Julho 08 Desafios [Wilson Jacob Filho] [Professor Titular da Disciplina de Geriatria da Faculdade de Medicina da USP] h t t p : / / w w w . g e r o s a u d e . c o m . b r Fui com minha irmã a um asilo de idosos, destes que vivem da abnegação de uma ordem religiosa e das doações de pessoas generosas, seja na forma de bens ou de trabalho. Em um local assim, experimentam-se diversas e profundas emoções. Mais intensas, a meu ver, do que quando visitamos um orfanato. Para tal, tenho uma boa explicação: todos já sabemos que crianças fomos, mas não que idosos seremos. Esta indefinição é angustiante para muitos, pela possibilidade de vir a passar, no futuro, por situação em algum aspecto semelhante a esta. Passados, porém, os primeiros instantes de impacto, é possível atentar para as inúmeras peculiaridades dos espaços, objetos, cuidadores e, principalmente dos moradores: sons, odores e imagens se misturam como num grande caleidoscópio ambiental. Há motivos, a todo tempo, para externar o pranto, a exclamação ou o riso. Por atuar amiúde nestas instituições, dei-me por satisfeito em conhecer seus aposentos e voltei ao pátio de entrada, onde a maioria dos idosos capazes de ficar em cadeira de rodas se agrupava, um ao lado d’outro, em um silencioso convívio com os visitantes. Em meio a este cenário de múltiplas percepções, atentei para um dos moradores, com o lado esquerdo do corpo semi paralisado, segurando uma vassoura com a outra mão, e com ela varrendo as folhas e gravetos que haviam caído daquele lado da calçada. Chamavam a atenção os detalhes daquela meticulosa atividade, cuidadosamente realizada apesar da grande limitação. Perguntei-me o que motivaria alguém, naquelas condições, a se dedicar a um trabalho que, para muitos não teria grande importância. Enquanto meditava sobre esta forma peculiar de agir, lembrei-me de um relato que li, quando ainda criança, sobre a intenção de manter em cativeiro, um pequeno mamífero carnívoro que vivia naturalmente à beira-rio. Todas as tentativas de alimentálo surtiram infrutíferas. Os mais variados tipos animais, vivos ou mortos, inteiros ou em pedaços, lhe foram oferecidos e sequer foram tocados. Invariavelmente, todos os espécimes que participaram desta tentativa de ambientação morreram à míngua. Numa das vezes, porém, ao lançar o pedaço de peixe dentro do cercado, o tratador fez com que este caísse involuntariamente dentro do recipiente que servia de bebedouro. Ao ouvir o som do impacto n’água, o animal prontamente pôs-se alerta, subiu nos galhos da pequena árvore que lá havia e deu um salto preciso sobre vasilha, “caçando” a presa que acabara de ser lançada. Pela primeira vez, o tratador viu aquele animal se alimentar e prontamente entendeu que, para que isto ocorresse, ele precisava sentir-se capaz de participar ativamente da sua conquista, mesmo estando em um ambiente onde lhe fora tolhida a liberdade. h t t p : / / w w w . g e r o s a u d e . c o m . b r Estava eu, portanto, diante de alguém com sentimento semelhante. Aquele homem, embora limitado, não se permitia passar sentado ou deitado o dia todo, apenas a espera de cuidados e alimentos. Tinha a necessidade de fazer algo que lhe justificasse a existência. Por não abdicar dos seus desafios, tornou sua vida ilimitada, a despeito da sua duração. Prestei bem atenção à sua fisionomia enquanto retornava ao portão de entrada. Serena, expressava o incomparável prazer do fazer bem feito. Não emitiu nem ouviu qualquer comentário. Bastava-lhe a agradável sensação de estar vivo e ativo para poder testar constantemente os seus limites. Quisera que todos pudessem sentir-se assim nas diferentes fazes das suas vidas. Este texto foi originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo em 17/07/2008 h t t p : / / w w w . g e r o s a u d e . c o m . b r