrentes faltas do remédio são pacientes tratados no Hospital Universitário. 4 – Da Legitimidade Passiva O art. 198 da Constituição Federal define o SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS – como as ações e serviços de saúde que integram uma rede regionalizada e hierarquizada, estabelecendo o princípio da diversidade da base de financiamento desse Sistema. A regra acima é válida tanto para o financiamento do atendimento e tratamento médicos, quanto para a aquisição dos medicamentos destinados aos pacientes e usuários do Sistema Único. Assim, os recursos para esse fim têm como fonte de financiamento, dentre outras, as da seguridade social e as orçamentárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, consoante dispõe a Constituição Federal. Por conseguinte, a União, em cumprimento ao seu dever constitucional de participar do financiamento do SUS, repassa recursos ao Espírito Santo, o que é realizado por diversos mecanismos, tais como transferência regular e automática fundo a fundo, remuneração direta por serviços produzidos ou ainda através da celebração de convênios específicos. No atendimento à diretriz da descentralização insculpida no art. 198, inciso I da Constituição Federal, as leis e normas infralegais que regem o SUS têm feito prever diferentes formas de gestão para os Estados e Municípios. A habilitação de tais entes federativos em formas mais avançadas de gestão impõe à União o ônus de repassar recursos de maior monta, ficando os outros entes federados, por sua vez, obrigados a garantir também um espectro maior de ações e serviços de saúde do rol daqueles devidos ao cidadão. As atribuições referentes à aquisição e dispensação de medicamento excepcionais são divididas entre a União e os Estados, vez que compete ao Ministério da Saúde efetuar o repasse de recursos destinados à aquisição dos mencionados medicamentos, e às Secretarias de Saúde dos Estados assegurar uma contra-partida de recursos financeiros para a aquisição e dispensação dos mesmos. Depreende-se, destarte, que o Sistema Único de Saúde ramifica-se, sem, contudo, perder sua unicidade, de modo que de qualquer de seus gestores podem/devem ser exigidas as “ações e serviços” necessários à promoção, proteção e recuperação da saúde pública3. Por fim, destaca-se, também, que embora a Norma Operacional da Assistência à Saúde – NOAS-SUS – 01/2002 preceitua ser responsabilidade solidária entre o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde dos Estados a garantia de acesso aos procedimentos de alta complexidade. Determina ainda, como já dito, que “a regulação dos serviços de alta complexidade será de responsabilidade do gestor municipal, quando o município encontrar-se na condição de gestão plena do sistema municipal, e de responsabilidade do gestor estadual, nas demais situações”. Da jurisprudência, por seu turno, sobre o dever constitucionalmente imposto a cada um dos entes federativos de garantir e promover a saúde, extrai-se do Egrégio Supremo Tribunal Federal: O preceito do artigo 196 da Carta da República, de eficácia imediata, revela que ‘a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitári“o às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação’. A referência, contida no preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos termos do artigo n° 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Já o caput do artigo informa, como diretriz, a descentralização das ações e serviços públicos de saúde que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade, afigura-se-me como fato incontroverso, porquanto registrada, no acórdão recorrido, a existência de lei no sentido da obrigatoriedade de se fornecer os medicamentos excepcionais, como são os concernentes à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS), às pessoas carentes. O município de Porto alegre surge com responsabilidade prevista em diplomas específicos, ou seja, os convênios celebrados no sentido da implantação do Sistema Único de Saúde, devendo receber, para tanto, verbas do Estado. Por outro lado, como bem assinalado no acórdão, a falta de regulamentação municipal para o custeio da distribuição não impede fique assentada a responsabilidade do Município. Decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito assegurado em lei. Reclamam –se do Estado (gênero) as atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da saúde 3 Neste sentido inclusive é a jurisprudência já consolidada do Supremo Tribunal Federal, como adiante se verá. e da segurança pública, cobertos, em si, em termos de receita, pelos próprios impostos pagos pelos cidadãos. É hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínimo de conforto suficiente para atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem.(...)” (Voto do Min. Marco Aurélio, proferido no RE 271.286-8-RS) (grifos acrescidos). Os demandados, portanto, como integrantes e gestores do Sistema Único de Saúde, figuram como partes passivas legítimas, uma vez que a decisão postulada projetará efeitos diretos sobre suas respectivas esferas jurídicas. Semelhantes esclarecimentos são corroborados pelo disposto no art. 17, VIII, da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, regulamentado pela Portaria 2.577/2006, que organiza a aquisição e distribuição de medicamentos excepcionais4. Quanto à UFES, é responsável em grande parte pela situação financeira caótica do HUCAM, e pelo não cumprimento de seu papel de fornecimento integral de procedimentos e medicamentos que são ministrados nos Centros de Alta Especialidade em Oncologia. As pessoas que procuraram este Ministério Público Federal em razão da falta do medicamento GLIVEC faziam o acompanhamento de suas moléstias no Hospital Universitário5. Considerando, porém, que o Hospital não possui personalidade jurídica própria, sendo que a proposta orçamentária aprovada para a UFES contempla também o HUCAM, vê-se que a requerida não vêm adotando providências com o fim de regularizar a situação do Hospital, visando à melhoria na prestação dos serviços que lhe são atinentes. Fica, assim, demonstrada a legitimidade passiva da União, do Estado do Espírito Santo, bem como da UFES, responsáveis solidários pela adequada prestação do objeto ora demandado. 5 – Da Legitimidade Ativa do Parquet Federal. 4 5 Por suas características e pelo seu custo os medicamentos oncológicos são classificados como medicamentos excepcionais. No entanto, não constam na lista de medicamentos excepcionais do MS em razão de sua operacionalização diferenciada (dispensação através dos CACON´s). Vide tópico dos fatos que demonstra vários casos de não fornecimento de medicamento pelo HUCAM. A Constituição Federal, em seu artigo 127, caput, delineia o papel do Ministério Público, atribuindo-lhe a missão de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis. No art. 129, II, comete-lhe a função de “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”. Já a Lei Complementar nº 75/93, em seu art. 5º, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, permite expressamente a promoção de ação civil pública para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. O Pretório Excelso já confirmou o óbvio: “Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante”. (trecho do voto do Min. Celso de Mello no RE nº 273.834-4/RS. 2ª Turma. Julg. 12/09/2000). Ademais, a proteção pretendida visa a atender especificamente a indivíduos que padecem de “Leucemia Mielóide Crônica”. É um caso típico de direito individual homogêneo indisponível cuja repercussão é coletiva. Assim, em regra, o beneficiário da prestação jurisdicional pretendida será concedido para pessoas portadores dessa patologia, que necessitam do medicamento que funciona como uma espécie de substituto do transplante de medula óssea. Por fim, ainda que se tratasse de demanda de cunho individual, haveria legitimidade do Ministério Público. Neste sentido, colacionamos jurisprudência recentíssima do Superior Tribunal de Justiça, constante no Informativo 344 (fevereiro/2008), que declara a legitimidade do Ministério Público ainda que não haja repercussão coletiva, ou seja, para defender direitos de pessoa carente individualmente considerada. MP. LEGITIMIDADE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REMÉDIOS. FORNECIMENTO. DOENÇA GRAVE. A Seção, por maioria, entendeu que o Ministério Público tem legitimidade para defesa de direitos individuais indisponíveis em favor de pessoa carente individualmente considerada, na tutela dos seus direitos à vida e à saúde (CF/1988, arts. 127 e 196). Precedentes citados: REsp 672.871-RS, DJ 1º/2/2006; REsp 710.715-RS, DJ 14/2/2007, e REsp 838.978-MG, DJ 14/12/2006. EREsp 819.010-SP, Rel. originária Min. Eliana Calmon, Rel. para acórdão Min. Teori Albino Zavascki, julgados em 14/2/2007. Assim, é pacífica a legitimidade do parquet federal para a propositura da presente ação. 6. Dos fundamentos jurídicos. Direito à saúde como decorrência do bem maior do sistema: o direito à vida digna. Reiterada omissão estatal no fornecimento de medicamento comprovadamente eficaz no tratamento oncológico. Problemas de gestão, de burocracia e de entendimento entre os entes responsáveis não podem afetar o fornecimento do medicamento. Impossibilidade da alegação da cláusula da reserva do possível quando se trata de direito à vida e há inúmeros gastos governamentais inegavelmente menos importantes que o relacionado à saúde. Os óbices opostos pelos gestores dos entes demandados são, basicamente, ausência de recursos para a aquisição de medicação, no caso do HUCAMUFES, e atribuição do CACON (HUCAM) para fornecimento do medicamento, no caso da Secretaria Estadual de Saúde. É óbvio que essas alegações não isentam os demandados do cumprimento do dever constitucional de fornecimento de serviços de saúde necessários para o gozo de vida digna. O artigo 196 da Constituição Federal estabelece que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Deflui-se desse dispositivo não uma mera ordem programática despida de conteúdo jurídico obrigacional, mas sim que o Estado está juridicamente obrigado a garantir o direito à saúde mediante políticas públicas, bem como exercer as ações e serviços de forma a promover, proteger e recuperar a saúde, sendo que a tal obrigação corresponde o direito subjetivo público de ver tais ações e serviços implementados. Nesse sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal: “EMENTA: PACIENTE COM PARALISIA CEREBRAL E MICROCEFALIA. PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS E DE APARELHOS MÉDICOS, DE USO NECESSÁRIO, EM FAVOR DE PESSOA CARENTE. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196). PRECEDENTES (STF). - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. Precedentes do STF. (STF, RE nº 273.834-4/RS. 2ª Turma. Rel. Min. Celso de Mello. Julg. 12/09/2000) Do voto do Min. Celso de Mello: “Nesse contexto, incide, sobre o Poder Público, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas - preventivas e de recuperação - que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República“. “O sentido de fundamentalidade do direito à saúde - que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas - impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional”. “Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito - como o direito à saúde - se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional”. A legislação infraconstitucional, regulando e estruturando o Sistema de Saúde constitucionalmente delineado, em atenção ao princípio da integralidade da assistência, dispôs especificamente sobre o aspecto da Assistência Farmacêutica, na forma a seguir exposta. O direito à saúde, tal como assegurado na Constituição de 1988, configura direito fundamental de segunda geração. Nesta geração estão os direitos sociais, culturais e econômicos, que se caracterizam por exigirem prestações positivas do Estado. Não se trata mais, como nos direitos de primeira geração, de apenas impedir a intervenção do Estado em desfavor das liberdades individuais. Neste sentido, Alexandre de Moraes, trazendo excerto de Acórdão do STF, preleciona que: “Modernamente, a doutrina apresenta-nos a classificação de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos. Como destaca Celso de Mello: ‘enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade’ (STF – Pleno – MS n° 22164/SP – rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 17-11-1995, p. 39.206)” (grifo acrescido)6. Destarte, os direitos de segunda geração conferem ao indivíduo o direito de exigir do Estado prestações sociais (positivas) nos campos da saúde, alimentação, educação, habitação, trabalho, etc. Cumpre ressaltar, outrossim, que baliza nosso ordenamento jurídico o PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, insculpido no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal e que se apresenta como fundamento da República Federativa do Brasil. 6 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 1998. p. 44-45. Daniel Sarmento, em sua erudita obra intitulada “A Ponderação de Interesses na Constituição”, assevera que: “Na verdade, o princípio da dignidade da pessoa humana exprime, em termos jurídicos, a máxima kantiana, segundo a qual o Homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio. O ser humano precede o Direito e o Estado, que apenas se justificam em razão dele. Nesse sentido, a pessoa humana deve ser concebida e tratada como valor-fonte do ordenamento jurídico, como assevera Miguel Reale, sendo a defesa e promoção da sua dignidade, em todas as suas dimensões, a tarefa primordial do Estado Democrático de Direito. Como afirma José Castan Tobena, el postulado primário del Derecho es el valor próprio del hombre como valor superior e absoluto, o lo que es igual, el imperativo de respecto a la persona humana. Nesta linha, o princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado. A despeito do caráter compromissório da Constituição, pode ser dito que o princípio em questão é o que confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na idéia de respeito irrestrito ao ser humano razão última do Direito e do Estado” (grifo acrescido)7. Visando concretizar o mandamento constitucional, o legislador estabeleceu preceitos que tutelam e garantem o direito à saúde. Nesse sentido são os artigos 1º e 2º da Lei n.º 8.212/91, que novamente confirmam que o acesso universal à saúde é direito de todos A Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, estabelece: “Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (...) Art. 4°. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das 7 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 59. funções mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde – SUS.”(grifos acrescidos). A lei n.º 8.080, de 19 de Setembro de 1990, em seu artigo 6º, inciso I, alínea d, inclui no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS) a “assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”. O artigo 7° da citada lei estabelece que as ações e serviços públicos que integram o Sistema Único de Saúde serão desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198, da CF, obedecendo, ainda, aos seguintes princípios: “Art. 7° (...) I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - Integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; (...) XI – conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população”. Verifica-se que um sem-número de normas expedidas pelo legislador ordinário têm por escopo a concretização do que a Constituição dispôs. Mesmo com todo esse esforço legiferante no sentido de deixar a magnitude do direito à saúde fora de qualquer dúvida, ainda assistimos a episódios como o narrado neste inicial. É dever do Sistema Único de Saúde fornecer não apenas os remédios constantes da lista oficial do Ministério da Saúde, mas, tendo em vista as particularidades do caso concreto e a comprovada necessidade de utilização de outros medicamentos, através de pesquisas científicas sérias e internacionalmente reconhecidas, impõe-se a obrigatória conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União e dos Estados, na prestação de serviços de assistência à saúde da população, de modo a prover os doentes acometidos por Leucemia Mielóide Crônica com os meios existentes e eficazes para seu tratamento. Não é inadequado, nestas alturas, lembrar que a Lei n.º 9.313, de 13/11/96, estabeleceu a gratuidade do fornecimento de toda a medicação necessária ao tratamento da AIDS, sendo perfeitamente cabível seu emprego analógico às demais doenças de um modo geral, e, face à sua suma importância ora transcreve-se: "Art. 1º - Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento. § 1º - O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde. (...) Art. 2º - As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento" (grifos acrescidos). No mesmo sentido é a orientação da NOAS-SUS n.º 01/2002, editada pela Portaria GM/373, de 27/2/2002, e resultante de negociação firmada pelos gestores de saúde de todos os níveis federativos, tendo sido previamente aprovada pela Comissão Intergestores Tripartite – CIT e pelo Conselho Nacional de Saúde – CNS. A NOAS-SUS n.º 01/2002 traça como estratégia principal de hierarquização dos serviços de saúde, na busca de maior eqüidade, o estabelecimento de um PROCESSO DE REGIONALIZAÇÃO, mediante a elaboração de um Plano Diretor de Regionalização – PDR. O item 3 da norma preconiza que: “O PDR fundamenta-se na conformação de sistemas funcionais e resolutivos de assistência à saúde, por meio da organização dos territórios estaduais em regiões/microregiões e módulos assistenciais; da conformação de redes hierarquizadas de serviços; do estabelecimento de mecanismos e fluxos de referências e contrareferência intermunicipais, OBJETIVANDO GARANTIR A INTEGRALIDADE DA ASSISTÊNCIA E O ACESSO DA POPULAÇÃO AOS SERVIÇOS E AÇÕES DE SAÚDE DE ACORDO COM SUAS NECESSIDADES.” (grifos acrescidos). Apregoa, ainda, a norma, o acesso dos cidadãos aos serviços de saúde, o mais próximo possível de sua residência, bem como “o acesso de todos os cidadãos aos serviços necessários à resolução de seus problemas de saúde, em qualquer nível de atenção, diretamente ou mediante o estabelecimento de compromissos entre gestores para o atendimento de referências intermunicipais” (grifos acrescidos). Após fornecer os conceitos-chaves a serem utilizados na implantação dos PDR’s no item 5, a NOAS estabelece, no item 6.1.1, alínea b, que “o PDR deve contemplar a perspectiva de redistribuição geográfica de recursos tecnológicos e humanos, explicitando o desenho futuro e desejado da regionalização estadual, prevendo os investimentos necessários para a conformação destas novas regiões/microregiões e módulos assistenciais, observando assim a diretriz de possibilitar o acesso do cidadão a todas as ações e serviços necessários para a resolução de seus problemas de saúde, o mais próximo possível de sua residência.” (grifos acrescidos). Ao dispor sobre A POLÍTICA DE ATENÇÃO DE ALTA COMPLEXIDADE/CUSTO NO SUS, a NOAS, no item 23, fixa o elenco de atribuições do Ministério da Saúde: “1.5 DA POLÍTICA DE ATENÇÃO DE ALTA COMPLEXIDADE/CUSTO NO SUS 23. A responsabilidade do Ministério da Saúde sobre a política de alta complexidade/custo se traduz nas seguintes atribuições: a – definição de normas nacionais; b – controle do cadastro nacional de prestadores de serviços; c – vistoria de serviços, quando lhe couber, de acordo com as normas de cadastramento estabelecidas pelo próprio Ministério da Saúde; d – definição de incorporação dos procedimentos a serem ofertados à população pelo SUS; e – definição de incorporação dos procedimentos a serem ofertados à população pelo SUS; f – estabelecimento de estratégias que possibilitem o acesso mais equânime diminuindo as diferenças regionais na alocação dos serviços; g – definição de mecanismos de garantia de acesso para as referências interestaduais, através da Central Nacional de Regulamentação para Procedimentos de Alta Complexidade; h – formulação de mecanismos voltados à melhoria da qualidade dos serviços prestados; i – financiamento das ações.” (grifos acrescidos) No item 23.1, exsurge, de forma inequívoca, a responsabilidade solidária da União e dos Estados-membros, por intermédio, respectivamente, do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde, para a garantia de acesso da população aos procedimentos de alta complexidade, verbis: “23.1. A garantia de acesso aos procedimentos de alta complexidade é de responsabilidade solidária entre o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde dos estados e do Distrito Federal.” (grifos acrescidos) Em norma dirigente (conceito de Canotilho), de conteúdo programático, os itens 26 e 27 da NOAS prescrevem que: “26. As ações de alta complexidade e as ações estratégicas serão financiadas de acordo com Portaria do Ministério da Saúde. 27. O Ministério da Saúde definirá os valores de recursos destinados ao custeio da assistência de alta complexidade para cada estado.” O item 44.2 da NOAS admite expressamente a contratação de serviços na rede privada sempre que não estiverem disponíveis na rede pública, ou mesmo quando, ainda que existentes na rede pública, sejam insuficientes para o atendimento da população: “44.2. O interesse público e a identificação de necessidades assistenciais devem pautar o processo de compra de serviços na rede privada, que deve seguir a legislação, as normas administrativas específicas e os fluxos de aprovação definidos na Comissão Intergestores Bipartite, quando a disponibilidade da rede pública for insuficiente para o atendimento da população”. Verifica-se, do teor desta novel Norma Operacional de Assistência à Saúde, que, no atendimento dos serviços de saúde, a União, por intermédio do Ministério da Saúde, abandonou a antiga posição de mero órgão de supervisão e distribuição de recursos, passando à condição de responsável solidária, nos serviços de média e alta complexidade. Não há dúvida, pois, quanto ao dever do Estado (gênero) de fornecer os medicamentos necessários para o tratamento de toda e qualquer enfermidade, ainda que não constem da listagem oficial do Ministério da Saúde e/ou não sejam, atualmente, fornecidos pelo SUS, porque não há como, limitando-se o texto constitucional, estabelecer que a obrigação de fornecer medicamentos está adstrita a uma lista oficial padronizada, quando os medicamentos listados não se demonstram eficazes à preservação da saúde e da vida. Não estamos aqui a defender que o SUS arque com medicina de resultados duvidosos. O que se pretende é que o Estado (gênero) forneça medicamento, de modo imediato, continuado e regular, já notoriamente tido como eficaz pela comunidade médica-científica. Efetivamente assistimos a lamentável episódio de falta de respeito pelo direito à saúde. E é certo que o Judiciário não pode ficar passivo diante do aqui narrado. Os tribunais pátrios têm, como não poderia deixar de ser, forçado a aplicação da extensa legislação constitucional, infraconstitucional e regulamentar que confere ao cidadão o direito inalienável à saúde, inclusive em casos mais delicados que o em voga. Vejamos: “PORTADOR DE DOENÇA RARA NECESSITANDO DE MEDICAMENTO IMPORTADO. INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ARTIGO 1, DA LEI NUM. 1.533/51. ALÉM DO ELEVADO SENTIDO SOCIAL DA DECISÃO, A CONCESSÃO DA SEGURANÇA, PARA COMPELIR O ÓRGÃO COMPETENTE A FORNECER O MEDICAMENTO INDISPENSÁVEL AO MENOR IMPÚBERE PORTADOR DE MOLÉSTIA RARA, NÃO VIOLA A LEI E SE HARMONIZA COM A JURISPRUDÊNCIA SOBRE O TEMA.” (grifos nossos). (Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Classe: RESP - RECURSO ESPECIAL – 57869. Processo: 199400383096. UF: RS. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data da decisão: 26/5/1998. Documento: STJ000215443. Fonte: DJ, DATA: 15/6/1998, PÁGINA: 99, Relator HÉLIO MOSIMANN). “MANDADO DE SEGURANÇA. DOENÇA RARA (FENILCETONURIA). IMPORTAÇÃO DE MEDICAMENTO PELO ESTADO (LOFENALAC). CONCESSÃO DA SEGURANÇA. (...) I - O ACÓRDÃO RECORRIDO, AO CONCEDER A SEGURANÇA, NÃO VIOLOU O ART. 1 DA LEI N. 1.533, DE 1951, ACHANDO-SE EM HARMONIA COM OS PRECEDENTES DESTA CORTE SOBRE A MATÉRIA.” (grifos não acompanham o original). (Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Classe: RESP RECURSO ESPECIAL – 57608. Processo: 199400371616. UF: RS. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data da decisão: 16/9/1996. Documento: STJ000132780. Fonte: DJ, DATA: 7/10/1996, PÁGINA: 37626. LEXSTJ, VOL.: 00090, PÁGINA: 167. Relator ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO). “CONSTITUCIONAL. RECURSO ESPECIAL. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE COM HEPATITE "C". DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO.1. Delegado de polícia que contraiu Hepatite "C" ao socorrer um preso que tentara suicídio. Necessidade de medicamento para cuja aquisição o servidor não dispõe de meios sem o sacrifício do seu sustento e de sua família. 2. O Sistema Único de Saúde-SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. 3. O direito à vida e à disseminação das desigualdades impõe o fornecimento pelo Estado do tratamento compatível à doença adquirida no exercício da função. Efetivação da cláusula pétrea constitucional. 4. Configurada a necessidade do recorrente de ver atendida a sua pretensão, legítima e constitucionalmente garantida, posto assegurado o direito à saúde e, em última instância, à vida (...) 5. Recurso especial provido.” (Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Classe: RESP RECURSO ESPECIAL – 430526. Processo: 200200447996. UF: SP. Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA. Data da decisão: 1/10/2002. Documento: STJ000458122. Fonte DJ, Data: 28/10/2002, Página: 245. RSTJ VOL.: 00164, Página: 126. RT VOL.: 00808, Página: 219. Relator LUIZ FUX). “CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO (INTERFERON BETA). PORTADORES DE ESCLEROSE MÚLTIPLA. DEVER DO ESTADO. DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE (CF, ARTS. 6º E 189). PRECEDENTES DO STJ E STF. 1. É dever do Estado assegurar a todos os cidadãos o direito fundamental à saúde constitucionalmente previsto. 2. Eventual ausência do cumprimento de formalidade burocrática não pode obstaculizar o fornecimento de medicação indispensável à cura e/ou a minorar o sofrimento de portadores de moléstia grave que, além disso, não dispõem dos meios necessários ao custeio do tratamento. 3. Entendimento consagrado nesta Corte na esteira de orientação do Egrégio STF. 4. Recurso ordinário conhecido e provido.” (Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Classe: ROMS - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 11129. Processo: 199900781210. UF: PR. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data da decisão: 2/10/2001. Documento: STJ000414682. Fonte DJ, Data: 18/2/2002. Página: 279. LEXSTJ VOL.: 00151. Página: 57. RSTJ VOL.: 00152. Página: 198. Relator FRANCISCO PEÇANHA MARTINS). “PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.” Observação: Votação: Unânime (STF – AGRRE/RS-271286. DJ, 24/11/00, pp 0101 – EMENT. VOL-02013-07, pp 01409) (grifos acrescidos). Corriqueiramente, a União alega a “reserva do possível” para se eximir da obrigação legal e constitucional de fornecer medicamentos. Entretanto, a jurisprudência do C. STF por mais de uma vez já se manifestou que os direitos fundamentais sociais devem preponderar em face de alegada ausência de recursos materiais8. Vejamos: RE-AgR 410715 / SP - SÃO PAULO AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 22/11/2005 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação DJ 03-02-2006 PP-00076 EMENT VOL-02219-08 PP-01529 RIP v. 7, n. 35, 2006, p. 291-300 Parte(s) AGTE.(S) ADV.(A/S) AGDO.(A/S) : MUNICÍPIO DE SANTO ANDRÉ : JOÃO GUILHERME SOUSA DE ASSIS : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Ementa E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratandose do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas 8 É de se atentar que os recursos jamais faltam para atividades governamentais de duvidosa importância, como as propagandas. públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO). ADPF 45. A “reserva do possível” só seria óbice à realização de políticas públicas absolutamente fundamentais, concretizadoras do direito à uma vida digna, se o Estado lograsse demonstrar cabalmente a ausência de recursos. Como é público e notório o dispêndio de verba para finalidades de relevância pública questionável (verbi gratia, a veiculação constante de propagandas que não se adequam ao comando do art. 37, § 1º, CF/88 – caráter meramente informativo), cremos que a objeção de falta de verbas não pode aqui ter lugar. Como se viu, o direito à saúde nada mais é do que decorrência do direito de maior estatura axiológica em nosso sistema jurídico-constitucional, o direito à vida. E não se trata de qualquer vida. Nossa Lei Maior quis assegurar o direito a uma vida digna, uma vida com plenitude e com a possibilidade de exploração de todas suas potencialidades. Negar o direito à saúde em toda a sua completude significa mesmo negar o direito à vida às pessoas portadoras de graves doenças que pretendem, legitimamente e com o amparo do nosso ordenamento constitucional, aliviar, melhorar ou curar seus males. 6 – Do Pedido de Antecipação de Tutela Dispõe o artigo 273 do CPC que: “Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I – haja fundado receito de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II – fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu”. (grifos acrescidos). No caso vertente, encontram-se reunidos todos os requisitos exigidos pela lei processual para o deferimento da tutela antecipada pleiteada. Quanto à verossimilhança da alegação, não há o que se questionar sobre a efetiva realidade dos fatos, pois que são incontroversos, como demonstra a cópia de trechos do procedimento administrativo nº 1.17.000.001370/2007-96. Há várias denúncias de pacientes que noticiam os danos sofridos em razão da irregularidade no fornecimento do Glivec. Patente, com base na documentação anexada, as conseqüências deletérias para a saúde dos indivíduos portadores que têm o tratamento interrompido. Também não é controvertido o fato de que a burocracia vem prejudicando o tratamento dos pacientes, na medida em que a União e o Estado se esquivam da obrigatoriedade de fornecer o medicamento, sob a alegação de que este compete exclusivamente ao HUCAM (que só é ressarcido posteriormente). Aliás, as recentes notícias veiculadas na mídia fazem com que o tema se torne de conhecimento notório. Tampouco se pode questionar a eficácia do remédio pleiteado para a leucemia mielóide crônica. Logo, a prova é inequívoca e a verossimilhança do direito está clara. Justifica-se, in casu, o pedido de antecipação da tutela, inclusive sem a prévia oitiva das pessoas de direito público demandadas, haja vista a extrema urgência e o evidente respaldo jurídico para o pleito buscado. A importância e gravidade do caso não só fundamenta mas, mais que isso, força a concessão da tutela de urgência, sob pena de se permitir que os entes estatais continuem sua postura irresponsável de deixar de fornecer medicamentos que sabem serem essenciais para a vida de inúmeras pessoas. O periculum in mora no caso paradigma ora enfrentado é notório e gritante, e decorre do risco da ocorrência de seqüelas irreversíveis à saúde dos pacientes que necessitam do remédio. Vejamos doutrina de Luís Roberto Barroso que abona essa necessidade de concessão de tutela de urgência em casos tais: “Qualificar um dado direito como fundamental não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica, destituída de qualquer conseqüência jurídica. Pelo contrário, a constitucionalização do direito à saúde acarretou um aumento formal e material de sua força normativa, com inúmeras conseqüências práticas daí advindas, sobretudo no que se refere à sua efetividade, aqui considerada como a materialização da norma no mundo dos fatos, a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.” (BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 3 ed. São Paulo: Renovar, 1996, p. 83). A jurisprudência tem reconhecido que em casos de prestação de serviço de saúde a resposta jurisdicional mais adequada é a concessão de tutela de urgência: “PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. TRATAMENTO DA AIDS. DIREITO À SAÚDE. DEVER DO PODER PÚBLICO. Presentes os pressupostos necessários à concessão da antecipação de tutela deferida em 1º grau de jurisdição. Direito à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada pela Constituição Federal no art. 196, sendo certo caber ao Poder Público o cumprimento desse dever, garantindo ao cidadão o acesso aos serviços médicohospitalares necessários ao tratamento da doença. Improvimento ao agravo de instrumento.” (Origem: TRIBUNAL - SEGUNDA REGIÃO. Classe: AG - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 79738. Processo: 200102010244979. UF: RJ. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data da decisão: 11/9/2002. Documento: TRF200086303. Fonte DJU, Data: 24/9/2002, Página: 257. Relator JUIZ PAULO ESPÍRITO SANTO). “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ATENDIMENTO À PESSOA DOENTE. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. I - Fornecimento de remédios à pessoa doente, com insuficiência renal, inclusive procedimentos da hemodiálise, é obrigação da União, caso os órgãos locais do SUS recusem o serviço ao argumento de não haver medicamento disponível. II - Em se tratando de questão de saúde que envolve risco de conseqüências irreversíveis, plausível a concessão de tutela antecipada. III - A saúde e a vida ainda que de um só indivíduo integram o universo do interesse público, já que o alijamento da pessoa em virtude da doença desfalca a própria coletividade. IV - Agravo de Instrumento improvido.” (Origem: TRF - PRIMEIRA REGIÃO. Classe: AG - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 01000913520. Processo: 199901000913520. UF: MG. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data da decisão: 20/3/2001. Documento: TRF100109150. Fonte DJ, Data: 9/4/2001, Página: 87. Relator JUIZ JIRAIR ARAM MEGUERIAN). “AGRAVO DE INSTRUMENTO – ANTECIPAÇÃO DE TUTELA INAUDITA ALTERA PARS – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - PRESENÇA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES – SITUAÇÃO DE RISCO EXCEPCIONAL. I – Melhor doutrina e jurisprudência posicionam-se pelo cabimento da concessão da tutela antecipada inaudita altera pars em situações excepcionais como a presente; II – A verossimilhança das alegações e o perigo de dano irreparável apresentam-se de forma inconteste no caso em tela. O primeiro configura-se nos documentos acostados aos autos, bem como no fato de o pedido se basear em direito garantido na Constituição Federal de 1988 e em legislação ordinária (Lei n.º 9.313/96). O segundo está caracterizado diante do notório risco de vida que a enfermidade exposta traz ao seu portador, tornando indispensável o fornecimento dos medicamentos pleiteados; III – Agravo de Instrumento provido, concedendo a antecipação de tutela pleiteada nos termos da exordial da ação principal. Prejudicado o Agravo Regimental.” (Origem: TRIBUNAL - SEGUNDA REGIÃO. Classe: AG - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 58801. Processo: 200002010318508. UF: RJ. Órgão Julgador: QUARTA TURMA. Data da decisão: 18/6/2002. Documento: TRF200088435. Fonte DJU, Data: 27/11/2002, Página: 246. Relator JUIZ VALMIR PEÇANHA). Ademais, no presente caso também é plenamente aplicável o artigo 461, do CPC, quanto ao cabimento de “providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”. Destarte, tendo em vista a gravidade e urgência do caso, impõe-se a determinação das medidas necessárias inclusive multa, e em caso de insistência de inadimplemento, prisão, em face do eventual descumprimento de ordem judicial à efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, qual seja, o amplo e irrestrito acesso ao medicamento GLIVEC (MESILATO DE IMATINIB) em regime de gratuidade, aos pacientes portadores de Leucemia Mielóide Crônica. Todos os requisitos legalmente exigidos para o deferimento da antecipação do provimento jurisdicional encontram-se presentes. 7 – Dos Pedidos Em razão do exposto, o Ministério Público Federal requer a Vossa Excelência: a) a concessão de tutela antecipada para determinar ao Estado do Espírito Santo, à União, e à Universidade Federal do Espírito Santo, esta, quanto aos pacientes que realizem tratamento oncológico perante o HUCAM, a adoção imediata, sob pena da adoção de medidas coercitivas possíveis para forçar o cumprimento da decisão, inclusive multa e prisão, de todas as medidas administrativas necessárias à aquisição imediata do medicamento GLIVEC (MESILATO DE IMATINIBE), inclusive com a eventual importação do mesmo, caso a droga não esteja disponível no mercado nacional, nos quantitativos que se façam necessários à atual e futura demanda, de acordo com prescrição médica, e disponibilização imediata e contínua, para tratamento ambulatorial de todos os demais pacientes deste Estado que dele necessitem, conforme prescrição médica subscrita por médico do SUS, até o trânsito em julgado da presente ação; a.1) A fim de se evitar discussões de como se cumprir a antecipação da tutela, que esse MM. Juízo Federal determine que o ESTADO primeiramente forneça integral e imediatamente o medicamente em questão, no caso dos pacientes atendidos perante outros hospitais que não o HUCAM, podendo depois acertar tais gastos com os outros demandados solidários; a.2) Em relação aos pacientes em tratamento perante o HUCAM, requer que esse d. Juízo determine que a Direção-Geral do Hospital tome as providências para que o hospital forneça integralmente e imediatamente o medicamente em questão. b) a concessão de tutela antecipada inibitória no sentido de expedição de ordem judicial de proibição de renovação das práticas ilícitas descritas – não fornecimento da medicação quando solicitada por médico do SUS – com o estabelecimento de multa ao gestor – pessoa física – e ao demandado, sempre que houver mora injustificada e comprovada por mais de 15 dias no fornecimento aos pacientes portadores de leucemia mielóide crônica;9 9 Lembramos que o provimento inibitório tem como diferencial a eficácia direcionada ao futuro, além da suficiência de prova de probabilidade da verificação de dano futuro (neste sentido, vide por todos Marinoni, Indica o Ministério Público Federal como valor para a cominação de multa diária pessoal ao agente público responsável, o valor de R$ 1.000,00 (mil reais) por dia de atraso injustificado para cada paciente portador de receituário prescritivo do medicamento subscrito por médico do SUS; e R$ 5.000,00 (cinco mil reais) à pessoa jurídica de direito público responsável. 7.1– Dos Pedidos Definitivos Ante todo o exposto, o Ministério Público Federal vem requerer a Vossa Excelência: a) a citação de todos os réus para, querendo, responderem a presente ação, sob pena de revelia; b) a condenação da UNIÃO, do ESTADO DO ESPÍRITO SANTO e da UFES de forma solidária, em obrigação de fazer, consistente no fornecimento imediato do medicamento identificado, pelo tempo necessário ao tratamento, sempre que houver prescrição médica expedida por médico do SUS; c) a imposição de ordem inibitória definitiva à UNIÃO, do ESTADO DO ESPÍRITO SANTO e da UFES, com a cominação de multa pessoal ao gestor responsável e ao ente demandado sempre que houver mora provada e injustificada no fornecimento por mais de 15 (quinze) dias do medicamento objeto desta inicial; d) a publicar a sentença definitiva a ser proferida nos presentes autos nos jornais de maior circulação em âmbito nacional, estadual e local, em três dias alternados, sem, contudo, fazer menção a nome ou identificação dos pacientes beneficiados; e) a dispensa do pagamento das custas, emolumentos e outros encargos, em vista do disposto no artigo 18, da Lei n.° 7.347/85; f) a condenação, em caso de descumprimento das obrigações contidas no provimento condenatório de obrigação de fazer, com fulcro no art. 11, da Lei nº jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5041 7.347/85, em multa a ser fixada pelo prudente arbítrio desse MM. Juízo Federal; g) embora já tenha apresentado o Ministério Público Federal prova préconstituída do alegado, protesta, outrossim, pela produção de prova documental, testemunhal, pericial e, até mesmo, inspeção judicial, que se fizerem necessárias ao pleno conhecimento dos fatos, inclusive no transcurso do contraditório que se vier a formar com a apresentação de contestação. h) – requer, por fim, com escopo no art. 11, da Lei nº 7.347/85, a cominação de multa diária pessoal ao agente público responsável, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), bem como à pessoa jurídica de direito público responsável. Dá-se à causa o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) para fins de alçada. Vitória/ES, 18 de abril de 2008. ANDRÉ PIMENTEL FILHO Procurador da República